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Prof.

Pedro Zanatta
Empirismo em Berkeley
A marca deixada por George Berkeley (1685-1753) na história da filosofia
foi a sua afirmação da imaterialidade do mundo, pois para ele, nós não podemos
saber se existem as coisas materiais. Esse filósofo irlandês, e sacerdote
anglicano, acreditava que a Europa estava perdida no materialismo científico e
no ceticismo ocasionado pela dúvida estimulada pelo pensamento filosófico, o
que retirava as pessoas do caminho da fé, afastando-as de Deus.
Com base nisso, pediu recursos ao parlamento inglês para fundar uma
Universidade na América do norte para educar os jovens de lá, que, segundo
ele, ainda tinham salvação. Passou três anos em Rhode Island, colônia inglesa
nos EUA, mas voltou para Londres depois que percebeu que os recursos nunca
seriam enviados. Para combater esse estado de degradação, Berkeley ataca,
em sua obra Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, a base
fundamental da ciência moderna formulada por Newton, que é a matéria.
Ele sustenta um tipo diferente de empirismo, ao afirmar que só podemos
conhecer através dos sentidos que nos dão a percepção das coisas, mas nada
além disso. Melhor dizendo, nós conhecemos, apenas, as percepções das
coisas, mas nunca as coisas mesmas, pois elas não existem. A matéria não
existe, o que existe são as percepções (ideias) que temos da existência das
coisas. Por isso que, para ele, “ser é perceber e ser percebido”.
E ainda, essas percepções são apenas ideias simples, de experiências
com objetos particulares, nunca podemos ter ideias complexas ou abstratas,
porque elas não são originadas de experiências que temos com determinados
objetos. Esse negócio de ideias gerais e abstratas, isso é invenção de filósofo e
cientista. Ora, se isso não existe, não há como existir as leis formuladas por
Newton para explicar a natureza.
Em síntese, Berkeley defende a imaterialidade do mundo sustentando um
idealismo imaterialista, segundo o qual, tudo o que existe são os sujeitos com
suas percepções oriundas da experiência. Mas então, poderiam argumentar que
as coisas que não estão sendo percebidas não existem, ao que ele refutaria
dizendo que existe um ser supremo que garante a existência das coisas a serem
percebidas. E adivinhem quem ele diz que é esse ser supremo? Exatamente,
Deus. Perceba que, para ele, o mundo não existe de uma relação direta do
indivíduo para com esse mundo, mas do mundo com indivíduo através de Deus
que garante a percepção e o conhecimento do mundo ao indivíduo.

Empirismo em Hume
Com David Hume, o empirismo alcançou suas próprias colunas de
Hércules, ou seja, aqueles limites para além dos quais é impossível avançar.
Despojando-se dos pressupostos ontológico-corporeístas presentes em
Hobbes, do componente racionalista-cartesiano presente em Locke, dos
interesses apologéticos e religiosos presentes em Berkeley e de quase todos os
resíduos de pensamento provenientes da tradição metafísica, o empirismo
humiano acaba por esvaziar a própria filosofia dos seus conteúdos específicos
e admitir a vitória da razão cética, da qual só pode se salvar a irresistível força
da natureza. A natureza se sobrepõe à razão, diz expressamente Hume.
David Hume nasceu em Edimburgo, em 1711, de uma família pertencente
à pequena nobreza de proprietários de terras. Desde jovem se apaixonou pelo
estudo dos clássicos e da filosofia, a ponto de se opor firmemente ao desejo dos
parentes, que o queriam advogado como o pai, e negar-se a qualquer outra
atividade que não fossem seus estudos prediletos. O Tratado sobre a natureza
humana é a obra-prima de Hume. Entre as obras que se seguiram, podemos
recordar: os Ensaios sobre o intelecto humano, de 1748, que expõem de modo
simplificado o primeiro livro do Tratado; as Investigações sobre os princípios da
moral, de 1751, que expõem de maneira nova o terceiro livro do Tratado e que
o autor considerou sua melhor obra; e os Discursos políticos, de 1752.
