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Cidade, natureza, consumo: notas rizomáticas

Josi Paz∗

Restos. Esta é a matéria-prima do arquiteto e artista plástico André Fort. Ele coleta
o que sobrou das árvores em antigas áreas verdes, onde hoje funcionam rodovias, edifícios,
indústrias. Às formas puras que encontra, Fort acrescenta o vidro, a pedra e o metal e
produz esculturas1. Embora não tenha esse propósito, sua exposição “Cidade rizomática” se
vincula ao debate proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, especificamente em “Mil
platôs: capitalismo e esquizofrenia”, texto que apresenta um dos conceitos mais profícuos
dos autores: rizoma. O objetivo deste ensaio é utilizar a noção de rizoma para pensar os
agenciamentos2 entre cidade, natureza e consumo.

Haste subterrânea de ramificações que podem surgir em qualquer parte, o rizoma da


botânica é utilizado por Deleuze e Guattari como imagem-argumento para a crítica dos
modelos de pensamento que se baseiam em dicotomias. No esforço teórico de ruptura que
empreendem contra a tradição ocidental da unidade e da ordem, os autores opõem o rizoma
às árvores (hierarquia) e às raízes (multiplicação a partir de um mesmo centro):

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto


qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços de mesma natureza. ... O rizoma não se deixa
reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. ... Ele não é feito de unidades,
mas de dimensões, ou antes de direções movediças.3


Doutoranda vinculada à linha de pesquisa “Cidade e sociedade” do Programa de Pós-graduação em
Sociologia (SOL) da Universidade de Brasília (UnB). 20 de dezembro de 2007. josi.ppaz@gmail.com
1
Imagens da exposição “Cidade rizomática” de André Fort estão na internet: http://andrefort.com/oartista.htm
2
Deleuze e Guattari, em suas obras (especialmente, em “O inconsciente maquínico: ensaios de
esquizoanálise” de Guattari), falam da militarização das relações humanas e apontam para os novos
agenciamentos, as novas conexões possíveis, como saída pela micropolítica.
3
Deleuze, Gilles; Guatarri, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e
Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34,1995. [p.32]
2

Figura 1. André Fort no seu ateliê.

Estudos sobre tecnologia, realidade virtual, cyber-espaço têm explorado a idéia do


4
rizoma , que também é uma lente para os estudos sobre a cidade. Pelo rizoma, a cidade é
vista não só como territorialização, mas também desterritorialização: na cidade, as linhas de
fuga, da qual falam os autores Deleuze e Guattari, possibilitam sempre outros percursos,
sem um.

Seis princípios definem o rizoma: conexão e heterogeneidades, multiplicidade,


ruptura a-significante e princípios de cartografia e decalcomania.

Num breve comentário sobre cada um desses princípios, pode-se afirmar que
conexão é um imperativo do rizoma, ao contrário da árvore, cujos galhos partem de um
ponto central. No rizoma, tudo e todos estão e devem estar conectados. Deleuze e Guattari
citam como exemplo de árvore a lingüística de Chomsky, cuja análise se fecha na
linguagem, sem considerar cadeias semióticas e a questão do poder. Não haveria língua-
mãe, lembram eles, o que há é tomada de poder por uma língua que coexiste com gírias e
dialetos. Já a multiplicidade é exemplificada por meio da marionete. Rizoma seriam os fios
e não o manipulador, linhas sem nós, sem pontos, sem plasmação. O princípio de ruptura a-
significante teria a ver com a possibilidade de quebrar o rizoma em qualquer parte e, a

4
As pesquisas desenvolvidas por André Lemos (UFBA) e Janice Caiafa (UFRJ) são exemplos dessa
abordagem.
3

partir do fragmento, retomar a totalidade, as organizações que formam o conjunto,


reconstruir a partir de cada interrupção, por meio de seleções temporárias e ativas.
Cartografia e decalcomania, para Deleuze e Guattari, são a oposição à continuidade como
inércia do pré-existente. A experimentação ancorada no real pode formar fenômenos de
massificação, mas, sem contradição, pode conter novas conexões. Como dizem os autores,
“a contabilidade e a burocracia procedem por decalques: elas podem, no entanto, começar a
brotar, a lançar hastes de um rizoma, como um romance de Kafka”5.

