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GUIMARÃES NETO, S.L.; FIGUEIREDO, D.D.; MORAIS, F.S.T. Estudos em
Ciências Jurídico-Criminais, Volume I. Lisboa: AAFDL, 2017, p. 11-38.
Resumo: O tema deste trabalho é a coação moral como causa de desculpa penal em
Portugal e no Brasil. Tenciona-se demonstrar os fundamentos e requisitos da situação
coação moral e, principalmente, a imprescindibilidade de se individualizar a culpa
do autor do fato. A discussão é enriquecida pela análise de um recente precedente do
Supremo Tribunal de Justiça português, por nós criticado por demonstrar a negligên-
cia dos tribunais com a individualização da culpa.
INTRODUÇÃO
À primeira vista, o título do presente ensaio pode causar certa perplexidade, pois
não é usual encontrar a expressão coação moral desculpante em Portugal ou no Bra-
sil. Apesar disso, a titulação tenciona deixar claro que o objeto deste estudo é a si-
tuação de coação moral com reflexos na culpa do autor.
Interessa-nos analisar os fundamentos legais e doutrinários da desculpa penal por
coação moral e, como não poderia deixar de ser, como a jurisprudência dá concretude
1
O presente texto corresponde, com algumas alterações, ao relatório apresentado na Cadeira de Di-
reito Penal do Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa.
2
Mestrando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Graduado pela Faculdade de Direito
da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Ja-
neiro (Brasil), desde 2008. 11
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
4
Processo 98P1434 (número convencional JSTJ00036329), acordão nº 485, de 17/03/1999, Relator Vir-
gílio Oliveira, disponível em: <http://www.stj.pt/jurisprudencia/basedados>.
5
Segundo o Tribunal de Coimbra, o arguido G aderiu “aos propósitos dos dois arguidos D e A, de forma
voluntária e deliberada, de comum acordo com os demais, não obstante ter a possibilidade de abandonar
o local”.
6
De acordo com o asseverado pelo Relator, a defesa teceu os seguintes argumentos: a) “face aos factos
dados como provados (designadamente as ameaças que o recorrente sofreu, bem como as tentativas que
fez para abandonar o local, mal se apercebeu dos desígnios dos outros dois arguidos), como é possível o
douto acórdão recorrido considerar que o arguido G agiu livre, deliberadamente e de comum acordo com
os restantes arguidos?”; b) “se o arguido G agiu desde o princípio fortemente coagido, conforme decorre
do próprio texto do acórdão recorrido, isso significa que agiu sem liberdade”. 13
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
a coação moral não retira o dolo, ou seja, a vontade de agir direcionada a prática do
crime. Em verdade, o agente sob coação moral atua com vontade própria, mas sua
escolha não é livre e, por essa razão, não censurável.
A solução do caso, a nosso sentir, centraliza-se na questão do requisito da inexigi-
bilidade de comportamento diferente, que o acórdão parece ter tratado como sendo
a “a ausência de racionalidade ou proporcionalidade” no comportamento do recor-
rente, conforme exporemos no último capítulo.
Por fim, o STJ sequer cogitou a possibilidade de adequação do caso ao homicídio
cometido por desespero ou compreensível emoção violenta7, qual seja o medo, apesar
de ter restado consignado na dosimetria da pena que o arguido se beneficiaria “do
estado emotivo derivado das ameaças”, de sua idade “inferior à dos outros dois”8,
bem como por de sua“confissão e arrependimento sincero”.
7
Art. 133º Homicídio Privilegiado. “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção vio-
lenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente
a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
8
Consoante o acórdão, o arguido G tinha 19 anos à época dos fatos, enquanto os arguidos A e D tinham,
respectivamente, 30 e 24 anos.
9
PALMA, 2005: 26, n. 14. No mesmo sentido: SILVA DIAS, 1986: 150-151.
10
JESCHECK, 1981: 653-654.
11
Em Portugal, diferentemente do Brasil, também podemos incluir como causa de desculpa o excesso na legítima
defesa, desde que o excesso resulte de perturbação, medo ou susto não censuráveis (art. 33º, nº 2 do CP). Também
indicando o excesso de legítima defesa como causa de desculpa na Alemanha: ROXIN, 2008: 791.
12
PALMA, 2005: 26, n. 14. 15
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
O atual Código Penal português (em vigor desde 1982) — em boa medida — ado-
tou claramente a teoria diferenciadora do estado de necessidade, com a previsão do
direito de necessidade (estado de necessidade justificante) no art. 34º e do estado de
necessidade desculpante no art. 35º, tornando desnecessária a previsão da coação
moral como causa autônoma de desculpa. Com efeito, veremos que todo enredo que
envolve a situação de coação moral coincide, invariavelmente, com os requisitos do
direito de necessidade ou do estado de necessidade desculpante previstos no CP por-
tuguês. Efetivamente, o coacto se vê diante de um perigo atual, qual seja a ameaça
propalada pelo coator, a qual não pode vencer sem ceder à prática do fato criminoso
comandado pelo último. Esta situação, potencialmente será abarcada pelo art. 34º ou
pelo art. 35º do CP português19.
A bem da verdade, quase toda situação de coação moral se enquadrará como estado
de necessidade desculpante, pois dificilmente estaremos diante de uma situação coativa
justificante, apesar de não se poder descartar20. Com efeito, à luz do art. 34º do Código
Penal português, desde que: o bem salvaguardado seja sensivelmente superior ao mal
causado, o perigo não seja provocado pelo próprio necessitado (coacto) e que seja ra-
zoável exigir-se da vítima suportar a lesão, poderemos estar diante de uma coação
moral adequada ao exercício de um direito de necessidade e, portanto, justificante.
Malgrado o raciocínio acima, há quem entenda, conforme lembrado por Straten-
werth21, que jamais a conduta de um coacto poderá ser justificada, uma vez que mesmo
com um poder reduzido de escolha, o agente opta por praticar uma conduta típica, co-
locando-se, ainda que de modo forçado, ao lado do ilícito. Ou seja, inviabilizar-se-ia
a justificação, mas permitir-se-ia a consideração da coação como causa de desculpa.