O título Tratado sobre a natureza humana e a especificação do subtítulo:
“Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos
morais”, já apresentam por si mesmos os traços gerais do “novo cenário de
pensamento” que Hume tenta implementar. Hume constata que, sobre a segura
base da observação e do método do raciocínio experimental preconizado por
Bacon, Newton construiu uma sólida visão da natureza física; o que é necessário
fazer agora é precisamente aplicar aquele método também à natureza humana,
ou seja, também ao sujeito e não apenas ao objeto.
Tales fundou a “filosofia” da natureza e só depois Sócrates fundou a
“filosofia” do homem. Nos tempos modernos, Bacon introduziu o método
experimental adequado para a fundação da “ciência” da natureza, ao passo que
os “recentes filósofos ingleses”, ou seja, os moralistas (entre eles, Locke), em
um espago de tempo mais ou menos igual ao transcorrido entre Tales e
Sócrates, começaram a “levar a ciência do homem para um terreno novo”.
Trata-se, então, de percorrer profunda mente esse caminho, para fundar
definitivamente a ciência do homem em bases experimentais. Em suma, Hume
considera poder se tornar o Newton da “natureza humana”. Aliás, o nosso
filo sofo mostra-se até convicto de que a “ciência da natureza humana” é ainda
mais importante do que a física e as outras ciências, pelo fato de que todas essas
ciências “dependem de algum modo da natureza do homem”.
Se pudéssemos explicar a fundo o alcance e a força do intelecto humano,
bem como a natureza das ideias de que nos servimos e das operações que
realizamos em nossos raciocínios, poderíamos efetuar progressos de
incalculável alcance em todos os outros âmbitos do saber. É esse o ambicioso
projeto de Hume. A “natureza humana”, encerrada nos estreitos âmbitos do
método experimental, perde grande parte de sua especificidade racional e
espiritual em benefício do instinto, da emoção e do sentimento, a ponto de
reduzir-se quase que apenas à “natureza animal”. E, desse modo, a conquista
da “natureza humana” ao invés de levar a conquistas, levará fatalmente a perdas,
como podem demonstrar os resultados cético-irracionalistas. Mas vejamos como
Hume, com o novo método experimental, procede à reconstrução da “natureza
humana”.
Todos os conteúdos da mente humana outra coisa não são senão
percepções, dividindo-se em duas grandes classes, que Hume chama de
impressões e ideias. Ele só coloca duas diferenças entre as primeiras e as
segundas: a) a primeira classe diz respeito à força ou vivacidade com que as
percepções se apresentam à nossa mente; b) a segunda diz respeito à ordem e
a sucessão temporal com que elas se apresentam.
No que se refere ao primeiro ponto, a diferença entre impressões e ideias
consiste no grau diverso de força e vivacidade com que as percepções atingem
nossa mente e penetram no pensamento ou na consciência. As percepções que
se apresentam com maior força e violência podem ser chamadas de impressões
e são todas as sensações, paixões e emoções, quando fazem a sua primeira
aparição em nossa alma. As ideias, ao contrário, são as imagens enfraquecidas
das impressões. Uma consequência dessa distinção é a drástica contradição da
diferença entre sentir e pensar, que é reduzida simplesmente ao grau de
intensidade: sentir consiste em ter percepções mais vivas (sensações), ao passo
que pensar consiste em ter percepções mais fracas (ideias). Toda percepção,
portanto, é dupla: é sentida (de modo vivo) como impressão e é pensada (de
modo mais fraco) como ideia.
No que se refere ao segundo ponto, Hume destaca que ele constitui uma
questão da máxima importância, porque está ligada ao problema da “prioridade”
de um dos dois tipos de percepção: a ideia depende da impressão, ou a
impressão depende da ideia?
A resposta de Hume é inequívoca: a impressão é originária, a ideia é
dependente. Daí, portanto, deriva o “primeiro princípio” da ciência da natureza
“humana”, que, formulado sinteticamente, assim se expressa: “Todas as ideias
simples provem, mediata ou imediatamente, de suas correspondentes
impressões”. Esse princípio, diz Hume, acaba com a questão das ideias inatas,
que tanto barulho havia ocasionado anteriormente. Nós só temos ideias depois
de ter impressões, e somente estas, são originárias.
