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https://doi.org/10.22409/gragoata.v24i49.

34131

Hexâmetros romenos de Mihai


Eminescu: tradução e comentários do
poema Mitologicale

Beethoven Alvareza

Resumo
Neste artigo, apresento uma tradução em hexâmetros
datícilos do poema Mitologicale (Mitologicais),
de Mihai Eminescu (1850-1889), um dos mais
importantes poetas romenos. Esse sui generis poema
foi publicado, postumamente, pela primeira vez em
1902, na revista Sămănătorul (O Semeador).
Contudo, dois manuscritos datados da época em
que Eminescu esteve em Berlim atestam que o
poema foi composto quando o poeta tinha então 23
anos, em 1873. Além da tradução, apresento uma
análise do poema em que discuto o tom paródico da
narrativa mítica e observo a capacidade de Eminescu
de fundir o antigo e o novo, o elevado e o popular.
Utilizando o hexâmetro datílico de feição clássica,
o autor bucovino cria uma narrativa que une todas
as dimensões do conto popular romeno com uma
prosódia ironicamente arcaizada, evocando uma
melancólica filosofia particular. Ao final, comento
propriamente problemas de ritmo e do verso, e
algumas questões de tradução do ritmo do verso,
fazendo breve revisão das práticas de criação e
tradução do hexâmetro.
Palavras-chave: poesia romena; Mihai Eminescu;
hexâmetro datílico; tradução poética; versificação.

Recebido em: 24/04/2019


Aceito em: 04/06/2019

a
Professor de Língua e Literatura Latina da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
bee.alvarez@gmail.com.

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Beethoven Alvarez

Já vereis o sair do sol num triunfo de liras1


(“Saudação do otimista”, Ruben Dario)

1. O POEMA E EMINESCU
Numa visão não tão otimista quanto a do poeta
nicaraguense Ruben Dario, cujo verso serve de epígrafe, o
poema Mitologicale (Mitologicais), de Mihai Eminescu (1850-
1889), um dos mais importantes poetas romenos, pinta uma
vívida narrativa de um velho bêbado que sai de casa dirigindo
uma carroça, desgrenhado, rindo alto na rua sem motivo,
acreditando que árvores e montanhas lhe acenam ao passar. Um
jovem repreende o pinguço, mas de nada adianta. Tentando ir
adiante, o velho ébrio quase se atola na lama, mas não se faz de
rogado, finge dançar e depois dá cambalhotas. Nisso, é picado
por uma pulga e se coça numa cerca qualquer. Volta para casa
trôpego, tira as roupas e as estende sobre o forno para secar,
porque, além de tudo, havia entrado no mar com roupa e tudo.
Faz xixi no penico e toca a dormir uma soneca boa. Acorda no
dia seguinte ainda sonolento e, sem se dar conta do que fez,
olha para o sol e coça a cabeça. O dia lá fora está lindo!
Embora possa ser essa apenas uma cínica sinopse do
poema, não há nenhuma impropriedade. O curioso poema
de 84 versos, composto em hexâmetros datílicos (mais à
frente tratarei especificamente da história e do emprego desse
tipo de verso na poesia romena), propõe-se a narrar uma
história mítica (como anuncia o título) de seres fantásticos que
compartilham características titânicas de forças da natureza,
mas que, ao mesmo tempo, comportam-se como ridículos
personagens do cotidiano.
O esperado tom elevado da narrativa mitológica, a
depreender-se também pelo tipo de verso, mescla-se a uma
fraseologia popular para contar a paródica história de um
velho furacão, telúrico e poderoso, que parte das montanhas
montado em carruagem trovejante pelos céus; bêbado,
organiza a maior arruaça nos campos celestes, revolvendo,
no caminho, terra e mar. Insatisfeito, o sol, fazendo papel do
jovem responsável, interpela o furacão na tentativa de dissuadi-
lo, mas só consegue arrumar uma discussão. Não podendo
* Todas as notas deste alcançar as estrelas, o velho ciclone retorna para as montanhas
artigo encontram-se ao
fim do texto. de onde veio, o Monte Rarau, nos Cárpatos moldavos, que são

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

descritos como um enorme palácio. Cansado, o velho se retira a


seus aposentos. Sua lareira é como os Lagos de Fogo do Monte
Hinom (o próprio Inferno do Apocalipse). Despe-se, faz suas
necessidades e, só com as roupas de baixo, dorme o sono dos
justos. Do lado de fora, expulsando o frio, descrito como um
velho avarento, o sol, jovem, olha para o mar e o acalma; olha
para a terra e as flores renascem. Paira um erótico romantismo
no ar, quando uma romântica donzela aparece a esperar pelo
amado, e depois anoitece; e a lua, uma galinha redonda e
gorda, passa pelos céus, deixando pegadas de ouro, que são
as estrelas da noite. No dia seguinte, o furacão acorda e sobe
as montanhas do Rarau, de pijama e descalço, coça a cabeça
e olha para o sol. Nunca saberemos o que estava pensando.
Esse sui generis poema foi publicado, postumamente, pela
primeira vez em 1902, na revista Sămănătorul (O Semeador)2,
num texto do crítico literário Ilarie Chendi sobre Humorul
lui Eminescu (O Humor de Eminescu). O mesmo Ilarie Chendi
editaria, um ano depois, um volume com suas pesquisas,
em que adicionou o capítulo Eminescu: Material nou de studiu
(Eminescu: Novo material de estudo),3 onde aparece novamente
o poema, que passará a figurar, a partir daí, nas edições
completas das Obras de Eminescu.4
Hoje, na biblioteca da Academia Romena, dois autógrafos
desse mesmo poema encontram-se, um, no manuscrito 2259,
283v-285, com o título Niste hexametri, draga Doamne (Alguns
hexâmetros, querido Senhor), e, outro, no manuscrito 2285,
97v-98v, com o título Mitologicale (Mitologicais), sendo este o
título pelo qual o conhecemos. Os dois manuscritos são datados
da época em que Eminescu esteve em Berlim, em 1873, quando
tinha 23 anos.
O título Mitologicale soa já provocativo e irônico. O sufixo
-al (-ale, no plural feminino) em romeno funciona como no
português para criar adjetivos derivados de substantivos
para exprimir a ideia de semelhança ou relação (como em
medicinal, mortal, infernal, espiritual, etc.); contudo, aqui, o
sufixo -al é adicionado ao adjetivo mitologic (mitológico), que
já carrega um sufixo de adjetivo (-ic/-ico), criando, então, um
pomposo “mitological” (mitological; mitologicale, no plural), que
deseja ecoar algum sentido religioso de função sacralizante
(como em ritual, batismal), mas que, ao mesmo tempo, acaba
por sugerir um tom paródico com o neologismo duplamente

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sufixado.5 Assim, o tema do poema pode parecer próprio do


campo elevado do mitológico, mas, na prática, só conseguirá ser
ridículo e excessivo. Humoristicamente provocativo, ambíguo
no tratamento do solene, o título já prepara o leitor para a ironia
da própria ideia da gravidade do mito.6
O poema tratará do fantástico, apelará para o imaginário
e o não imaginado, evocará uma mística toda particular, ao
mesmo tempo que, dubiamente, se baseia no comum e no
vulgar. Samarescu, com base em Todoran (1972, p. 88), oferece
uma esclarecedora visão sobre a estrutura do fantástico na
obra de Eminescu:
O fantástico é estruturado de forma dúplice e de acordo
com a atitude diante do imaginário; estamos falando, assim,
do trágico não-fantástico (gerado pelo medo diante do
imaginário) e de um fantástico cômico (com a liberação do
imaginário, do qual resulta a convencionalidade ficcional).
Quer seja tratado no registro irônico, pela alegorização
dos antigos mitos [...] ou no registro humorístico, quando o
mito passa a ser “mitological”, o fantástico se encontra com
o milagroso num todo unitário, popular e culto ao mesmo
tempo.7 (SAMARESCU, 2005, p. 183).

