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A democracia direta (adaptado)

Renato Janine Ribeiro

A palavra democracia vem do grego (demos, povo; kratos, poder) e significa poder do povo. Não
quer dizer governo pelo povo. Pode estar no governo uma só pessoa, ou um grupo, e ainda
tratar-se de uma democracia – desde que o poder seja do povo. O fundamental é que o povo
escolha o indivíduo ou grupo que governa, e que controle como ele governa.

O grande exemplo de democracia, no mundo antigo, é a Grécia. Os gregos distinguiam três


regimes: monarquia, aristocracia e democracia. A diferença é o número de pessoas exercendo o
poder – um, alguns ou muitos. Monarquia é o poder de um só. Aristocracia é o poder dos
melhores, os aristoi, excelentes. São quem tem aretê, a excelência do herói. Assim, a democracia
não se distingue apenas do poder de um só, mas também do poder dos melhores, que se
destacam por sua qualidade. A democracia é o regime do povo comum, em que todos são iguais.
Não é porque um se mostrou mais corajoso na guerra, mais capaz na ciência ou na arte, que terá
direito a mandar nos outros.

Poucos foram aqueles, como Platão e outros críticos da democracia, que questionaram a
competência do povo simples para tomar as decisões políticas, alegando que para governar seria
preciso ter ciência. Ora, um princípio da democracia grega – e de todo espírito democrático – é
que, se há ofícios em que o fundamental é a capacitação técnica, a cidadania não está entre eles.
Aqui, na decisão do bem comum, na aplicação dos valores, todos são iguais – não há filósofo-rei
ou tecnocrata.

Muito do que se leu até aqui pode ser encontrado em qualquer manual decente sobre a
democracia. Mas compliquemos as coisas tratando também da democracia moderna. O avanço
da democracia moderna (ou do caráter democrático da política moderna) é provocado pelos
direitos, não pela representação.

A representação é importante, mas ela é o aporte negativo da modernidade à democracia. É o


que faz a urna ser menos democrática que a praça ateniense. Já com os direitos, a coisa é
diferente. Eles são o motor das reivindicações. Através deles se exprime a pressão popular sobre
o poder.

O caráter democrático da política moderna depende dos direitos, mais que da representação.
Esses direitos são de teor cada vez mais social e remetem a algo que chamaremos de desejo.
Quando os críticos gregos da democracia alertam para o perigo de que o povo pobre confisque
os bens dos ricos, esse perigo é análogo ao que existe na tirania ou na oligarquia.

Para Aristóteles, há três regimes puros e três respectivas deformações. São puros a monarquia, a
aristocracia e um regime que ele chama de politeia, palavra que quer dizer constituição. São suas
deformações – respectivamente – a tirania, a oligarquia e o regime que ele chama de demokratia.
Nos regimes puros, o poder é exercido dentro da lei. Nas deformações, exerce-se o poder pelo
capricho, pelas paixões, pela desmedida. Por isso não há grande diferença entre tirania,
oligarquia e "demokratia". Nas três, quem tem o poder é movido por um desejo desgovernado.
Confiscar os bens dos ricos é tão errado quanto o tirano oprimir os pobres, ou os oligarcas
usarem da lei a seu arbítrio.

Assim, de certa forma, a democracia é o regime do desejo. Ela assim é vista por seus críticos,
mas também por parte de seus defensores. O desejo é a matéria-prima dos direitos. Eles nascem
do desejo. No Brasil, pode-se dizer que há um partido de convicção democrática, que é o PT, e
outro, de discurso republicano, que é o PSDB. Não se quer com isso, desqualificar outros
partidos, mas apenas esclarecer e mostrar a tensão existente entre democracia e república.
A democracia aposta na organização de baixo para cima, das massas não apenas carentes, mas
desejantes. Ela é positiva porque aposta nos desejos das massas, procurando convertê-los em
direitos. Afinal, a democracia expressa o desejo de ter, e de ser, mais. Mas, como os desejos são
diferentes e particulares a cada grupo, ninguém consegue encontrar, numa democracia moderna,
o demos, o velho povo único e unido. Sua unidade não existe mais.

Toda a política moderna, ao menos a democrática, foi construída em torno da ideia de haver um
povo único e unido para cada nação ou Estado. Na sua origem, o governo democrático
representa este povo. O pressuposto era a unidade do povo, mas hoje não há mais como
encontrá-la, nem a construir.

Por outro lado, temos a república, fundamentada na ideia de coisa pública – do espaço que é
universal, que é de todos e, por isso mesmo, não pode ser apropriado por ninguém em particular,
nem mesmo pelas maiorias em detrimento das minorias. Alguns críticos da democracia a acusam
de defender os interesses e desejos dos grupos majoritários – em detrimento do bem comum, e
das minorias.

Eis o problema que opõe nossos dois partidos mais ideológicos: a democracia possível tende a
colocar em risco o bem-comum e as minorias, em função dos desejos das maiorias.

Já a república, apostando num espaço comum, numa identidade coletiva, e portanto se filiando a
um ideário de cidadania uniforme, acaba condenado a condenar a prática democrática e, nesse
caso, tende a conservar os privilégios de certas minorias em detrimento do desejo e dos direitos
das maiorias.

O sentido democrático da avaliação


de Renato Janine Ribeiro. Adaptado.
http://www.renatojanine.pro.br/Ciencia/avaliacao.html

Vivemos hoje uma cultura da avaliação, mas é fato que ela está longe de satisfazer a todos. Se a
avaliação é, ela mesma, desejada – e isso apesar de descontentamentos pontuais e de
oposições mais amplas –, a generalização das avaliações nas escolas, universidades e empresas
causou e ainda suscita maiores críticas.