Mas há ainda uma importante distinção a recordar. Existem impressões
simples (por exemplo, vermelho, quente etc.) e impressões complexas (por
exemplo, a impressão de uma maçã). As impressões complexas nos são dadas
imediatamente como tais. Já as ideias complexas podem ser copias das
impressões complexas, mas também podem ser fruto de combinações múltiplas,
que ocorrem de vários modos em nosso intelecto.
Com efeito, além da faculdade da memória, que reproduz as ideias, nós
também temos a faculdade da imaginação, capaz de transpor e compor as ideias
entre si de vários modos. Ela é uma consequência evidente da divisão das ideias
em simples e complexas.
Onde quer que a imaginação perceba uma diferença entre as ideias, pode
realizar uma separação entre elas, e depois operar uma série de outras
combinações. Mas as ideias simples tendem a se agregar entre si em nossa
mente não somente segundo o livre jogo da fantasia, mas também segundo um
jogo bem mais complexo, baseado em alguns princípios que se mostram
conformes em todos os tempos e em todos os lugares.
Existe entre as ideias uma “força” (que, de certa forma, recorda a força de
gravitação newtoniana, que une entre si os corpos físicos, ainda que de caráter
diferente), expressa pelo princípio da associação. As propriedades que dão
origem a essa associação e fazem com que a mente seja transportada de uma
ideia para outra são três: semelhança, contiguidade no tempo e no espaço,
causa e efeito.
Nós passamos facilmente de uma ideia a outra que se lhe assemelhe (por
exemplo: uma fotografia me faz vir à mente a personagem que representa), ou
então de uma ideia a outra que habitualmente se apresenta a nós como ligada a
primeira no espaço e no tempo (por exemplo, a ideia de sala de aula me recorda
a das salas de aula vizinhas, ou então a do corredor adjacente ou a do prédio
em que se localiza; a ideia de levantar âncora suscita a ideia da parda do navio,
e assim se poderiam multiplicar os exemplos); a ideia de causa me suscita a de
efeito e vice-versa (como, por exemplo, quando penso no fogo, sou
inevitavelmente levado a pensar no calor ou então na fumaça que dele se
desprende, e vice-versa).
Para Hume, esses são, portanto, os princípios de união ou coesão entre
as nossas ideias simples que, na imaginação, ocupam o lugar da conexão
indissolúvel, com a qual estão unidas na memória. Por conseguinte, para provar
a validade de cada ideia sobre a qual se discute é necessário apresentar sua
relativa impressão. No caso das ideias simples isso não suscita problemas, pois
não pode estar presente em nós nenhuma ideia simples sem que tenhamos
experimentado sua impressão correspondente.
No caso das ideias complexas, isso já constitui um problema, devido à
sua gênese múltipla e variada. E é exatamente sobre elas que se concentrara o
interesse de nosso filósofo. Hume torna sua a distinção lockiana geral das ideias
em ideias de substância, de modos e de relações, mas vai muito além de Locke
em sua análise crítica. Para se compreender plenamente a posição de Hume,
porém, devemos ainda recordar sua doutrina das ideias abstratas ou universais.
Ele aceita a tese de Berkeley (que elogia como “grande filósofo”) segundo a qual
“todas as ideias gerais nada mais são do que ideias particulares conjugadas a
certa palavra, que lhes dá um significado mais extenso e, ocorrendo, faz com
que recordem outras individuais semelhantes a elas”. Essa, destaca Hume, é
“uma das maiores e mais importantes descobertas que foram feitas nestes
últimos anos na república das letras”. Entre os vários argumentos que Hume
apresenta como apoio da tese de Berkeley, devemos recordar dois
particularmente significativos:
a) O intelecto humano, dizem os defensores da existência de ideias
universais, é capaz de distinguir mentalmente também aquilo que não
está separado na realidade, através de operações mentais autônomas.
Hume contesta isso vigorosamente, pois para ele, só é distinguível aquilo
que é separável.

b) Além disso, como cada ideia é cópia de uma impressão e a impressão só


pode ser particular e, portanto, só determinada, seja qualitativa, seja
quantitativamente, também as ideias (que só podem ser copias das
impressões) devem ser determinadas do mesmo modo.
