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Revolução, história e tempo

Revolution, History and Time


Revolución, Historia y Tiempo
Ricardo Oliveira da Silva*

Resumo A criação do conceito moderno de


revolução ocorreu concomitante ao surgi-
Este artigo analisa o surgimento e as mento da concepção moderna de História
características do moderno conceito de na Europa, no decorrer da segunda metade
revolução, relacionado à concepção de do século XVIII. Nesse período, a História
história que apareceu no século XVIII. passou por um processo de secularização,
Ambos os conceitos compartilham de em que perdeu suas referências religiosas e
uma concepção de tempo como uma
de tributo ao passado, cristalizada pela utili-
sucessão linear de acontecimentos com
zação do termo Magistra Vitae, para ser com-
uma finalidade. O declínio do moderno
preendida como um processo linear e con-
conceito de revolução como referência
para as lutas sociais no final do século tínuo de realização das ações humanas nas
XX aponta para a necessidade de uma quais o futuro se afigurava como a promessa
revisão do seu significado, assim como de concretização de um novo mundo, uma
do moderno conceito de História. Uma tarefa da revolução.
resposta pode ser a formulação de uma
concepção de tempo na qual os indiví-
duos se colocam como os artífices na
construção de sua própria história.

Palavras-chave: Revolução. História. Tempo. *


Doutor em História pela UFRGS. Professor subs-
tituto do Departamento de Metodologia do Ensino
da UFSM.

Recebido em 18/12/2014 - Aprovado em 15/08/2014


http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.15n.1.5288

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O significado moderno da palavra re- e o começo do século XIX, compartilhando
volução surgiu com base em alguns prin- de pressupostos em comum. No que se re-
cípios: a ideia de aceleração do tempo, a fere à acepção de história, tivemos o início
finalidade social dos movimentos políticos, de um processo que se consolidou no século
o caráter universal e de permanência, o sur- XIX com a Escola História Alemã e a Escola
gimento do novo e do inédito e, consequen- Metódica Francesa, ou seja, a Constituição
temente, a rejeição ao passado como valor da História como área de conhecimento au-
para o presente. Tais premissas procura- tônoma e na condição de uma ciência com-
ram atribuir um significado para os movi- prometida com a busca da verdade sobre o
mentos políticos e sociais que começaram a passado. Entre as características da concep-
ocorrer a partir de fins do século XVIII. No ção de História como ciência, ao longo do
entanto, quando a concepção moderna de século XIX, esteve a preocupação primordial
História entrou em crise, no final do século com a realidade histórica por meio do estu-
XX, especialmente com o declínio do futu- do das fontes, um conhecimento produzi-
ro como referência para as lutas sociais, a do predominantemente por historiadores e
ideia de revolução se viu, igualmente, aba- um espaço de discussão coletiva por parte
lada. Um caminho para continuarmos com dos profissionais para aprenderam o ofício
o debate sobre a revolução passa por uma de trabalhar com o conhecimento histórico
reflexão sobre a concepção de tempo que (BARROS, 2011).
permita repensar a relação do ser humano Na segunda metade do século XVIII,
com o mundo. ganhou força, paralelamente, um processo
Para apresentar uma reflexão em torno de temporalização da História. Com isso,
do significado do termo revolução, articulado queremos dizer que foi se impondo uma
ao tema da História e do tempo, este artigo compreensão sobre as ações humanas em
foi estruturado do seguinte modo: na primei- uma perspectiva que buscou se afastar de
ra parte, destacamos o surgimento e as prin- pressupostos de caráter religioso. O concei-
cipais características dos conceitos modernos to moderno de revolução nasceu apresen-
de revolução e história. Na segunda parte, tando laços com esse entendimento secular
apresentamos os argumentos para uma res- da História. A metamorfose na acepção
posta à crise do significado moderno de revo- do que seria a História, se distanciando de
lução e de história no final do século XX, por premissas religiosas, esteve relacionada
meio de uma nova concepção de tempo. com a Modernidade e a nova consciência
sobre o sentido histórico que foi aparecen-
do na Europa Ocidental, desde o fim da
Revolução e História
Idade Média:
O surgimento do conceito moderno de
revolução ocorreu no mesmo contexto de gê-
nese do sentido moderno da palavra histó-
ria, entre a segunda metade do século XVIII

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A “modernidade” significou uma revolução Essa dinâmica temporal evolutiva se
cultural, ocorrida apenas no Ocidente, que tornou uma das bases da filosofia da histó-
acompanhou e tornou possível a expansão
ria, uma reflexão filosófica produzida em
europeia pelo mundo e, internamente, a
Constituição de uma nova ordem política torno da busca de um sentido para a histó-
(Estado burocrático), uma nova ordem eco- ria universal, que fosse dotado de caráter
nômica (ética do trabalho e empresa capita- especulativo e teleológico, produzido pre-
lista) e uma nova ordem social (não-fraterni-
dominantemente por filósofos. Entre os pen-
dade religiosa) (REIS, 2006, p. 22).
sadores que produziram uma reflexão com
A “revolução cultural” da Modernida- elementos de uma filosofia da História, po-
de representou o desenvolvimento de uma demos citar Voltaire, que cunhou a expres-
consciência secularizada, distinta da ênfase são no século XVIII, período de afirmação
atribuída ao sagrado pelo pensamento me- das filosofias da história, assim como Con-
dieval, mais fascinada do que atemorizada dorcet, Kant, Hegel, Auguste Comte e, em
pela experiência do tempo mundano, por parte, Marx (MANIERI, 2013).
suas riquezas, glórias e prazeres, emergindo No contexto linguístico alemão exis-
um novo personagem na História: “o ho- tiam, até meados do século XVIII, duas
mem da cidade, o burguês, o comerciante, palavras para se referir à História. De um
que avança pelos oceanos na conquista des- lado, havia o termo Historie, para designar
se mundo” (REIS, 2006, p. 23). o relato, a narrativa de algo que aconteceu.
Um dos desdobramentos do fortaleci- De outro, tinha a palavra Geschichte, que ori-
mento de uma consciência secularizada na ginalmente remetia ao acontecimento em si
Europa foi a gradual formação do “espelho ou, então, a uma série de ações cometidas
do progresso”, contribuindo para isso os e sofridas. Porém, no decorrer do século
descobrimentos geográficos nos séculos XV XVIII, começou a haver o predomínio da pa-
e XVI, com a elaboração de um saber sobre lavra Geschichte, em detrimento de Historie,
o ser humano por meio de uma dinâmica designando tanto o acontecimento quanto o
temporal evolutiva. O modelo de desenvol- relato. Uma mudança semântica que passou
vimento das sociedades em diversas etapas: a levar em consideração o entendimento de
que a História seria um processo evolutivo
Permitia reduzir o conjunto da história
em um único esquema universalmente e universal pela qual passaria o conjunto
válido, situava as sociedades “mercantis” da humanidade, um elemento em comum
europeias – que logo se definiriam como com a filosofia da história. Esse é um tema
“industriais” – no ponto culminante da abordado por Reinhart Koselleck (2006), no
civilização (o que acabava convertendo a
livro Futuro passado, em que se procede uma
história universal na história da Europa) e
dava um caráter “científico” tanto às pre- análise que evidenciou a relação do sentido
tensões de superioridade dos europeus moderno de História com o conceito moder-
como a suas interferências na vida e na his- no de revolução.
tória dos demais (FONTANA, 2005, p. 121).

