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Josi Paz∗
Restos. Esta é a matéria-prima do arquiteto e artista plástico André Fort. Ele coleta
o que sobrou das árvores em antigas áreas verdes, onde hoje funcionam rodovias, edifícios,
indústrias. Às formas puras que encontra, Fort acrescenta o vidro, a pedra e o metal e
produz esculturas1. Embora não tenha esse propósito, sua exposição “Cidade rizomática” se
vincula ao debate proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, especificamente em “Mil
platôs: capitalismo e esquizofrenia”, texto que apresenta um dos conceitos mais profícuos
dos autores: rizoma. O objetivo deste ensaio é utilizar a noção de rizoma para pensar os
agenciamentos2 entre cidade, natureza e consumo.
∗
Doutoranda vinculada à linha de pesquisa “Cidade e sociedade” do Programa de Pós-graduação em
Sociologia (SOL) da Universidade de Brasília (UnB). 20 de dezembro de 2007. josi.ppaz@gmail.com
1
Imagens da exposição “Cidade rizomática” de André Fort estão na internet: http://andrefort.com/oartista.htm
2
Deleuze e Guattari, em suas obras (especialmente, em “O inconsciente maquínico: ensaios de
esquizoanálise” de Guattari), falam da militarização das relações humanas e apontam para os novos
agenciamentos, as novas conexões possíveis, como saída pela micropolítica.
3
Deleuze, Gilles; Guatarri, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e
Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34,1995. [p.32]
2
Num breve comentário sobre cada um desses princípios, pode-se afirmar que
conexão é um imperativo do rizoma, ao contrário da árvore, cujos galhos partem de um
ponto central. No rizoma, tudo e todos estão e devem estar conectados. Deleuze e Guattari
citam como exemplo de árvore a lingüística de Chomsky, cuja análise se fecha na
linguagem, sem considerar cadeias semióticas e a questão do poder. Não haveria língua-
mãe, lembram eles, o que há é tomada de poder por uma língua que coexiste com gírias e
dialetos. Já a multiplicidade é exemplificada por meio da marionete. Rizoma seriam os fios
e não o manipulador, linhas sem nós, sem pontos, sem plasmação. O princípio de ruptura a-
significante teria a ver com a possibilidade de quebrar o rizoma em qualquer parte e, a
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As pesquisas desenvolvidas por André Lemos (UFBA) e Janice Caiafa (UFRJ) são exemplos dessa
abordagem.
3
Viveríamos sob a égide de uma sociedade de controle e não mais de uma sociedade
disciplinar, como em Foucault, dizem eles: já não se reconhece mais onde começa e onde
termina o controle de nossas vidas - nos espaços mais recônditos, como o lar, estaríamos
subjugados. Não haveria “capitalismo universal”: o capitalismo existiria no cruzamento de
toda sorte de formações. Junto com a cidade que se expande horizontalmente, vai o
capitalismo e suas formas imperceptíveis de poder, espraiando-se nas dimensões da vida.
5
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e
Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. [p.24]
6
Eufrasio, Mario A. Estrutura urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago (1915-1940).
São Paulo: Editora 34, 1999. [p.95-p.103]
4
7
Deleuze, Gilles; Guatattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto
e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. Idem. [p.33]
5
É para o “índivíduo do Novo Mundo”– para si, pintor, para quem está no e para
quem olha o quadro - que Hopper oferece janelas abertas, como em “Woman in the sun”de
19618:
Essa reconquista dos lugares da civilização pela natureza por meio de fugas do
sujeito não é um tema de Hopper ou um tema meramente estético – se é que se pode falar
em meramente estético. É uma reflexão antecipada pela arte sobre o ético e o político no
atualíssimo questionamento sobre os processos de subjetivação na condição urbana. Hopper
é particularmente atual nesse momento histórico em que as avaliações sócio-ambientais
sobre os modos como natureza e cidade estão imbricados em nossa vida vêm obrigando
intervenções do Estado. Grandes potências, como os Estados Unidos - não por coincidência
pintados por Edward Hopper – têm presença central nesse debate. Na medida em que
garantir a manutenção dos recursos naturais se torna um projeto da sociedade de controle, o
8
Estas e outras reproduções de Hopper podem ser consultadas em http://www.moma.org e
http://www.whitney.org/
9
RENNER, Rolf Günter. Edward Hopper – 1882 – 1967: transformações do real. Trad. Casa das Línguas.
Köln: Taschen, 1992. [p.77]
6
consensos em torno da questão ambiental vai sendo criando, por meio de estratégias como
os registros lingüísticos “desenvolvimento sustentável”, “mercado equilibrado”,
“preservação do meio ambiente”, “mercado de carbonos”, que provocam as estabilidades
necessárias.
As palavras e as coisas.
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“Consumidor consciente” é uma expressão do jargão ambientalista e recorrente em reportagens e discursos
institucionais oriundos do mundo empresarial. Há um valor pressuposto: o consumidor consciente seria um
consumidor melhor que os outros. A ONG brasileira Akatu identifica como consumo consciente as novas
práticas e valores desejáveis para a produção e a circulação das mercadorias hoje. Para ter acesso a
apresentação institucional da ONG na internet, consultar: http://www.akatu.org Como consumo e cidadania
andam juntos nessa argumentação, o consumidor consciente seria um cidadão melhor que os outros.