O grande princípio humiano de que a ideia só difere no grau de
intensidade e vivacidade da impressão comporta necessariamente que cada
ideia nada mais seja do que uma “imagem” e, como tal, individual e particular.
Como é possível, então, uma ideia “particular” ser usada como ideia “geral”, e
como é que a simples conjunção com uma “palavra” pode tornar isso possível?
Para Hume, nós notamos certa semelhança entre as ideias de coisas que
nos aparecem pouco a pouco (por exemplo, entre homens de várias raças e de
vários tipos), uma semelhança tal que nos permite dar a elas o mesmo nome,
prescindindo das diferenças de grau, de qualidade e de quantidade que elas
podem apresentar. Desse modo, nós adquirimos um “hábito” pelo qual, ao ouvir
aquele nome ou aquela palavra dada, desperta em nossa memória uma
daquelas ideias particulares que designamos com aquele nome ou com aquela
palavra (por exemplo, ao ouvir a palavra “homem”, vem-me a mente a ideia de
um homem determinado), mas, como a mesma palavra usa-se para designar
ideias análogas (por exemplo, para designar os muitos homens vistos por mim,
diferentes entre si por muitos aspectos particulares), então acontece que “a
palavra, não sendo capaz de fazer reviver a ideia de todos esses indivíduos,
limita-se a tocar a alma, se assim posso me expressar, e faz reviver o hábito que
contraímos ao examiná-los”.
O que há de novo nessa concepção nominalista do universal, em relação
visão tradicional, particularmente em relação à visão de Berkeley? Como
destacaram os estudiosos, o que há é o recurso ao princípio do hábito, já
invocado por Hume a propósito do princípio de associação das ideias.
Outra doutrina essencial de Hume consiste na distinção dos objetos
presentes na mente humana (impressões e ideias) em dois gêneros, que o
filósofo chama de a) “relações entre ideias” e b) “dados de fato”.
a) São simples relações e ideias todas aquelas proposições que se
limitam a operar com base em conteúdos ideais, sem se referir aquilo
que existe ou pode existir. Trata-se das proposições que Kant
chamará de juízos analíticos. A aritmética, a álgebra e a geometria são
constituídas de meras “relações de ideias”. Estabelecidos os
significados dos números, por exemplo, nós obtemos por mera análise
racional (e, portanto, com base em meras relações de ideias) que três
vezes cinco é a metade de trinta, e todas as outras proposições desse
gênero. Trata-se de uma proposição que conseguimos
substancialmente baseando-nos sobre o princípio de não- -
contradição.

b) Os “dados de fato”, ao contrário, não são obtidos desse modo, já que


“é sempre possível o contrário de um dado de fato qualquer, já que ele
não pode nunca implicar uma contradição, sendo concebido pela
mente com a mesma facilidade e a mesma distinção como se fosse
extremamente conforme a realidade”. O problema que surge, portanto,
é o de procurar a natureza da evidência própria dos raciocínios
relativos aos “dados de fato”, quando eles não estão imediatamente
presentes aos sentidos (como, quando prevejo que o sol surgirá
amanhã).
Segundo Hume, todos os raciocínios que dizem respeito à realidade dos
fatos parecem fundados na relação de causa e efeito. É só graças a essa relação
que podemos ultrapassar a evidência de nossa memória e dos sentidos. O
exame crítico de Hume se concentra, por conseguinte, justamente sobre a
relação de causa e efeito.
Causa e efeito são duas ideias bem distintas entre si, no sentido de que
nenhuma análise da ideia de causa, por mais acurada que seja, pode nos fazer
descobrir a priori o efeito que dela deriva. Se atinjo uma bola de bilhar com outra
bola, digo que a primeira causou o movimento da segunda; entretanto, o
movimento da segunda bola de bilhar é um fato completamente diferente do
movimento da primeira e não está incluído nela a priori. Suponhamos, com efeito,
que tivéssemos vindo ao mundo de improviso: nesse caso, vendo uma bola de
bilhar, não poderíamos de modo nenhum saber a priori que ela, impelida contra
outra, produzira como efeito o movimento dessa outra.
