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CRÔNICAS DO LIMIAR

ISAAC SOUZA
Hans Study

Um dia, o desenho de uma mulher falou comigo. Ela me apontava uma arma e
vestia espartilho. Usava óculos de grau com uma grossa e elegante armação um tanto
quadrada, tinha os cabelos pretos ondulados à altura dos ombros e dele saiam reflexos
brancos e azuis; Sua boca vermelha e grossa não se movia, mesmo assim eu escutei as
palavras.

Na mira dela, o meio da minha testa. Meu olho bom tremia; meu olho cego
decifrava o instante. Frases aleatórias vindas dos balões de Gayman rodopiavam no meu juízo
– a imagem de uma banda tocando em um palco quente, cortada por luzes e sombras,
rebolando boogie-woogie, me assaltou.

- Limiar – sussurro.

“O Limiar é um lugar aonde só vai aquele que já esteve lá”.

Um redemoinho de Brian De Palma. A mão furada e o olho do bandido jocoso do


lado de lá. Entrei pelo portal, naveguei num barco sobre a névoa, conversei com o fantasma de
Jung.

Uma taverna. Um motel. Um prostíbulo. Um saloon. Um casebre no semiárido.


Um iglu.

Caminhamos por eras em um segundo, na mira fixa daquela pistola que, de


qualquer forma, girava, me seguia, e no seu silêncio de tinta falava:

- Limiar.

Não importa. Cheguei a um deserto cortado por uma estrada de asfalto. Segui a
pé por léguas e não anoitecia nem amanhecia. O vento estava fresco e vez por outra o uivo de
um coiote me dizia que eu não estava só. Cascavéis na beira da estrada, pequenos lagartos
curiosos. Luzes de cores variadas se movendo na tessitura de um céu de nuvens bailarinas.

E perto de uma cordilheira: a cidade.


Na entrada, havia uma placa velha que parecia ter eras de idade. O canto
superior esquerdo estava quebrado, havia marcas de bala, arranhões de garras e, no meio,
sinais de que fora amassada e desamassada:

BEM VINDO A
LIMIAR

Ao penetrar a cidade, a estrada se convertia em avenida. Prédios dos mais


variados estilos arquitetônicos faziam daquela paisagem urbana um espetáculo surreal dentro
de um outro espetáculo surreal, possivelmente, no interior redundante de incontáveis
surrealidades outras.

Caminhei pela familiaridade do desconhecido e uma placa me chamou a


atenção. Numa calçada na avenida principal, ao lado de um gigantesco painel de LED da Coca-
Cola, em frente a um antigo e aparentemente inutilizado templo da Assembleia de Deus,
tremulava um estandarte que parecia mais antigo do que a placa na entrada da cidade. Nele
não havia palavra, apenas um emblema elementar que eu sentia dizer o tudo e o nada que eu
adivinhasse sem jamais compreender:

Olhei pelo que me pareceu ser um instante, mas poderia ter sido um longo
tempo, para aquele emblema estranho e atraente e só então me dei conta do grande prédio
que se erguia por trás dele. A fachada lembrava um casarão colonial português e o piso
quadriculado do hall de entrada em vermelho e preto dava ao lugar um charme de filme noir.
Do meu lado direito, quatro motocicletas pesadas estavam estacionadas e circulando perto da
entrada, um par de seguranças carecas e bem trajados.

Gritinhos femininos de euforia vieram de detrás de mim. Duas garotas passaram


ao meu lado, elas pareciam excitadas, ansiosas para entrar no lugar. Meus olhos seguiram por
um momento o balanço daqueles quadris e continuaram portal acima, sacada acima, até o
beiral, sobre qual estava uma placa de madeira entalhada mostrava letras simples, sem
qualquer decoração:

CASINOQUEBEC

Respirei fundo, olhei para um lado e outro. Pessoas estranhas circulavam pela
cidade. Coisas que eu não saberia dizer se eram pessoas circulavam pela cidade. Meu olhar
atravessou o haal e após a primeira porta de vidro vislumbrei a mulher do desenho. Ela estava
em pé e ela me observava, como se estivesse me esperasse por longos dias. Não portava
nenhuma arma, mas sob a jaqueta de couro avermelhado eu podia ver que ela vestia o mesmo
espartilho com que foi desenhada.