As palavras de Samarescu são ótima síntese do tom


ficcional do singular poema eminesciano, que une o uso do
hexâmetro datílico, um metro antigo da poesia greco-romana,
não convencional na poesia popular romena, ao motivo
alegórico-paródico do mito (esse sim, cômico e convencional).
Muito por causa da utilização do verso antigo, o mesmo
tipo de verso, em tese, 8 empregado na Ilíada e Odisseia,
Călinescu, um dos grandes estudiosos da obra do poeta romeno,
classifica o poema como uma “paródia de Homero” (1969, p.
315 apud DIACONESCU, 2009, p. 135). Naturalmente ocorria
a associação com o poemeto que, no passado, fora atribuído
a Homero, a Batrachomiomachia (A Batalha dos Ratos e os Sapos),
também composto em hexâmetros, ainda na Antiguidade,
entre os séculos V e III a.C., na Grécia, de marcado tom cômico
e paródico, que conta a história do confronto “épico” entre os
ratos e os sapos (ou rãs) de um lago.9
Além da comparação com a paródia antiga dessa
história quase fabular, Traian Diaconescu (2009, p. 135),
numa investigação sobre a prosódia do poema de Eminescu,
acrescenta uma avaliação recente do eminescólogo Adrian

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

Voica que destaca seu valor mítico. Voica entrevê uma relação
complexa entre “prosódia antiga” e um “universo com matiz
onírico” numa narrativa de arremedo fantástico (2004, p. 137
apud DIACONESCU, 2009, p. 135).10 É essa chave de leitura
que proponho seguirmos, a da paródia do universal, do
“mitological”. Vejamos. O mesmo Diaconescu destacou que:
[n]o poema Mitologicale, a paródia envolve múltiplos planos:
1. axiológico: o mundo elevado é rebaixado ao mundo
humilde; 2. temporal: os tempos míticos se fundem com os
tempos modernos; 3. tópico: o Olimpo é localizado no Monte
Rarăul, e o furacão é um camponês bucovino; e 4. estilístico:
a linguagem literária e popular se concretizam em imagens
hiperbólicas e originais. (DIACONESCU, 2009, p. 140).11

Essa múltipla paródia se encaixa muito bem na tipologia


dos contos populares romenos. Em 1963, segundo Samarescu
(2005, p. 75), a Sociedade Internacional para Pesquisa de Contos
Populares (Societatea Internaţională pentru Cercetarea Naraţiunilor
Populare) identificou quatro tipos de lendas fundamentais
desse tipo de narrativa: 1. as etiológicas e escatológicas; 2. as
históricas; 3. as míticas; e 4. as religiosas ou hagiográficas.
As histórias “mitologicais” de Eminescu podem ser
etiológicas quando explicam as causas dos males. Na narrativa,
as causas dos males do mundo, naquele momento, são o mau
comportamento do mítico furacão, provocado pela bebida.
Bêbado, o ciclone pode destruir todo um país (v. 27). As causas
dos males provocados pelo velho furacão não são incríveis,
nada de demais: ele bebeu muito, só isso (v. 21). Na filosofia
de Eminescu, aqui no poema, são símbolo da vontade da
natureza. O “fim do mundo” pode ser provocado por um velho
bêbado numa orgia cega (v. 12). E, ironicamente, a escatologia
eminesciana é colorida e apocalíptica, num cenário de neblina
de prata (v. 4), relâmpagos vermelhos e estrelas roxas (v. 5), com
armadas de nuvens negras rasgando luzes vermelhas em céus
esverdeados (v. 13-15).12
A dimensão mítica é explícita desde o primeiro momento,
e seu mito é fundamentalmente apotropaico. Para nós, amuleto
literário que lembra os nocivos efeitos do exagero, ou, antes, os
efeitos destruidores da própria natureza. Dentro da narrativa,
o sol e os céus (e também a lua, de certa forma) são forças
capazes de afastar o mal (pintado no comportamento ébrio do

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velho furacão). As nações das estrelas impedem-no, irritadas,


de continuar sua destruição (v. 37).
Evoca-se religiosidade desde o título, mesmo que para ser
negada, e, não sem querer, todo o enredo (o mythos aristotélico)
se passa no céu, e no interior das montanhas semelhante a
regiões infernais. São o furacão, o sol, as estrelas, a lua, o mar,
o frio como deuses antropomórficos de mitologias antigas. São
símbolos originais de crenças arraigadas. Também, como um
auto de fé às avessas, o poema é um relato hagiográfico de um
dia na vida desse pobre “diabo”, desse santo ao contrário, que,
em algum momento, nos desperta pena e empatia.
Embora não seja relato histórico, toda a fábula é
historicizada com humor. O furacão é um velho qualquer, e não
parece que são de hoje seus problemas. E essa a é maior tensão
do poema: natureza v. história. A palavra velho (bătrân) ocorre
quinze vezes no poema de 84 versos. A mitologia de Eminescu
encontra, em seu caminho, “companhias seguradoras” (v. 27),
“escrivães de subprefeituras” (v. 37) e um “cara de pau segundo
a moda hoje em dia” (v. 32). A caracterização do velho ciclone
lembra um pastor moldavo daquele tempo, vestindo cojoc (um
casaco de pele de ovelha) e dançando mocăneasca (tradicional
dança da região da Moldávia). Além disso, toda a geografia
dessa história mítica é atual e próxima. O Olimpo fica nos
Cárpatos. As águas são do Pacífico.
Assim, valendo-se de um tipo de verso antigo, estranho às
histórias populares, Eminescu funde o antigo e o novo, o elevado
e o popular. Com o hexâmetro datílico de feição clássica, de certa
forma, o autor bucovino cria uma narrativa que une todas as
dimensões do conto popular com uma prosódia ironicamente
arcaizada, evocando uma melancólica filosofia particular.
Apresentado o poema, vale dizer que Mihai Eminescu
nasceu Michael Eminovici em 1850, em Botoșani, na região
romena da Moldávia, outrora conhecida como Bucovina.
Foi poeta, escritor de prosa ficcional, de teatro e jornalista, e
ainda escreveu sobre filosofia, sociologia, história, filologia,
história da arte, linguística, matemática, física e educação.
É considerado como uma das mais importantes figuras da
literatura romena até hoje. Aos dezenove anos, foi enviado a
estudar em Viena, na Faculdade de Filosofia e Direito, como
“ouvinte”, já que não possuía nenhum grau de bacharel.
De 1872 a 1874, estuda em Berlim, com ajuda financeira da

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sociedade literária romena Junimea (A Juventude), e não recebe


qualquer diploma; não parece que se importava muito com
isso. Publica poemas e escreve para jornais, aproximadamente,
por quinze anos, de 1870 a 1885. Morre, em 1889, em função
de complicações cardíacas depois de várias internações por
problemas psiquiátricos.
Como aponta Tcacenco (2015, p. 296), os críticos costumam
dividir sua obra em três etapas. A primeira, entre 1866 e 1870,
quando se nota forte influência dos “pașoptistas”, românticos
defensores de uma certa ideologia nacional desenvolvida após a
Revolução de 1848. Uma segunda fase, entre 1870 e 1881, em que
se observa, na obra de Eminescu, uma visão schopenhaueriana
do mundo, “construindo universos compensatórios para
encontrar refúgio na poesia”. E um terceiro estágio, entre 1881
e 1883/85, quando o poeta busca transgredir o romantismo,
“realizando uma síntese entre uma visão hegeliana e uma
visão schopenhaueriana do mundo”.
Assim, para finalizar essa apresentação do poema, eu diria
que Mitologicale é schopenhaueriano quando não diferencia
nem tempo nem espaço, buscando uma fenomenologia da
unidade. A narrativa mítica constitui-se pelas formas a priori
da sensibilidade, mas, unidos, tempo e espaço, constituem-se
em coisa-em-si (o noumenon de Kant); a vontade do protagonista
furacão do poema é retrato melancólico de um mundo cego e
irracional, em que, ao contrário do mundo otimista de Ruben
Dario, não veremos “o sair do sol num triunfo de liras”, como
diz o verso da epígrafe, mas sim um triunfo da vontade como
manifestação do próprio fenômeno.

