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O MODO BRASILEIRO DE ENFRENTAMENTO À CRISE HABITACIONAL –

o histórico de negação à profusão de moradias


Bruno Lourenço Siqueira
Professor do Curso de Geografia na UEG/Morrinhos
Mestrando em Geografia/UFG – Catalão
bruno_ueg@hotmail.com

Profª Dra. Magda Valéria da Silva


Orientadora - Departamento de Geografia e Programa de Pós-Graduação em Geografia - UFG/Catalão
Docente no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade - UEG/Morrinhos
magdaufgcatalao@yahoo.com.br

RESUMO

O objetivo do trabalho é analisar as principais políticas habitacionais no Brasil


circunscrito ao período entre o Império e a extinção da Fundação da Casa Popular em
1964. Os procedimentos metodológicos se pautaram na pesquisa documental e
bibliográfica cuja temática versa sobre as ações do Estado no enfrentamento à questão
da habitação popular. As principais considerações ponderam sobre a forma pontual e
sem compromisso que o Estado brasileiro assumiu na resolução da carência de moradias
populares. O histórico das ações estatais aponta avanços e retrocessos, todavia,
ressaltam-se enquanto resultantes, os interesses políticos e privados sobrepujarem os
interesses sociais no tempo e no espaço. Os efeitos socioespaciais das políticas
habitacionais, ao longo do tempo, produziram e/ou agravaram nas cidades diferentes
tipos de perversidades sociais, tais como a segregação e exclusão.

Palavras-chave: Habitação, Estado, Políticas.

1. INTRODUÇÃO

1
As ações do Estado brasileiro quanto ao enfrentamento à questão da habitação
apresentam-se historicamente influenciadas à ideologia dominante, cujas marcas do
autoritarismo secular se fazem presente na conduta de um problema social, no qual a
intencionalidade das leis e na aplicação das mesmas apontam que o modo de
intervenção estatal se distancia da realidade apreendida e vivida da população mais
pobre. Os custos sociais de tal prática são observáveis em todo o espaço urbano,
caracterizados por incluírem a violência e a perversidade no cotidiano de milhões de
brasileiros.
Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é realizar um breve resgate histórico das
ações do Estado ante à problemática que envolve o modo de enfrentamento da crise das
habitações no país. Diante disso, foi necessário destacar as leis e decretos federais, bem
como os motivos oficiais para a criação das mesmas, cujo intento perpassa pela questão
habitacional.
A estrutura do presente trabalho é composta por cinco seções, sendo a primeira a
introdução; a segunda seção apresenta discussões acerca das origens da política
habitacional no Brasil; a terceira aponta o desenvolvimento das políticas sociais durante
a Era Vargas, com destaque à questão da habitação; a quarta seção discute criação da
primeira instituição voltada à produção de habitação popular, a Fundação da Casa
Popular (FCP), bem como expõe seus resultados; e por fim, a quinta seção são as
considerações finais do trabalho.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÍTICA HABITACIONAL NO


BRASIL ENTRE O PERÍODO IMPERIAL E A REPÚBLICA VELHA

Sob a égide do liberalismo econômico, especificamente o período que


corresponde entre o fim do sistema monárquico e o início da República Velha (1889 -
1930), verificam-se ações estatais pontuais no âmbito habitacional.
As ações do Governo Imperial no plano habitacional visavam, em grande
medida, combater na cidade do Rio de Janeiro as habitações coletivas (casas de