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Segundo Reinhart Koselleck (2006), até (KOSELLECK, 2006, p. 33). Com as filoso-
o começo da Idade Moderna prevalecia o en- fias da história, no século XVIII, uma inci-
tendimento da História por meio da expres- piente modernidade desligou-se do passa-
são Magistra Vitae, cunhada por Cícero para do, dando ênfase para um futuro inédito.
enfatizar a capacidade de o orador empres- O significado da história acompanhou esse
tar sentido de imortalidade à história como processo de mudança, abandonando a con-
instrução para a vida: cepção de Magistra Vitae.
No livro Regimes de historicidade, o his-
A tarefa principal que Cícero atribui aqui
à historiografia é especialmente dirigida à toriador francês François Hartog (2013) tam-
prática, sobre a qual o orador exerce influ- bém apresentou uma reflexão sobre o senti-
ência. Ele se serve da história como coleção do moderno da palavra história. Nessa obra,
de exemplos – plena exemplorum est historia foi chamada a atenção para as categorias de
[a história é cheia de exemplos] – a fim de
que seja possível instruir por meio dela “experiência” e de “expectativa”, trabalha-
(KOSELLECK, 2006, p. 43). das por Reinhart Koselleck (2006) no livro
Futuro passado, para pensar as tensões exis-
Na perspectiva de Cícero, na relação tentes entre campo de experiência e horizon-
entre as categorias temporais de passado, te de expectativa e os modos de articulação
presente e futuro, havia a predominância do presente, do passado e do futuro, em dis-
do passado, como capaz de ser um guia tintos períodos históricos. Um exemplo seria
para orientar as ações dos indivíduos em re- a estrutura temporal dos tempos modernos,
lação ao futuro. No entanto, a partir da Ida- marcada pela abertura do futuro e pelo pro-
de Moderna ocorreu um processo de tem- gresso, com a assimetria entre a experiência
poralização da história que se consolidou e a expectativa: “a partir do final do século
entre a segunda metade do século XVIII e o XVIII, essa história pode esquematizar-se
começo do século XIX. Um processo favore- como a de um desequilíbrio que não parou
cido, por um lado, pelo prognóstico racio- de crescer entre essas duas, sob o efeito da
nal e, por outro lado, pela filosofia da his- aceleração” (HARTOG, 2013, p. 39). In-
tória. Como conceito antagônico às antigas gressaríamos, com isso, no moderno regi-
profecias de caráter salvífico, o prognóstico me de historicidade.
racional esteve vinculado à situação políti- O moderno regime de historicidade
ca, produzindo o tempo que o engendrava seria caracterizado, segundo François
e em direção ao qual ele se projetava, ao Hartog (2013), por aquilo que Reinhart
passo que a profecia apocalíptica destruía Koselleck (2006) analisou na passagem
o tempo, de cujo fim ela se alimentava. Do do termo plural alemão die Geschichten
ponto de vista da estrutura temporal, “o ao singular die Geschichte – de histórias à
prognóstico pode ser entendido como um História. Uma noção compreendida como
fator de integração do Estado, que ultrapas- processo, com a ideia de que os aconteci-
sa, assim, o mundo que lhe foi legado, com mentos não se produziriam mais somente
um futuro concebido de maneira limitada” no tempo, mas através dele. O tempo como

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ator. No entanto, um elemento que gos- Se foi possível caracterizarmos a história
taríamos de chamar atenção no estudo de moderna [neuzeitliche Geschichte] como
uma era de revolução, [...], é porque a es-
François Hartog (2013), quando esse enfoca
sas formulações subjaz uma determinada
o moderno regime de historicidade, se refere experiência imediata. [...] O conceito de
ao futurismo: “revolução” é um produto linguístico de
nossa modernidade [Neuzeit]. Desde o sé-
Futurismo deve ser entendido aqui como a culo XIX tornou-se comum distinguir entre
dominação do ponto de vista do futuro. Este uma revolução política, uma revolução so-
é o sentido imperativo da ordem do tempo: cial ou uma revolução técnica e industrial
uma ordem que continua acelerando ou se (KOSELLECK, 2006, p. 62).
apresentando como tal. A história é feita en-
tão em nome do futuro e deve ser escrita do A Revolução Industrial iniciada na In-
mesmo modo (HARTOG, 2013, p. 141).
glaterra, por exemplo, revelou uma intensi-
Esse é um dado importante para os dade nos poderes de produção econômica
objetivos de nosso trabalho. O surgimento até então inéditos e que daí em diante se
do moderno conceito de história, que Rei- tornaram capazes de multiplicação rápida
nhart Koselleck (2006) estudou por meio e constante. O conjunto de transformações
da preponderância na língua alemã do ter- econômicas ocorridas com a preponderân-
mo Geschichte para designar tanto o relato cia do mundo industrial, possuindo na ino-
sobre o acontecimento, quanto o aconteci- vação tecnológica e na implantação do siste-
mento em si, se caracterizou pela ênfase do ma fabril importantes fatores de dinamismo,
ponto de vista do futuro. Nesse sentido, o não foi um episódio com um princípio e um
moderno regime de historicidade é futuris- fim, “pois sua essência foi a de que a mu-
ta, ao contrário do antigo regime de histori- dança revolucionária se tornou norma desde
cidade, marcado pelo predomínio do ponto então” (HOBSBAWM, 2010, p. 60).
de vista do passado, naquilo que era defi- A palavra revolução, originalmente,
nido como Magistra Vitae. É sob esse ponto era um termo da astronomia que ganhou
de vista futurista, do moderno regime de importância nas ciências naturais com o tex-
historicidade, que o sentido da revolução to De revolutionibus orbium coelestium [Sobre
nasceu acoplado. as revoluções dos corpos celestes], de Co-
O conceito moderno da palavra revo- pérnico, publicado em 1543, para designar o
lução foi concebido no transcurso dos acon- movimento regular e necessário dos astros
tecimentos políticos do século XVIII, que em suas órbitas, ou seja, cíclico e recorren-
levaram à crise e à derrocada da sociedade te. A utilização da expressão em assuntos
do Antigo Regime na Europa e esteve asso- terrenos era, então, uma referência para as
ciado à experiência da modernidade e sua poucas formas conhecidas de governo que
ênfase na história como um processo com se repetiam entre os mortais em um ciclo de
uma finalidade: recorrência eterna e com a mesma força ir-
resistível que fazia os astros seguirem seus
caminhos predeterminados no firmamento.