2. TRADUÇÃO
Ainda sobre a união de tempos e espaços, mas já
pensando em questões de tradução, cito, epigraficamente,
Marco Lucchesi, numa leitura mais expressionista, que explica
muito sensivelmente a relação da poética eminesciana que
relaciona dácios e latinos:
Mihai Eminescu contribuiu de forma extraordinária
para o alargamento do horizonte espiritual europeu
como ‘conquistador de novos mundos’. Tal como Camões,
Eminescu explorou uma vasta e selvagem ‘terra incógnita’
e transformou em valores espirituais experiências

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anteriormente consideradas como desprovidas de significado.


Camões enriqueceu o mundo latino com paisagens
marítimas, com flores estranhas, com belezas exóticas.
Eminescu enriqueceu o mesmo mundo com uma novidade
geográfica, a Dácia e com novos mitos [...]. (LUCCHESI, 2011)

O poeta romeno sobrepõe ao ritmo greco-latino do


verso hexamétrico uma outra tonalidade; é a melodia popular
moldavo-romena que vamos escutar nos troqueus e dátilos de
Eminescu: há todo um jogo de prosódia e ritmo também. E, na
tradução, opera-se nova união espaço-temporal e rítmico-tonal.
Agora devemos ouvir, em hexâmetros de língua portuguesa,
esse canto daco-latino.
Leiamos o poema em sua tradução. Apenas após a
leitura, comentarei propriamente problemas de ritmo e verso, e
algumas questões de tradução do ritmo do verso. Faço algumas
notas na tradução, que são normalmente de caráter explicativo
acerca de certas palavras ou de referências geográficas e
culturais mais específicas.

MITOLOGICAIS13

Sim! das portas soberbas dos montes, das rochas recurvas,


Parte o senil furacão, montando no topo das nuvens
Os refulgentes cavalos e o carro que em fuga troveja.
Como neblina de prata as barbas flutuam nos ventos,
São de vento os cabelos, que levam sulcada coroa,
5 Toda repleta de raios vermelhos e roxas estrelas.
Fundo gargalha o velho quando vê que as montanhas
Deixam cair os chapéus de pedra tentando acenar-lhe...
Riem-se as árvores velhas que ao fundo zunindo lhe acenam,
10 Plátanos altos, os velhos carvalhos e eternos pinheiros.
Já não mais rumorejam as águas azuis contra a orgia,14
Que provocava o rei velho: na festa bêbada e cega,
Leva uma tropa de nuvens aos mares... e negra é a armada,
Rasgam-se em toda parte15 as vermelhas luzes solares,
15 Longas fileiras num céu verdejante rápido voam.
Passa por elas aquele velho, mexendo nas barbas,
Pelos cavalos fulgentes no velho coche guiado,
Que um barulho horroroso fazia, crendo que o mundo
É que estava saindo da velha e eternal conjuntura.
20 Diz o sol — o velho está bêbado terrivelmente –
Nada incrível – bebeu o Pacífico quase todinho,
Não lhe fermenta bem na barriga a amarga bebida.
Mas eu tenho culpa... enchi-lhe os copos de nuvens
De águas profundas do mar, pintadas de luzes vermelhas –
25 Quem saberia, diabos, que essas coisas faria!

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

Ah! o vovô beberrão podia ter destruído


Todas as companhias seguradoras num dia.16
Sobre as nuvens estica-se o sol pondo a língua pra fora
E com os raios coça a barba do velho monarca.
30 — Ha-haha! Diz o velho, rindo, o que foi, Cinderelo?17
Jovem, hum? Jovem por mais de mil anos tenho te visto,
Lembras um cara de pau segundo a moda hoje em dia,18
Pois não entendo como és jovem com mais de mil eras.
— Cala-te, velho, acorda, vai-te daqui, sem vergonha...
35 Vê o estado em que estás, a coroa está nas orelhas
E com essa festa tonta destróis o planeta!
Mas irritou os governos das loiras nações das estrelas,
Ah! nos campos azuis não fizera decente caminho...
E a carruagem retorna e o velho maldoso se atola.
40 Quase que perde suas botas na lama das nuvens.
Ah, quem se importa?! Pisa os céus a dançar mocanesca19
Faz um cata-vento20 no ar segurando a cabeça.
Dá cambalhota e, mordido por uma pulga de raio,
Coça-se em filas de árvores como em cercas de vime.
45 De vergonha fogem as nuvens coradas e o vento
Entre as florestas se esconde... E o furação de ressaca
No castelo de rochas tropeça, que lhe abre as portadas
Para acolher o velho doente em vestíbulos cinzas.
Da cabeça ele tira a coroa e pendura num gancho,
50 Lá cintila na noite bela e vermelha – um raio
Cessa no frio das nuvens. Estende o capote de pele21
Sobre o forno... as botas descalça e negros farrapos22
Como terrenos arados desdobra no Lago de Fogo23
Para secar... O cinto descinge e lhe vaza de dentro
55 Quente facho amarelo num velho penico queimado,24
Que era um enorme porão... e na cama de rica neblina,
Ele estira seus velhos membros régios e ronca.
Uiva até as funduras do globo: as negras cavernas
E as raízes dos montes tamanhos forte estremecem
60 Pelo ronco do velho kaiser.25 Do lado de fora
Vês um frio, velho e avarento, de face sombria,
Carregando a alvorada de ouro em sacos de trevas
Como roubasse rubis. De pouco em pouco escurece...
Para acalmar as águas do mar, o sol se debruça,
65 Brando conforta-lhe a face azul olhando no fundo
Das luminosas ondas e o seio lhe acaricia26
Co’ ouro todo dos raios seus. Olha agora pra terra...
Todas as flores erguem suas singelas e amáveis
Frontes e os olhos cheios de lágrimas sem serventia...
70 Olha agora os jardins, cerejeiras em alamedas,
Cheias de flor e de frutos, acácias doces no aroma.
Mais adiante caminha uma jovem de veste azulada,
Louro o cabelo preso em tranças lhe cai nas espáduas...
Leva na mão uma flor, a lembrar Margarida de Fausto,27
75 A sussurrar: bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, ah!
Ah! que boba... tão amorosa... linda e – inocente,

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Ela, que espera o amado, escrivão da subprefeitura,


Moço cheio de sonhos e ingênuas canções decoradas...
Pôs-se o sol; e a lua, galinha gorda e redonda,
80 Vai pelo espaço do céu azul e suave, deixando
Rastros de ouro das patas como estrelas luzentes.
E se levanta o velho no dia seguinte e escala
Do Rarau28 as montanhas, só de pijama e descalço,
E – sonolento – olha pro sol, coçando a cabeça.