O mesmo deve-se dizer de todos os outros casos desse gênero. Hume
exemplifica dizendo que o próprio Adão, ao ver a água pela primeira vez, não
tinha condições de inferir a priori que ela tem o poder de afogar por sufocamento.
Sendo assim, então, deve-se dizer que o fundamento de todas as nossas
conclusões sobre a causa e o efeito é a experiência. Todavia, essa resposta
propõe imediatamente outra questão, bem mais difícil: qual é o fundamento das
próprias conclusões que extraio da experiência? Experienciei, por exemplo, que
o pão que comi sempre me alimentou; mas com base em que fundamento eu
extraio a conclusão de que ele devera me nutrir também no futuro?
Do fato que experienciei que certa coisa sempre se acompanhou de outra
ao modo de “efeito”, eu posso inferir que também outras coisas como aquela
deverão se acompanhar de efeitos análogos. Por que extraio essas conclusões
e, ainda mais, as considero necessárias? Para responder à questão, vejamos
melhor seus termos. Dois elementos essenciais estão presentes no nexo causa-
efeito: a) a contiguidade e a sucessão; b) a conexão necessária. A contiguidade
e a sucessão são experimentadas, ao passo que a conexão necessária não é
experimentada (no sentido de que não é uma impressão), e sim inferi da.
Todavia, como a inferimos?
Nós a inferimos, diz Hume, pelo fato de termos experimentado uma
conexão constante e, por conseguinte, pelo fato de termos contraído um hábito
ao constatar a regularidade da contiguidade e da sucessão, a ponto de tornar-
se natural para nós, dada a “causa”, esperarmos o “efeito”. O princípio com base
no qual, a partir da simples sucessão “isso depois disso”, nós inferimos o nexo
necessário “logo causado por isso” é constituído, portanto, pelo costume ou
hábito. Em conclusão, diz Hume, é o costume que nos permite sair daquilo que
está imediatamente presente na experiência. Mas toda proposição nossa relativa
ao futuro não tem outro fundamento.
Mas há ainda um ponto importantíssimo que devemos entender. Embora
seja básico, o “costume” de que falamos, em si mesmo, não seria suficiente para
explicar inteiramente o fenômeno que estamos discutindo. Uma vez formado,
esse costume gera em nós uma “crença”. Ora, é precisamente essa crença que
nos dá a impressão de que estamos diante de uma “conexão necessária” e que
nos infunde a convicção de que, dado aquilo que nós chamamos “causa”, deve
seguir-se aquilo que nós chamamos “efeito” (e vice-versa). Portanto, segundo
Hume, a chave para a solução do problema está na “crença”, que é um
sentimento. Assim, de ontológico-racional, o fundamento da causalidade torna-
se emotivo-arracional, ou seja, transfere-se da esfera do objetivo para a esfera
do subjetivo. Como veremos, é exatamente esse “instinto natural” que se
revelaria última trincheira do empirismo humiano.
Hume submete a uma crítica análoga o conceito clássico de substância:
1) tanto em referência aos objetos corpóreos; 2) como no que se refere ao sujeito
espiritual. Segundo Hume, aquilo que nós captamos, na realidade, não é mais
que uma série de feixes de impressões e ideias. Em virtude da constância com
que esses feixes de percepções se apresentam a nós, acabamos por imaginar
a existência de um princípio que constitui o fundamento da coesão entre aquelas
percepções. Todavia, consideramos tal feixe de percepções que chamamos por
exemplo de maçã como sustentado por um princípio de coesão que garante que
tais impressões permaneçam compactas e constantemente juntas. Mas esse
princípio não é uma impressão e sim apenas um modo nosso de imaginar as
coisas, que acreditamos existir fora de nós. Com efeito, aquilo que não é
redutível a uma impressão, como sabemos, é destituído de validade objetiva.
Hume também faz uma crítica análoga a existência de uma substância
espiritual, particularmente contra a existência do eu, entendido como realidade
dotada de existência contínua e autoconsciente, idêntica a si mesma e simples.