Contudo, Stratenwerth discorda dessa linha de raciocínio e em sua obra defende
que para fins de justificação não importa a fonte do perigo (se humana, como na coa-
ção moral, ou natural) ou mesmo a colocação “voluntária” do coacto a serviço do
autor mediato. Nesses casos, bastaria que o coacto atuasse na tutela de um interesse
sensivelmente superior ao dano imposto ao lesado para se considerar justificada a
conduta. No mesmo sentido leciona Jakobs22, frisando ser temerária a perene impu-
tação de ilicitude ao coacto, que nada mais é do que um instrumento do crime, este
sim praticado em autoria mediata pelo coator. Para Jakobs, se o coacto atua na tutela
de um interesse sensivelmente superior, sua ação não contraria a ordem jurídica.
Para nós, a melhor solução é trazida por Roxin, que, por sinal, coaduna-se com a
opção do Direito português. Segundo o mestre, não se pode ter em mente apenas a
equação de um saldo positivo entre os interesses tutelados e violados para se verificar
a conformação de uma conduta com o ordenamento jurídico. Ou seja, não basta que
o coacto proteja um interesse superior àquele por si violado gerando um saldo positivo
19
A nosso sentir, a opção do Direito português (certamente de inspiração germânica) em tratar a coação
moral como inclusa nas situações de estado de necessidade, ora excluindo a ilicitude e ora excluindo a
culpa, é bem melhor que a solução brasileira. No Brasil, a coação moral foi erigida a uma causa autônoma
de exclusão da culpa, o que para nós é um equívoco e será melhor explorado nos itens 3.2 e 3.3.
20
No sentido do texto: PALMA, 2005: 196-197.
21
STRATENWERTH, 2000: 209.
22
JAKOBS, 2009: 592-593. 17
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
entre os interesses em jogo. A tomada de parte pelo coacto em um fato típico é tam-
bém um fator a ser levado em consideração (juntamente com a preponderância dos
bens salvaguardados), que por si só não impede a justificação da conduta, mas cer-
tamente pesa contra ela23. Isso significa que, na tutela de um interesse superior (v.g,
vida), caso o coacto pratique um fato típico de pouca gravidade, como um pequeno
furto ou mesmo uma lesão corporal de pequena monta, o ordenamento jurídico acei-
tará que o titular do bem jurídico violado suporte a lesão, em virtude de um dever
geral de solidariedade. É esse dever de solidariedade que poderá legitimar a imposi-
ção de sacrifícios à vítima do agente necessitado. Com isso, caso o coacto venha a
praticar crimes de maior gravidade, mesmo havendo um saldo positivo a favor do in-
teresse por ele protegido, não poderia o ordenamento jurídico exigir solidariedade ao
ofendido24, desaguando a conduta na ilicitude.
Como exemplos de condutas que não se inserem no dever de solidariedade do le-
sado, poderíamos citar os crimes contra direitos pessoalíssimos da vítima, como a
vida, a liberdade sexual, etc. Além disso, também não haveria solidariedade em cri-
mes com emprego de violência severa ou grave ameaça, como o roubo.
Nessa linha, no caso típico do cotidiano brasileiro25, quando o gerente de um es-
tabelecimento bancário tem sua família sequestrada e, sob ameaça de morte, acom-
panha um dos criminosos e lhe dá acesso ao cofre da instituição financeira, não
poderia haver justificação. Nessa hipótese, o coacto atua para salvar a vida de seus
familiares, auxiliando na prática de uma subtração de elevadíssimo valor, o que gera
um saldo positivo em favor dos interesses salvos (vida e liberdade v. patrimônio).
Contudo, não seria exigível solidariedade da instituição financeira em suportar tão
elevado dano patrimonial (considerando, é claro, que os cofres de instituições finan-
ceiras contêm grande quantia de dinheiro). Assim, a ação do gerente coagido perma-
neceria antijurídica, mas certamente desculpável26.
Além desses casos, Roxin chama a atenção para crimes praticados pelo coacto
cujo interesse violado é coletivo, como o falso testemunho. Para o autor, apesar da
vida da testemunha coagida ser superior ao interesse da administração da justiça, não
haveria um dever de solidariedade, haja vista os grandes prejuízos coletivos que tal
aceitação poderia causar. Assim, o caso seria de desculpa e não de justificação27.
Analisando-se o art. 34º do CP português, parece-nos que o dispositivo se adequa
perfeitamente ao posicionamento de Roxin, pois além de exigir que o agente res-
23
ROXIN, 2008: 702-703.
24
PALMA, 1990: 128-130 e 134-135.
25
NUCCI, 2010: 249.
26
Comentando situação análoga na qual o gerente bancário é constrangido a entregar o dinheiro do Banco
em troca de reféns sequestrados por criminosos: ROXIN, 2008: 703. Na hipótese, o autor assume que caso
o gerente ceda à chantagem para salvar a vida dos reféns não haverá justificação por estado de necessidade,
muito embora cogite existir justificação por um consentimento presumido do ofendido.
27
ROXIN, 2008: 703. Outro caso curioso também citado por Roxin (p. 703-704) é quando organizações
criminosas ou grupos terroristas ameaçam matar reféns para que o Estado liberte um ou mais presos peri-
gosos. Para o autor, embora a vida dos reféns seja superior ao perigo inerente à libertação de presos peri-
gosos e à própria autoridade do ordenamento jurídico (claramente violada), não há obrigação do Estado
18 em solidarizar-se, cedendo aos criminosos em nome da vida dos reféns.
1.ª Parte – Direito Penal
guarde um interesse sensivelmente superior (alínea b), previu que a justificação so-
mente ocorrerá caso seja “razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em
atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado” (alínea c). E, certamente,
nunca será razoável impor ao lesado um exagerado sofrimento, porque nesse caso
não haverá dever de solidariedade social.
Diante do exposto, percebe-se que apesar de possível, dificilmente uma coação
moral será justificante, razão pela qual resolvemos tratar com mais detalhes da coação
moral como causa de desculpa.
Desta feita, importante será nos debruçar sobre o art. 35º do CP português, cuja
atual redação prevê que atua em estado de necessidade desculpante o agente que pra-
ticar um fato ilícito adequado a afastar um perigo atual, não removível de outro modo,
que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de ter-
ceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, com-
portamento diferente.