MITOLOGICALE29

Da! din porțile mândre de munte, din stânci arcuite,


Iese-uraganul bătrân, mânând pe lungi umeri de nouri,
Caii fulgerători și carul ce-n fuga lui tună.
Barba lui flutură-n vânturi ca negura cea argintie,
5 Părul îmflat e de vânt, și prin el colțuroasa coroană,
Împletită din fulgerul roș și din vinete stele,
Hohot-adânc bătrânul când vede că munții își clatin
Și-și prăvălesc căciule de stânci când vor să-l salute...
Codrii bătrâni râd și ei din adânc și vuind îl salută
10 Paltenii nalți și bătrânii stejari și brazii cei vecinici.
Numai marea-albastră murmură-n contra orgiei,
Care bătrânul rege-o făcea: -n beția lui oarbă,
El mân-oștiri de nori contra mării... ș-armia-i neagră,
Ruptă pe-ici, pe coleà de-a soarelui roșă lumină
15 Șiruri lungi fug repede grei pe cerul cel verde.
Și netezindu-și barba, trece prin ei uraganul
Dus de fulgerătorii cai în bătrâna căruță,
Care scârțâie hodorogind, de-ai crede că lumea
Stă să-și iasă din vechile-i vecinice încheieture.
20 — Groaznic s-a îmbătat bătrânul — soarele zice:
Nu-i minune — a băut jumătate d-Oceanul Pacific
Rău îi mai îmblă prin pântece-acum băutura amară.
Însă-s eu de vină... c-umplut-am de nouri păhare
Cu apele mării adânci, boite cu roșă lumină —
25 Cine dracul știa acum că de cap o să-și facă!
Ah! moșneagul bețiv e-n stare-ntr-o zi să ruine
Toate societățile de-asigurare din țară.
Soarele-și bagă capul prin nori și limba și-o scoate
Și c-o rază gâdilă barba bătrânului rege.
30 — Hehe! zice bătrânul, râzând, ce faci tu, Pepeleo?
Tânăr, hai? De mii de ani tot tânăr te văd eu,
Pare-mi că dai pe obraz cu roș după moda de astăzi,
Altfel nu-nțeleg cum tânăr de-o mie de evi ești.
— Taci, moșnege făr’ de obraz, te du, te trezește...
35 Vezi în ce stare te afli, coroana îți stă pe-o ureche
Și cu veselia ta proastă lumea ruini tu!
Însă-a popoarelor blonde de stele guverne-îndărătnici,
Vai! nu făcuse șosea cumsecade pe câmpii albaștri
Și se răstoarnă carul și rău se-nglodează bătrânul.

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40 Mai că era să-i rămâie ciubotele-n glodul de nouri.


Hei, ce-i pasă! El norii frământă jucând mocăneasca
Și pe-un vânt l-apucă de cap, făcându-i morișcă.
Se tăvălea peste cap și, pișcat de-un purec de fulger,
Se scărpina de-un șir de păduri ca de-un gard de răchită.
45 Norii roșesc de rușine și fug iar vântul se culcă
Între codri și munți... Uraganul mahmur poticnește
Spre castelul de stânci, ce-și deschide uriașa lui poartă,
Spre-a-l primi pe bolnavul bătrân în surele hale.
El își ia coroana din cap și în cui o atârnă,
50 De sclipește-n noapte frumoasă și roșă — un fulger
Încremenit în nouri. Cojocul l-anină
El de cuptor... ciubote descalță și negrele-obiele
Cât două lanuri arate le-ntinde la focul Gheenei
Să se usuce... Chimirul descinge și varsă dintr-însul
55 Galbeni aprinși într-un vechi căuș afumat de pe vatră,
Mare cât o pivniță... -N patu-i de pâclă-nfoiată,
Regele-ntinde bătrânele-i membre și horăiește.
Până-n fundul pământului urlă: peștere negre
Și rădăcinile munților mari se cutremură falnic
60 De horăitul bătrânului crai. Iară-afară
Vezi un ger bătrân și avar cu fața mâhnită,
Cărăbănind al zorilor aur în saci de-ntuneric
Ca să-l usuce-n rubine. Cu-ncetul, cu-ncetu-nserează...
Soarele, ca să împace marea, la ea se apleacă,
65 Lin netezește-a ei față albastră și-adânc se uită
În luminoasele valuri a ei și sânu-i dezmiardă
Cu tot aurul razelor lui. La pământ se mai uită...
Florile toate ridică la el cochetele capuri
Copilăroase și ochii lor plini de zădarnice lacrimi...
70 Pe grădini se mai uită, pe-alei de vișini în floare
Și de cireși încărcați, de salcâmi cu mirosul dulce.
Pe-acolo se primblă o fată-n albastru-mbrăcată,
Părul cel blond împletit într-o coadă îi cade pe spate...
Ca Margareta din Faust ea ia o floare în mână
75 Și șoptea: mă iubește... nu mă iube... mă iubește!
Ah! boboc... amabilă ești... frumoasă și — proastă,
Când aștepți pe amant, scriitor la subprefectură,
Tânăr plin de speranțe, venind cu luleaua în gură...
Soarele-a apus, iar luna, o cloșcă rotundă și grasă,
80 Merge pe-a cerului aer moale ș-albastru și lasă
Urmele de-aur a labelor ei strălucind ca stele.
Iar de a doua zi se scoală bătrânul și urcă Rarăul
Numai în cămeșoi, desculț și fără căciulă
Și se scarpină-n cap — somnoros — uitându-se-n soare.

Gragoatá, Niterói, v.24, n. 49, p. 457-481, mai.-set. 2019 467


Beethoven Alvarez

3. HEXÂMETRO DATÍLICO: POESIA


ROMENA E TRADUÇÃO
Creio ser bem possível identificar que, nos 84 versos desse
poema, há um recorrente ritmo acentual ternário, enfatizado nos
finais de verso. Uma sequência final ...(-tan-)tan-TÁ-tan-tan-TÁ-tan,
reiteradamente, marca uma específica sequência de encadeamento
de acentos tônicos e átonos das palavras que encerram os versos.
Nessa cláusula, podemos identificar um determinado “ritmo datílico”
próprio do hexâmetro, pelo menos, como entendemos hoje.
Grosso modo, o que antigos gregos e romanos chamaram
de “hexâmetro datílico” era um verso composto por seis unidades
métricas “datílicas”. Essas unidades métricas os antigos nomeavam
“pés”, e o “pé datílico” se configurava como uma sequência de uma
sílaba longa e duas breves.30 Utilizando uma notação convencional,
podemos indicar uma sílaba longa com o símbolo de “mácron”
(–) e uma sílaba breve com a “braquia” (v), assim um dátilo seria
notado como – v v.
Na prática, um hexâmetro é normalmente descrito de acordo
com o seguinte esquema silábico: – v v / – v v / – v v / – v v / – v v
/ – v, com seis pés datílicos (sendo o último uma espécie de dátilo
incompleto). Nessa estrutura, na ampla maioria das vezes, apenas
nos quatro primeiros pés, pode ocorrer a substituição das duas
sílabas breves por uma longa, sem alterar o compasso de quatro
tempos, já que, no sistema fonológico e versificatório greco-romano,
uma sílaba longa equivale a duas breves, criando-se, assim, um pé
formado por duas sílabas longas, que recebe o nome de espondeu
(– –). Ainda tratando de nomenclaturas, o sexto pé “cortado”, no
fim, chama-se troqueu (– v), que poderia, indiferentemente ser
realizado como espondeu.
Essas possibilidades métricas faziam com que um hexâmetro
datílico pudesse variar, normalmente, entre 13 sílabas (4 espondeus,
1 dátilo, 1 troqueu) até 17 sílabas (5 dátilos, 1 troqueu), mas sempre
mantendo a mesma duração, compasso e cadência, uma vez que o
verso antigo tinha seu ritmo marcado pelo sequenciamento esperado
de sílabas longas e breves (um tanto independentemente do número
de sílabas e posicionamento de acentos tônicos).31
Os fundamentos da versificação greco-romana desse hexâmetro
“quantitativo” empregado nos poemas épicos da Antiguidade greco-
romana, com certeza, eram conhecidos por Eminescu. Além de
compor o poema que ora estamos comentando, também escreveu