2
cômodos, estalagem, hospedarias, etc.), comumente denominadas de cortiços (ABREU,
2003; OLIVEIRA, 2009).
O discurso oficial para o combate aos cortiços se centrava na questão da saúde
pública. Epidemias de cólera, de varíola e de febre amarela assolavam periodicamente a
cidade em meados do século XIX (ABREU, 2003). Todavia, cabe destacar a relevância
da localização central que os cortiços ocupavam enquanto condição indispensável para a
sobrevivência de uma parcela considerável da população, pois, para os trabalhadores
livres e escravos de ganho 1 o trabalho deveria ser procurado diariamente (ABREU,
2003).
A intervenção do Estado no plano habitacional deu início em 1853, com a edição
da Lei n.º 719, que concedia privilégios à empresa privada para construir casas 2
operárias e higiênicas (OLIVEIRA, 2009). Mas, de fato, os estímulos mais
contundentes aconteceram com o Decreto n.º 2686 de outubro de 1875 e com a Lei n.º
3.151 de dezembro de 1882. O primeiro preconizava a isenção absoluta da Décima
Urbana 3 por até 10 anos para aquelas empresas que construíssem nos arrabaldes da
cidade do Rio de Janeiro, grandes edifícios, denominados “Evonias”, “para dar
commodo agasalho às famílias pobres e aos artistas”. O segundo amplia os incentivos
para “as empresas que se organizarem com o fim de construir edifícios destinados à
habitação de operários e classes pobres”, tais como: a ampliação da isenção por até 20
anos do imposto predial, dispensa do imposto de transmissão quanto à aquisição de
imóveis necessários às construções e direito à desapropriação aos terrenos particulares.

1
O escravo de ganho possuía permissão de seu proprietário para realizar algumas tarefas e ficar com uma
parte do dinheiro. As atividades mais comuns desses escravos eram o transporte de cargas e pessoas,
vender alguns produtos como o café torrado e doces, tomar conta de estabelecimento comercial e realizar
pequenos reparos.
2
A título de esclarecimento, a utilização dos termos: casa, moradia e habitação, enquanto sinônimos, é
assim justificado, pois, mesmo com conceitos diferentes são complementares, uma vez que, todos se
referem à necessidade humana de possuir um abrigo para nele e a partir dele, realizar todos os tipos de
atividades.
3
A Décima Urbana foi o imposto com pagamento anual à Real Fazenda criado em 1808, no qual consistia
na cobrança de 10% do rendimento líquido dos prédios urbanos em condições habitáveis dentro dos
limites das cidades e vilas.

3
Mesmo que essas leis não tenham alcançado bons resultados, conforme
descreveram Abreu (2003) e Oliveira (2009), há uma nítida intenção por parte do
governo em modificar o perfil social da área central da capital.
Ambos os instrumentos legais supracitados evidenciaram que a localização das
construções das habitações para os operários se dariam nos arrabaldes da cidade, ou
seja, nos arredores, subúrbio. Para que as leis fossem editadas, o argumento principal
era de cunho higienista 4 , com vistas à saúde pública, todavia, paralelo ao discurso
oficial, outro processo chama a atenção, a gentrificação5 com o estímulo estatal.
Em outras palavras, o desenvolvimento desigual da economia capitalista
conduziu os estímulos estatais a reforçar a reprodução desigual do espaço urbano.
Assim, a demolição dos cortiços localizados na área central e a construção de moradias
populares nos arredores da cidade do Rio de Janeiro podem ser consideradas como as
primeiras premissas para a regulamentação do uso e da ocupação do solo urbano. Ao
mesmo tempo, tal prática produziu dois processos espaciais urbanos que se
complementam e que se tornam socialmente desiguais quanto ao direito à cidade, que
são: o enobrecimento da área central e a expansão da fronteira urbana.
O período entre a abolição da escravatura (1888) e a Revolução de 1930, é
caracterizado por importantes transformações econômicas, sociais e políticas no país. O
processo de desenvolvimento mediante substituição de importações, com a formação de
um parque industrial de bens de consumo não duráveis (tecido, roupas, alimentos),
principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, estimula ainda mais o processo de
urbanização (SINGER, 1973, p.121).
Contudo, o modelo agroexportador ainda se constituía a base da organização
socioeconômica do Brasil. É nesse contexto que Moreira (2011), esclarece o processo
de formação da sociedade do trabalho no país, destacando a interface entre a fazenda
(campo) e a cidade, sendo a fábrica o elo entre esses espaços. Para o autor, “O todo de

4
Sobre a crise e superação do pensamento higienista para o sanitarista ver: ABREU, M. de A. Cidade
brasileira - 1870-1930. In: SPÓSITO, M. E. B. (org.). Urbanização e Cidades: perspectivas geográficas.
Presidente Prudente: UNESP, 2001. p. 35-44.
5
Ver mais em: SMITH, Neil. Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano. IN:
GEOUSP – Espaço e Tempo. Revista de Pós-Graduação. São Paulo: Departamento de Geografia,
FFLCH, USP, 2007, n.º 21, p. 15-31.