É nestes sentidos que a cidade é rizomática.

Viveríamos sob a égide de uma sociedade de controle e não mais de uma sociedade
disciplinar, como em Foucault, dizem eles: já não se reconhece mais onde começa e onde
termina o controle de nossas vidas - nos espaços mais recônditos, como o lar, estaríamos
subjugados. Não haveria “capitalismo universal”: o capitalismo existiria no cruzamento de
toda sorte de formações. Junto com a cidade que se expande horizontalmente, vai o
capitalismo e suas formas imperceptíveis de poder, espraiando-se nas dimensões da vida.

O debate proposto pelos autores dá continuidade à abordagem teórico-metodológica


dos temas urbanos marcada pelas referências da biologia. Depois do organismo vivo de
Durkheim e antes da cidade rizomática, a Escola de Chicago se valeu do conceito de
ecologia humana. Rizoma e ecologia humana, porém, são incompatíveis. A ecologia
humana se alinha com a síntese abrangente de diversos campos da ciência, as relações mais
estritas entre o homem e o meio ambiente, o paradigma positivo da biologia para explicar
fatos sociais, o estudo das distribuições espaciais dos fenômenos humanos e das áreas
regionais ou locais6. O rizoma, por sua vez, não é síntese: é crítica da centralidade; não
serve à distribuição, mas à erva daninha, batata ou grama; nem ao local, mas ao platô – mil
platôs – “uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se

5
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e
Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. [p.24]
6
Eufrasio, Mario A. Estrutura urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago (1915-1940).
São Paulo: Editora 34, 1999. [p.95-p.103]
4

desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma


finalidade exterior ”7.

Na perspectiva rizomática, o que está em jogo é o fragmento. Os fragmentos das


esculturas de André Fort, o fragmento como possibilidade discursiva e a mistura que já não
deixa claro o dentro e o fora, exterior e interior.

Na obra do norte-americano Edward Hopper, sob o registro da representação, a


problematização da vida na cidade também está presente: ele foi um dos primeiros pintores
a tematizar em suas telas o cotidiano nos grandes centros. Mas as polaridades em sua
pintura estão mais evidentes, em relação à André Fort: as alusões culturais em seus quadros
apresentam o espaço natural cortado pela civilização, natureza e civilização cindidas de
modo definitivo e irremediável. No entanto, o ângulo diferente que utiliza - como em
“House by the Railroad” de 1925 e “Railroad Crossing” de 1922-23 - mostra sempre uma
parte acessível da natureza, como os gramados, e, ao fundo, a floresta escura e distante. Ou
seja, ao mesmo tempo em que demonstra o que é a experiência ampla da cidade, tenta se
aproximar do indivíduo do “Novo Mundo”, tentando responder: entre a natureza perdida e a
civilização que leva esse indivíduo a se perder, por onde seria possível escapar do subjugo?
A cidade de Hopper lança, assim, suas raízes para fora do quadro.

Figura 2. House by the Railroad (1925)

7
Deleuze, Gilles; Guatattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto
e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. Idem. [p.33]
5

É para o “índivíduo do Novo Mundo”– para si, pintor, para quem está no e para
quem olha o quadro - que Hopper oferece janelas abertas, como em “Woman in the sun”de
19618:

O quarto relativamente escuro parece um recinto protegido, mas as suas


fronteiras não parecem bem definidas. Em frente da janela erguem-se duas
colinas, ondulantes e poderosas como as ondas do mar. Juntamente com a
luz, viva e dominante, dão a impressão de que a natureza está a irromper no
quarto: é precisamente na representação de um interior que a natureza se
empenha na reconquista dos lugares da civilização.9

Figura 3. Woman in the sun (1961)

