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Pedro Zanatta
Empirismo em Berkeley
A marca deixada por George Berkeley (1685-1753) na história da filosofia
foi a sua afirmação da imaterialidade do mundo, pois para ele, nós não podemos
saber se existem as coisas materiais. Esse filósofo irlandês, e sacerdote
anglicano, acreditava que a Europa estava perdida no materialismo científico e
no ceticismo ocasionado pela dúvida estimulada pelo pensamento filosófico, o
que retirava as pessoas do caminho da fé, afastando-as de Deus.
Com base nisso, pediu recursos ao parlamento inglês para fundar uma
Universidade na América do norte para educar os jovens de lá, que, segundo
ele, ainda tinham salvação. Passou três anos em Rhode Island, colônia inglesa
nos EUA, mas voltou para Londres depois que percebeu que os recursos nunca
seriam enviados. Para combater esse estado de degradação, Berkeley ataca,
em sua obra Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, a base
fundamental da ciência moderna formulada por Newton, que é a matéria.
Ele sustenta um tipo diferente de empirismo, ao afirmar que só podemos
conhecer através dos sentidos que nos dão a percepção das coisas, mas nada
além disso. Melhor dizendo, nós conhecemos, apenas, as percepções das
coisas, mas nunca as coisas mesmas, pois elas não existem. A matéria não
existe, o que existe são as percepções (ideias) que temos da existência das
coisas. Por isso que, para ele, “ser é perceber e ser percebido”.
E ainda, essas percepções são apenas ideias simples, de experiências
com objetos particulares, nunca podemos ter ideias complexas ou abstratas,
porque elas não são originadas de experiências que temos com determinados
objetos. Esse negócio de ideias gerais e abstratas, isso é invenção de filósofo e
cientista. Ora, se isso não existe, não há como existir as leis formuladas por
Newton para explicar a natureza.
Em síntese, Berkeley defende a imaterialidade do mundo sustentando um
idealismo imaterialista, segundo o qual, tudo o que existe são os sujeitos com
suas percepções oriundas da experiência. Mas então, poderiam argumentar que
as coisas que não estão sendo percebidas não existem, ao que ele refutaria
dizendo que existe um ser supremo que garante a existência das coisas a serem
percebidas. E adivinhem quem ele diz que é esse ser supremo? Exatamente,
Deus. Perceba que, para ele, o mundo não existe de uma relação direta do
indivíduo para com esse mundo, mas do mundo com indivíduo através de Deus
que garante a percepção e o conhecimento do mundo ao indivíduo.
Empirismo em Hume
Com David Hume, o empirismo alcançou suas próprias colunas de
Hércules, ou seja, aqueles limites para além dos quais é impossível avançar.
Despojando-se dos pressupostos ontológico-corporeístas presentes em
Hobbes, do componente racionalista-cartesiano presente em Locke, dos
interesses apologéticos e religiosos presentes em Berkeley e de quase todos os
resíduos de pensamento provenientes da tradição metafísica, o empirismo
humiano acaba por esvaziar a própria filosofia dos seus conteúdos específicos
e admitir a vitória da razão cética, da qual só pode se salvar a irresistível força
da natureza. A natureza se sobrepõe à razão, diz expressamente Hume.
David Hume nasceu em Edimburgo, em 1711, de uma família pertencente
à pequena nobreza de proprietários de terras. Desde jovem se apaixonou pelo
estudo dos clássicos e da filosofia, a ponto de se opor firmemente ao desejo dos
parentes, que o queriam advogado como o pai, e negar-se a qualquer outra
atividade que não fossem seus estudos prediletos. O Tratado sobre a natureza
humana é a obra-prima de Hume. Entre as obras que se seguiram, podemos
recordar: os Ensaios sobre o intelecto humano, de 1748, que expõem de modo
simplificado o primeiro livro do Tratado; as Investigações sobre os princípios da
moral, de 1751, que expõem de maneira nova o terceiro livro do Tratado e que
o autor considerou sua melhor obra; e os Discursos políticos, de 1752.