Gragoatá, Niterói, v.24, n. 49, p. 457-481, mai.-set. 2019 468


Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

outros em hexâmetros e ainda traduziu os primeiros versos da Ilíada


(19 versos, em alexandrinos) e da Odisseia (22 versos, em hexâmetros)
por volta de 1877, porém publicados apenas em 1932, e alguns poemas
de Horácio.32 Por críticos e historiadores da literatura, é considerado
como o precursor da aclimatação do hexâmetro datílico (e outros
versos antigos) na poesia romena. Será apenas em 1896 que G. Coșbuc
publicará sua tradução da Eneida, de Virgílio, em hexâmetros, o
primeiro magnum opus em hexâmetros romenos;33e, depois, só
em 1912,34 quase 40 anos depois da composição de Mitologicale,
aparecerá a primeira tradução da Ilíada em hexâmetros romenos,
feita por George Murnu, que se firmará como seminal tradução ao
longo do século XX na Romênia, como atestam Baldilita (2014,
p. 138-141) e Gàldi (1964, p. 119-120).35 Contudo, nem Eminescu,
Coșbuc ou Murnu utilizaram um hexâmetro quantitativo, que
prezasse por variações durativas de sílabas, mas sim valeram-se do
que poderíamos chamar de um hexâmetro acentual, aos moldes do
hexâmetro alemão de Klopstock e Voss.36
De fato, no que poderíamos chamar de literatura europeia,
traduzir e compor em hexâmetro nacionais (num sistema acentual)
virou uma febre na segunda metade do século XIX, depois de séculos
de outras tentativas de recriar o metro quantitativo greco-romano.
Essas tentativas anteriores parecem não ter sido bem-sucedidas, como
relata Saavedra Molina (1935, p. 27 et seq.), porque tentaram forjar um
sistema rítmico baseado na duração das sílabas que não era natural
a línguas cuja versificação era mormente acentual.37
Foi realmente a partir de F. G. Klopstock e J. H. Voss, na
Alemanha, no fim do século XVIII, que o hexâmetro ganhou sua
conformação acentual e o cenário mudou. Na “técnica de Klopstock,
o troqueu (melhor do que o espondeu) substitui com frequência
o dátilo nos quatro primeiros pés do verso”38 (SAAVEDRA
MOLINA, 1935, p. 29). Na mesma época, Voss também emprega
técnica semelhante à de Klopstock, e sua tradução da Odisseia, que
data de 1781, ajudará a difundir esse método acentual (com troqueus e
espondeus no início do verso) na poesia germânica e além,39 vejamos,
por exemplo, os dois primeiros versos dessa Odisseia:

Sage mir,/ Muse, die/ Thaten — des/ vielge/ wanderten/ Mannes


Welcher so/ weit ge/irrt, — nach der/ heiligen/ Troja Zer/störung

Dize-me, Musa, dos feitos – daquele herói viajante


Que tão longe vagou – depois da queda de Troia sagrada

Gragoatá, Niterói, v.24, n. 49, p. 457-481, mai.-set. 2019 469


Beethoven Alvarez

Empregando esse tipo de hexâmetro, em 1783, Voss


também publica um de seus mais conhecidos poemas, Luise:
Ein ländliches Gedicht in drei Idyllen, um poema idílico narrativo
apresentando bucolicamente a vida da família de um pastor
alemão em três cantos. Esse poema inspirou ninguém
menos que J. W. von Goethe a compor, em 1796, seu poema
Hermann und Dorothea, também um idílio em nove cantos
hexamétricos para contar a história desses personagens
homônimos durante a invasão dos franceses no Eleitorado
Palatino, ocorrida em 1792.40
Mesmo sendo Voss um dos grandes difusores desse
hexâmetro, muito em função de suas traduções, da Odisseia
(1781), da Ilíada (1793), de obras de Virgílio (1789), de Ovídio
(1798), de Horácio (1806) etc., quem é muitas vezes considerado
o πρῶτος εὑρετής (prôtos heuretḗs, ou “primeiro inventor”)
do hexâmetro acentual é mesmo Klopstock, que publicou,
anteriormente, entre 1748 e 1773 o poema épico Der Messias
(O Messias), composto por quase 20 mil versos hexamétricos
distribuídos em vinte cantos – muito inspirado (em tema e
tom) pelo Paraíso Perdido, de John Milton.41
Contudo, depois desse fim de século XVIII que
experimentou bastante o hexâmetro acentual, apenas a partir
do final da primeira metade do XIX, esse metro voltará a ser
substancialmente utilizado. Diversos nomes da literatura
alemã se valeram do hexâmetro nesse período. Em inglês,
para ficar apenas no mundo anglo-saxão, significativos e
também influenciadores são o original Evangeline: a Tale of
Acadie, de Longfellow (1847), e a tradução de Hermann und
Dorothea (1850) e da Ilíada (1861), de J. I. Cochrane; além das
traduções de duas passagens da Ilíada (III.234-244 e VI. 394-
502) de E. C. Hawtrey (1843).42
Como já dito, na poesia romena, é Eminescu o primeiro
a utilizar hexâmetros com base no modelo de Klopstock e
Voss,43 muito embora a publicação do Mitologicale tenha sido
tardia (1902).
No poema em questão, o poeta moldavo-romeno cria 84
hexâmetros que suportam dátilos ou troqueus, indistintamente
nas primeiras quatro sedes, e priorizam o dátilo no quinto
pé (apenas o v. 65 apresenta um troqueu nessa posição). Para

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

ilustrar essa prática, seguindo Diaconescu (2009, p. 138),


apresento a escansão dos primeiros cinco versos do poema:44

Da, din/ porţile/ mândre de/ munte, din/ stânci arcu/ite


–v/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Iese-ura/ganul bă/trân, mâ/nând pe lun/gi umer’ de/ nour’
–vv/–vv/–v/–vv/–vv/–v
Caii/ fulgeră/tor’ şi/ carul ce-n/ fuga lui/ tună.
–v/–vv/–v/–vv/–vv/–v
Barba lui/ flutură-n/ vântur’ ca/ negura/ cea argin/tie
–vv/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Împle/tită din/ fulgerul/ roş şi din/ vinete/ stele.
–v/–vv/–vv/–vv/–vv/–v

Note-se o ritmo artificioso gerado pelo descasamento entre


ritmo sintático-semântico e a acentuação ternária ou binária do
verso. Logo no primeiro verso “Da, din porţile mândre de munte,
din stânci arcuite”, o ritmo datílico, – v / – v v / – v v / – v v / – v
v / – v, sobrepõe-se ao mais natural: – , v – v v , – v , ’ – v , v – ,
v v – v.45 No verso 5, recurso recorrente no restante do poema é
empregado na acentuação de Împletită, acentuada como – v / –
v, no lugar de v v – v, o que ocorre ainda com încremenit (v. 36),
cărăbanind (v. 62), copilăresc (v. 69) e em outros passos, quando se
acentua a primeira sílaba de um polissílabo que está na primeira
posição do dátilo. Semelhantemente, pode ocorrer monossílabo
átono que se acentua nessa posição, como em:

Şi-ş’ prăvă/lesc că/ciula de/ stânc’ când/ vor să-l sa/lute (v. 8)
–vv/–v/–vv/–v/–vv/–v

Aqui a conjunção şi, átona, se torna tônica na primeira


posição do primeiro pé; o mesmo ocorre nos versos 16, 29, 36,
39, 42, 59, 71, 75 e 84. Além da utilização de troqueus, essa é
umas características mais marcantes do verso de Eminescu.
Destaco, ainda, que, entre esses cinco primeiros versos,
apenas o verso 4 é completamente datílico; todos os demais
apresentam um ou dois troqueus nos primeiros quatro pés.
Parece-me muito programático que logo o primeiro pé do
primeiro verso seja um troqueu num afirmativo “Sim, das
portas soberbas”. Depois do “sim, das” se abrem as “portas” e
nos damos conta de que é um troqueu, porém o ritmo trocaico
não se repete, e a sequência do verso retoma as rédeas datílicas,

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Beethoven Alvarez

quando ficamos sabendo que estamos lendo um hexâmetro


datílico: “das/ rochas re/curvas”, tan-TÁ-tan-tan-TÁ-tan.
Além do v. 4, ocorrem apenas mais oito versos
completamente datílicos (são os versos 9, 22, 35, 37, 40, 59, 73,
81), e não há nenhum verso com quatro troqueus. Vejamos dois
exemplos de outros versos puramente datílicos:

Codrii bă/trân’ râd şi/ ei din a/dânc şi vu/ind îl sa/lută (v. 9)


–vv/–vv/–v v/– vv/–v v/–v
Rău îi mai/ îmblă prin/ pântece-a/cum bău/tura a/mară (v. 22)
–vv/–vv/–v v/– vv/–v v/–v

Na tradução que propus acima, adotei mais ou menos


os mesmos parâmetros do verso de Eminescu: (1) aceitação
de troqueus nos primeiros quatro pés, tentando evitar
espondeus, (2) tonicização da primeira sílaba de polissílabos
ou de monossílabos átonos quando na primeira posição
longa do dátilo (especialmente no primeiro pé, mas não só),
e (3) despreocupação com o casamento regular entre pausas
sintáticas e pausas rítmico-versificatórias. Vejamos, assim, os
dez primeiros versos da tradução escandidos:

Sim! das/ portas so/berbas dos/ montes, das/ rochas re/curvas,


–v/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Parte o se/nil fura/cão, mon/tando no/ topo das/ nuvens
–vv/–vv/–v/–vv/–vv/–v
Os reful/gentes ca/valos e o/ carro que em/ fuga tro/veja.
–vv/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Como ne/blina de/ prata as/ barbas flu/tuam nos/ ventos,
–vv/–vv/–v/–vv/–vv/–v
São de/ vento os ca/belos, que/ levam sul/cada co/roa,
–v/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Toda re/pleta de/ raios ver/melhos e/ roxas es/trelas.
–vv/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Fundo gar/galha o/ velho/ quando/ vê que as mon/tanhas
–vv/–v/–v/–v/–vv/–v
Deixam ca/ir os cha/péus de /pedra ten/tando ace/nar-lhe...
–vv/–vv/–v/–vv/–vv/–v
Riem-se as/ árvores/ velhas que ao/ fundo zu/nindo lhe a/
cenam,
–vv/–vv/–vv/–vv/–vv/–v
Plátanos/ altos, os/ velhos car/valhos e e/ternos pi/nheiros.
–vv/–vv/–vv/–vv/–vv/–v

Esse procedimento não é completamente original ou


novo na tradução do hexâmetro em português. Muito pelo

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

contrário. Adoto-o, em grande parte, seguindo uma tradição


mais recente de tradução do hexâmetro (forjada com base na
tradução do verso antigo grego ou latino) que procede mais
ou menos assim (com variações).
Rodrigo Gonçalves, no artigo “L’hexamètre au Brésil: la
tradition de Carlos Alberto Nunes” (2014), traça uma história da
tradução do hexâmetro no Brasil, citando diversos exemplos
de traduções hexamétricas, suas e de outros tradutores, como
João Angelo Oliva Neto e Leonardo Antunes.46
O próprio Oliva Neto (2014) realiza profunda exegese
do método de Carlos Alberto Nunes (1897-1990), considerado
o “pai” do hexâmetro brasileiro, que traduziu a Odisseia
(1941), a Ilíada (1945) e a Eneida (1981) no “metro original”.47
O pesquisador identifica três características básicas no verso
de Nunes: 1. não aceitação de troqueus no lugar de dátilos, 2.
emprego da cesura, normalmente heptemímera, e 3. as cesuras
dividem o verso em alguma pausa semântica que pressupõe
mudança de tom.48 Adicionalmente, provê um quadro das
práticas recentes de tradução do hexâmetro no Brasil até então,
que apresento aqui de forma adaptada e sinótica:
1. Rodrigo Tadeu Gonçalves, tradução coletiva do excerto das
Metamorfoses (Canto X, v. 1-297), de Ovídio, servindo-se do
hexâmetro de Nunes, ampliando o emprego da anacruse.
2. Leonardo Antunes, que utilizou mais rigidamente o
metro para verter os hexâmetros da elegia arcaica grega.
3. Érico Nogueira, que, um pouco mais distante da
regularidade do verso de Nunes, empregou um verso de
seis sílabas tônicas, a que chama “hexatônico”, para traduzir
os idílios hexamétricos de Teócrito de Siracusa.49 (OLIVA
NETO, 2014, p. 202 )

O tipo de hexâmetro praticado a partir do modelo


de Carlos Alberto Nunes, algumas vezes recebe o nome de
hexâmetro “núnico”,50 cuja característica mais marcante é a
regular acentuação nas 1ª, 4ª, 7ª, 10ª, 13ª e 16ª sílabas, criando
um verso com, efetivamente, seis células datílicas.
Desse modelo deriva uma versão que aceita substituições
nos quatro primeiros pés por células rítmicas de duas sílabas
(troqueus ou espondeus). Gonçalves, quando fala de tradução
de Lucrécio, faz um relato que ajuda a perceber como,
partindo do verso de Nunes, tradudores brasileiros passam
a se valer dessas substituições:51

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Beethoven Alvarez

Após a avaliação das versões de hexâmetros flexíveis de


Brunet e Merrill e, no Brasil, das práticas de Antunes,
Nogueira e Tápia, fiquei cada vez mais convencido de
que alguns dátilos poderiam ser substituídos por pés
binários, que poderiam ter a segunda sílaba alongada na
performance, e isso seria mais agradável aos ouvidos do
público. (GONÇALVES, 2015, p. 8).

Vale lembrar que Guilherme Flores, em 2011, na


tradução em dístico alemão de Tibulo 3.20, já havia utilizado
em português o hexâmetro núnico adaptado ao modelo de
Klopstock-Voss (ou seja, com substituições de pés bissilábicos):
“Sempre o ru/mor su/ssura os pe/cados da/ minha me/nina”
(– v v / – – / – v v / – v v / – v v / – v).52
Feito este breve quadro dos modos de transposição
hexamétrica, destaco novamente que aceitei aqui, nesses
hexâmetros “romeno-brasileiros”, muito frequentemente os
troqueus, às vezes até criando versos completamente trocaicos
nos quatro primeiros pés (“Mas eu/ tenho/ culpa... en/chi-
lhe os/ copos de/ nuvens”, v. 23); contudo, evitei ao máximo
a anacruse inicial (que não ocorre na verdade, uma vez que
não há nenhuma segunda sílaba acentuada). Eventualmente,
recorri à atonicização de uma segunda tônica numa sequência
de duas tônicas lado a lado, como em “se/gundo a/ mód(a)
hòj(e) em/ dia”; mas, por outro lado, contei com a tonicização
de semitônicas em polissílabos, como em “bêbado/ terrivel/
mente (v. 20), “e o/ seio/ lhe acari/cia” (v. 66) e “escri/vão da/
subprefei/tura” (v. 77).
Assim, em tom de consideração final, devo dizer que me
vali de toda essa recente tradição brasileira do verso hexamétrico
em tradução (que começa com Nunes, de quem agora desejo me
tornar signatário), com toda sua diversidade e riqueza, para propor
esta tradução do poema de Mihai Eminescu, do possivelmente
primeiro poema em hexâmetros romenos, buscando também seguir
de perto o modelo romeno-germânico do hexâmetro, aceitando
troqueus e tonicizando sílabas átonas em certas posições, sem rígida
preocupação com a coincidência de cortes sintático-semânticos e
pausas rítmicas, num esforço que, até onde sou capaz de identificar,
configura-se como a primeira tradução de hexâmetros romenos em
hexâmetros brasileiros.53
Em forma de addendum, por fim, registro que o final do século
XX e, principalmente, a primeira década do XXI, experimentam uma

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

crescente corrente de tradução em hexâmetros.54 Em andamento no


Brasil hoje, tenho notícia da tradução de Lucrécio (De Rerum Natura),
por Rodrigo Gonçalves; de Horácio (toda obra em hexâmetro), por
Guilherme Flores; e de Virgílio (Geórgicas), por Arthur Santos.55

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Abstract
Mihai Eminescu’s Romanian Hexameters:
translation to Portuguese and comments
on the poem ‘Mitologicale’
In this article, I present a translation of Mihai
Eminescu’s poem Mitologicale. Eminescu
(1850-1889) is one of the most important
Romanian poets. This sui generis poem
was published, posthumously, for the first
time in 1902, in the journal Sămănătorul
(The Sower). Nevertheless there are two
manuscripts dating from the time Eminescu
was in Berlin which testify that the poem
was written when the author was then 23
years old in 1873. In addition, I propose an
analysis of the poem discussing its parodical
treatment of the mythical narrative and I
observe Emineuscu’s ability to merge the
old and the new, the high and the popular.
Using the classic-looking dactylic hexameter,
the Bucovian author creates a narrative that
unites all dimensions of the Romanian folk tale
with an ironically archaic prosody, evoking
a particular melancholic philosophy. At the
end, I comment on rhythm and verse issues,
and some questions on translating rhythm,
presenting a brief balance of the translational
and writing practices of the dactylic hexameter.
Keywords: Romanian poetry, Mihai
Eminescu, dactylic hexameter, poetic
translation, versification.