Uma grande crítica consiste em dizer que assim se favorece o "produtivismo", a maquiagem de
estatísticas, o gasto de um tempo enorme preenchendo-se fichas – em suma, assim se
incentivaria mais a representação da produção do que a própria produção, porque um dado bem
exposto vale mais do que a realidade que ele supostamente descreve.

Mas a principal dentre as críticas afirma que a avaliação do ensino escolar, tal como foi
predominantemente praticada nos últimos anos, expressaria um espírito empresarial, empenhado
em maximizar a rentabilidade do investimento em educação, perdendo assim de vista a dimensão
própria da educação num contexto democrático. A educação deixaria de ser um direito, para se
tornar uma mercadoria. Pretendo discutir essa questão de um ponto de vista político, mas não
partidário.

Tenho sustentado que os principais valores da boa política, nos últimos cento e poucos anos, são
a democracia, a república, o socialismo e o liberalismo. Esses valores não são harmônicos e nem
excludentes, mas de algum modo toda política respeitosa do ser humano inclui elementos
provenientes dos quatro. Vou concentrar-me nos dois primeiros.

A república não é mais, hoje em dia, o contrário da monarquia. Os regimes monárquicos


europeus, por exemplo, respeitam mais o bem comum, a "coisa pública", do que muitos governos
supostamente republicanos. O que se opõe à república é, antes de mais nada, a corrupção e o
patrimonialismo, ou seja, as práticas que efetuam uma apropriação privada da coisa pública e,
assim, negam o bem comum. Toda política digna de seu nome hoje precisa ser, portanto,
republicana: isso requer que o espaço público, a res publica, seja respeitado. Mas isso significa
que a república exige muito dos cidadãos.

A mais antiga república que celebramos, a Romana, que floresceu entre o século VI e o I a.C.,
proclamava a necessidade de sacrificar-se o indivíduo ao bem comum. Os romanos eram
educados com histórias celebrando quem morria pela pátria. Esse ideal favorece uma certa
aristocracia, no sentido literal do termo: em grego, ariston é o melhor, o excelente. Para que o
bem comum seja promovido, precisar-se-ia então de uma qualidade superior ética, de uma
excelência.

Já a democracia, como "poder do povo", envolve outra ideia. A palavra demos, na Grécia antiga,
significava "povo", mas também designava a multidão dos pobres. Os pensadores anti-
democratas tinham medo desse povo que, diziam eles, se tomasse o poder (isto é, se houvesse
democracia), confiscaria os bens dos ricos. Por isso, entre os gregos há a primeira democracia
importante da história – Atenas, no século V a.C. – mas também há uma tradição
antidemocrática, que engloba pensadores do porte de Platão.

Mas o importante a salientar aqui é que, já na Grécia, está claro que a democracia não é apenas
uma forma de governo, apenas um conjunto de instituições políticas: é também uma articulação
do desejo. O povo deseja os bens que os ricos têm. O povo deseja ter riquezas. O povo deseja
ser rico. E é isso o que os ricos receiam. Vê-se assim que há uma certa tensão entre a temática
republicana e a democrática.

Na república, quer-se que os melhores mandem, para o bem comum. E esse bem comum exige o
sacrifício dos desejos de quem manda. A república é o regime da força de vontade, contendo os
desejos. Já na democracia, os desprovidos de direitos e de bens desejam acesso a esses direitos
e bens – o que significa que as práticas democráticas realmente existentes sejam, hoje,
marcadas pela reivindicação e pela exigência de pôr fim à desigualdade. E, na sociedade de hoje,
em que a desigualdade se torna visível e os bens de conforto são constituídos como objetos de
desejo, os que não têm expressam claramente que desejam ter bens, desejam ser cidadãos.

O que isso implica para a avaliação? Avaliar é dar valor e, portanto, estabelecer desigualdades e
mesmo hierarquias. Neste sentido, toda avaliação indica alguns aristoi, para usarmos o plural de
ariston, ou seja, os de maior qualidade. A aristocracia é, etimologicamente, o regime no qual os
melhores mandam. Ora, é claro que numa sociedade democrática, mostra-se ilegítimo uma
minoria mandar ou deter o poder. Portanto, a avaliação, se ela deve destacar os aristoi, os
melhores, não pode nem deve conferir a eles o poder, a cracia, sobre a sociedade.

O que legitima socialmente a avaliação é o seguinte: selecionamos os melhores para, assim,


gerar o melhor para a sociedade. A avaliação e a educação escolar não constituem um fim em si,
mas é um meio que permite formular políticas que permitam atender a objetivos que são da
sociedade como um todo.

Num regime democrático, esses objetivos se definem mediante eleições e se decantam pelo
permanente debate público. Isso quer dizer que escolhemos os melhores e mais qualificados, no
tocante aos meios, para atender a fins que são decididos pela maioria, no debate social e político.

COMO DEFINIR O QUE É O BEM-COMUM E QUANDO ELE SE SOBREPÕE AOS DESEJOS


DAS MAIORIAS E MINORIAS?
COMO IDENTIFICAR E ESCOLHER OS MELHORES, SE NÃO SOMOS MAJORITARIAMENTE
OS MELHORES?
COMO DEFINIR OS FINS E OBJETIVOS ADEQUADOS, A SEREM EFETIVADOS PELOS
MELHORES, SE NÃO SOMOS MAJORITARIAMENTE MELHORES?
E SE ELES, POR SEREM MELHORES, SOUBEREM QUE ESSES FINS SÃO EQUIVOCADOS?
COMO CONTROLÁ-LOS, SE SÃO MELHORES DO QUE NÓS, A MAIORIA?

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