4
que a fazenda e cidade são bases e elos orgânicos. E cuja lógica é o que define o que é a
fazenda e o que é a cidade. E, assim, o que será a indústria nascente.” (MOREIRA,
2011, p.111).
O modo que prevalece durante a República Velha no que tange à produção de
moradias é similar ao período Imperial, ou seja, o governo não produz, mas estimula o
capital privado em investir no ramo da construção. Esse estímulo acontece de duas
formas: a) a não intervenção do Estado nos preços dos aluguéis torna a produção de
casas com esta finalidade uma forma segura e excelente de rentabilizar poupanças e
recursos disponíveis na economia urbana; b) à emergência do processo de
industrialização, incentivos do poder público para a construção de vilas operárias.
No que tange a primeira forma, o próprio cenário econômico brasileiro nos
primeiros anos de República era favorável à produção de moradias para aluguel,
também conhecida como produção rentista (BONDUKI, 2011).
No contexto compreendido pela primeira forma, segundo Prado Júnior (1998),
são os fatores externos e internos que explicam o apogeu da economia produtora de
matérias-primas e gêneros tropicais no Brasil entre os anos finais do século XIX e início
do século XX. Os fatores externos estão relacionados com o desenvolvimento do
comércio internacional advindos com o progresso das técnicas de produção industrial e
dos sistemas de transportes. A conjuntura interna, por sua vez, permitiu avanços
econômicos, principalmente em consequência da resolução do problema da mão de
obra, tanto com a abolição da escravidão quanto aos estímulos à imigração europeia.
Todavia, outro efeito do afluxo de imigrantes nas duas principais praças
comerciais do Brasil, as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, elevou a procura por
moradia de aluguel. A valorização imobiliária se constituía, assim, em uma “importante
opção de investimento para reserva de valor, na ausência de um mercado de capitais.”
(BONDUKI, 1994, p.712).
A título de exemplo, Bonduki (1994, p.713) informa que em São Paulo, em
1920, “[...] apenas 19% dos prédios eram habitados por seus proprietários,
predominando largamente o aluguel como forma básica de acesso a moradia.” A
inexistência de qualquer forma de financiamento para a aquisição da própria moradia,

5
levou quase a totalidade dos trabalhadores à condição de inquilino, e ainda, geralmente
em cortiços ocupados por mais de uma família (BONDUKI, 1994).
Outro fato político-econômico que dinamizou o mercado de terras tem origem na
última década do século XIX, no qual o país passou por uma grave crise financeira,
denominada de Encilhamento 6 , cuja origem remonta a falta de meio circulante
suficiente para atender as necessidades crescentes dos negócios num ambiente
econômico especulativo (PRADO JÚNIOR, 1998). A crise conduziu os capitais para o
setor imobiliário “[...] seja na forma de compra de terra para estoque de reserva de
valores, seja na forma de construção de moradias para aluguel, alternativas que passam
a ser percebidas como mais seguras” (RIBEIRO, 1991 apud OLIVEIRA, 2009, p.25).
Já o contexto da segunda forma envolve o estímulo estatal à construção de
moradias para os trabalhadores se deu a partir da constituição das vilas operárias na
emergência da indústria moderna, sobretudo, após a segunda metade do século XIX. A
difusão dessa prática de construção de moradias por parte das empresas para os seus
operários aconteceu tanto nas cidades quanto no campo, mas invariavelmente ligados à
indústria (têxteis, papel, cimento, etc.), a empresas de mineração, a empresas de geração
de energia, a empresas companhias ferroviárias e outros poucos ramos da atividade
econômica (CORREIA, 2006).
As vilas operárias eram

[...] conjuntos de casas construídas pelas indústrias para serem


alugadas a baixos aluguéis ou mesmo oferecidas gratuitamente a seus
operários. Estas iniciativas tiveram um impacto importante em várias
cidades brasileiras, pois são os primeiros empreendimentos
habitacionais de grande porte construídos no país. (BONDUKI, 1994,
p.715)

Conforme apresentado por Correia (2006, p.14), entre 1880 e 1930, as vilas
operárias disseminam-se em larga escala, em diferentes estados e regiões. É nesse

6
Crise econômica que abateu o Brasil nos anos de 1890 e 1891. A expressão encilhamento extraída do
vocabulário dos hipódromos, e que remetia à confusão das apostas, momentos antes da largada, enquanto
os jóqueis encilhavam (arreavam) seus cavalos. Ver mais em:
http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2490:catid=28&Itemid=23
Acesso em: 03 de março de 2015.