Fez um sinal para eu me aproximar...

Meu nome é Hans Study, Eu não me lembro se atendi ao chamado dela.


Carta do Profeta

Londres, 17 de outubro de 1894

Querido Jon,
Cada vez mais eu sinto que os limites que consideramos naturais entre a
realidade e o sonho não passam de engano. Eu disse limites? Como se camadas finíssimas de
escamas me fossem retiradas gradativamente dos olhos de carne – e como se isso clareasse
em filetes mais e mais brilhantes de luz os olhos do meu espírito – eu percebo a realidade em
sua crua e tosca falsidade, ao passo em que encontro no sonho a única possibilidade de
Verdade.

Não me refiro, é claro, à alucinação dos drogados, ao devaneio do tolo, ao


desvario dos insanos nem aos doces e às vezes tenebrosos sonhos que temos durante o sono.
Refiro-me a um espaço onírico de experiência que, por vezes, nossa percepção potencializada
é capaz de alcançar, de vislumbrar. Posso comparar à ascese dos santos, à revelação dos
profetas. Posso comparar às visões de um oráculo ou até mesmo à iluminação do filósofo
platônico que consegue, ainda que por um momento, ver as coisas verdadeiras que projetam
as sombras da caverna.

Posso comparar, mas nenhuma dessas comparações dá conta daquilo que


realmente significa o sonho, para mim. O Sonho. O Sonho como um lugar. O Sonho como uma
esfera da expiração divina e da manifestação concreta do íntimo do Universo. O Sonho como
uma dimensão, interstício que conecta todas as portas, que cria vínculos entre todos os
tempos. (O Tempo. O Tempo como um tecido, não como uma linha - um bordado). E, no
Sonho, a possibilidade de desfiar e refiar; tecer e destecer; reinventar as imagens e reconstruir
os fundamentos de tudo.

Eu me sinto como uma criança perdida em um país de maravilhas, caminhando


entre deuses e deusas, santos e santas, monstros e vórtices. Como se as memórias infinitas de
milhares de canções fluíssem nos meus poros, na ponta da minha língua, nas ranhuras do meu
globo ocular. Que extraordinárias revelações: tempestades de fogo, tempestades de areia,
tempestades de pedra, tempestades de sol. Exércitos de estrelas marchando no fundo do mar
– formigas montando cavalos cujo pelo é de escamas, guerreiros de oito braços, amantes de
seda e luz.

Onde estamos, Jon? Que lugar é este em que vivemos? Que tempo é este em
que fluímos? Estamos como insetos pregados na placa de um naturalista, como nossas vidas
(nossas asas!) mortas, paralisadas, cristalizadas, atravessados por agulhas de aço, imóveis e
lisos. Vivemos num espaço de morte, em que tudo é erro, mentira, limitação. Não conhecemos
a vida onde ela existe em sua mais impetuosa fúria... Ao lado de nós, centenas de milhares de
placas de insetos mortos agulhados, imóveis, condenados, silenciosos, tristes, cegos. E no
meio, no interstício – ali onde ninguém alcança, onde as asas dos insetos não voam, ali onde o
ar é puro: a vida. O mundo. A existência em sua plenitude... Onde a vida existe: no Limiar.

Jon, estou ao mesmo tempo em crise e em êxtase. Preciso de sono, preciso de


vida, preciso viajar até a presença de Deus!

Seu, William Blake


O Espelho de André
OU PEQUENA FACA PARA ATRAVESSAR UM SOM

O Desespero mora na travessia do espelho... ou no mergulho na janela. André


lia o verso de Jim Morrison e pensava em Torquato Neto, pensava em sexo, em Jimi Hendrix e
em Garrincha, ouvia Elza Soares, escrevia um ensaio de análise literária.

No quarto de André, uma penteadeira que havia sido de sua mãe: um espelho
colorido pelo reflexo das paredes repletas de pôsteres. A escrivaninha bagunçada, livros e
discos espalhados – filosofia pairando no ar com a fumaça do incenso.

André era um homem apaixonado pela vida, pela descoberta da vida, pela
reviravolta da vida. Porque, para André, a vida era uma reviravolta – uma estrada que
caminha. Ninguém trilha duas vezes pelo mesmo chão – os rios não são os únicos a se
transmutar. André gostava de erosão.