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Neste caso, um significado distinto da ideia abrigar, no decorrer da segunda metade do
do fim definitivo de uma ordem antiga e do século XVIII, as possibilidades de todas as
nascimento de um mundo novo. O vocábulo histórias singulares, revolução cristalizou-
revolução foi utilizado como termo político -se como um coletivo singular que buscou
no século XVII, porém, seu conteúdo na- concentrar em si as trajetórias de todas as re-
quele período esteve próximo do significa- voluções particulares, tornando-se um con-
do original do termo, ou seja, designar um ceito meta-histórico, “separando-se comple-
movimento de retorno a algum ponto pre- tamente de sua origem natural e passando
estabelecido e, por extensão, de volta a uma a ter por objetivo ordenar historicamente as
ordem predeterminada. O termo foi usado experiências de convulsão social” (KOSEL-
para se referir aos acontecimentos políticos LECK, 2006, p. 69).
desencadeados na Inglaterra do século XVII. Em segundo lugar, a palavra revo-
No entanto, seu uso não foi para se referir a lução passou a se referir à experiência de
Cromwell e a instalação da República, mas aceleração do tempo. Quando Robespierre,
para apontar a restauração da monarquia por exemplo, conclamou seus concidadãos a
em 1660. apressar a revolução para trazer a liberda-
Os embates políticos e sociais que de à força, estava em curso um processo de
atingiram a Europa, nos séculos XVI e XVII, secularização das expectativas apocalípticas
eram identificados, até então, por meio de de salvação, ao contrário de períodos ante-
expressões que iam desde motim e subleva- riores em que a aceleração do tempo era as-
ção, passando por insurreição, tumulto e re- sociada à destruição do tempo histórico em
belião. No século XVIII, com os iluministas, face da perspectiva religiosa do Juízo Final.
o termo revolução se tornou uma “palavra A partir da Revolução Francesa, os prognós-
da moda” para denominar tudo que tinha ticos sobre movimentos políticos passaram
caráter de transformação e comoção, inau- a apresentar um coeficiente dinâmico, aos
gurando um novo horizonte de expectativa quais se atribuiu um sentido “revolucioná-
que, a partir dos acontecimentos políticos rio”, independente da origem. Trata-se da
na França, em 1789, não mais conduziam de terceira característica associada ao significa-
volta a situações anteriores, mas para um do de revolução.
futuro inédito. Em quarto lugar, o termo revolução
Segundo Reinhart Koselleck (2006), o passou a identificar uma alteração na pers-
conceito moderno de revolução apresentou pectiva sobre o passado. Abriu-se um novo
algumas características que, de um modo espaço de experiência cujos pontos de fuga
mais amplo, estavam vinculadas ao signifi- remetiam a diferentes fases da Revolução
cado moderno de história que apareceu no Francesa. Conforme o interesse do obser-
mesmo período. Em primeiro lugar, o cará- vador, era possível se identificar com uma
ter de um “coletivo singular”. Assim como o determinada etapa da revolução e, com base
conceito alemão Geschichte, que como “his- nesse ponto de vista, tirar conclusões aplicá-
tória em si” [Geschichte schlechthin] passou a veis ao futuro:

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A revolução, desde então, transformou-se ções deveriam beneficiar toda a humanida-
para todos em um conceito perspectivista de. Em outras palavras,
dentro da história da filosofia, que apontava
para uma direção irreversível. É possível [...] todas as variações modernas do termo
que houvesse ainda discussão sobre um “evolução” pretenderam, do ponto de vis-
“antes” e um “depois”, sobre retardamento ta geográfico, uma revolução universal e, do
ou aceleração, mas a direção do movimento ponto de vista temporal, uma revolução
parecia definitivamente determinada (KO- permanente, até que seus objetivos fossem
SELLECK, 2006, p. 71, grifo do autor). cumpridos (KOSELLECK, 2006, p. 72, grifo
do autor).
Em quinto lugar, o conceito moderno
de revolução passou a se distinguir pela O sentido da revolução como algo que
passagem do sentido de uma revolução se via continuamente obrigado a se reprodu-
política para uma revolução social. Ainda zir, permite apontar uma sétima caracterís-
que os movimentos e as lutas políticas ti- tica. Se, por um lado, a revolução foi cons-
vessem momentos de instabilidade social, tituída como uma categoria meta-histórica
ganhou espaço “a ideia de que o objetivo que ajudou a determinar os sucessos indus-
de uma revolução política seja a emancipa- triais e sociais como um processo de acele-
ção de todos os homens e a transformação ração, por outro, essa intervenção mostrou-
da estrutura social” (KOSELLECK, 2006, p. -se como uma reivindicação consciente por
71). Exemplar nesse caso foi a Declaração parte daqueles que se viam iniciados nas leis
dos Direitos do Homem e do Cidadão em de progressividade de uma revolução enten-
1789, nos momentos iniciais da Revolução dida como tal:
Francesa, inaugurando um campo de expe- Emerge então o termo revolucionamento
riência social no qual os programas lança- [Revolutionierung] e o verbo dele deriva-
dos posteriormente, em nome da liberdade do, revolucionar . Já desde 1789 junta-se
e/ou da igualdade, passaram a pressionar ao nosso campo semântico mais um dos
inúmeros neologismos, o substantivo “re-
pelo mesmo objetivo. volucionário” [Revolutionär]. É um con-
Uma sexta característica do conceito ceito obrigatório para o atavismo [...] Ne-
moderno de revolução foi seu caráter univer- cessariamente associada a essa ideia está
sal e permanente, que resultou diretamente também a concepção, outrora da mesma
forma impensável, de que os homens po-
da passagem de uma revolução política
dem fazer revoluções (KOSELLECK, 2006,
para uma revolução social. A emancipação p. 74-75, grifo do autor).
das antigas colônias inglesas na América do
Norte, terminada do ponto de vista político Diante de tais características que per-
em fins do século XVIII, não escapou à pres- mitiram definir o conceito moderno de
são de prosseguir como um processo social. revolução, os diversos movimentos revo-
O programa da Independência dos EUA, lucionários, que nasceram e se desenvolve-
a Revolução Francesa e a Revolução Russa ram entre fins do século XVIII e, pelo me-
trouxeram o princípio de que suas realiza- nos, até meados do século XX, passaram a

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encontrar em si mesmo legitimidade para resistibilidade, “o fato de que o movimento
suas ações: cíclico dos astros segue um caminho prede-
terminado e está fora do alcance de qualquer
[...] ao passo que a legitimidade da Res-
tauração permanecia atada à noção de influência humana” (ARENDT, 2011, p. 78).
tradição, a legitimidade revolucionária A noção de um movimento irresistível teria
tornava-se um coeficiente dinâmico, que ressoado de forma emblemática na Revolu-
direcionava a história a partir de deter- ção Francesa:
minadas perspectivas do futuro (KOSEL-
LECK, 2006, p. 75). É “a majestosa corrente de lava da revolu-
ção que não poupa nada e ninguém pode
Hannah Arendt (2011), por sua vez, deter”, como testemunhou Georg Forster
destacou que o fundamental para a compre- em 1793; é o espetáculo que recai sob o sig-
ensão do conceito moderno de revolução foi no de Saturno: “a revolução devorando os
próprios filhos”, como colocou Vergniaud,
a convergência entre a ideia de liberdade e a
o grande orador da Gironda. [...] Era como
experiência de um novo início: se uma força maior do que o homem inter-
viesse no momento em que os homens co-
O que as revoluções trouxeram ao primei-
meçavam a afirmar sua grandeza e defen-
ro plano foi esta experiência de ser livre,
der sua honra (ARENDT, 2011, p. 80-81).
[...]. E essa experiência [...] era ao mesmo
tempo a experiência da capacidade huma-
A Revolução Francesa tem três carac-
na de dar início a algo novo. [...] Apenas
onde existe esse páthos de novidade e onde terísticas importantes que podem ser úteis
a novidade está ligada à ideia de liberda- para tentarmos compreender sua relação
de é que podemos falar em revoluções com o significado moderno de revolução.
(ARENDT, 2011, p. 62-63). Em primeiro lugar, ela se deu no mais po-
Assim, teria sido somente no curso dos puloso Estado da Europa, com exceção da
processos políticos do final do século XVIII Rússia. Em segundo lugar, foi uma revolu-
que os indivíduos começaram a ter consci- ção social de massa. Em terceiro, e gostarí-
ência de que “um novo início poderia ser amos de destacar esse ponto, “a Revolução
um fenômeno político, poderia ser o resul- Francesa foi a única ecumênica. Seus exér-
tado do que os homens haviam feito e do citos partiram para revolucionar o mundo”
que podiam conscientemente começar a fa- (HOBSBAWM, 2010, p. 99). Ou seja, os acon-
zer” (ARENDT, 2011, p. 77-78). A novidade, tecimentos políticos que ocorreram em solo
o início e a violência, elementos associados francês a partir de 1789, sob o ponto de vista
ao conceito de revolução que passou a vigo- dos revolucionários, em especial dos jacobi-
rar a partir do século XVIII, estavam ausen- nos, politicamente os mais radicais, foram
tes do significado original da palavra, bem interpretados como sendo parte da marcha
como do seu emprego inicial na linguagem inexorável da história em direção ao futuro,
política. Para Hannah Arendt (2011), porém, que deveria ser compartilhado por toda a
uma conotação da origem astronômica se humanidade:
manteve muito marcada no conceito mo-
derno de revolução, qual seja, a ideia de ir-

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Isto se devia, em parte, ao fato de que toda século XVIII, surgiu relacionado ao proces-
revolução genuína tende a ser ecumênica. so de Constituição do significado moderno
Para os franceses, bem como para os seus
de história, com base em uma concepção se-
numerosos simpatizantes no exterior, a li-
bertação da França era simplesmente o pri- cularizada sobre a trajetória das sociedades
meiro passo para o triunfo universal da li- humanas, e em uma perspectiva cronológica
berdade, uma atitude que levou facilmente e linear de tempo em que o futuro aparecia
à convicção de que era dever da pátria,
como realização das promessas do novo e,
da revolução, libertar todos os povos que
gemiam debaixo da opressão e da tirania em última instância, da própria história.
(HOBSBAWM, 2010, p. 115-116).