6
contexto que as vilas operárias irão se afirmar “como uma importante expressão da era
industrial não apenas por suas origens, usos, funções e conflitos sociais, como também
por suas características formais, que usualmente remetem a valores, materiais e
símbolos do mundo fabril.”.
As vilas operárias se diferenciam principalmente pelo tamanho e de acordo com
a região industrial, mas em todas, as moradias estão nas adjacências da fábrica. A
estrutura da vila operária conta ainda com escola, farmácia, assistência médica, usina
elétrica e algum espaço para o lazer. Destes, a escola se destaca entre os equipamentos
disponíveis à família dos trabalhadores, pois sua função vai além da alfabetização,
objetiva ainda generalizar o modelo ideológico industrial, pautado na ordem e na
disciplina (MOREIRA, 2011).
Para Moreira (2011), sob o comando da indústria, a divisão territorial do
trabalho privilegiará a interação da fazenda 7 com a cidade, tornando-as espaços
funcionais, economicamente individualizados e como entes em intercâmbio. Nesse
contexto, as vilas operárias terão serventia e funções que vão além de moradias para os
operários.
A mudança vem com a divisão territorial do trabalho, no qual a cidade passa a
funcionar sob o ritmo da indústria e a fazenda também se modifica, vira campo,
fornecedora de alimentos e de matérias-primas e recebedora de industrializados vindos
da cidade.
O desenvolvimento do setor industrial necessita da regularização e da
normatização a vida do operário, disciplinar o tempo e o espaço dos homens e mulheres
que migram tanto da fazenda quanto da cidade para a fábrica.
Para tanto, a indústria

7
Moreira (2011) utiliza o termo fazenda, pois o momento histórico é influenciado pelos ciclos
econômicos (açúcar, algodão, café, borracha, etc.). Não há, portanto, relação cidade-campo, pois também
não havia cidade e campo no sentido econômico moderno. “Há cidade. Não há campo. Porque o que
existe é a fazenda, célula de um todo rural-mercantil, um ente cosmopolita por sua relação com o luxo
urbano que vem de fora e dela faz a própria matriz de uma sociedade agrária com forte assento na cultura
citadina.” (MOREIRA, 2011, p.112)

7
[...] necessita regulamentar a vida cotidiana desses homens e mulheres
na regularidade da rotina de horários e prazos do tempo-espaço do
relógio que disciplina e ordena a rotina do trabalho dentro da fábrica.
O que quer dizer baixar um regulamento de obediência obrigatória que
regule ao mesmo tempo dia a dia do trabalho na fábrica e na vila
operária, disciplinando homens e mulheres numa só consonância de
movimentos. (MOREIRA, 2011, p.113)

A vigilância e o controle tornam-se tônicos do espaço-tempo disciplinar da vila


operária. Pois, ao mesmo tempo em que fixam-se os operários nas imediações das
instalações fabris para a constituição de um mercado de trabalho cativo, ainda os
mantém sob o controle político e ideológico (BONDUKI, 1994).
Para Blay (1982 apud BONDUKI, 1994), a necessidade para a criação das vilas
operárias decorre de três motivações principais: a) de aspectos operacionais; b) de
mercado de trabalho; c) ou político-ideológicas.
Para a primeira motivação o argumento pauta-se na importância que os
trabalhadores têm para a continuidade do processo de produção (manutenção e
funcionamento). A segunda motivação consiste na dificuldade para obter mão de obra
qualificada ou mesmo de trabalhadores em geral devido à localização da fábrica. E a
terceira motivação parte do princípio de controle que ultrapassa o espaço-tempo do
trabalho na fábrica, pois, logo se associa a perda do trabalho com o despejo da casa,
assim evitando as greves e paralizações (BLAY, 1982, apud BONDUKI, 1994).
A exceção, no que tange ao afastamento do Estado na produção direta de
moradias, se deu de maneira específica e pontual. Logo no início do século XX, o
governo federal construiu vilas operárias, tais como: a Vila Marechal Hermes e a Vila
Orsina da Fonseca na cidade do Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2009), e a construção de
40 unidades em Recife pela Fundação Casa Operária (BONDUKI, 1994).
Portanto, a participação do Estado no enfrentamento à carência de moradias
populares mostrou-se, durante o período circunscrito ao período Imperial e à República
Velha, limitado e sem efeitos concretos. Limitado porque as ações eram dirigidas
principalmente para a capital do país, a cidade do Rio de Janeiro. E sem efeitos
concretos, pois, o modo de intervenção serviu para propiciar e facilitar a reprodução do