O título Tratado sobre a natureza humana e a especificação do subtítulo:
“Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos
morais”, já apresentam por si mesmos os traços gerais do “novo cenário de
pensamento” que Hume tenta implementar. Hume constata que, sobre a segura
base da observação e do método do raciocínio experimental preconizado por
Bacon, Newton construiu uma sólida visão da natureza física; o que é necessário
fazer agora é precisamente aplicar aquele método também à natureza humana,
ou seja, também ao sujeito e não apenas ao objeto.
Tales fundou a “filosofia” da natureza e só depois Sócrates fundou a
“filosofia” do homem. Nos tempos modernos, Bacon introduziu o método
experimental adequado para a fundação da “ciência” da natureza, ao passo que
os “recentes filósofos ingleses”, ou seja, os moralistas (entre eles, Locke), em
um espago de tempo mais ou menos igual ao transcorrido entre Tales e
Sócrates, começaram a “levar a ciência do homem para um terreno novo”.
Trata-se, então, de percorrer profunda mente esse caminho, para fundar
definitivamente a ciência do homem em bases experimentais. Em suma, Hume
considera poder se tornar o Newton da “natureza humana”. Aliás, o nosso
filo sofo mostra-se até convicto de que a “ciência da natureza humana” é ainda
mais importante do que a física e as outras ciências, pelo fato de que todas essas
ciências “dependem de algum modo da natureza do homem”.
Se pudéssemos explicar a fundo o alcance e a força do intelecto humano,
bem como a natureza das ideias de que nos servimos e das operações que
realizamos em nossos raciocínios, poderíamos efetuar progressos de
incalculável alcance em todos os outros âmbitos do saber. É esse o ambicioso
projeto de Hume. A “natureza humana”, encerrada nos estreitos âmbitos do
método experimental, perde grande parte de sua especificidade racional e
espiritual em benefício do instinto, da emoção e do sentimento, a ponto de
reduzir-se quase que apenas à “natureza animal”. E, desse modo, a conquista
da “natureza humana” ao invés de levar a conquistas, levará fatalmente a perdas,
como podem demonstrar os resultados cético-irracionalistas. Mas vejamos como
Hume, com o novo método experimental, procede à reconstrução da “natureza
humana”.
Todos os conteúdos da mente humana outra coisa não são senão
percepções, dividindo-se em duas grandes classes, que Hume chama de
impressões e ideias. Ele só coloca duas diferenças entre as primeiras e as
segundas: a) a primeira classe diz respeito à força ou vivacidade com que as
percepções se apresentam à nossa mente; b) a segunda diz respeito à ordem e
a sucessão temporal com que elas se apresentam.
No que se refere ao primeiro ponto, a diferença entre impressões e ideias
consiste no grau diverso de força e vivacidade com que as percepções atingem
nossa mente e penetram no pensamento ou na consciência. As percepções que
se apresentam com maior força e violência podem ser chamadas de impressões
e são todas as sensações, paixões e emoções, quando fazem a sua primeira
aparição em nossa alma. As ideias, ao contrário, são as imagens enfraquecidas
das impressões. Uma consequência dessa distinção é a drástica contradição da
diferença entre sentir e pensar, que é reduzida simplesmente ao grau de
intensidade: sentir consiste em ter percepções mais vivas (sensações), ao passo
que pensar consiste em ter percepções mais fracas (ideias). Toda percepção,
portanto, é dupla: é sentida (de modo vivo) como impressão e é pensada (de
modo mais fraco) como ideia.
No que se refere ao segundo ponto, Hume destaca que ele constitui uma
questão da máxima importância, porque está ligada ao problema da “prioridade”
de um dos dois tipos de percepção: a ideia depende da impressão, ou a
impressão depende da ideia?
A resposta de Hume é inequívoca: a impressão é originária, a ideia é
dependente. Daí, portanto, deriva o “primeiro princípio” da ciência da natureza
“humana”, que, formulado sinteticamente, assim se expressa: “Todas as ideias
simples provem, mediata ou imediatamente, de suas correspondentes
impressões”. Esse princípio, diz Hume, acaba com a questão das ideias inatas,
que tanto barulho havia ocasionado anteriormente. Nós só temos ideias depois
de ter impressões, e somente estas, são originárias.