Percebe-se que quando estamos no campo da culpa, não mais nos importa se o in-
teresse protegido pelo coacto será superior ou inferior ao violado, ficando de lado o
critério da ponderação de bens e (de certo modo) da razoabilidade de se impor um
grave dano à vítima28. Apesar disso, como estamos diante de um fato reconhecida-
mente antinormativo, a lei portuguesa somente admitirá a desculpa caso o coacto atue
na proteção de bens pessoalíssimos (ou personalíssimos), do próprio ou de terceiro,
tais como a vida, a integridade física, a liberdade e a honra. Essa postura legal de se-
lecionar os interesses passíveis de serem defendidos via estado de necessidade sub-
jetivo vai ao encontro do que dissemos no capítulo 2, nomeadamente sobre a desculpa
demandar não apenas uma severa restrição da liberdade de decisão, mas também um
rebaixamento do injusto. E, como vimos, só é possível diminuir o desvalor do resul-
tado da ilicitude quando atuamos em nome de interesses essencialmente especiais,
como os personalíssimos.
3.2. Brasil
Diferentemente da tradição portuguesa, os Códigos Penais brasileiros não trilha-
ram o caminho da inserção do instituto da coação moral no âmbito do estado de ne-
cessidade, preferindo sua autonomização.
À procura dos dispositivos que regularam a matéria no passado, encontramos o
primeiro Código Penal brasileiro (1830), que previa no art. 10º, §3º que “não se jul-
garão criminosos: os que commetterem crimes violentados por força, ou por medo
irresistíveis”. A seu turno, o Código que o sucedeu (1890) dispunha que o agente não
seria considerado criminoso se praticasse o fato movido por ameaças atuais29.
O Código Penal de 1940 conferiu expressamente um tratamento autônomo à coa-
ção moral, definindo-a como excludente de responsabilidade penal em seu artigo
28
Adiante veremos que o princípio geral de solidariedade social também terá relevância nas causas de
desculpa, nomeadamente quando estivermos diante de manifesta desproporção entre o interesse salvado
e o mal causado.
29
“Art. 27. Não são criminosos: § 5º Os que forem impelidos a cometer o crime por violência física irre-
sistível, ou ameaças acompanhadas de perigo atual;” 19
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
1830. Um dos arquitetos do Código Penal de 1940, Hungria31 deixou clara em sua
obra a opção do legislador pela teoria unitária do estado de necessidade, erigindo a
coação moral como causa autônoma de exclusão da culpabilidade (para nós, causa
de desculpa).
Décadas mais tarde, precisamente no ano de 1984, a parte geral do CP de 1940
viria a ser completamente reformada, muito embora o instituto da coação moral não
tenha sido substancialmente alterado, conforme a atual redação do art. 22: “Se o fato
é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifesta-
mente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.
Apesar de o texto legal dispor sobre uma ausência de punição do agente coagido,
o que poderia remeter o intérprete a uma causa impeditiva de punibilidade, a unani-
midade da doutrina brasileira colaciona a coação moral irresistível como causa de
exclusão da culpabilidade32.
A nosso sentir a opção da lei brasileira é altamente criticável, pois a coação moral
é espécie do gênero estado de necessidade, seja ele desculpante ou justificante. Ade-
mais, a própria sistematização da coação moral no âmbito da culpabilidade feita pelo
legislador brasileiro, salvo raríssimas exceções, faz com que a doutrina sequer cogite
de uma situação em que o coacto possa ter sua conduta justificada33.
Toda essa problemática, que acabou por conceder à coação moral uma autonomia
doutrinária que o instituto não possui34, advém da adoção da teoria unitária do estado
de necessidade pelo CP vigente, o que será analisado no próximo item.
30
“Art. 18. Se o crime é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifes-
tamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”
31
HUNGRIA, 1978: 271.
32
Por todos:HUNGRIA, 1978: 256.
33
Admitindo a possibilidade de coação moral como excludente da ilicitude por estado de necessidade: BI-
TENCOURT, 2012: 1052-1053.
34
ZAFFARONI et. al., 2011: 562. O autor critica o tratamento dispensado à coação moral pelo Código
Penal e pela doutrina brasileira, asseverando que o instituto é espécie do gênero estado de necessidade,
não possuindo autonomia dogmática.
35
TOLEDO, 1994: 176-177. Conforme o relato de Assis Toledo, o antigo §54 do CP alemão cuidava de
algumas hipóteses muito restritas de estado de necessidade (ato não-culposo, necessário, praticado “para
20 salvar de perigo atual o corpo ou a vida do próprio agente ou de um parente)”.
1.ª Parte – Direito Penal
analogia ao Direito Civil, mostrou a necessidade da lei melhor definir as causas de ex-
clusão da ilicitude e também dar mais atenção às causas dirimentes da culpa. Nesse
sentido, ao detalhar o mesmo caso, Roxin36 salienta que desde então a jurisprudência e
doutrina alemãs começaram a traçar linhas mais fortes entre a ilicitude e a culpa, dando
impulso para o desenvolvimento da teoria diferenciadora do estado de necessidade.
De início, ganhou força a tese de ponderação de bens e deveres, tratando-se como
justificante apenas o estado de necessidade no qual o bem protegido fosse superior
ao bem deteriorado, numa lógica de prevalência dos valores mais caros à sociedade
(aquilo já chamamos de saldo positivo). Mas, não tardou para que se percebesse que
a justificação de uma conduta — que significa sua adequação com o ordenamento
jurídico — tivesse também que atender a um princípio de solidariedade social, que
não só impõe a eventual lesado o dever de suportar determinados danos, como limita
esses danos a algo razoável e aceitável.
Em 1975, o CP alemão acabou por consagrar a teoria diferenciadora, prevendo no
§3437 o estado de necessidade justificante e no §3538 o desculpante. Essa linha de
pensamento assume que aquele que diante de uma situação de perigo contribui para
salvaguardar interesses superiores aos violados pratica um ato em benefício da so-
ciedade39. Assim, caso não houvesse outro modo de evitar o perecimento do direito
protegido, o ordenamento jurídico não poderia reprovar sua conduta de salvamento
de um interesse superior com o sacrifício de outro de menor valor, justificando-se o
fato por estado de necessidade. O limite a esta equação formulada pela ponderação
de interesses é, como já foi salientado no item 3.1, a razoabilidade de se impor ao le-
sado o dano causado pelo sujeito necessitado.
Noutro giro, aquele que em situação de perigo que não tivesse provocado, atuasse
para salvar interesse de igual ou menor valor que o sacrificado, não praticaria um ato
de acordo com o ordenamento jurídico, pois este último não poderia tutelar a preva-
lência de um interesse inferior face a um superior40. Nessas condições, deveria se re-
36
ROXIN, 2008: 672-673.