Um exemplo notório desse tipo de pos- Revolução, História e tempo


tura foi a do jacobino Robespierre, membro
O conceito moderno de revolução, par-
destacado do Comitê de Salvação Pública,
te do vocabulário político dos participantes
órgão responsável por identificar os “trai-
das lutas sociais desde fins do século XVIII,
dores da revolução”. Isso porque, “para ele,
entrou em declínio com a crise do sentido
como para a história, a República Jacobina
moderno da história, ou, para utilizarmos
não era um instrumento para ganhar guer-
o termo de François Hartog, com a crise do
ras, mas, sim, um ideal: o terrível e glorioso
moderno regime de historicidade.
reino da justiça e da virtude, quando todos
Para François Hartog (2013), a crise da
os bons cidadãos fossem iguais perante a
ideia de futurismo e, portanto, do moderno
nação” (HOBSBAWM, 2010, p. 123). Nesse
regime de historicidade, foi potencializada
caso, a revolução era compreendida como
pela queda do muro de Berlim, em 1989, e
um processo que não deveria ser interrom-
pela derrocada dos regimes comunistas no
pido, de forma que sua concretização repre-
Leste Europeu e na Rússia, ainda que o sé-
sentava o triunfo das promessas contidas
culo XX tenha produzido diversos aconte-
no sentido moderno de revolução, de cons-
cimentos que contribuíram para questionar
trução de uma nova sociedade. Até mesmo
o moderno regime de historicidade, como
as mudanças econômicas na Inglaterra do
a deflagração de duas guerras mundiais, a
final do século XVIII passaram a ser desig-
ascensão do nazismo e do fascismo e o holo-
nadas como uma “revolução”, por volta da
causto. No entanto, mesmo que o século XX
década de 1820, por socialistas ingleses e
tenha sido palco de acontecimentos trágicos,
franceses, quando seu impacto passou a ser
uma série de fatores contribuiram para man-
mais visível no continente europeu e, con-
ter o ideal de que o futuro marcaria um pro-
forme Eric Hobsbawm, provavelmente em
gresso em relação ao presente:
analogia com os acontecimentos da Revolu-
ção Francesa.
A partir da reflexão apresentada, pro-
curamos demonstrar como o significado
atribuído à palavra revolução, a partir do

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Mesmo que o futurismo, tendo perdido o Pois, mais completa e inflexivelmente até
seu lirismo, tivesse que se adaptar à ame- mesmo que a Revolução Francesa em seus
aça nuclear e dedicar-se a responder a ela. dias jacobinos, a Revolução de Outubro se
Na Europa, foram assim brandidos os im- via menos como um acontecimento nacio-
perativos da reconstrução e da moderni- nal que ecumênico. Foi feita não para pro-
zação, acompanhados pelo planejamento, porcionar a liberdade e socialismo à Rússia,
enquanto em nível mundial impunham-se mas para trazer a revolução do proletaria-
as exigências da competição econômica, do mundial (HOBSBAWM, 1995, p. 63).
tendo como pano de fundo a Guerra Fria
e a corrida armamentista, cada vez mais A trajetória da revolução comunista na
rápida (HARTOG, 2013, p. 142). Rússia, no século XX, acabou sendo marcada
pela preponderância dos interesses de Esta-
A permanência do moderno regime
do da União Soviética sobre os interesses
de historicidade no século XX, e do sentido
revolucionários mundiais capitaneados pela
de revolução forjado na segunda metade do
Internacional Comunista, organizada na dé-
século XVIII, deveu-se em grande medida
cada de 1920, justamente para auxiliar no
à força do ideal da Revolução Russa para
desenvolvimento de processos revolucioná-
diversos movimentos sociais e políticos.
rios comunistas em outras partes do mundo.
Os acontecimentos políticos ocorridos na
Apesar disso, a Rússia soviética continuou
Rússia a partir de 1917, os quais possibilita-
sendo, até o fim, mais do que apenas outra
ram a vitória efetiva da primeira revolução
grande potência: “a emancipação univer-
socialista da história, produziram um dos
sal, a construção de uma alternativa melhor
mais representativos movimentos revolu-
para a sociedade capitalista eram, afinal, sua
cionários organizados na história moderna.
razão fundamental de existir” (HOBSBA-
Segundo Eric Hobsbawm (1995), se as ideias
WM, 1995, p. 78).
da Revolução Francesa duraram mais que
Com o término da Segunda Guerra
o bolchevismo dos revolucionários russos,
Mundial, em 1945, os países da América
as consequências práticas de 1917 foram
Latina e as colônias na África e na Ásia que
maiores e mais duradouras que as consequ-
conquistaram a independência, designados
ências de 1789. Apenas quarenta anos após
no período como Terceiro Mundo, se tor-
a chegada de Lênin à Estação Finlândia, em
naram um dos pilares de esperança e fé dos
Petrogrado, para tomar parte no movimen-
que ainda acreditavam na revolução social,
to revolucionário do qual se tornaria expo-
em face dos movimentos políticos e sociais
ente liderança, um terço da humanidade se
que agitaram a região, como a Revolução
achava vivendo em regimes diretamente
Chinesa e a Revolução Cubana, para citar
derivados da vitória dos bolcheviques e do
apenas dois exemplos. Além disso, o Tercei-
modelo organizacional de Lênin, o Partido
ro Mundo foi importante para os revolucio-
Comunista. Para isso contribuiu o caráter
nários da tradição de 1917 que queriam fugir
ecumênico da revolução:
da prosperidade econômica dos países capi-
talistas mais ricos nos anos 1950 que aneste-
siava o desejo de luta:

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Toda a esquerda, incluindo humanitários Segundo François Hartog (2013), no
liberais e social-democratas moderados, decorrer da segunda metade do século XX,
precisava de algo mais que legislação de se-
em especial após os anos 1960, as utopias re-
guridade social e salários reais crescentes.
O Terceiro Mundo podia preservar seus volucionárias, com feição progressista e fu-
ideais; e os partidos pertencentes à grande turista, passaram a operar em um horizonte
tradição do Iluminismo precisam de ideais, que não transcendia muito o círculo do pre-
além de políticas práticas (HOBSBAWM,
sente. Nos anos 1970, se acentuou a desagre-
1995, p. 424).
gação da ideia de revolução, no contexto da
No entanto, Eric Hobsbawm (1995) si- crise econômica do petróleo em 1974, da es-
tuou a década de 1960, com destaque para calada do desemprego em massa e do enfra-
a revolta estudantil na França, em maio de quecimento do estado de bem-estar social,
1968, como a última arremetida do sonho da “construído em torno da solidariedade e a
revolução mundial. A revolta estudantil em partir da ideia de que amanhã será melhor
Paris que hoje” (HARTOG, 2013, p. 147). Com a
progressiva percepção de um presente cada
[...] foi revolucionária tanto no antigo sen-
tido utópico de buscar uma inversão per- vez mais hipertrofiado:
manente de valores, uma sociedade nova É bem claro que o papel motriz foi desem-
e perfeita, quanto no sentido operacional penhado pelo desenvolvimento rápido e
de procurar realizá-la pela ação nas ruas pelas exigências cada vez maiores de uma
e barricadas (HOBSBAWM, 1995, p. 433). sociedade de consumo, na qual as inova-
ções tecnológicas e a busca de benefícios
No decorrer da década de 1970, o so- cada vez mais rápidos tornam obsoletos as
nho da revolução mundial foi perdendo for- coisas e os homens, cada vez mais depres-
ça no mundo ocidental. A classe operária in- sa. Produtividade, flexibilidade, mobilida-
dustrial foi deixando de ser encarada como de tornam-se as palavras-chave dos novos
administradores. Se o tempo é, há muito,
fundamentalmente revolucionária por gru-
uma mercadoria, o consumo atual valoriza
pos sociais de esquerda, a não ser por leal- o efêmero (HARTOG, 2013, p. 147-148).
dade à doutrina ortodoxa, como entre mem-
bros de partidos comunistas, em que muitos O futurismo, aspecto fundamental na
dos trabalhadores dos países capitalistas definição do moderno regime de historici-
ricos da Europa Ocidental e dos EUA en- dade, deteriorou-se sob o horizonte desse
carados como uma “aristocracia operária” novo contexto e o presentismo o substituiu:
beneficiada pelo estado de bem-estar social. “o presente tornou-se o horizonte. Sem fu-
De outro modo, os movimentos revolucio- turo e sem passado, ele produz diariamente
nários da década de 1960 não tiveram como o passado e o futuro de que sempre precisa,
característica definidora o vetor ecumênico: um dia após o outro, e valoriza o imediato”
“os vietnamitas, os palestinos, os vários mo- (HARTOG, 2013, p. 148). A ascensão do pre-
vimentos de guerrilha pela libertação colo- sentismo definiria o regime de historicidade
nial só se interessavam por seus assuntos de fins do século XX e começo do século XXI,
nacionais” (HOBSBAWM, 1995, p. 434). em que o presente se encontra marcado pela

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experiência de crise da ideia de futuro, dúvi- A crise do moderno regime de his-
das sobre o progresso e um porvir percebido toricidade representa uma possibilidade
como ameaça: “o futuro não desaparece, de de leitura para pensarmos na crise da con-
forma alguma, mas parece obscuro e amea- cepção de revolução, que surgiu imbricado
çador” (HARTOG, 2013, p. 250). ao conceito de história que passou a pre-
O colapso da União Soviética seria ponderar a partir da segunda metade do
exemplar para se pensar na crise da ideia do século XVIII. No entanto, gostaríamos de
futuro como esperança de um mundo me- direcionar nossa análise para um aspecto
lhor. Para Hobsbawm (1995), o rápido declí- subjacente nas leituras que apresentamos
nio do comunismo na União Soviética e nos até agora sobre o moderno conceito de re-
países do leste europeu tinha que ser com- volução e que consideramos fundamental
preendido como decorrência do fato deste para refletirmos não apenas sobre a cri-
ideal ter sido muito mais uma fé de quadros se da ideia de revolução, mas sobre a sua
do que uma conversão em massa: própria operacionalidade no contexto de
A aceitação do comunismo pelas “massas” declínio do sentido moderno de história: a
dependia não de convicções ideológicas ou concepção sobre o tempo.
outras semelhantes, mas de como julgavam o Segundo Giorgio Agamben (2005),
que a vida sob regimes comunistas fazia por
elas, e como comparavam sua situação com
toda concepção de história possui conjunta-
a de outros. Assim que não foi mais possível mente certa experiência do tempo que lhe é
isolar essas populações do contato e conheci- implícita e que a condiciona. Nesse caso, a
mento com outros países, seus julgamentos concepção sobre revolução, tal como surgiu
foram céticos (HOBSBAWM, 1995, p. 480).
no século XVIII, deve ser balizada por esta
Sob esse ponto de vista, o comunismo relação entre história e tempo:
tornou-se uma fé instrumental, ou seja, o va- A tarefa original de uma autêntica revolu-
lor do presente estava na possibilidade de ção não é jamais simplesmente “mudar o
alcançar um futuro em que a vida das pesso- mundo”, mas também e antes de mais nada
as seria melhor que a vida presente. Porém, “mudar o tempo”. O pensamento político
moderno, que concentrou a sua atenção na
exceto em raros casos, como guerras patri-
história, não elaborou uma concepção cor-
óticas, em que a vitória justificaria grandes respondente do tempo. [...] Em virtude des-
sacrifícios, essa crença se adequaria melhor sa omissão, ele foi inconscientemente for-
a seitas do que a regimes políticos, cujo cam- çado a recorrer a uma concepção do tempo
po de operação, sejam quais forem suas pro- que domina há séculos a cultura ocidental, e
a fazer então conviver, lado a lado, em seu
messas de salvação é, e tem de ser, o alcance
próprio âmago, uma concepção revolucio-
diário da vida humana: nária da história com uma experiência tra-
dicional do tempo (2005, p. 109).
[...] os próprios quadros de partidos comu-
nistas começaram a concentrar-se nas satis-
fações comuns da vida assim que o objetivo A concepção tradicional de tempo, a
milenar de salvação terrestre, ao qual dedi- que se refere Giorgio Agamben (2005), diz
caram suas vidas, passou para um futuro respeito à representação do tempo como
indefinido (HOBSBAWM, 1995, p. 480).
um continuum pontual e homogêneo, com