Essa reconquista dos lugares da civilização pela natureza por meio de fugas do
sujeito não é um tema de Hopper ou um tema meramente estético – se é que se pode falar
em meramente estético. É uma reflexão antecipada pela arte sobre o ético e o político no
atualíssimo questionamento sobre os processos de subjetivação na condição urbana. Hopper
é particularmente atual nesse momento histórico em que as avaliações sócio-ambientais
sobre os modos como natureza e cidade estão imbricados em nossa vida vêm obrigando
intervenções do Estado. Grandes potências, como os Estados Unidos - não por coincidência
pintados por Edward Hopper – têm presença central nesse debate. Na medida em que
garantir a manutenção dos recursos naturais se torna um projeto da sociedade de controle, o

8
Estas e outras reproduções de Hopper podem ser consultadas em http://www.moma.org e
http://www.whitney.org/
9
RENNER, Rolf Günter. Edward Hopper – 1882 – 1967: transformações do real. Trad. Casa das Línguas.
Köln: Taschen, 1992. [p.77]
6

consensos em torno da questão ambiental vai sendo criando, por meio de estratégias como
os registros lingüísticos “desenvolvimento sustentável”, “mercado equilibrado”,
“preservação do meio ambiente”, “mercado de carbonos”, que provocam as estabilidades
necessárias.

As palavras e as coisas.

Uma dessas estabilidades atende pelo nome de “consumidor consciente”10, forjado


numa perspectiva estruturalista, na qual a sociedade de consumo – e não de consumidores11
- é dada como uma substância. O “consumidor consciente” estaria consciente de que? Seria
chamado para a consciência por quem? Em que medida se poderia falar em consciência
com tanta positividade?

O desmonte do sujeito humanista do Renascimento e do sujeito racional, autônomo


e autotransparente - que põe lado a lado trabalhos de Deleuze, Guattari e Foucault - está na
base dos argumentos do pós-estruturalismo que, assim como o estruturalismo, desconfia
das certezas existencialistas e fenomenológicas que tinham como dado um eu estável, a
consciência humana como diretamente acessível e única base da compreensão e da ação:

O pós-estruturalismo questiona o cientificismo das ciências humanas, adota


uma posição antifundacionalista em termos epistemológicos e enfatiza um
certo perspectivismo em questões de interpretação. O movimento pós-
estruturalista questiona o racionalismo e o realismo que o estruturalismo
havia retomado do positivismo, com sua fé no progresso e na capacidade
transformativa do método científico, colocando em dúvida, além disso, a
pretensão estruturalista de identificar as estruturas universais que seriam
comuns a todas culturas e à mente humana em geral12.

10
“Consumidor consciente” é uma expressão do jargão ambientalista e recorrente em reportagens e discursos
institucionais oriundos do mundo empresarial. Há um valor pressuposto: o consumidor consciente seria um
consumidor melhor que os outros. A ONG brasileira Akatu identifica como consumo consciente as novas
práticas e valores desejáveis para a produção e a circulação das mercadorias hoje. Para ter acesso a
apresentação institucional da ONG na internet, consultar: http://www.akatu.org Como consumo e cidadania
andam juntos nessa argumentação, o consumidor consciente seria um cidadão melhor que os outros.
11
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem sido uma das referências mais importantes nesta mudança
significativa de termos: “de consumo” para de “consumidores”. Ao contrário do sociólogo francês, Jean
Baudrillard, cujas obras ajudam a fixar a noção do consumo como estrutura, é o consumo como lógica que
Bauman contempla.
12
Peters, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença: uma introdução. Trad. Tomaz Tadeu da Silva.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. (Estudos culturais, 6) [ p. 39]
7

No tipo de estudos que se convencionou chamar “do consumo” – e que se


apresentam sob o selo editoral da antropologia do consumo, geralmente - é interessante
observar o quanto estão às voltas com ontologias13, perguntando quem são os
consumidores, marcadamente investindo em um esforço etnográfico que toma como um
decalque a ser reconhecido os gestos e percursos. Ao contrário, porém, o consumo estaria
mais para mapa, tomando mapa e decalque nos termos de Deleuze e Guattari. Um mapa,
dizem eles, teria múltiplas entradas, contrariamente ao decalque que voltaria sempre ‘ao
mesmo’:

O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o


constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio do
corpo sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de
consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em
todas as suas dimensões, é desmontável, reversível, suscetível de receber
modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, ser preparado por um
indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa
parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política
ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do
rizoma talvez seja a de ter múltiplas entradas14.