37
§34 “Necessity: A person who, faced with an imminent danger to life, limb, freedom, honour, property
or another legal interest which cannot otherwise be averted, commits an act to avert the danger from him-
self or another, does not act unlawfully, if, upon weighing the con icting interests, in particular the affected
legal interests and the degree of the danger facing them, the protected interest substantially outweighs the
one interfered with. This shall apply only if and to the extent that the act committed is an adequate means
to avert the danger”. Disponível em: <www.juris.de>.
38
§35 “Duress: (1) A person who, faced with an imminent danger to life, limb or freedom which cannot
otherwise be averted, commits an unlawful act to avert the danger from himself, a relative or person close
to him, acts without guilt. This shall not apply if and to the extent that the offender could be expected
under the circumstances to accept the danger, in particular, because he himself had caused the danger, or
was under a special legal obligation to do so; the sentence may be mitigated pursuant to section 49(1)
unless the offender was required to accept the danger because of a special legal obligation to do so. (2)
If at the time of the commission of the act a person mistakenly assumes that circumstances exist which
would excuse him under subsection (1) above, he will only be liable if the mistake was avoidable. The
sentence shall be mitigated pursuant to section 49(1)”. Disponível em: <www.juris.de>.
39
ROXIN, 2008: 896.
40
Analisando a questão à luz do direito português e dissentindo parcialmente, no sentido de ser cabível,
em certos casos excepcionaíssimos, o estado de necessidade justificante para salvaguarda de bens de igual
valor (como por exemplo, vida contra vida): PALMA, 2009: 179-199. 21
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
liberdade ao Juiz para oferecer a desculpa tem como consequência uma debilitação
da eficácia de prevenção geral que corresponde ao Direito Penal e, invariavelmente,
causa uma desigualdade na aplicação da lei46. Por tais razões, hodiernamente a ine-
xigibilidade é vista como um mero princípio regulatório atinente todas as causas de
desculpa, sem possuir qualquer protagonismo, ao contrário do que vem ocorrendo
em terras brasileiras47.
Em definitivo, não nos parece boa essa tamanha liberdade entregue ao Juiz para
oferecer a desculpa penal. Deveria o Código ser mais cuidadoso com as causas de
desculpa, especialmente prevendo (com detalhes) o estado de necessidade descul-
pante, que abarca uma gama de situações, inclusive a coação moral. Esse detalha-
mento poria fim à doutrina da inexigibilidade como causa supralegal de desculpa,
sem com isso engessar o Juiz, já que sempre seria possível a extensão das causas de
desculpa por via da analogia48.
Como exemplo do perigo da absoluta liberdade judicial em desculpar com base
numa cláusula geral de inexigibilidade, cito o que vem ocorrendo no âmbito do Su-
premo Tribunal Federal: o pretório excelso já aceitou como causa supralegal de ex-
clusão da culpabilidade dos crimes contra a ordem tributária a precária condição da
empresa49, pois seria uma forma de inexigibilidade de conduta diversa. Ora, será ra-
zoável desculpar quando estão em causa questões meramente patrimoniais50? Ou ape-
nas deveríamos desculpar quando estivermos diante de interesses eminentemente
pessoais, como a vida, a integridade física, a liberdade e a honra (tal qual Portugal e
Alemanha)? Somente excepcionalmente o ordenamento jurídico português aceita o
estado de necessidade desculpante para salvaguardar bens não pessoalíssimos, dimi-
nuindo a pena ou dispensando-a, desde que presentes todos os demais requisitos do
45
Conforme recorda Mir Puig, no fim do século XIX, a jurisprudência alemã se deparou com um caso
inusitado. Na ocasião, um cocheiro se recusara a utilizar um cavalo sabidamente perigoso, mas seu patrão
ameaçou-lhe com a demissão, que seria desastrosa para a família do cocheiro. Então, obedecendo as ordens
de seu patrão, o cocheiro utilizou o arredio cavalo, que realmente veio a desgovernar a diligencia, termi-
nando por atropelar um terceiro errante, rompendo-lhe a perna. O tribunal alemão absolveu o cocheiro re-
conhecendo, pela primeira vez, a inexigibilidade de conduta diversa (MIR PUIG, 2002: 588).
46
Nesse sentido: JESCHECK, 1981: 686-688; MUÑOZ CONDE, et. al., 1996: 408. No mesmo sentido
leciona ROXIN, para quem não se pode permitir que ao juiz criar e impor sua própria política criminal,
criando casos de exclusão da culpabilidade. Entretanto, ROXIN salienta que é viável que, a partir dos pa-
râmetros legais, seja possível reconhecer-se a desnecessidade da pena em razão de não estarem presentes
os motivos de prevenção geral e especial (ROXIN, 2008: 961).
47
STRATENWERTH, 2000: 264-265.
48
Admitindo a analogia em causas de desculpa penal: SILVA DIAS, 2013: 71; PALMA, 2005: 17; 149 e
ss.; 165-170 e 232-233. No ponto, Fernanda Palma frisa que o alargamento de uma causa de desculpa não
pode ser arbitrário e formulado a partir de argumentos utilitaristas. Para a autora, para desculpar deve-se
ter em mente os valores constitucionais e legais, sem o que corre-se o risco de enfraquecer os direitos da
vítima e à proteção do próprio Direito. Para nós, é, portanto, demasiado arriscada a fórmula brasileira, que
deixou à mão do julgador a densificação do conteúdo da desculpa por inexigibilidade de conduta diversa.
49
AP 516/DF, Relator Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 06/12/2010, disponível em: <www.stf.jus.br>.
50
Embora não concordemos, é claro que poderia se aventar uma defesa reflexa da função social da pro-
priedade, ou melhor, dos meios de produção, em detrimento da obrigação de repassar os tributos ao fisco.
Contudo, nossa crítica é, em primeiro lugar, pelo fato de que a defesa desse interesse jurídico deveria vir
prevista em lei como passível de desculpa penal, não sendo recomendável entregar tamanha discriciona-
riedade ao julgador. 23
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
estado de necessidade, como um perigo atual não superável de outro modo e que não
seja razoável se exigir comportamento diverso51. Daí porque não aparece na juris-
prudência portuguesa solução semelhante à brasileira, quase sempre se inadmitindo
a desculpa por estado de necessidade nos casos de abuso de confiança fiscal52.