Com efeito, toda ideia só pode derivar de uma impressão correspondente; mas
do eu não há nenhuma impressão precisa, assim, tal ideia não existe. As cruas
conclusões de Hume, portanto, são as mesmas a que ele chega no caso dos
objetos. Como os objetos nada mais são que coleções de impressões,
analogamente, nós não somos nada mais do que coleções ou feixes de
impressões e de ideias. Somos uma espécie de teatro, onde passam e repassam
continuamente as impressões e as ideias: mas, note- -se bem, trata-se de teatro
que não deve ser concebido como um prédio estável, mas simplesmente como
o passar e o repassar das próprias impressões. O que devemos concluir então?
Se o objeto é um feixe de impressões, e se também o eu é um feixe de
impressões, como poderão se distinguir entre si? Como se poderá falar de
“objetos” e de “sujeitos”?
A tese de Hume é evidente:
1) a existência das coisas fora de nós não é objeto de conhecimento, mas
de “crença”; e, assim, analogamente;
2) a identidade do eu não é objeto de conhecimento, mas é, ela também,
objeto de “crença”.
1) A filosofia nos ensina que qualquer impressão é uma percepção e que,
portanto, é subjetiva. Com efeito, a partir da impressão não se pode inferir a
existência de um objeto como causa da própria impressão, porque o princípio de
causa não tem uma validade teórica. Nossa “crença” na existência independente
e contínua dos objetos é fruto da “imaginação”. Em especial, como se encontra
certa uniformidade e coerência em nossas impressões, a imaginação tende a
considerar tal uniformidade e coerência como total e completa, supondo
precisamente a existência de corpos que seriam sua “causa”. Vejamos um
exemplo: eu saio de minha sala e, desse modo, deixo de ter todas as impressões
que constituem esta minha sala; depois de certo tempo, ao retornar, tenho as
mesmas impressões de antes ou, de todo modo, tenho percepções parcialmente
iguais às de antes e em parte diferentes, mas coerentes com elas (por exemplo,
encontro a luz reduzida porque já se fez tarde).
Pois bem, a imaginação preenche o vácuo de minha ausência, supondo
que essas percepções correspondentes e coerentes em relação as anteriores
correspondam a uma existência efetiva e separada dos objetos que constituem
minha sala. E mais: ao trabalho realizado pela imaginação se acrescenta ainda
o da memória, que dá vivacidade as impressões fragmentadas e intermitentes
(por causa de minha saída e da posterior volta a sala). Tal “vivacidade” gera a
“crença” na existência dos objetos externos correspondentes. O que nos salva
da dúvida cética é, portanto, essa crença instintiva, que é de gênese alógitica e
arracional, e quase biológica. 2) Também o eu é reconstruído de modo análogo
pela imaginação e pela memória em sua unidade e substancialidade. Por
conseguinte, também a existência do eu, entendido como substância à qual são
referidas todas as percepções, é apenas objeto de “crença”. Todavia, devemos
destacar que, para Hume, o eu torna-se objeto de consciência imediata através
das paixões e, portanto, mais uma vez em âmbito ateórico e por via arracional.
Hume considerava-se cético moderado. Com efeito, em sua opinião, o
ceticismo moderado pode beneficiar o gênero humano, visto que consiste na
limitação de nossas investigações aos temas que melhor se adaptam às
limitadas capacidades do intelecto humano. Em última análise, no que se refere
às ciências abstratas, essas capacidades se restringem ao conhecimento das
relações entre ideias e, portanto, no caso das razões que examinamos, se
restringem somente à matemática. Todas as outras investigações se referem a
dados de fato, suscetíveis de constatação, mas não de demonstração. Em suma,
o que domina todos esses âmbitos é a experiência e não o raciocínio. Assim, as
ciências empíricas baseiam-se na experiência, a moral no sentimento, a estética
no gosto e a religião na fé e na revelação.
Sendo assim, Hume indaga que quando, persuadidos desses princípios,
percorrermos os livros de uma biblioteca, do que devemos nos desfazer? Se
pegarmos algum volume, digamos de teologia ou de metafísica escolástica, por
exemplo, devemos nos perguntar: “Será que contém raciocínios abstratos em
torno da quantidade ou do número?” A resposta é não. “Contém raciocínios
baseados na experiência e relativos aos dados de fato ou à existência das
coisas?” Também não. Então, devemos jogar todas essas obras às chamas, já
que não pode conter nada mais que tergiversação e engano.