11
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem sido uma das referências mais importantes nesta mudança
significativa de termos: “de consumo” para de “consumidores”. Ao contrário do sociólogo francês, Jean
Baudrillard, cujas obras ajudam a fixar a noção do consumo como estrutura, é o consumo como lógica que
Bauman contempla.
12
Peters, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença: uma introdução. Trad. Tomaz Tadeu da Silva.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. (Estudos culturais, 6) [ p. 39]
7
Poderia ser dito que as esculturas de André Fort estão mais próximas do rizoma que
as pinturas de Hopper, e que o modelo do “consumidor consciente” está diametralmente
oposto ao rizoma, tendo em vista que, para citar novamente Deleuze e Guattari, que por sua
vez citam exemplos da literatura, perguntas como “Para onde você vai? De onde você vem
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A coletânea de artigos “Cultura, consumo e identidade” é um exemplo dessa característica. Organizada por
Lívia Barbosa e Colin Campbell, traz sete artigos dos quais dois se voltam para a gênese do consumo (o que é
o consumo pensado pelas ciências sociais) e três se ocupam do consumo como repetição de outra experiência
social (consumo, performance romântica e devoção). Barbosa, Lívia; Campbell, Colin. Cultura, consumo e
identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
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Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto
e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. [p.22]
15
Idem. [p.23]
8
? Aonde quer chegar? São questões inúteis”. E essa perguntas são reiteradamente feitas nos
estudos sobre o consumo:
16
Idem. [p.37]
17
Deleuze, Gilles. “Rachar as coisas, rachar as palavras. In: Liberátion, 2 e 3 de setembro de 1986, entrevista
a Roberto Maggiori”. In: Conversações. São Paulo: Edições 34, 1992. [p. 116]
18
Deleuze, Gilles. “A vida como obra de arte” In: Le Nouvel Observateur, 23 de agosto de 1986, entrevista a
Didier Eribon”. In: Conversações. São Paulo: Edições 34, 1992. [p.125-p. 126]
9
19
Forma-cidade, horizontal, rizoma, e forma-Estado, vertical, árvore - conceitos em que Deleuze também
problematiza a centralidade: nas cidades se realizariam contra-Estados – a cidade se realizaria nas brechas.
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A diferenciação entre experiência e vivência está em Benjmamin, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
10
A pressa estaria para a vivência da mesma forma que a experimentação estaria para
o vagar. Para Benjamin, trata-se de experimentar o urbano e não se deixar aprisionar por
ele, estabelecer com o urbano uma relação afetiva, para reiventar a relação com a cidade. A
velocidade criticada por Benjamin compõe o ethos urbano e suas condições psicológicas, e
faz pontes com o clássico texto de Simmel, “A metrópole e a vida mental”, escrito em
1902: “Com cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade da vida econômica,
ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida da cidade pequena e a
vida rural, no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica”.22 A cidade para
Simmel ficaria bloqueada às possibilidades da experiência e, portanto, da mesma forma
como o consumo, restringiria vivências. Isso também remete a Baudrillard:
21
Benjamin, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras Escolhidas. Vol.
I. Magia e técnica, arte e política. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
22
Simmel, Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: Velho, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1973. [12]
11
Se não houver “o” consumidor, como querem os estudos sobre o consumo, “o”
consumidor consciente, talvez haja rizomáticas sensibilidades ecológicas. Sensibilidades
ecológicas urbanas podem brotar como estilo de vida, como estética, como ética, políticas
públicas de preservação, patrimônio imaterial, como tecido, papel, estilo de vida. Podem se
ramificar em fundamentos, lógicas, pressupostos independentes, aparentemente
incoerentes, mas que se ligam. Sensibilidades ecológicas podem romper de um modo que
não se espera, onde não se espera.
23
Idem. [p.16]
12
Referências bibliográficas
BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1976. (Arte & comunicação)
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras Escolhidas. Vol.
I. Magia e técnica, arte e política. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995.
EUFRASIO, Mario A. “ 7. O conceito de ecologia humana na escola sociológica de Chicago”. In: Estrutura
urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago (1915-1940). São Paulo: Editora 34, 1999.
[p.95-p.129]
JOVIET, Patrick. “ 4. Définir une rationalité ancrée. L’exemple de la sensibilité écologique”. In : Eymard-
Duvernay, François (org.) L’economie des convetions : méthodes et résultats. Paris : La Découverte, 2006.
[p. 73 –p. 89]
PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença: uma introdução. Trad. Tomaz Tadeu da Silva.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. (Estudos culturais, 6)
RENNER, Rolf Günter. Edward Hopper – 1882 – 1967: transformações do real. Trad. Casa das Línguas.
Köln: Taschen, 1992.
SILVA, Rosana Neves da. “A dobra deleuziana: políticas da subjetivação”. In: Revista do Departamento de
Psicologia da UFF. v. 16, n. 1. Niterói: UFF, 2004. [p.55-p.75]
SIMMEL, Georg. Ä metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1973. [12]
Figura 1. André Fort no seu ateliê. Divulgação. Disponível no site pessoal do artista
Figura 2. House by the Railroad (1925), reprodução da obra de Edward Hopper, do acervo do Museum of Modern Art, MoMA, Nova
York, Estados Unidos.
Figura 3. Woman in the sun (1961), reprodução da obra de Edward Hopper, acervo do Whitney Museum of American Art, Nova York,
Estados Unidos
Sites consultados
http://andrefort.com/oartista.htm
http://www.akatu.org
http://www.moma.org
http://www.whitney.org/