Apesar dessas inúmeras críticas, não há qualquer melhora legal à vista, pois o pro-
jeto do novo CP brasileiro simplesmente pretende positivar a inexigibilidade de con-
duta diversa como causa de exclusão da culpabilidade53. Por tudo que já foi dito,
para nós a opção brasileira é lamentável.
Melhor seria que a coação moral fosse tratada como espécie do estado de neces-
sidade desculpante e que este tivesse como regra a defesa de bens pessoalíssimos, já
que a isenção de pena frente ao injusto penal não pode banalizada.
Finalmente, não satisfeito com todos os problemas acima listados, o Código bra-
sileiro limitou-se a excluir a culpabilidade daquele que age sob coação moral irresis-
tível, simplesmente deixando de elencar os requisitos necessários à configuração da
coação moral. Novamente, entregou-se à jurisprudência e à doutrina a tarefa de iden-
tificar as causas de desculpa por coação, o que também não nos parece positivo.
Como forma de melhor estruturar esta parte do estudo, passaremos a analisar por-
menorizadamente os requisitos acima indicados, tomando como parâmetro o art. 35º
do CP português. Justificamos esta metodologia, porque a lei portuguesa traz requi-
sitos abstratos e válidos para qualquer situação de estado de necessidade, da qual a
coação moral é espécie. Assim, a missão ficará facilitada, pois à medida que anali-
sarmos os requisitos legais portugueses também exporemos sua coincidência (ou não)
com o que vem sendo debatido pela doutrina brasileira.
4.1. Atuação para afastar um perigo atual não removível de outro modo
Pode-se dizer que o perigo nomeado pela lei é a ameaça de perecimento de um
determinado bem jurídico.
Ao conceituar o perigo que caracteriza o estado de necessidade, Figueiredo Dias
indica que o sujeito beneficiado pela desculpante deve estar objetivamente em perigo,
caso contrário não se poderia permitir a violação de bens jurídicos alheios55. Pa-
rece-nos que o autor tenciona dizer que deve haver uma tal intensidade na situação
de perigo, que se equivalha a um perigo concreto ao bem ameaçado, o qual ficará su-
jeito à lesão ou destruição caso nenhuma medida seja tomada. Essa visão, que acaba
por aproximar a situação de estado de necessidade aos crimes de perigo concreto,
não é indene de críticas, principalmente quando pensamos nos casos de coação moral.
Vejamos.
Traduzindo o requisito legal para o âmbito da coação moral, temos que o tal perigo
será, invariavelmente, uma ação humana consistente em ameaças, que incutirão uma
grande pressão psicológica no coacto56. Desse modo, não se pode exigir, por exemplo,
frente a uma ameaça futura, que haja um perigo tal qual o presente nos delitos de pe-
rigo concreto. Na verdade, deveríamos considerar presente o perigo sempre que não
fosse de todo improvável sua concretização57. Assim, haveria perigo na coação moral
sempre que a concretização da ameaça não fosse improvável, ficando a questão irre-
sistibilidade conectada a outro requisito, qual seja a razoabilidade de comportamento
diverso.
O raciocínio acima tem reflexos no que tange a atualidade da ameaça, exigida tam-
bém pela doutrina brasileira. Efetivamente, na coação moral o perigo não precisa ser
tão atual quanto nos casos de legítima defesa ou mesmo em outras situações de estado
de necessidade. Em verdade, no âmbito da coação moral, podemos estar diante dos
chamados perigos duradouros. No mesmo sentido leciona Roxin, para quem se um
sujeito perigoso, mesmo sem dizer quando o mal se concretizará, ameaçar de morte
a testemunha caso ela revele a verdade em Juízo, estaremos diante de um perigo
atual58. O exemplo de Roxin é bem factível de ocorrer em grandes cidades brasileiras,
nas quais organizações criminosas dominam locais da cidade e impõem a “lei do si-
lêncio” aos moradores, de forma a impedir que sejam prestados depoimentos em pro-
55
FIGUEIREDO DIAS, 2012: 443.
56
Esta, inclusive, costuma ser a posição da doutrina brasileira, exigindo uma ameaça intensa do coator
para o coacto, como forma de força-lo a praticar o crime, Cf.: HUNGRIA, 1978: 259; NUCCI, 2010: 248.
57
ROXIN, 2008: 677.
58
ROXIN, 2008: 903. No mesmo sentido: STRATENWERTH, 2000: 267. 25
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
cessos que seus membros são acusados. Nesses casos, a ameaça pode se concretizar
a qualquer instante, pois o coacto simplesmente reside nos arredores das práticas cri-
minosas e estará eternamente na mira dos delinquentes59.
De outra banda, apesar da coação que estamos a tratar possuir como objetivo pro-
mover uma pressão de natureza psicológica no coacto, não se pode descartar por com-
pleto o uso de violência física para fins de coação moral. Com efeito, sabe-se que
nos casos de coação física ou vis absoluta, estará excluída a própria conduta60, pois
não é concebível que acaso o coator constranja fisicamente o coacto a realizar o mo-
vimento causador do crime (v.g. segurando sua mão junto a arma de fogo e puxando
o gatilho para dar o tiro fatal à vítima), possa-se sequer cogitar de manifestação de
vontade qualquer. Entretanto, como ensina Hungria, “não é de confundir-se com a
coação física a coação moral de que é famulativo o emprego de meios físicos”61. Ou
seja, se o coator usa de grave ameaça e, além disso, também agride fisicamente o
coacto para quebrar-lhe a resistência, estaremos diante de coação moral, desde que,
é claro, não se trate de um espancamento cruel ou mesmo tortura física.
Outra exigência do CP português é que a ameaça do coator não possa ser superada
de outra forma que não a prática do fato típico ordenado pelo coator, requisito seme-
lhante ao que a doutrina brasileira descreve como sendo a inevitabilidade do perigo
da ameaça. Em outras palavras, para atuar sob o manto da causa desculpante, deverá
o coacto verificar se não há outra maneira, especialmente conforme o Direito, de
afastar o mal que se anuncia. Esta questão também merece algumas considerações e
não pode ser vista de forma rasa. Voltemos ao exemplo da testemunha que falseia a
verdade porque coagida por uma organização criminosa: muitas vezes haverá a pos-
sibilidade de a testemunha avisar as autoridades policiais ou judiciais acerca da coa-
ção que vem sofrendo, solicitando-lhes proteção. Entretanto, é sabido que a proteção
policial em algum momento findará e a testemunha voltará a ficar à mercê da orga-
nização criminosa. Assim, nesse caso específico, pode não haver uma efetiva possi-
bilidade de superação da ameaça sem a prática do falso testemunho, mas apenas uma
temporária e, possivelmente, ineficaz saída62. Com isso, temos posição no sentido de
que a inevitabilidade do perigo ou, precisamente, a superação da ameaça com uma
conduta alternativa e conforme o Direito, deve ser vista cumgrano salis, sob pena de
levarmos o reconhecimento do estado de coação a uma situação de laboratório, quase
uma utopia.