Essas conclusões céticas podem ser reduzidas a um fundamento único
que é a negação da valência ontológica do princípio de causa e efeito. Apesar
de sua refutação ao princípio de causalidade, seria muito fácil mostrar que, na
realidade, no mesmo momento em que o excluí, Hume o está reintroduzindo
repetidamente, sem se dar conta disso, para poder proceder ao seu discurso.
Ora, pensemos bem. As impressões são “causadas” pelos objetos, as ideias são
“causadas” pelas impressões, a associação das ideias tem uma “causa”, o hábito
é por sua vez “causado” e, assim, os exemplos, poderiam se multiplicar. Se
tivéssemos verdadeiramente de eliminar o princípio de causa, não só a
metafísica ruiria por terra, mas também toda a filosofia teórica e moral de Hume.
Mas não é para isso que queremos chamar a atenção (já que isso nos
levaria para o campo da crítica ao sistema humiano), mas muito mais para a
postura geral que caracteriza o pensamento do filósofo: à razão cética
problemática, Hume contrapõe o instinto e o elemento alógico, passional e
sentimental, portador de uma segurança incontida e, portanto, dogmática. A
própria razão filosófica, que é uma necessidade originária de indagar, aparece
em Hume, em certos momentos, quase como uma espécie de instinto, também
ele incontido.
Em suma, para Hume, a última palavra parece ser deixada precisamente
para o instinto, ou seja, para o arracional, quando não até para o irracional. As
duas afirmações seguintes, verdadeiramente emblemáticas, mostram
clara mente quanto o empirismo humiano afastou-se do empirismo lockiano.
Locke dizia: “A razão deve ser nosso último juiz e nosso guia em toda coisa”.
Hume, ao contrário, afirma: “A razão é e só pode ser escrava das paixões, não
podendo reivindicar em caso nenhum uma função diversa da de a elas
obedecer”. Como se vê, quando levado às consequências extremas, o
empirismo choca-se contra limites agora intransponíveis (pelo menos com sua
lógica intrínseca). Caberá a Kant a grande empresa de abrir novos caminhos,
capazes de evitar tanto esses extremismos irracionalistas e céticos como os
extremismos de caráter oposto em que haviam incorrido os sistemas
racionalistas.
As paixões são algo original e próprio da “natureza humana”,
independentes da razão e não domináveis por ela. Elas são “impressões” que
derivam de outras percepções.
Hume distingue as paixões em: 1) diretas; 2) indiretas.
1) As primeiras são as que dependem imediatamente do prazer e da dor
como, por exemplo, o desejo, a aversão, a tristeza, a alegria, a
esperança, o medo, o desespero, a tranquilidade.

2) As segundas são, por exemplo, o orgulho, a humildade, a ambição, o


amor, o ódio, a inveja, a piedade, a malignidade, a generosidade e as
outras que delas derivam.
Hume alonga-se muito ao escrever sobre essas paixões. Mas os
elementos importantes de seu discurso podem ser resumidos assim: ele afirma
que as paixões dizem respeito ao eu, ou seja, aquela pessoa particular de cujas
ações e sentimentos cada um de nós está intimamente convencido; e, falando
sobre o orgulho, ele chega até a afirmar que a natureza ligou a essa emoção
certa ideia, a do eu, que nunca deixa de se produzir. É evidente que Hume
recupera aqui a consciência e a ideia do eu sobre bases emocionais. Em última
análise, a própria vontade pode ser redutível às paixões ou, de qualquer modo,
constitui algo muito próximo a elas, dado que, segundo Hume, se reduz a uma
impressão que deriva de prazer e de dor, exatamente como as paixões. Mas
nosso filósofo parece um tanto incerto sobre esse ponto, pois termina por admitir
que a vontade é e não é uma paixão.
Tal ambiguidade e incerteza se reflete imediatamente sobre a concepção
da liberdade, que Hume termina por negar. Para ele, “livre-arbítrio” seria
sinônimo de não-necessidade, ou seja, de casualidade, constituindo assim um
absurdo. Segundo Hume, aquilo que habitualmente denomina-se de “liberdade”
não seria mais que a simples “espontaneidade”, ou seja, a não-coação externa.