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

NOTAS
1
Hexâmetro datílico de Ruben Dario, de 1888, “ya veréis el salir del sol em un triunfo de liras” (v. 14), extraído de Dario (1982).
Todas as traduções, de línguas modernas ou antigas, são de minha autoria.
2
No n. 32 da revista, de 3/11/1902, nas páginas. 82-83. Cf. Opere I, p. 915. Citarei como Opere, neste texto, a edição de D.
Vatamaniuc (Univers Enciclopedic, 1999).
3
Preludii, Chendi (1903, p. 44-46).
4
Na edição de Perpessicius, de 1944-1983, promovida pela Academia Romana, o poema aparece nos volumes IV (p. 197-
199) e V (p. 167-170).
5
Tudo ganha traços alusivos mais triviais quando pensamos nos substantivos plurais com morfologia parecida: zaharicale
(“guloseimas”, de zahar, “açúcar”) e puricale (“frutas”), cf. Botez (2004).
6
Boltaşu Nicolae (2017) oferece inteligente análise do poema, observando uma intrínseca relação entre ironia e
desconstrução. Ainda adiciona que percebe no poema imagens de mundos virtuais, espaços cibórguicos e efeitos
especiais próprios do cinema. Visão com que concordo, e o que impressiona é que o cinema só seria inventado uns 20
anos após a composição do poema.
7
“Fantasticul e structurat dual şi în funcţie de atitudinea în faţa imaginarului; se vorbeşte astfel despre unfantastic macabru (generat
de teama în faţa imaginarului) şi de un fantastic comic (ca eliberare în faţa imaginarului, din care rezultă convenţionalismul ficţiunii).
Fie că e tratat în registru ironic, prin alegorizarea vechilor mituri [...], fie în registru umoristic, când mitul trece în „mitologicale”,
fantasticul se întâlneşte cu miraculosul într-un tot unitar, popular şi cult în acelaşi timp.”
8
Digo “em tese” porque há enorme distinção em termos prosódicos, rítmicos, éticos e poéticos entre o hexâmetro de
Homero, num mundo grego de poesia oral do séc. VIII a.C., e o hexâmetro romeno de Eminescu, no fim do XIX.
9
Carregado pelo rei sapo, um rato se afoga no lago quando uma cobra aparece. Motivados pela história do crime, os
ratos declaram guerra aos sapos. Os deuses se reúnem e, por fim, Zeus manda um exército de caranguejos para ajudar
os sapos na batalha que dura até o pôr-do-sol.
10
Contudo, como aponta na passagem Diaconescu, os “alguns hexâmetros” de Eminescu já foram considerados apenas
como um “rascunho”, sem grande valor (um ‘bruion’, fara mare valoare), por G. Ibrăileanu.
11
“În poemul Mitologicale, parodia interferează planuri multiple: 1. axiologice: lumea înaltă este coborâtă în lumea umilă; 2. temporale:
vremurile mitice fuzionează cu cele moderne; 3. topice: Olimpul e înlocuit cu Rarăul, iar Uraganul este un ţăran bucovinean şi 4.
stilistice: limbajul literar şi popular se întrupează în imagini hiperbolice şi originale.”
12
Tratando do poema Luceafarul (Vésper), Babuts (2011, p. 156) expõe uma visão que pode muito bem ser aplicada aqui:
“A concepção de Eminescu do universo justapõe a esfera humana à esfera cósmica para mostrar como, em comparação
com o universo, nosso mundo é como o de formigas ou pessoas microscópicas.” (“Eminescu’s conception of the universe
juxtaposes the human sphere with the cosmic sphere to show how in comparison with the universe our world is like that of ants or
microscopic people”).
13
Agradeço a Adalberto Müller, Arthur Santos, Carolina Paganine, Fabio Cairolli, Guilherme Flores, Leonardo Antues,
Rafael Brunhara e Rodrigo Gonçalves, que contribuíram com leituras dos rascunhos dessa tradução. Ao Fabio também
por me apresentar os hexâmetros castelhanos. Ao Rodrigo, pelas últimas discussões, e pelo texto e contato de Smaranda
Marculescu, a quem agradeço pela indicação gentil de bibliografia sobre versificação romena. Devo render graças, ainda,
a Susana Lages, cujo apoio foi de grande estímulo.
14
Marea (“o mar”), em romeno, é feminino. Traduzi então aqui marea-albastră (os mares azuis) por “águas azuis”.
15
“Em toda parte” no lugar de pe ici, pe coleà, que seria, mais propriamente, “aqui e acolá”.
16
Segundo o Dicţionar Juridic Online, a primeira companhia seguradora na Romênia foi fundada em 1871 e chamava
“Dacia”. Em 1873, foi fundada a segunda empresa de seguro, a “Romania”. O poema é escrito em 1873. Isso pode ajudar
a aumentar nossa percepção do nível de ironia. “Todas as companhias seguradoras” soa exagerado para um país que
tinha só uma ou duas naquele momento; igualmente, a “terrível” capacidade de destruição do furacão fica ironicamente
minimizada.
17
Pepeleo (do eslavo pepelŭ, em romeno cenușă, “cinzas”) é forma masculina de Pepelea. Pepeleo designa alguns personagens
populares e folclóricos de caráter cômico. Pepelea, em algum momento, foi associada a história da “Cinderela” (Cenușăreasă,
também de cenușă, “cinzas”). Lembre-se de que Cinderella em inglês traz o radical cinder, “cinzas”.
18
“Cara de pau” para obraz cu roș (algo como “bochechas vermelhas”), da expressão să-ți fie rușine obrazului!, que se diz
de alguém que fez algo inapropriado, parecido com (não) “ter vergonha na cara”.
19
“Mocanesca”, mocăneasca em romeno, refere-se a uma dança folclórica tradicional.
20
Morișcă pode ser simplesmente “moinho”, mas aqui, dado o tom folclórico e caricato, o velho furacão fica reduzido a
um infantil “cata-vento”, tradução também possível.
21
Cojoc, uma espécie de casaco feito de pele ovelhas, largo e com bolsos internos, utilizados por camponeses e pastores
moldavos.
22
Os “negros farrapos”, ou negrele-obiele, seriam suas “meias”.
23
Monte Hinom refere-se ao vale de Hinom, em Jerusalém. Associa-se, normalmente, a geografia da região com o “Lago
de Fogo” que aparece, por exemplo, em Apocalipse, 20, 14, como sinônimo do próprio Inferno. Monte Hinom em hebraico
diz-se Geh Ben-Hinom, literalmente “Vale do Filho de Hinom”, cuja forma helenizada era Geena. No vale, fora dos muros
da cidade, costumava-se queimar constantemente lixo e cadáveres. Em romeno, ocorre neste verso: la focul Gheenei, “no
fogo da Geena”.

