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EDIÇÃO 64 | JANEIRO_2012
FLOR DE PLÁSTICO
O que aconteceu quando Jaguaribara foi inundada por um açude e deu origem à
primeira cidade planejada do Ceará, com avenidas largas, casas e saneamento para
todos
PAULA SCARPIN
A Igreja Matriz de Santa Rosa de Lima era o xodó da população, que exigiu que se construísse uma nova
igreja exatamente igual a ela FOTO: ACERVO DO INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO
CEARENSE_IMOPEC_2001
S
encontro com a rodovia mais próxima para recepcionar o
caixão e começar dali mesmo o cortejo. Num fim de tarde,
em outubro de 1985, Giovane Araújo voltava de férias e
avistou a multidão na entrada da cidade. “Deve ter morrido
alguém importante”, pensou. Conforme se aproximava, só
ouvia falar do prefeito Francini Guedes. “Tive a certeza de que
você tinha morrido, homem”, disse recentemente Araújo em sua
sala na Câmara dos Vereadores. Guedes, em visita à cidade, riu
e explicou: “Eu tinha mandado avisar à população que estava
voltando de Fortaleza com novidades sobre a barragem do
Castanhão.”
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O
engenheiro Cássio Borges, que foi diretor de Hidrologia do
DNOCS por mais de vinte anos, posicionou-se de
imediato contra a ideia da construção da imensa barragem
e se tornou a voz mais estridente na luta. Borges compilou
estudos e artigos de jornais e publicou em 1999 o livro A Face
Oculta da Barragem do Castanhão. Nele, argumenta que o
projeto com aquele volume de água seria de uma megalomania
sem justificativas técnicas. No exemplar de A Face
Oculta disponível na biblioteca municipal de Fortaleza, há uma
dedicatória para o governador Tasso Jereissati, assinada pelo
então presidente do sindicato dos engenheiros, com os seguintes
apelos: “Confiamos na lucidez e no alto senso de
responsabilidade de V. Exa.” e “Ainda há tempo.”
A
imagem do prefeito Francini Guedes em Jaguaribara, nas
eleições municipais de 1982, não era das melhores.
Nascido na vizinha Alto Santo, foi viver em Fortaleza,
onde veio a cursar economia. Na faculdade, conheceu uma
estudante de medicina jaguaribarense, com quem se casou. O
pai dela era um médico influente na cidade que, ao saber dos
planos do genro de fazer mestrado na França, convenceu
Guedes a se candidatar à prefeitura, oferecendo seu apoio.
O
lhando para trás, vejo esse período como uma época
de contracultura, de tropicália de Jaguaribara, guardadas
as proporções”, disse Honorina Queiroz no gramado de
sua casa, em nova Jaguaribara, usando a internet sem fio em seu
notebook. Professora de geografia e filosofia na rede estadual,
ela viveu a agitação na adolescência. “A gente sabia que a
cidade ia durar pouco, então aproveitava cada cantinho, não
saía de dentro do rio, fazia piquenique, pescava e assava o peixe
ali”, contou. “E havia uma preocupação em registrar tudo, todo
mundo estava produzindo teatro, poesia, cordel.”
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N
ova Jaguaribara começou a ser construída em 1995. Ivan
Bezerra achou que receberia uma gorda indenização pelas
terras. Mas a maioria delas não era escriturada, ou o
usucapião estava valendo havia muito tempo. Restava a
alternativa de que as terras escrituradas fossem recompensadas.
Quase caiu para trás quando soube qual era o valor da
indenização pelo metro quadrado de suas terras: entre 15
centavos e 4 reais, no máximo. Precavido, pesquisara quatro
cidades da região, e soube que em Tabuleiro do Norte o metro
quadrado valia 90 reais. Quando passou a informação para o
grupo encarregado da mudança, riram dele. “Nunca me senti
tão humilhado”, disse. “E tanto que a minha família fez por essa
cidade.”