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capital numa escala local, ao mesmo tempo em que estimulou a formação de processos
espaciais urbanos correlatos, que são: a gentrificação e a expansão da fronteira urbana.
As consequências imediatas das ações estatais no plano habitacional
demonstraram ser nocivas socialmente e recaíram sobre, mais uma vez, à parcela da
população mais pobre. A essa população as ações foram duplamente perversas. Primeiro
porque as demolições dos cortiços e a consequente construção das moradias populares
nos “arrabaldes” da cidade produziram espaços intraurbanos segregados socialmente e
desiguais quanto ao acesso às urbanidades. Segundo, pois, as condições para a
reprodução da vida passaram a ter custos mais elevados, sobretudo em decorrência dos
deslocamentos diários até a área central, local privilegiado para o trabalho.

3. A QUESTÃO HABITACIONAL ANTE A REVOLUÇÃO DE 30

A ruptura da organização política no Brasil no ano de 1930 tem como origem


fatores de cunho externo e interno. No que tange ao fator externo mais significativo
destaca-se a Quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, cujas consequências
para a economia nacional foram consideráveis, uma vez que, baseava-se fortemente na
exportação de produtos primários, sendo o café o principal produto.
Por outro lado, os fatores internos relacionavam interesses de ordem política e
econômica. Destarte, dentre os estados mais fortes economicamente, o Rio Grande do
Sul era o único que não dependia fundamentalmente dos mercados externos, pois tanto
o arroz quanto o charque que produzia destinavam-se principalmente ao mercado
nacional. Portanto, a depressão econômica que afetou São Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro fortaleceu, ao mesmo tempo, a oligarquia gaúcha liderada por Getúlio Vargas. E
ainda, a ruptura da aliança conhecida como “café com leite” por parte da elite paulista
conduziu os políticos mineiros a apoiar a Revolução de 30 (BUENO, 2010).
A sustentação política inicial desse novo regime contava com atores sociais que
até então não participavam do poder central de maneira direta, tais como os tenentes,
classes médias, oligarquias periféricas. Todavia, esses atores não possuíam força
suficiente para a manutenção do regime no poder do governo federal. Vargas busca

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legitimar o poder do novo Estado brasileiro com a incorporação das massas populares
urbanas (BONDUKI, 1994).
Após 1930, segundo Bonduki (1994), o Estado brasileiro formula políticas
econômicas e sociais com características bem definidas, mesmo que às vezes fossem
contraditórias e descontínuas. Para o autor, o governo Vargas impulsionou uma política
voltada aos trabalhadores e concomitantemente produziu uma estratégia de
desenvolvimento industrial.
A expansão da atuação do Estado é acompanhada por novos processos
econômicos e de organização social. Ao mesmo tempo em que se consolida o padrão de
acumulação urbano-industrial, também emergem as demandas das massas populares
urbanas, com destaque para a habitação. É nesse contexto que Vargas cria o Ministério
do Trabalho e demais agências de bem-estar social (MELO, 1990).
A forte crise nacional de habitação popular da década de 1930, apresentada por
Melo (1990), Bonduki (1994) e Trompowsky (2004), é resultado de um desdobramento
histórico no qual a participação do Estado no provimento das moradias era
desconsiderada pelos ideais liberais que dominavam o pensamento político desde o
século XIX.
Para Bonduki (1994), a intervenção do Estado na questão habitacional a partir da
década de 1930 possui dupla motivação. A primeira está no sentido de ampliar a
legitimidade do regime a partir do apoio das massas populares urbanas, uma vez que, a
crise da habitação representava um ônus considerável para a classe trabalhadora, assim,
a formulação de um programa de produção de moradias e de uma política de proteção
ao inquilinato lograria ampla aceitação nesse segmento social. A segunda motivação
consiste na necessidade de “viabilizar uma maior acumulação de capital no setor urbano
através da redução do custo de reprodução da força de trabalho” (BONDUKI, 1994,
717).
Todavia, as motivações para a intervenção estatal na resolução da crise
habitacional não culminaram de fato em uma política habitacional estruturado e
harmonioso durante a Era Vargas. Mesmo assim, é notório o papel assumido pelo
Estado quanto ao problema da habitação como uma questão social.