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origem na Grécia Antiga, local e período Enquanto a representação do tempo
em que foi desenvolvida a noção sobre o que predominou na Antiguidade foi circu-
tempo como algo fundamentalmente circu- lar, a imagem que guiou a conceitualização
lar e contínuo, ou seja, dominado por uma cristã do tempo foi o de uma linha reta. Ao
ideia de inteligibilidade que assimilaria o contrário do helenismo, o mundo, para o
ser autêntico e pleno àquilo que é em si e cristão, foi criado no tempo e deveria acabar
permanece idêntico a si mesmo, ao eterno no tempo. De um lado, a narrativa do Gêne-
e ao imutável. O grego considerava o movi- se, de outro, a perspectiva escatológica do
mento e o devir como graus inferiores da re- Apocalipse. A Criação, o Juízo Final e o perí-
alidade. O movimento circular, por sua vez, odo intermediário que se desdobraria entre
asseguraria a manutenção das mesmas coi- esses dois eventos seriam únicos. Giorgio
sas por meio da repetição e do seu contínuo Agamben chama a atenção para o fato de
retorno e seria a expressão mais perfeita da que o tempo cristão, ao contrário do tempo
absoluta imobilidade: sem direção do mundo clássico, tinha uma
direção e um sentido: “ele se estende irre-
A primeira consequência desta concepção
é a de que o tempo, sendo essencialmen- versivelmente da criação ao fim e tem um
te circular, não tem direção. Em sentido ponto de referência central na reencarnação
próprio, não tem início, nem centro, nem de Cristo, que caracteriza o seu desenvolvi-
fim, ou melhor, ele os tem somente na me- mento como um progredir da queda inicial
dida em que, em seu movimento circular,
retorna incessantemente sobre si mesmo à redenção final” (2005, p. 113).
(AGAMBEN, 2005, p. 110). A concepção de tempo da Idade Mo-
derna foi uma laicização do tempo cristão
Contudo, o caráter fundamental da ex- retilíneo e irreversível, dissociado, porém,
periência grega do tempo, que determinou de toda ideia de um fim e esvaziado de
por dois mil anos a representação do tempo qualquer sentido que não fosse o de um
no Ocidente, foi apresentado por meio da processo estruturado conforme o antes e o
obra de Aristóteles, chamada Física, na qual depois. Essa representação do tempo como
o tempo apareceu como um continuum pon- homogêneo, retilíneo e vazio “nasce da ex-
tual, infinito e quantificado: periência do trabalho nas manufaturas e é
O tempo é assim definido por Aristóteles sancionada pela mecânica moderna, a qual
como “número do movimento conforme estabelece a prioridade do movimento reti-
o antes e o depois”, e a sua continuidade líneo uniforme sobre o movimento circular”
é garantida pela sua divisão em instantes
(AGAMBEN, 2005, p. 115). O antes e o de-
(tò nyn, o agora) inextensivos, análogos ao
ponto geométrico (stigmé). O instante, em pois, noções que para o cristianismo tinham
si, nada mais é que a continuidade do tem- sentido apenas em vista do fim do tempo,
po (synécheia chrónou), um puro limite que na Idade Moderna se tornaram em si e por
conjunge e, simultaneamente, divide pas-
si o sentido, apresentado como o único ver-
sado e futuro (AGAMBEN, 2005, p. 111).
dadeiramente histórico:

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O sentido pertence apenas ao processo em tâncias e, portanto, por sua própria história:
seu conjunto e jamais ao agora pontual e “as circunstâncias fazem os homens, assim
inapreensível; porém, visto que este pro-
como os homens fazem as circunstâncias”
cesso não é, na realidade, mais do que uma
simples sucessão de agoras conforme o antes (MARX; ENGELS, 2011, p. 43). Nessa situa-
e o depois, e a história da salvação tendo-se ção, a história passa a ser determinada pela
tornado neste ínterim uma pura cronologia, praxis, e pelo o que seria também o primeiro
um resquício de sentido pode ser salvo ape- ato histórico, “compreendida como o tornar-
nas com a introdução da ideia, em si despro-
-se natureza, para o homem, da essência
vida de qualquer fundamento racional, de
um progresso contínuo e infinito (AGAM- humana e o tornar-se homem da natureza”
BEN, 2005, p. 115-116, grifo do autor). (AGAMBEN, 2005, p. 119).
Conforme Agamben, o dilema presen-
Segundo Giorgio Agamben (2005), te na concepção materialista da história é
o materialismo histórico, importante refe- um caso que nos leva a pensar que a reflexão
rencial teórico que fundamentou a ação de sobre o tema da revolução, no começo do
diversos movimentos revolucionários ao século XXI, deve estar associada ao debate
longo do século XX, não elaborou uma con- sobre a discussão de uma nova concepção
cepção de tempo à altura de sua concepção de tempo, pois:
de história, convivendo com uma experi-
ência tradicional de tempo. No Manifesto Enquanto nos movemos no horizonte desta
experiência nulificada do tempo, não é pos-
Comunista, por exemplo, de Karl Marx e sível alcançar uma história autêntica, pois a
Friedrich Engels, publicado originalmente verdade caberá sempre ao processo como
em 1848, encontramos uma perspectiva te- um todo, e jamais o homem poderá apro-
leológica na análise da história europeia de priar-se concretamente, ou melhor, pratica-
mente, da própria história (2005, p. 115-116).
meados do século XIX que, sob o prisma da
luta de classes, levaria ao sucesso do proleta- Para Agamben, nas dobras da tradição
riado: “a burguesia produz, sobretudo, seus cultural do Ocidente, existiriam elementos
próprios coveiros. Seu declínio e a vitória para pensarmos em uma concepção dife-
do proletariado são igualmente inevitáveis” rente do tempo. Os estoicos, na Antiguida-
(MARX; ENGELS, 2010, p. 50). de, por exemplo, ao contrário de um tempo
Contudo, Agamben realça, na obra homogêneo, infinito e quantificado, coloca-
de Marx e Engels, aspectos que permitem vam a experiência liberadora de um tempo
pensar uma perspectiva de história como a que não seria algo de objetivo e subtraído
“dimensão geral do homem enquanto Gat- ao nosso controle, mas que brotaria da ação
tungswesen, enquanto ser capaz de um gêne- e da decisão do homem: “o seu modelo é o
ro, isto é, de produzir-se originalmente não cairós, a coincidência brusca e improvisada
como mero indivíduo nem como generalida- na qual a decisão colhe a ocasião e realiza
de abstrata, mas como indivíduo universal” no átimo a própria vida” (2005, p. 121-122).
(2005, p. 118-119). Na obra Ideologia alemã, Martin Heidegger, no começo do século
encontramos a referência de que o indivíduo XX, submeteu a concepção do tempo pontual
seria responsável por suas próprias circuns- e contínuo a uma crítica radical. Ainda, segun-