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Beethoven Alvarez

24
Sim, é isso mesmo.
25
“Kaiser”, palavra de origem germânica para “rei”, “monarca”.
26
Note-se o tom erótico entre o sol (soarele, masculino), que, brando, conforta, e “águas do mar” (marea, feminino), que
têm a “face azul” e os seios acariciados.
27
“Margarida de Fausto”, ou Margarete, ou Gretchen, é a amada de Fausto, personagem do homônimo poema trágico
de Goethe.
28
Monte Rarau, grande cadeia de montanhas nos Cárpatos moldavos e transilvanos, em que se encontram as conhecidas
e turísticas Pietrele Doamnei (“Pedras do Senhor”).
29
O texto em romeno é aquele estabelecido em Opere I, p. 484-486.
30
Diz-se “longa” em relação ao tempo de pronúncia, ou por comportar uma vogal longa, ou por se tratar de sílaba
travada, ou seja, terminada em consoante, o que aumenta a percepção do tempo de pronúncia; “breve” seria a sílaba
não terminada em consoante, composta por vogal breve.
31
Ver Alvarez (2015) sobre uma discussão sobre a estruturação do hexâmetro da poesia épica oral da Grécia.
32
Cf. Opere I, p. 799-801. Cito os v. 1-2 da Odisseia, na tradução hexamétrica de Eminescu: “Spune-ne, muză divină, de mult
iscusitul bărbat, ce / Lung rătăci după ce-au dărâmat Troada cea sfântă.”
33
O primeiro verso é: “Lupte vă cânt și pe-oșteanul ce-odată din câmpii troianici”. É difícil atestar qualquer relação dos
hexâmetros de Coșbuc com os de Eminescu.
34
Em verdade, anteriormente, a importante tradução de G. Murnu já vinha sendo publicada em fascículos (1900-1905)
e teve uma primeira edição dos 12 primeiros cantos em 1906. Em 1998, quando o classicista Dan Sluşanschi retraduz a
Ilíada também em hexâmetros, emprega o mesmo primeiro verso da tradução de Murnu: “Cântă, Zeiță, mânia ce-aprinse
pe-Ahil’ Peleianul”. Cito a tradução desse mesmo verso da Ilíada feita por Eminescu em 1877, em alexandrino: “Cântă-ne,
zână, a lui Ahil Peleidul mânie”.
35
Cito Galdi (1964, p. 130): “Devemos a Eminescu excelentes hexâmetros (Mitologicais 1873); um pouco mais tarde
ensaia traduzir um epigrama de Ovídio (Donec eris felix), uma ode de Horácio (I, 11), e até alguns versos da Ilíada e da
Odisseia; essa última tradução (1877) parece preparar o caminho para os análogos esforços de Coșbuc” (“Nous devons
à Eminescu d’excellents hexamètres (Mitologicale 1873); un peu plus tard il essaya de traduire une épigramme d’Ovide
(Donec eris felix...), une épître d’Horace (I, 11), de même que quelques vers de l’Iliade et de l’Odyssée; cette dernière
traduction (1877) semble préparer la voie aux efforts analogues de Coșbuc”).
36
Ver, ainda, Oliva Neto (2014, p. 189).
37
Sobre o hexâmetro em Portugal, entre o séc. XVIII e o início do XX, ver Oliva Neto; Nogueira (2013).
38
Na “técnica de Klopstock, el troqueo (más bien que el espondeo) reemplaza con frecuencia al dáctilo en los cuatro primeros
pies del verso”.
39
Não conseguirei discutir aqui as particularidades das técnicas de Voss e Klopstock no que diz respeito ao emprego
de pés e cesura. Apenas cito Mendicino (2011) para apresentar a questão: “Klopstock opõe, de fato, o ‘Wortfüß’ (‘pé-palavra’
[do alemão]) aos ‘künstlichen Füße’ (‘pés artificiais’) das métricas tradicionais, que criam grupos métricos que desconsideram
agrupamentos semânticos” (“Klopstock opposes, in fact, the ‘Wortfuß’ to the ‘künstlichen Füße’ of traditional metrics, which create
metrical groups that disregard semantic groupings”).
40
Sobre Hermann und Dorothea, Voss e Kant, ver Wagner (1999). O verso hexamétrico também foi usado em dísticos
elegíacos por Goethe, Schiller, Hölderlin e outros.
41
Para uma detalhada análise dos hexâmetros desse período na obra dos autores germânicos, ver Saavedra Molina
(1964, p. 31-38). Como mencionei, há certa diferença no tratamento das cesuras praticadas por Voss e Klopstock.
42
Para uma lista completa das traduções de Homero em inglês até o início do século XX, ver Bush (1926). Por questão de
espaço, não tratarei dos hexâmetros em França, Espanha e Itália no período.
43
O que é, no mínimo, curioso, uma vez que foram Schlegel, Tieck e Hoffmann as influências germânicas mais marcadas
na obra de Eminescu, como atesta Ștefan (2014, p. 459). Até onde pude conferir, não há relato do próprio Eminescu sobre
essa filiação, embora me pareça clara.
44
A escansão de poesia (e sua própria composição) é deveras complexa, uma vez que se vale de parâmetros rítmicos
muito variados, conforme ensina Galdi (1964, p. 10 et seq.). Em 2006, Mihai Dinu discute três métodos de abordadem
estrutural da rítmica versificatória romena, variando entre um método “idealista”, um “materialista” e um “dualista”.
45
Aqui as vírgulas marcam pausas sintáticas de leitura, e o apóstrofo, a apócope da preposição “de”.
46
Oliva Neto e Nogueira (2013) traçam a história das primeiras tentativas de aclimatar o hexâmetro em português do
século XVIII ao início do XX.
47
Uma outra tradição que data de Camões e que encontra em Odorico Mendes (1799-1864) seu patriarca se vale do
decassílabo heroico da poesia de língua portuguesa para traduzir os hexâmetros greco-romanos. Sobre essa tradição,
ver Thamos (2011).
48
Oliva Neto associa esse tipo de cesura ao modelo de Klopstock, e não ao de Voss, que não coincidiria cesura e conteúdo
sintático-semântico. Pela questão do espaço, optei por não discutir aqui os problemas de cesura, tanto do verso de
Eminescu quanto da tradução.
49
Cf. Gonçalves (2011) e Gonçalves (2017), Antunes (2011 e 2015) e Nogueira (2013).
50
Cf. Gonçalves (2014, p. 161).
51
Importante esforço de discussão e sistematização das possibilidades tradutórias do hexâmetro empreendeu Marcelo
Tápia (2012), que, em sua tradução, utiliza um hexâmetro similar ao de Gonçalves. Em trabalho mais recente, Luiza Souza

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Hexâmetros romenos de Mihai Eminescu: tradução e comentários do poema Mitologicale

(2016) realiza detalhada revisão dessa história de adaptação do hexâmetro núnico para aceitar troqueus e anacruses.
52
Conferir Flores (2011). E ainda: note-se que o segundo pé é considerado um espondeu. Antunes (2015, p. 13, n. 3),
tratando dos troqueus de Tápia, também identifica que troqueus devem ser lidos como espondeus.
53
Em língua portuguesa, encontram-se poucas, porém preciosas traduções de Eminescu, dentre as quais destaco os
importantes trabalhos de Nelson Vainer e Luciano Maia.
54
Na Espanha, Agustín Garcia Calvo, Ilíada (1995); na própria Romênia, Dan Sluşanschi, Ilíada (1998) e Eneida (2000);
nos Estados Unidos, Rodney Merrill, Odisseia (2002) e Ilíada (2007); na Inglaterra, Frederick Ahl, Eneida (2007); na França,
Philippe Brunet, Ilíada (2010); na Itália, Daniele Ventre, Ilíada (2010).
55
Há também recentes trabalhos acadêmicos orientados por tradutores aqui citados que praticam e praticaram hexâmetros
em Catulo, Lucrécio, Ovídio e outros. Uma lista detalhada seria imprecisa agora.

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