1
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De fato, as ações governamentais nesse período deram início à ideia de
habitação social. Destacam-se durante Estado Novo (1937-1945) duas medidas que
impactaram na forma de produção de habitações: a) a criação das carteiras prediais dos
Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs); b) a Lei do Inquilinato.
Segundo Melo (1990), a opção da aplicação dos recursos dos IAPs em habitação
se deve a forma de rentabilizar as reservas oriundas do depósito compulsório de
empresas e trabalhadores para o pagamento futuro de aposentadorias e pensões.
A produção de habitação pelos IAPs inicialmente era para atender os próprios
associados, mas, a partir do Decreto nº 1.749, de 1937, unidades habitacionais eram
construídas para venda e aluguel.
Cabe destacar que a produção de habitações era um objetivo secundário nos
IAPs, pois, o principal objetivo fundamentava-se em garantir a aposentadoria e pensões
aos associados. E ainda, a baixa rentabilidade dos investimentos em habitação para a
população de renda baixa conduziu os IAPs a reduzirem a produção da habitação social.
A melhor opção passa a ser os investimentos para a produção habitacional para as
populações de rendas médias e altas. Outro fato comum à época consistia na forma de
acesso às moradias ou ao financiamento habitacional nos institutos, no qual
predominavam a política clientelista, desenvolvida a partir do Ministério do Trabalho, a
quem se subordinavam os IAPs (BONDUKI, 1994). Dito de outra forma, não havia
critérios claros e objetivos na seleção dos contemplados às habitações produzidas pelos
IAPs.
Todavia, mesmo apresentando percalços, Bonduki (1994) ressalta que a
produção de unidades habitacionais pelos IAPs não foi desprezível. A título de
exemplo, o autor destaca que a produção ou financiamento estatal de habitação,
excluindo a produção realizada por estados e municípios, superou 120 mil unidades
habitacionais, e que somente no Distrito Federal (Rio de Janeiro), no período entre
1946-1950, a produção estatal de habitação representou cerca de 25% do total de
imóveis licenciados. Outros destaques, no que tange à produção dos conjuntos
habitacionais dos IAPs, fundamentam-se na localização das moradias em zona de
urbanização consolidada, bem como na qualidade dos projetos dos apartamentos e das

1
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casas com vistas aos conceitos arquitetônicos e urbanísticos que predominavam na
época.
A importância da produção de moradias pelos IAPs está na forma inicial de
intervenção no qual o Estado é produtor e financiador. Mesmo com os problemas
apresentados, tais como, a baixa produção de habitação popular e o acesso clientelístico
às moradias, esse tipo de produção representa uma mudança de atuação no que se refere,
principalmente, ao combate à questão da crise habitacional.
Outra medida impactante na produção das habitações se deu a partir da Lei do
Inquilinato, em 1942, no qual se decretou o congelamento dos preços dos alugueis por
dois anos. Tal medida reforçou “[...] a tendência no sentido da construção de residências
de luxo para a venda ao invés da locação. A população se deparou com uma situação de
‘sobram casas para vender, faltam casas para alugar.’” (MELO, 1990, p.41, grifos do
autor)
O caráter populista da medida objetivava ampliar as bases de apoio do poder e
também mobilizar capitais internos para impulsionar o processo de industrialização.
Portanto, dentre as consequências do congelamento dos aluguéis destacam-se: estímulo
à produção de moradias de luxo para venda em detrimento aos investimentos privados
para a construção de moradias de aluguel para as rendas médias e baixas; ao mesmo
tempo, estímulo à venda das casas então alugadas e; liberação dos recursos para
aplicação de capitais na indústria (BONDUKI, 1994).
Entretanto, diante de uma economia com forte pressão inflacionária, os
proprietários dos imóveis utilizavam os pedidos de despejos como artifício para
aumentar a renda e, assim, com o imóvel novamente disponível, elevava-se o valor do
aluguel. Estima-se que somente na cidade de São Paulo, entre 1945 e 1948, 10% da
população foi despejada. A dificuldade na obtenção de moradia com aluguel acessível
fomentou a autoconstrução e o crescimento periférico da cidade enquanto “alternativas
habitacionais” para os trabalhadores (BONDUKI, 1994).
Tais alternativas se baseavam na redução ou eliminação do pagamento mensal
da moradia, todavia, a localização da casa autoconstruída, via de regra, situa-se em
áreas de risco (morros, margem de córregos e rios, áreas alagadiças, etc.), ou ainda, em