Consumo é desejo e o desejo é rizomático: “porque é sempre por rizoma que o


desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore acontecem as quedas
internas que o fazem declinar e o conduzem à morte”15. Se é adequado entender o consumo
como uma experiência rizomática, assim como a experiência da cidade, então uma
sociedade de consumidores não começa, nem conclui, não tem “consciência”, se encontra
sempre no meio, e é este meio que se torna necessário e possível conhecer.

Poderia ser dito que as esculturas de André Fort estão mais próximas do rizoma que
as pinturas de Hopper, e que o modelo do “consumidor consciente” está diametralmente
oposto ao rizoma, tendo em vista que, para citar novamente Deleuze e Guattari, que por sua
vez citam exemplos da literatura, perguntas como “Para onde você vai? De onde você vem

13
A coletânea de artigos “Cultura, consumo e identidade” é um exemplo dessa característica. Organizada por
Lívia Barbosa e Colin Campbell, traz sete artigos dos quais dois se voltam para a gênese do consumo (o que é
o consumo pensado pelas ciências sociais) e três se ocupam do consumo como repetição de outra experiência
social (consumo, performance romântica e devoção). Barbosa, Lívia; Campbell, Colin. Cultura, consumo e
identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
14
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto
e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. [p.22]
15
Idem. [p.23]
8

? Aonde quer chegar? São questões inúteis”. E essa perguntas são reiteradamente feitas nos
estudos sobre o consumo:

Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um


fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento
(metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). Kleinst, Lenz ou Büchner
têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo
meio, entrar e sair, não começar, nem terminar.16

A figuração do consumidor como sujeito e da mercadoria como objeto conduz à


cidade de Hopper, em que o desenvolvimento, a civilização, se opõem à natureza. Na
perspectiva rizomática, ao contrário, um sujeito-objeto que se cristalizaria temporariamente,
e uma mercadoria-sujeito, investida de subjetividades, sinalizariam para um interior e um
exterior que se dobram. Dobra é um operador conceitual de Deleuze, que ajuda a
problematizar a produção da subjetividade, isto é, a constituição de territórios existenciais,
e os modos de subjetivação, isto é, a produção da subjetividade numa formação histórica
específica: “a dobra exprime a invenção de diferentes formas da relação consigo e com o
mundo ao longo do tempo” (Silva, 2004, p.1). A subjetivação se referiria às diferentes
formas de produzir subjetividades em diferentes formações sociais, colocando a questão da
multiplicidade e da criação permanente.

Em “Conversações”, Deleuze diz que “os modos de existir ou possibilidades de vida


não cessam de se recriar, e surgem novos”17:

A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras


coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções
referindo-se a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um
conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos,
em função do modo de existência que isso implica. Dizemos isto, fazemos
aquilo: que modo de existência isso implica? Há coisas que só se pode fazer
ou dizer levado por uma baixeza da alma, uma vida rancorosa ou por
vingança contra a vida. Às vezes basta um gesto ou uma palavra. São os
estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de
outro18.

16
Idem. [p.37]
17
Deleuze, Gilles. “Rachar as coisas, rachar as palavras. In: Liberátion, 2 e 3 de setembro de 1986, entrevista
a Roberto Maggiori”. In: Conversações. São Paulo: Edições 34, 1992. [p. 116]
18
Deleuze, Gilles. “A vida como obra de arte” In: Le Nouvel Observateur, 23 de agosto de 1986, entrevista a
Didier Eribon”. In: Conversações. São Paulo: Edições 34, 1992. [p.125-p. 126]
9

Desta forma, a localização de uma consciência socialmente responsável no


consumidor é ouma noção riunda de um modelo de pensamento dicotômico que não
vislumbra as múltiplas entradas pelas quais os indivíduos configuram suas existências, seus
agenciamentos.