Mas há ainda uma importante distinção a recordar. Existem impressões
simples (por exemplo, vermelho, quente etc.) e impressões complexas (por
exemplo, a impressão de uma maçã). As impressões complexas nos são dadas
imediatamente como tais. Já as ideias complexas podem ser copias das
impressões complexas, mas também podem ser fruto de combinações múltiplas,
que ocorrem de vários modos em nosso intelecto.
Com efeito, além da faculdade da memória, que reproduz as ideias, nós
também temos a faculdade da imaginação, capaz de transpor e compor as ideias
entre si de vários modos. Ela é uma consequência evidente da divisão das ideias
em simples e complexas.
Onde quer que a imaginação perceba uma diferença entre as ideias, pode
realizar uma separação entre elas, e depois operar uma série de outras
combinações. Mas as ideias simples tendem a se agregar entre si em nossa
mente não somente segundo o livre jogo da fantasia, mas também segundo um
jogo bem mais complexo, baseado em alguns princípios que se mostram
conformes em todos os tempos e em todos os lugares.
Existe entre as ideias uma “força” (que, de certa forma, recorda a força de
gravitação newtoniana, que une entre si os corpos físicos, ainda que de caráter
diferente), expressa pelo princípio da associação. As propriedades que dão
origem a essa associação e fazem com que a mente seja transportada de uma
ideia para outra são três: semelhança, contiguidade no tempo e no espaço,
causa e efeito.
Nós passamos facilmente de uma ideia a outra que se lhe assemelhe (por
exemplo: uma fotografia me faz vir à mente a personagem que representa), ou
então de uma ideia a outra que habitualmente se apresenta a nós como ligada a
primeira no espaço e no tempo (por exemplo, a ideia de sala de aula me recorda
a das salas de aula vizinhas, ou então a do corredor adjacente ou a do prédio
em que se localiza; a ideia de levantar âncora suscita a ideia da parda do navio,
e assim se poderiam multiplicar os exemplos); a ideia de causa me suscita a de
efeito e vice-versa (como, por exemplo, quando penso no fogo, sou
inevitavelmente levado a pensar no calor ou então na fumaça que dele se
desprende, e vice-versa).
Para Hume, esses são, portanto, os princípios de união ou coesão entre
as nossas ideias simples que, na imaginação, ocupam o lugar da conexão
indissolúvel, com a qual estão unidas na memória. Por conseguinte, para provar
a validade de cada ideia sobre a qual se discute é necessário apresentar sua
relativa impressão. No caso das ideias simples isso não suscita problemas, pois
não pode estar presente em nós nenhuma ideia simples sem que tenhamos
experimentado sua impressão correspondente.
No caso das ideias complexas, isso já constitui um problema, devido à
sua gênese múltipla e variada. E é exatamente sobre elas que se concentrara o
interesse de nosso filósofo. Hume torna sua a distinção lockiana geral das ideias
em ideias de substância, de modos e de relações, mas vai muito além de Locke
em sua análise crítica. Para se compreender plenamente a posição de Hume,
porém, devemos ainda recordar sua doutrina das ideias abstratas ou universais.
Ele aceita a tese de Berkeley (que elogia como “grande filósofo”) segundo a qual
“todas as ideias gerais nada mais são do que ideias particulares conjugadas a
certa palavra, que lhes dá um significado mais extenso e, ocorrendo, faz com
que recordem outras individuais semelhantes a elas”. Essa, destaca Hume, é
“uma das maiores e mais importantes descobertas que foram feitas nestes
últimos anos na república das letras”. Entre os vários argumentos que Hume
apresenta como apoio da tese de Berkeley, devemos recordar dois
particularmente significativos:
a) O intelecto humano, dizem os defensores da existência de ideias
universais, é capaz de distinguir mentalmente também aquilo que não
está separado na realidade, através de operações mentais autônomas.
Hume contesta isso vigorosamente, pois para ele, só é distinguível aquilo
que é separável.