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do Agamben, no século XX Martin Heidegger do século XX. Assim, ao se falar em crise da
submeteu a concepção do tempo pontual e história, das utopias e das revoluções, não
contínuo a uma crítica radical. Em Ser e tem- significa que “tudo acabou” e que devemos
po, obra publicada em 1927, o filósofo alemão nos conformar com o mundo que existe, mas
colocou o foco da experiência não no instan- que necessitamos repensar o nosso horizon-
te pontual e inaferrável em fuga ao longo do te de reflexões para continuarmos na luta.
tempo linear, “mas o átimo da decisão autênti-
ca em que o Ser-aí experimenta a própria fini-
tude, que a cada momento se estende do nas- Considerações finais
cimento à morte” (HEIDEGGER, 1927 apud
O uso da palavra revolução como refe-
AGAMBEN, 2005, p. 123-124, grifo do autor).
rência aos movimentos políticos que objeti-
Uma possibilidade da liberação da su-
vavam a construção de uma nova sociedade
jeição do ser humano ao tempo linear e con-
tínuo se encontraria, assim, em uma nova diferente da, então existente ganhou força
concepção do tempo. Aqui, concordamos na segunda metade do século XVIII, e só
com a posição de Giorgio Agamben de que foi possível com o surgimento do conceito
o tempo da história, desvinculado da tradi- moderno de história, com gênese no mes-
cional concepção linear, poderia ser “o cairós mo período. A mudança no significado das
em que a iniciativa do homem colhe a opor- palavras, que Reinhart Koselleck destacou
tunidade favorável e decide no átimo a pró- com o exemplo do termo história no idioma
pria liberdade” (2005, p. 126). No caso: alemão, permitiu se pensar a trajetória da
humanidade como um movimento linear
É este o tempo experimentado nas revolu-
ções autênticas, as quais, [...], sempre foram de acontecimentos, por meio dos quais os
vividas como uma suspensão do tempo e indivíduos acreditaram estar agindo, o que
como uma interrupção da cronologia; po- podemos aferir pelo caráter ecumênico da
rém, uma revolução da qual brotasse, não
revolução e de sua irresistibilidade, um atri-
uma nova cronologia, mas uma mudança
qualitativa do tempo (uma cairologia) seria buto da origem astronômica da utilização do
a mais grávida de consequências e a única termo. O significado dessas palavras, tão im-
que não poderia ser absorvida no refluxo portantes no vocabulário político moderno,
da restauração (AGAMBEN, 2005, p. 126,
esteve calcado em uma concepção de tempo
grifo do autor).
como uma sucessão de instantes que furtou
Uma concepção de tempo distinta da dos indivíduos o poder de decisão sobre
cronologia representaria um novo patamar seus próprios atos, com esses acreditando
para refletirmos sobre os impasses enfrenta- agir em nome de um dado a priori.
dos por todos aqueles que se engajam, ainda A história do século XX acabou sendo
hoje, em processos de cunho revolucionário, palco de diversos acontecimentos que aba-
possibilitando repensarmos conjuntamente laram a confiança no moderno regime de
a concepção de história forjada entre a se- historicidade, fazendo referência ao traba-
gunda metade do século XVIII e o começo lho de François Hartog, com base no ideal
do século XIX, e que entrou em crise no final de futurismo existente tanto na concepção

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de história quanto na concepção de revolu- a purpose. The decline of the modern
ção, criadas entre fins do século XVIII e co- concept of revolution as a reference for
meço do século XIX. Entre os fatos do século social struggles in the late twentieth cen-
XX que abalaram essa confiança, citamos as tury points to the need for a revision of
duas guerras mundiais, o fascismo, o ho- its meaning, as well as the modern con-
locausto e a dissolução da União Soviética cept of history. One answer may be to
formulate a conception of time where in-
(atual Rússia) e dos regimes socialistas no
dividuals posing as the craftsmen in the
Leste Europeu. Conforme Giorgio Agam-
construction of their own history.
ben, a concepção de tempo como um conti-
nuum pontual e infinito contribuiu para que Keywords: Revolution. History. Time.
persistisse no moderno conceito de história
um caráter teleológico, já existente na visão
cristã de história, agora secularizado, por Resumen
meio da qual os indivíduos pensaram que
El artículo analiza el surgimiento y las
agiam no mundo em nome “de”, e não que características del concepto moderno
eram os responsáveis diretos pelo desenvol- de la revolución, en relación con el di-
vimento e as consequências das suas ações. seño de historia que apareció en el siglo
Uma vez que os acontecimentos do século XVIII. Ambos conceptos comparten una
XX não realizaram as promessas do “futu- concepción del tiempo como una se-
rismo”, declinou a crença na capacidade do cuencia lineal de eventos con un propó-
ser humano realizar mudanças significati- sito. El declive de la concepción moder-
vas na sociedade. No entanto, a concepção na de la revolución como una referencia
de tempo cairológica, como frisado por para las luchas sociales a finales de los
Giorgio Agamben, proporciona pensar-se o puntos del siglo XX a la necesidad de
una revisión de su significado, así como
tempo fruto das decisões tomadas no instan-
el concepto moderno de la historia. Una
te, tendo a própria história como fruto das
respuesta puede ser la de formular una
decisões de homens e mulheres em que, se
concepción del tiempo en que las perso-
o futuro não se apresenta determinado, está nas se hacen pasar por los artesanos en
aberto ao imponderável. la construcción de su propia historia.

Palabras clave: Revolución. Historia. Tiempo.

Abstract
Referências
The article analyzes the emergence and
characteristics of the modern concept of AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: des-
revolution, related to the design of story truição da experiência e origem da história.
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Both concepts share a conception of ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Pau-
time as a linear sequence of events with lo: Companhia das Letras, 2011.

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