Retomando a análise do caso exposto no capítulo 1, vimos que um dos argumentos
que o STJ português utilizou para afastar a tese defensiva de coação moral foi o de
que o recorrente poderia remover a situação de perigo sem aderir à conduta dos de-
mais acusados (já que poderia ter fugido do local do crime). Ora, a situação de perigo
59
Sobre o intrínseco poder de intimidação das organizações criminosas: SOUZA, 2012: 32-36.
60
SILVA, 1998: 195-197.
61
HUNGRIA, 1978: 259.
62
No mesmo sentido: ROXIN, 2008: 904. A nosso sentir, quando estamos diante de testemunhas amea-
çadas por organizações criminosas, nem mesmo o oferecimento de programa especial de proteção com
nova identidade, mudança de cidade, etc.) será suficiente para demonstrar a removibilidade da coação por
26 outro modo, pois não se poderia exigir do coagido tamanho esforço para superação da situação.
1.ª Parte – Direito Penal
69
FIGUEIREDO DIAS, 2012: 615.
70
NUCCI, 2010: 249.
71
Sobre o início da doutrina da inexigibilidade na doutrina de Goldschmidt (também citando Freudenthal):
NEVES, 2006: 325-326.
72
FIGUEIREDO DIAS, 1983: 76.
73
Segundo Curado Neves, o próprio Goldschmidt admitiu os problemas da doutrina subjetivista da exigi-
bilidade e desenvolveu o conceito do “homem médio”, que posteriormente foi redefinido por outros au-
tores, como Eberd Schmidt (NEVES, 2006: 327 e 330-337).
74
HUNGRIA, 1978: 258.
75
Apesar disso, a questão nunca foi unanime, podendo-se apontar que desde a década de 1970 há vozes
28 contrárias à doutrina do homem médio como, por exemplo, Heleno Fragoso (FRAGOSO, 1978: 573).
1.ª Parte – Direito Penal
86
PALMA, 2005: 218 e ss.
87
“Mas a inexigibilidade, em sede de culpa, quer como critério meramente regulador, quer como critério
normativo, não consegue resolver satisfatoriamente aquela última necessidade, por duas razões de base
psicológica, afectiva e emocional do agente, que a interpretação e aplicação do Direito em concreto tem
de considerar para que a sua dimensão seja a do humano; e por não estar vocacionada para dar pleno de-
senvolvimento às exigências de justiça de uma sociedade baseada na dignidade da pessoa humana e no
pluralismo de concepções de vida. Por outras palavras, por não atender suficientemente à reflexão da Psi-
cologia e da Sociologia sobre o desenvolvimento da pessoa e não realizar plenamente um modelo de so-
ciedade política liberal” (PALMA, 2005: 220).
88
NUSSBAUM, et. al., 1996: 278-280.
30 89
NUSSBAUM, et. al., 1996: 282-295.
1.ª Parte – Direito Penal
percebermos se este último encerra uma valoração aceitável (ou adequada) da situa-
ção, o que poderia atenuar a culpa.
Nussbaum assume preferir a concepção valorativa das emoções90, ao passo que
Fernanda Palma prefere conciliar aspectos de ambas as teorias91. A conciliação das
duas concepções admite a importância das reações físicas e psicológicas para nosso
autocontrole, considerando-as relevantes no processo de tomada de decisão, mas sem
subtrair completamente a liberdade para decidir. Ou seja, não nos assume como ma-
rionetes ao sabor de nossas emoções92. Não haveria uma irracionalidade completa
causada pelas emoções, pois estas nos atingem a partir dos valores que damos as si-
tuações de acordo com nossa inserção social (cultura, crenças, etc.), circunstância
essa que torna possível a racionalização das emoções e nos possibilita tomar decisões
alternativas.
A concepção mista também nos agrada mais, não parecendo possível (nem viável)
a aceitação que as emoções são processos interiores dissociados da realidade em es-
tamos inseridos93.
Especialmente no que tange ao estado de necessidade por coação moral, o estado
emocional vivenciado pelo coagido em face do coator é o medo, que sem dúvida “ex-
prime uma afirmação da existência do sujeito e de seus bens”94 e não pode ser des-
considerado quando se afere a razoabilidade em se exigir de alguém sob coação um
comportamento conforme o Direito.
Ademais, o medo na coação moral, para além de ser medido pela possibilidade
objetiva de se executar a ameaça, deve, sobretudo, ser olhado pela força psicológica
da coação (capacidade de intimidação do coator v. capacidade de resistência moral
do coagido)95.
Nesse contexto, analisando ainda que brevemente o caso exposto em nosso capí-
tulo 1, Fernanda Palma considera a possibilidade em se reconhecer a coação descul-
pante do recorrente, já que o Tribunal expressamente apontou que o sujeito foi alvo
de uma forte pressão psicológica oriunda dos demais acusados para que auxiliasse
na execução do assassinato, o que teria alterado substancialmente sua capacidade de
resistência96. Tal atitude teria externado um medo cuja valoração seria eticamente
aceitável, pois significava sua defesa e a defesa de seus familiares.
90
NUSSBAUM, 2001: 20-22. Aliás, a autora demonstra sua ideia a partir do relato da morte da própria
genitora, relatando os estados emocionais passados e relacionando-os diretamente com os valores da vida.
91
PALMA, 2013: 116; PALMA, 2005: 184.
92
AZEVEDO, 2014: 70. Em seu trabalho, o autor claramente defende uma concepção integradora das
concepções mecanicista e valorativa das emoções.