O “consumidor consciente” e a hipótese de uma “mercadoria consciente” seriam


modos de subjetivação sempre capturados pelos códigos do capitalismo e implicariam um
modo estável de existência na cidade. Consumidor-mercadoria e Mercadoria-consumidor,
no entanto, não precisariam ser definidos definitivamente, nem ter as suas origens
pontuadas linearmente se fossem tomados não como decalque, mas como mapas, não como
“o mesmo”, mas sim duplos, dobras: as linhas múltiplas, que traçam juntos no meio da
cidade, marcariam pontos apenas frágeis e temporários, “eus” voláteis nas brechas de um
espaço ameaçadoramente cada vez menos “verde” ou de uma outra “natureza”. Talvez,
assim, fosse possível percorrer a forma-cidade, lançando raízes para além da cidade na sua
forma-Estado.19

A oportunidade - ou a tragédia – de um “consumo obrigatoriamente consciente” traz


o debate sobre uma racionalidade para a sensibilidade ecológica. Apenas como registro,
vale indicar que é sobre isso que Patrick Joviet escreve, partindo de uma pesquisa de campo
sobre a coleta seletiva na França. As reciprocidades entre indivíduo e contexto, diz ele, que
definem a materialização de escolhas, especialmente no que se refere à questão do meio
ambiente, se dão a partir de tantas multiplicidades que o autor propõe uma tipologia, a cité
verde, pertinente ao esquema metodológico que adota, para desenvolver sua reflexão.

O debate sobre a sensibilidade ecológica do consumidor, de alguma maneira, pode


dialogar com Walter Benjamin – um frankfurtiano mais dócil -, em que são diferenciadas a
vivência e a experiência20, e com suas análises sobre a questão da cidade, a partir da

19
Forma-cidade, horizontal, rizoma, e forma-Estado, vertical, árvore - conceitos em que Deleuze também
problematiza a centralidade: nas cidades se realizariam contra-Estados – a cidade se realizaria nas brechas.
20
A diferenciação entre experiência e vivência está em Benjmamin, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
10

modernidade européia do século XIX. Em “O narrador”, Benjamin tece considerações


sobre a obra de Nikolai Leskov para discutir o fim da narrativa e, portanto, da experiência:

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em


baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de
todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais
baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do
mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que
antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto
um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os
combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim
mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos
depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com
uma experiência transmitida de boca em boca.21

A pressa estaria para a vivência da mesma forma que a experimentação estaria para
o vagar. Para Benjamin, trata-se de experimentar o urbano e não se deixar aprisionar por
ele, estabelecer com o urbano uma relação afetiva, para reiventar a relação com a cidade. A
velocidade criticada por Benjamin compõe o ethos urbano e suas condições psicológicas, e
faz pontes com o clássico texto de Simmel, “A metrópole e a vida mental”, escrito em
1902: “Com cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade da vida econômica,
ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida da cidade pequena e a
vida rural, no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica”.22 A cidade para
Simmel ficaria bloqueada às possibilidades da experiência e, portanto, da mesma forma
como o consumo, restringiria vivências. Isso também remete a Baudrillard:

Vivemos desta maneira ao abrigo dos signos e na recusa do real. Segurança


miraculosa: ao contemplarmos as imagens do mundo, quem distinguirá esta
breve irrupção da realidade do prazer profundo de nela não participar.

A relação do consumidor com o mundo real, à política, à história, à cultura


não é a do interesse, do investimento, da responsabilidade empunhada –
também não é a da indiferença total, mas sim a da CURIOSIDADE.
Segundo o mesmo esquema, pode-se afirmar que a dimensão do consumo
até aqui por nós definida, não é a do conhecimento do mundo, nem
igualmente a da ignorância completa: é a do DESCONHECIMENTO.

21
Benjamin, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras Escolhidas. Vol.
I. Magia e técnica, arte e política. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
22
Simmel, Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: Velho, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1973. [12]
11

O desconhecimento em Baudrillard se liga ao blasé em Simmel: “A essência da


atitude blasé consiste no embotamento do poder de discriminar. Isto não significa que os
objetos não sejam percebidos, como é o caso dos débeis mentais, mas antes que o
significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados
como destituídos de substância”23.