Na solidão de um homem inteligente acontecem coisas impossíveis – o


impossível é tudo o que acontece, o resto é rotina. O Gato de Schroedinger, o Paradoxo de
Zenão, Assim Falou Zaratustra, Anabel. Nada disso seria possível sem uma dose cavalar de
solidão.

A solidão de André nunca o atraiu para a janela, mas era um ímã sensual que o
prendia no espelho. André via espelhos nas calçadas, nos livros acadêmicos, nos gibis. André
via espelhos em lances de futebol, em discursos de Brizola, em tratamentos químicos contra a
depressão.

O mundo de André era um mundo de espelhos contra os quais lutava – André


era um quebrador de espelhos. Exceto aquele espelho amarelado da penteadeira herdada de
sua mãe. André tinha amor por aquele espelho – e Édipo que fosse á merda, e Freud que fosse
à merda. André queria ir a Kafka.

Naquela noite, ao olhar no espalho, André não viu a sua costumeira imagem
magra, barbuda e grisalha que lhe acompanhava desde os dezessete anos – um rosto gordo de
feições orientais o fitou do outro lado, com uma expressão de amor e compreensão: você quer
o sonho, mas você só tem o desespero.

- O que eu faço com meu desespero?

O espelho tinha ondas. Era como quando você voa e olha pela janela do avião:
ondas de vapor que se parecem as do mar mais do que as próprias ondas do mar. Mas nuvens
também são mar – mar que embora rarefeito é amplificado. Ondas de ilusão mais reais que a
realidade – por que: por ser realidade volátil, sem concretude (a concretude falha!).

Nas ondas do espelho, a mulher gorda falava – o desespero abraçou os


homens tristes, os homens tristes se abraçaram, e na solidão do seu abraço mórbido eles
desapareceram em seus reflexos. O poema que mata o poeta. A masturbação que mata o
voyeur. O amor que mata a mulher. O olho que mata o buraco da chave.
André traiu seu desespero quando fez dele uma utopia.

Onde você conseguiu aqueles fósforos? Disse a mulher de feições orientais


cobrindo o rosto fino de André com seu olhar obeso de amor.

- Há muito tempo, eu fui a um lugar.

Ele começou a escrever e sua escrita era confissão, memória ou mentira,


lembrança ou oráculo, conceito ou poesia. Há muito tempo, talvez antes de ter nascido. Há
muito tempo, talvez num futuro tão distante que tenha se tornado passado na roda do tempo
em que o Universo, feito um hamster, se põe a girar. Há muito tempo, talvez no tempo de uma
lombra ou de uma leitura de Rimbaud, o tempo de uma lenda de Bob Dylan, o tempo de uma
cantoria de carpideira, de um fanzine que não tem autor.

Há muito tempo, André havia encontrado uma brecha no espelho e caído nela
sem querer. Do outro não havia nada. Mas no percurso, havia um beco molhado, com lixeiras
nas laterais e um mendigo deitado com seu cão perto da esquina.

André caminhou pelo beco, jogou uma moeda para o bruxo e respirou o ar
daquela cidade de HQ. Seguiu o som, sentiu-se numa New York vintage. Caminhou alegre,
queria cantar e dançar. Angel. Little Wing. La Woman. Canalha. Cheiro de álcool, sexo e frases
de efeito. Ele seguiu até encontrar um lugar com charme de filme noir. A frase lhe pareceu
repetida, mesmo assim ele gostava dela: lugar com charme de filme noir. Talvez um cassino,
talvez um cartão postal de Quebec.

André esteve lá. Jogou cartas. Rolou a roleta. Ganhou dinheiro. Perdeu sua
alma. Conheceu centenas de aventureiros e patifes, e cientistas e pastores, e enfermeiras e
cirurgiões, e atrizes e rufiões. Passou décadas no CasinoQuebec, trocando fichas, ouvindo
música.

Até que um dia veio aquele som terrível e terrivelmente belo – um som de
desespero feito verso. Uma faca que zuniu no ar, uma lâmina que cortou o som. Lá estava
André, de volta ao seu quarto, diante da penteadeira materna, questionando sua imagem,
lutando com seus espelhos.

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