Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISAAC SOUZA
Hans Study
Um dia, o desenho de uma mulher falou comigo. Ela me apontava uma arma e
vestia espartilho. Usava óculos de grau com uma grossa e elegante armação um tanto
quadrada, tinha os cabelos pretos ondulados à altura dos ombros e dele saiam reflexos
brancos e azuis; Sua boca vermelha e grossa não se movia, mesmo assim eu escutei as
palavras.
Na mira dela, o meio da minha testa. Meu olho bom tremia; meu olho cego
decifrava o instante. Frases aleatórias vindas dos balões de Gayman rodopiavam no meu juízo
– a imagem de uma banda tocando em um palco quente, cortada por luzes e sombras,
rebolando boogie-woogie, me assaltou.
- Limiar – sussurro.
- Limiar.
Não importa. Cheguei a um deserto cortado por uma estrada de asfalto. Segui a
pé por léguas e não anoitecia nem amanhecia. O vento estava fresco e vez por outra o uivo de
um coiote me dizia que eu não estava só. Cascavéis na beira da estrada, pequenos lagartos
curiosos. Luzes de cores variadas se movendo na tessitura de um céu de nuvens bailarinas.
BEM VINDO A
LIMIAR
Olhei pelo que me pareceu ser um instante, mas poderia ter sido um longo
tempo, para aquele emblema estranho e atraente e só então me dei conta do grande prédio
que se erguia por trás dele. A fachada lembrava um casarão colonial português e o piso
quadriculado do hall de entrada em vermelho e preto dava ao lugar um charme de filme noir.
Do meu lado direito, quatro motocicletas pesadas estavam estacionadas e circulando perto da
entrada, um par de seguranças carecas e bem trajados.
CASINOQUEBEC
Respirei fundo, olhei para um lado e outro. Pessoas estranhas circulavam pela
cidade. Coisas que eu não saberia dizer se eram pessoas circulavam pela cidade. Meu olhar
atravessou o haal e após a primeira porta de vidro vislumbrei a mulher do desenho. Ela estava
em pé e ela me observava, como se estivesse me esperasse por longos dias. Não portava
nenhuma arma, mas sob a jaqueta de couro avermelhado eu podia ver que ela vestia o mesmo
espartilho com que foi desenhada.
Querido Jon,
Cada vez mais eu sinto que os limites que consideramos naturais entre a
realidade e o sonho não passam de engano. Eu disse limites? Como se camadas finíssimas de
escamas me fossem retiradas gradativamente dos olhos de carne – e como se isso clareasse
em filetes mais e mais brilhantes de luz os olhos do meu espírito – eu percebo a realidade em
sua crua e tosca falsidade, ao passo em que encontro no sonho a única possibilidade de
Verdade.
Onde estamos, Jon? Que lugar é este em que vivemos? Que tempo é este em
que fluímos? Estamos como insetos pregados na placa de um naturalista, como nossas vidas
(nossas asas!) mortas, paralisadas, cristalizadas, atravessados por agulhas de aço, imóveis e
lisos. Vivemos num espaço de morte, em que tudo é erro, mentira, limitação. Não conhecemos
a vida onde ela existe em sua mais impetuosa fúria... Ao lado de nós, centenas de milhares de
placas de insetos mortos agulhados, imóveis, condenados, silenciosos, tristes, cegos. E no
meio, no interstício – ali onde ninguém alcança, onde as asas dos insetos não voam, ali onde o
ar é puro: a vida. O mundo. A existência em sua plenitude... Onde a vida existe: no Limiar.
No quarto de André, uma penteadeira que havia sido de sua mãe: um espelho
colorido pelo reflexo das paredes repletas de pôsteres. A escrivaninha bagunçada, livros e
discos espalhados – filosofia pairando no ar com a fumaça do incenso.
André era um homem apaixonado pela vida, pela descoberta da vida, pela
reviravolta da vida. Porque, para André, a vida era uma reviravolta – uma estrada que
caminha. Ninguém trilha duas vezes pelo mesmo chão – os rios não são os únicos a se
transmutar. André gostava de erosão.
A solidão de André nunca o atraiu para a janela, mas era um ímã sensual que o
prendia no espelho. André via espelhos nas calçadas, nos livros acadêmicos, nos gibis. André
via espelhos em lances de futebol, em discursos de Brizola, em tratamentos químicos contra a
depressão.
Naquela noite, ao olhar no espalho, André não viu a sua costumeira imagem
magra, barbuda e grisalha que lhe acompanhava desde os dezessete anos – um rosto gordo de
feições orientais o fitou do outro lado, com uma expressão de amor e compreensão: você quer
o sonho, mas você só tem o desespero.
O espelho tinha ondas. Era como quando você voa e olha pela janela do avião:
ondas de vapor que se parecem as do mar mais do que as próprias ondas do mar. Mas nuvens
também são mar – mar que embora rarefeito é amplificado. Ondas de ilusão mais reais que a
realidade – por que: por ser realidade volátil, sem concretude (a concretude falha!).
Há muito tempo, André havia encontrado uma brecha no espelho e caído nela
sem querer. Do outro não havia nada. Mas no percurso, havia um beco molhado, com lixeiras
nas laterais e um mendigo deitado com seu cão perto da esquina.
André caminhou pelo beco, jogou uma moeda para o bruxo e respirou o ar
daquela cidade de HQ. Seguiu o som, sentiu-se numa New York vintage. Caminhou alegre,
queria cantar e dançar. Angel. Little Wing. La Woman. Canalha. Cheiro de álcool, sexo e frases
de efeito. Ele seguiu até encontrar um lugar com charme de filme noir. A frase lhe pareceu
repetida, mesmo assim ele gostava dela: lugar com charme de filme noir. Talvez um cassino,
talvez um cartão postal de Quebec.
André esteve lá. Jogou cartas. Rolou a roleta. Ganhou dinheiro. Perdeu sua
alma. Conheceu centenas de aventureiros e patifes, e cientistas e pastores, e enfermeiras e
cirurgiões, e atrizes e rufiões. Passou décadas no CasinoQuebec, trocando fichas, ouvindo
música.
Até que um dia veio aquele som terrível e terrivelmente belo – um som de
desespero feito verso. Uma faca que zuniu no ar, uma lâmina que cortou o som. Lá estava
André, de volta ao seu quarto, diante da penteadeira materna, questionando sua imagem,
lutando com seus espelhos.