Benjamin, Baudrillard e Simmel sinalizam para a redução da cidade ou para a


redução da sua percepção. A cidade nesses autores levaria ao consumo como pontual,
restringindo-lhe a uma vivência, a uma memória curta. No entanto, tão ou mais impróprio
que reduzir o consumo nestes termos, é garantir-lhes o status, a priori, da experiência
benjaminiana ou de memória longa. Na cidade o que se vê, sente, respira são
heterogeneidades, ramificações múltiplas, sem centro, onde cada indivíduo pode montar a
sua cidade ou rasgá-la. Por outro lado, mesmo que a cidade exista como repressão,
sufocamento, não se pode tomar as subjetividades configuradas - ou identidades
constituídas – como sempre passíveis de descarte num fluxo que não cessa: linhas, sim,
mas com ligeiros pontos de ancoragem, que poderiam indicar, em alguns casos e em
alguma medida, o que Patrick Joviet chama de sensibilidade ecológica – um conceito, mais
que uma categoria de análise.

Se não houver “o” consumidor, como querem os estudos sobre o consumo, “o”
consumidor consciente, talvez haja rizomáticas sensibilidades ecológicas. Sensibilidades
ecológicas urbanas podem brotar como estilo de vida, como estética, como ética, políticas
públicas de preservação, patrimônio imaterial, como tecido, papel, estilo de vida. Podem se
ramificar em fundamentos, lógicas, pressupostos independentes, aparentemente
incoerentes, mas que se ligam. Sensibilidades ecológicas podem romper de um modo que
não se espera, onde não se espera.

Misturadas, camufladas, as sensibilidades ecológicas na sociedade de consumidores


podem ser percebidas como “a” consciência, como “o” consciente, o que não lhes impediria
de continuar a ramificação horizontal. Junto com elas, apesar delas, se ramifica o poder,
para fora do qual as sensibilidades ecológicas tentam lançar suas hastes, e o qual,

23
Idem. [p.16]
12

paradoxalmente, as constitui. Sensibilidades ecológicas podem explodir, como as esculturas


de André Fort, da árvore morta, pedra, metal e vidro. Podem começar sombra, escuras,
numa pintura de Edward Hopper, surgindo no fundo do quadro, e mais adiante se projetar
pela janela. E depois se embrenhar num ensaio, como o presente texto. Sensibilidades
ecológicas desenham mapas na cidade, desenham mapas no mundo.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1976. (Arte & comunicação)

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras Escolhidas. Vol.
I. Magia e técnica, arte e política. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995.

_______________ . Conversações. São Paulo: Edições 34, 1992.

EUFRASIO, Mario A. “ 7. O conceito de ecologia humana na escola sociológica de Chicago”. In: Estrutura
urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago (1915-1940). São Paulo: Editora 34, 1999.
[p.95-p.129]

JOVIET, Patrick. “ 4. Définir une rationalité ancrée. L’exemple de la sensibilité écologique”. In : Eymard-
Duvernay, François (org.) L’economie des convetions : méthodes et résultats. Paris : La Découverte, 2006.
[p. 73 –p. 89]

PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença: uma introdução. Trad. Tomaz Tadeu da Silva.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. (Estudos culturais, 6)

RENNER, Rolf Günter. Edward Hopper – 1882 – 1967: transformações do real. Trad. Casa das Línguas.
Köln: Taschen, 1992.

SILVA, Rosana Neves da. “A dobra deleuziana: políticas da subjetivação”. In: Revista do Departamento de
Psicologia da UFF. v. 16, n. 1. Niterói: UFF, 2004. [p.55-p.75]

SIMMEL, Georg. Ä metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1973. [12]

Crédito das imagens

Figura 1. André Fort no seu ateliê. Divulgação. Disponível no site pessoal do artista

Figura 2. House by the Railroad (1925), reprodução da obra de Edward Hopper, do acervo do Museum of Modern Art, MoMA, Nova
York, Estados Unidos.

Figura 3. Woman in the sun (1961), reprodução da obra de Edward Hopper, acervo do Whitney Museum of American Art, Nova York,
Estados Unidos

Sites consultados

http://andrefort.com/oartista.htm
http://www.akatu.org
http://www.moma.org
http://www.whitney.org/

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