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"A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento"

RESUMO:

Bakhtin analisa a cultura popular medieval e da época do Renascimento


através da obra de Rabelais, que à época do Renascimento escreveu sobre
os costumes da sociedade em que vivia. O dialogismo, a polifonia, a visão
carnavalesca do mundo são tratadas por Bakhtin2 a partir da obra
rabelaisiana.

PALAVRAS CHAVES:

cultura popular, dialogismo, polifonia, carnaval

A cultura erudita costuma ser muito valorizada nos estudos de períodos


históricos como o medievo e o Renascimento. No entanto, a cultura
popular - e acessível ao maior número de pessoas - nem sempre tem igual
tratamento, pois privilegia-se a história oficial e das elites. Mas essa
situação essa que vem sendo revista, e a obra citada é um exemplo disso.

Nessa obra, Bakhtin trabalha com o universo da cultura popular da Idade


Média e do Renascimento retratado por François Rabelais, autor que viveu
durante o Renascimento, crítico dos costumes da sociedade e da
burguesia nascente.

"Rabelais foi o grande porta-voz do riso carnavalesco popular na literatura


mundial. Sua obra permite-nos penetrar na natureza complexa e profunda
desse riso" (Bakhtin, 1999, p. 16). O baixo corporal, o corpo grotesco, o
riso, o sério-cômico, a imagem do banquete, a comida, a bebida, o corpo, a
sexualidade, enfim, o elemento corporal e material caracterizam o universo
rabelaisiano.

A obra de François Rabelais foi caracterizada por autores da época como


"uma reabilitação da carne em relação ao ascetismo medieval (Bakhtin,
1999)". Para Victor Hugo, Rabelais foi o "autor da carne e do
ventre(Bakhtin, 1999)".

A linguagem carnavalesca - de inversão de valores - utilizada por Rabelais


e outros autores está sendo reabilitada em nossos dias e Bakhtin adverte-
nos que o universo rabelaisiano, para ser compreendido, pressupõe

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1Mestre em História pela UNESP (Franca/SP) e docente do curso de


Licenciatura de Histíra da FAFIG - Guaxupé/MG
2 BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 1999.

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que conheçamos a visão carnavalesca do mundo. Assim,

“... no nível propriamente textual, os recursos semi-simbólicos do plano da


expressão, ou seja, as correlações novas e motivadas entre expressão e
conteúdo são, entre outros, procedimentos da criação da ambivalência
`carnavalesca' e operam uma releitura do mundo. Reformula-se o mundo
pelo discurso, vê-se a realidade sob novos prismas, refaz-se o `real'
(Barros, 1994).

O carnaval na Idade Média e no Renascimento era uma festa popular onde


se invertia o que era tido como oficial e predominava o hiperbólico e o
grotesco. O carnaval era uma festa para ser vivida pelo povo - e não
assistida por ele. Assim, o palco destruiria o carnaval, pois, era o povo que
representava, que invertia, que fazia a festa, o espetáculo.

O russo Mikhail Bakhtin, em suas reflexões filosóficas da linguagem,


trabalha com o conceito de dialogismo, que se refere às várias vozes
coexistentes em um mesmo discurso, vozes que ora se conflitam, ora são
contratuais. O dialogismo é uma característica intrínseca da linguagem,
pois, todo discurso não pertence a um só, mas a muitos. No entanto, há
graus de dialogismo. A monofonia, o discurso monofônico, tende a uma
única interpretação, característica, por exemplo, do discurso autoritário,
que não aceita opiniões contrárias. Os discursos que explicitam o
dialogismo são os discursos polifônicos. A visão carnavalesca do mundo
é dialógica e polifônica.

Para Bakhtin, as festas populares medievais "ofereciam uma visão do


mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente,
deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; parecia terem
criado ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda
vida, .. (o que) ... criava uma espécie de dualidade do mundo" ( Bakhtin,
1999).

O riso carnavalesco, riso festivo que inclui aquele que ri dentro de um


mundo em evolução, é aquele que, com a morte, renasce, ressuscita,
renova-se. A visão carnavalesca do mundo é dialética, marxista, transita
entre o oficial e o "não-oficial", admite tensões que levam a uma nova vida,
a um movimento cíclico que faz renascer.

A carnavalização, outra via de acesso ao real, que pressupunha a


predominância do "não-oficial" - e inversão de valores que era - desfazia a
hierarquia da sociedade feudal medieval e de transição - do feudalismo
para o capitalismo - do Renascimento. Durante a festa carnavalesca, além
das diferenças sociais que eram temporariamente abolidas, papéis sociais
e de gênero também eram trocados, era o universo que sofria inversão,
morte e que se renovava, renascendo para um novo tempo.

No carnaval, é preciso subverter, passar do mundo de Apolo - o Estado, a


ordem, o estabelecido - para o de Dioniso - o não-oficial, o exagero, as
orgias, a subversão, enfim, na festa carnavalesca oscila-se entre os dois
pólos por onde

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transita a vida humana., uma vez que nenhuma sociedade é tão


monológica que possa viver em apenas um deles. A ridicularização, a
ironia, é ambivalente, polifônica, diz-se sem dizer, ou dizendo o contrário
do que se pensa.

O banquete - ato de comer e beber que difere do ato corriqueiro e


particular do cotidiano - no contexto de Rabelais, é a festa do homem que
reina sobre o mundo, que o engole, que triunfa sobre o mundo. O comer e
o beber aparecem como resultado do trabalho, como prêmio, triunfo. Do
beber isolado, necessário à satisfação das necessidades do homem,
chega-se à festa, à celebração da vitória. O riso que se dá no banquete é o
riso de quem se entende merecedor do exagero, do fartar-se além do
necessário, comer e beber hiperbolicamente para rir, ridicularizar,
comemorar.

O carnaval de nossos dias - e já há algum tempo - difere daquele da Idade


Média e do Renascimento. Tendo sido apropriado pelo capitalismo, foi
transformado em um produto com preço de mercado - mercadoria. Perdeu
grande parte de seu caráter original, de inversão de valores e abolição de
hierarquia, de elogio à liberdade.

Embora encontremos no carnaval de rua remanescente de festa e de


culturas populares, o carnaval serve agora a interesses diversos do
folguedo popular e de renovação que um dia foi. Reveste-se agora de um
caráter capitalista estimulador das vendas de artigos inúmeros a ele
relacionados, de incrementador do turismo e da audiência à mídia
televisiva.

Se o carnaval ainda leva a excessos variados, inverte papéis quando


coloca no palco dos acontecimentos - o sambódromo - a gente simples do
morro, por outro lado, transformou-se em produto. O capitalismo, que de
tudo se apropria, transformou a festa popular do Carnaval, a anterior visão
carnavalesca do mundo, em um dos produtos mais requintados de nossa
indústria cultural.

Ler Bakhtin e sua análise da cultura popular da Idade Média e do


Renascimento a partir da obra de Rabelais é mergulhar em um universo
que, embora quase esquecido, permite-nos penetrar no imaginário e na
polifonia do discurso que permeou a experiência humana de outros
tempos.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 1999.

BARROS, Dialogismo, polifonia e enunciação.

RABELAIS, F. Gargântua e Pantagruel. São Paulo. Editora Villa, Rica, 1991.

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