Falava-se que seria uma cidade moderna, com uma igreja nos
moldes da de Brasília ou de Pampulha. Mas a Igreja Matriz de
Santa Rosa de Lima era um xodó da população, que exigiu que
a nova igreja tivesse os moldes da antiga. O governo do estado
assumiu o projeto de reassentamento e formou um grupo com a
socióloga Afonsina Lima e os arquitetos Marcelo Colares e
Luiza Marilac. Eles praticamente moraram na cidade durante
sete anos, tentando envolver a população no projeto. O trio
alugou uma casa e passava quase toda a semana ali,
frequentando rodinhas de senhoras nas calçadas, botequins,
tomando banho de rio com as lavadeiras. “Nunca assisti a tantas
missas na minha vida”, disse Colares. Para ele, o projeto do
DNOCS “não era ruim, mas desagradava porque tinha sido
imposto”.
O
Parque da Saudade foi a primeira obra concluída na nova
Jaguaribara. O cemitério da cidade velha encerrou suas
atividades dois anos antes da mudança. Os que morreram
no intervalo foram os primeiros habitantes da nova cidade,
construída a 55 quilômetros da original. Os corpos que estavam
enterrados no antigo cemitério foram exumados depois da
mudança dos vivos, e organizados em gavetas no Parque da
Saudade. O solo também foi removido e preenchido com cal
virgem – exigência do Relatório de Impacto Ambiental. Como o
Castanhão era voltado para consumo humano, não poderia
haver vestígios de restos mortais na velha Jaguaribara.
E
stagiários e arquitetos desenharam a planta da cidade
velha e organizaram uma tabela indenizatória. Havia cinco
tamanhos diferentes de casas, de 50 a 150 metros
quadrados. Cada morador ganharia uma casa igual ou maior
que a antiga. Quem tivesse mais de um imóvel, ou um com mais
de 150 metros quadrados, receberia o restante em indenizações.
Quem morava de aluguel ou de favor, receberia um imóvel
menor, de 36 metros quadrados.
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P
rimeira cidade planejada do Ceará, nova Jaguaribara é a
única do estado com 100% de saneamento básico –
Fortaleza não chega a 60%. Planejada para crescer até 75
mil habitantes, poderia ter sido idealizada pelo barão
Haussmann: suas ruas e calçadas são largas e têm canteiros
centrais. Não há cruzamentos, apenas retornos e rotatórias.
Predominam as vias de mão única. Os novos prédios públicos
têm arquitetura moderna e foi construído até um aeroporto com
capacidade para voos comerciais. O ponto de encontro da velha
Jaguaribara, a pracinha da Igreja Matriz de Santa Rosa de Lima,
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“N
ão tiro uma vírgula do que escrevi no meu livro”,
disse Cássio Borges. “Hoje o Castanhão não serve
para nada além da piscicultura, função que o rio
Jaguaribe já exercia na velha Jaguaribara.” Para o engenheiro, o
canal com capacidade de 26 metros cúbicos por segundo que
está sendo construído para transportar água do açude para
Fortaleza e Pecém é obsoleto. “Pecém só precisaria de 3 metros
cúbicos por segundo, e Fortaleza até agora não precisou de uma
só gota do Castanhão”, disse. “É possível que no futuro venha a
precisar, mas é para isso que está sendo feita a transposição do
rio São Francisco.”
S
egunda-feira é dia de missa no cemitério em Jaguaribara.
Como os moradores decidiram em plebiscito pelo modelo
de cemitério-parque, sem jazigos, o único vestígio
simbólico para diferenciar a popularidade dos defuntos (ou o
peso do luto dos remanescentes) são os arranjos de flores. Em
meio a uma monotonia de crisântemos, murchos ou de plástico,
reina soberano um túmulo com um arranjo fresco de rosas
brancas no formato de um coração, e a clássica inscrição
“Saudades de amigos e familiares”. O corpo de Idelfonso Maia
Cunha jaz ali há um ano, mas seu séquito de fãs mantém o
túmulo impecável. Ele foi o responsável pelo preenchimento de
várias valas no Parque da Saudade.
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