93
“As perspectivas que reduzem as emoções a sensações — à percepção de estados interiores, sem qualquer
nível de racionalidade controlável pelas pessoas — não conseguem explicar as diferenças, por todos re-
conhecidas, entre o medo e a cólera, o amor e o ciúme, a repugnância e a vergonha, nem podem tornar
compreensível que essas diversas emoções sejam determinantes da diversidade das acções. Mas agir por
medo ou por cólera, por amor ou por ciúme, por repugnância ou por vergonha, é um modo reconhecível
e diferenciável de agir, constitui uma identificação da acção que tende a permitir a confluência entre o
plano subjectivo da acção e o plano de sua relevância social” (PALMA, 2005: 187).
94
PALMA, 2005: 170.
95
PALMA, 2005: 197-198.
96
PALMA, 2005: 223. 31
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
Realmente, não se pode pretender determinar o que venha a ser exigível ou inexi-
gível (ou, como parece preferir Fernanda Palma, o que venha a ser desculpável) de
qualquer pessoa segundo as circunstâncias do caso, mas permanecer alheio às razões
de ordem emocionais do próprio agente.
Para nós, resta evidente que a aferição da desculpa penal deve ser centrada na sin-
gularidade do caso e na individualidade do coacto, considerando-se com grande re-
levância seu estado emocional no momento da prática do fato. Entretanto, mesmo
concordando com a necessidade em se aferir as emoções do sujeito e submetê-las a
um filtro ético, não podemos desconsiderar, no campo da desculpa, outros fatores
igualmente importantes, como as hipóteses da outrora denominada exigibilidade in-
tensificada (talvez algumas delas tenham, de certa forma, relevância para a solução
de nosso caso paradigma, nomeadamente a participação do agente na criação do pe-
rigo e uma crassa desproporção entre interesses defendidos e violados). Nesse parti-
cular é importante rememorar o que dissemos no capítulo 2 sobre o duplo
rebaixamento (do injusto e da culpa) como fundamento da não cesura nas causas de
desculpa: ora, a existência de uma relação jurídica especial, ou mesmo uma abissal
desproporção entre os interesses e ameaças de determinada situação podem acarretar
uma menor diminuição do injusto e da culpa, impedindo a isenção de pena97.
Noutro passo, para fins de concretização da culpa, a valoração dos estados emo-
tivos e dos interesses no conflito vivido por um sujeito em particular não é simples.
Muito ao contrário, pois o encarregado de realizar tal tarefa é o juiz, o qual não é al-
guém do relacionamento íntimo do autor do fato-crime e nem se pretende que atue
como uma espécie de psicanalista ou algo do gênero.
Inegavelmente, o conhecimento do outro pelo juiz é inferencial e discursivo98 e, por
tal razão, deve ser de alguma forma deduzido a partir de algum ponto. E mais: como se
sabe, não é possível ao julgador aferir em um laboratório o verdadeiro conflito exis-
tencial então vivido pelos jurisdicionados à época dos acontecimentos. Destarte, na im-
possibilidade reconstruir genuinamente a consciência, o caráter, as emoções, enfim, a
biografia do acusado, o sentenciante deverá individualizar sua culpa a partir de um mo-
delo normativo não padronizado ou idealizado, mas de um modelo normativo lastreado
em base real, que possibilite a individualização da culpa e não sua standartização.
Nesse toada, aplicável as lições de Silva Dias, que idealiza a concretização da
culpa a partir do que chamou tipo social do agente99. O tipo social construído pelo
autor seria a consideração da personalidade da pessoa (consciência, caráter, etc.) in-
serida num determinado contexto social, considerando-se as oportunidades, cultura,
vivência e, sobretudo, a experiência normativa adquirida na interação social100. Não
97
No sentido do texto, especialmente asseverando que caso o valor do interesse ameaçado seja extrema-
mente inferior ao valor do interesse salvo ocorrerá uma menor diminuição do injusto, podendo chegar a
desaparecer tal diminuição em alguns casos, o que poderia comprometer a própria causa desculpante que,
como vimos, baseia-se num duplo rebaixamento, do injusto e da culpa: JESCHECK, 1981: 664.
98
SILVA DIAS, 2008: 728, nota 1581.
99
SILVA DIAS, 2008: 728-732.
100
É demasiadamente relevante nesse particular a interação social, porque é no relacionamento do sujeito
com a comunidade que ocorrerá a absorção de regras, valores e expectativas geradas no indivíduo, pelo
32 próprio e pela sociedade.
1.ª Parte – Direito Penal
haveria que se falar em “homem médio” ou mesmo em uma coragem mínima exigida
pela lei a qualquer um. Ao revés, quando o julgador se dispuser a aferir a exigibilidade
ou inexigibilidade da conduta do indivíduo, deve reconstruir a consciência e a emo-
tividade do sujeito considerando as expectativas do tipo social do agente101, o que
será feito a partir dos elementos de prova que constam do processo criminal.
Voltemos então ao caso relatado no capítulo 1. O recorrente foi, no dia do crime,
angariado pelos co-autores para praticar um roubo à residência sem saber que os de-
mais já haviam premeditado o assassinato da vítima. No local, quando se deparou com
o início da execução do homicídio, decidiu abandonar a empreitada criminosa, no que
teve a si e sua família ameaçados pelos co-autores, que exigiram-lhe auxílio na prática
do crime contra a vida. Qual o tipo social do recorrente para fins de se verificar a ra-
zoabilidade de seu atuar segundo as circunstâncias do caso? Segundo o acórdão, o
recorrente, “cujo percurso de vida (...) não fazia prever o seu eventual envolvimento
em actividades delituosas”, não tinha registro de prática de ilícitos na vida adulta ou
juvenil, contava com 19 anos, com origem humilde, sem nunca ter se distanciado de
sua cidade natal102. Em contrapartida, os sujeitos que o ameaçaram haviam previa-
mente planejado o crime, eram consideravelmente mais velhos que o recorrente103 e
ambos já acumulavam vivência (inclusive em conjunto) fora do país, ou seja, inega-
velmente tinham uma ascendência psicológica sobre o recorrente. Ademais, certamente
não usaram palavras carinhosas ao ameaçar o recorrente quando este se negou a pra-
ticar o homicídio. Naquele instante, qual era a expectativa sobre o tipo social do re-
corrente, nomeadamente sobre a exigibilidade de comportamento conforme o Direito?