Ao realizar nossos atos, não somos determinados por motivos externos, e sim
interiores; todavia, de qualquer forma, sempre somos determinados. Contudo, o
ponto mais característico da filosofia moral de Hume é a tese segundo a qual “a
razão jamais pode se contrapor a paixão na condução da vontade”. Isso significa
proclamar a vitória do jogo das paixões e, assim, negar que a razão possa ser
prática, ou seja, que a razão possa guiar e determinar a vontade. A moral foi o
assunto que mais interessou Hume desde o início de sua formação espiritual, a
ponto de alguns intérpretes sustentarem que, se todo o sistema humiano não for
visto a luz desse interesse fundamental, ele não revela seu significado preciso.
Qual é o fundamento da moral?
Hume negava que a razão como tal pudesse mover a vontade, ou seja,
que a razão pudesse ser fundamento da vida moral. A moral, por conseguinte,
deve derivar de algo diferente da razão. Com efeito, diz Hume, a moral suscita
paixões e promove ou impede ações, coisas que, pelos motivos expostos, a
razão não está em grau de fazer. Portanto, conclui Hume, “é impossível que a
distinção entre bem e mal moral possa ser estabelecida pela razão, posto que
essa distinção tem sobre nossas ações uma influência da qual a razão é
inteiramente incapaz”. Quando muito, a razão pode dispor-se a serviço das
paixões e colaborar com elas, despertando-as e orientando-as.
A resposta humiana ao quesito acima exposto é óbvia: o fundamento da
moral é o sentimento. Qual é, então, esse sentimento que serve de fundamento
para a moral? É um sentimento particular de prazer e dor. A virtude provoca um
prazer de tipo particular, assim como o vício provoca uma dor de tipo particular,
de modo que, se conseguirmos explicar tal prazer e tal dor, explicaremos
também o vício e a virtude. Já dissemos que o prazer (ou dor) moral é particular,
isto é, especial. Com efeito, ele deve ser acuradamente distinto de todos os
outros tipos de prazer. De fato, por prazer entendemos sensações muito
diferentes entre si. Como exemplifica Hume, uma coisa é o prazer que
experimentamos ao beber uma boa taça de vinho, um prazer que é de caráter
puramente hedonístico; outra coisa é o prazer que experimentamos ao ouvir uma
boa composição musical, que é um prazer estético.
Nós captamos imediatamente a diferença entre esses dois tipos de
prazer, não havendo nenhum perigo de que consideremos o vinho harmonioso
ou a composição musical saborosa. Analogamente, diante da virtude de uma
pessoa, experimentamos um prazer peculiar que nos impele a louvá-la (assim
como, diante do vício, experimentamos um desprazer que nos impele a censurá-
lo). Trata-se, segundo Hume, de um tipo de prazer (ou dor) desinteressado. E
essa é justamente a conotação específica do sentimento moral: o estar
“desinteressado”.
De notável relevância moral para Hume é, além disso, o sentimento de
simpatia. Valorizando esse sentimento, nosso filósofo coloca-se em clara
antítese com a visão pessimista de Hobbes. Eis uma significativa afirmação de
Hume: “Não há qualidade da natureza humana mais notável, seja em si e por si,
seja por suas consequências, do que nossa propensão a experimentar simpatia
pelos outros, e a receber por transmissão as inclinações e os sentimentos
alheios, por mais diferentes e até mesmo contrários sejam eles em relação aos
nossos”.
Para explicar a ética Hume recorreu também à dimensão utilitarista. Com
efeito, diz ele, o “útil” move nossa concordância. Mas o “útil” de que se fala no
campo da ética não é “nosso útil particular”, e sim o útil que, além de nós,
estende-se “também aos outros”, ou seja, o útil público, que é “o útil é felicidade
de todos”. Assim, escreve Hume: “Desse modo, se a utilidade é uma fonte do
sentimento moral e se não consideramos sempre essa utilidade em relação ao
eu singular, segue-se então que tudo o que contribui para a felicidade da
sociedade granjeia diretamente nossa aprovação e nossa boa vontade. Eis um
princípio que, em boa medida, explica a origem da moralidade”.

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