Pareceu-nos um tanto simplório o Tribunal descrever tantas características do re-
corrente — o que nos permite reconstruir por dedução sua personalidade inserida no
meio social — para, ao final, lançar em pesadas tintas que a alteração “do estado
emotivo derivado das ameaças” só poderia diminuir sua pena porque as ameaças se-
riam de “motivação de valor bem inferior à contra-motivação que dele se devia es-
perar perante a gravidade do cometimento criminoso”104. Vemos que o Tribunal não
explicou como chegou a essa conclusão, nos parecendo que foi criada uma expecta-
tiva a partir do homem médio ou a partir da coragem mínima normativamente dire-
cionada a todos, em favor da qual leciona Figueiredo Dias. Talvez, se o Tribunal
tivesse se valido da doutrina do tipo social, pudesse ter chegado à mesma conclusão
de Fernanda Palma, prezando por um critério misto de compreensão de quem julga
pela emoção e de oportunidade de decisão livre do sujeito real. Ou, pelo menos,
poder-se-ia ter reconhecido o homicídio privilegiado pelo desespero, conforme tam-
101
“Dito de um outro modo, não temos de um lado um padrão normativo e objeto de medida e do outro
lado uma unidade psíquico-física que se mede, que o mesmo é dizer, a culpa não consiste na desconfor-
midade de uma consciência individual ou subsistema psíquico-físico (como se preferir) a um modelo nor-
mativo abstrato, mas num processo interpretativo em que se reconstrói tipicamente e com o grau de
concretização possível o sujeito da culpa e se aprecia à luz das normas jurídico-penais se e em que medida
a uma pessoa desse tipo, no contexto da ação, é exigível que se comporte de acordo com a normatividade
jurídica” (SILVA DIAS, 2008: 730).
102
Retirado do Voto do Relator, disponível em <http://www.stj.pt/jurisprudencia/basedados>.
103
Os arguidos A e D tinham, respectivamente, 30 e 24 anos.
104
Retirado do Voto do Relator, disponível em <http://www.stj.pt/jurisprudencia/basedados>. 33
Estudos em Ciências Jurídico-Criminais – Volume I
bém sugeriu Fernanda Palma105. Outra possibilidade, já que não estamos a impor uma
linha decisória ao caso em tela, seria o Tribunal manter sua decisão condenatória,
mas indicando especificadamente porque se deveria esperar daquele sujeito, recons-
truído em seu tipo social, uma atitude diferente. Dito de outra maneira, o importante
seria a aferição individualizada da culpa, o que não nos parece ter havido.
Como se vê, a grande questão da coação moral — e que também toca as demais
causas de desculpa penal — é a dificuldade em, realmente, individualizar-se a culpa,
deixando de lado questões relativas à delimitação de direitos e deveres, cuja discussão
verdadeiramente se relaciona ao campo da ilicitude. Não se pode pretender uma au-
tonomia e pessoalidade da culpa resumindo sua análise pelo cumprimento ou não de
deveres mínimos pelo agente, numa espécie de análise subjetivada da ilicitude106.
Essa dificuldade se mostrou patente no julgado objeto deste estudo e, de certo modo,
reflete o atual estágio da jurisprudência portuguesa sobre o tema. O mesmo pode-se
dizer do Brasil, onde ainda tem grande força a tese do homem médio.
CONCLUSÃO
Os ordenamentos português e brasileiro adotaram caminhos diversos para o trata-
mento da desculpa por coação moral. Portugal seguiu a linha alemã, inserindo a coa-
ção moral como espécie do gênero estado de necessidade, possibilitando seu
aparecimento como causa justificante ou desculpante. Esta última hipótese, como
vimos, será a mais comum.
Embora o CP brasileiro tenha texto expresso sobre a coação moral, tal apenas de-
monstra uma aparente preocupação com o tema, pois é certo que sua previsão decor-
reu exclusivamente da não admissão do estado de necessidade subjetivo em terrae
brasilis. Com efeito, à míngua de um estado de necessidade subjetivo, os agentes na
situação de coagidos não teriam remédio contra a condenação acaso não se fizesse
previsão expressa da causa excludente (para nós, causa de desculpa). Aliás, a ausência
de previsão de um estado de necessidade subjetivo com reflexos ao nível da culpa e
as diversas situações da vida que demandam desculpa, para além das previstas no CP
brasileiro (coação moral e obediência hierárquica), fizeram germinar na jurisprudên-
cia a admissão de uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade baseada exclu-
sivamente na inexigibilidade de conduta diversa.
Esse atual posicionamento jurisprudencial brasileiro nos parece temerário, por entregar
ao Juiz demasiado poder de definição da política criminal, decidindo por completo quais
seriam as causas e os critérios do desculpável. As consequências principais dessa posição
são o enfraquecimento da prevenção geral e a desigualdade da aplicação do Direito.
Assim, melhor é a lei portuguesa, sobretudo com sua preocupação em evitar a ne-
cessidade de existência de uma causa supralegal de exclusão da culpa. Ademais, a
solução portuguesa permite a aferição de todos os requisitos da desculpa por coação
moral de modo perfeito, desde que, é claro, sejam observadas as peculiaridades sa-
lientadas no capítulo 4, especialmente nos itens 4.1 e 4.2.
105
PALMA, 2005: 223.
34 106
PALMA, 2005: 219.
1.ª Parte – Direito Penal
Por fim, na análise final da desculpa por coação moral — podendo-se dizer o
mesmo para todas as causas de desculpa — deve-se aferir a razoabilidade de exi-
gir-se um comportamento conforme o Direito sem a utilização de padrões gerais. Não
se pode aspirar uma verdadeira censura pessoal demandando do agente um compor-
tamento de acordo com conceitos pré-formados do que seria esperado da maioria ou
da média da população. Outrossim, não se concebe a imposição de padrões mínimos
de coragem, calma, altivez, passividade, etc., porque nem sempre o sujeito poderá
atingir esse tal comando normativo mínimo.
A censura pessoal pressupõe a compreensão do diferente, do excepcional. Mas ex-
cepcionalidade do fato não pode esbarrar em uma excepcionalidade tão restrita do
poder de desculpar, que na prática impeça sua aplicação. Para tanto, necessário ter
em conta o poder que as emoções têm sobre as pessoas, bem como seus valores éticos.
É essa verdadeira individualização da culpa, daquele indivíduo único que figura nos
autos do processo que nos preocupa e com a qual a jurisprudência portuguesa (e
pode-se dizer também a brasileira) ainda parece longe de compreender.
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