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loteamentos periféricos, e em ambas as situações, carentes ou com nenhuma
infraestrutura urbana.
A redução de investimento na construção de casas de aluguel levou ao colapso
da produção rentista o que acentuou a carência de habitações nas principais cidades do
país, conforme mostram Melo (1990) e Bonduki (1994), agravando ainda mais a crise
da habitação popular.
As repercussões da crise de habitação no fim da Era Vargas alcançaram o
discurso político, passando a ser parte fundamental dos programas eleitorais dos
candidatos à presidência. O retorno ao modelo democrático impunha ao Estado
brasileiro a necessidade de respostas às demandas sociais.
O contexto do pós-guerra transformou as relações políticas no Brasil, marcado
por um cenário de crise de habitação, crescimento das favelas e expansão das periferias.
A atuação pontual e sem resultados contundentes na habitação popular produziu um
efeito ainda mais perverso nas favelas, pois elas passaram a se constituir em um reduto
de base eleitoral e sujeito aos interesses momentâneos.
A “Politização das Favelas” é o termo utilizado por Melo (1990, p.42) no qual
designa o momento de “descoberta” das favelas na década de 1930 e que balizará as
políticas populistas da década de 1940. O discurso político utiliza, cada vez mais, os
termos “povo” e “morro”, e assim, busca cooptar as massas urbanas que cresce em um
ritmo acelerado. Nesse sentido, para Melo (1990, p.42):

As favelas se convertem gradativamente num território a ser


explorado, de uma parte, pelo sistema político que vislumbrava a sua
incorporação problemática à arena política, e, de outra parte, pela
Igreja, que estava empenhada numa política de rapprochement com o
Estado.

A participação da Igreja Católica é essencial na elaboração do discurso


conservador e de políticas habitacionais pontuais, com vistas principalmente à
contenção do pensamento comunista nas favelas. De acordo com Melo (1990), como a
Igreja alcançava tanto as favelas quanto as instâncias de decisão, a solução mais

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congruente para a estabilidade social sustentava-se na propriedade privada, ou seja, na
posse de um imóvel.
Conforme Trompowsky (2004), o Governo aceita a proposta da Igreja Católica e
cria a Fundação Leão XIII, cujo objetivo é atuar nas favelas para não permitir a irrupção
das massas urbanas, que colocaria em perigo à ordem estabelecida. Cabe assinalar
também que o processo de “descoberta das favelas” pelo Estado e pela Igreja se deu a
partir do agravamento dos conflitos pela terra urbana (Melo, 1990).
Com efeito, sobretudo na organização política de cunho conservadora e de
setores da Igreja Católica, a crise de habitação durante o governo Dutra (1946/1951)
conduziu a prática social a um consenso, incorporando as demandas dos setores sociais
populares e empresariais do ramo da construção civil. A estratégia política
providenciou, com rapidez, o estabelecimento de uma instituição para a construção de
moradias populares, a Fundação da Casa Popular (FCP), em 1946 (MELO, 1990).
A seguir, o trabalho ressaltará os objetivos da FCP e os desdobramentos da
política urbana no campo habitacional durante a República Populista (1945-1964).

4. A FUNDAÇÃO DA CASA POPULAR

O quadro político no Brasil mudara após a Segunda Guerra Mundial. O país


voltara a ser uma democracia. O marechal Eurico Gaspar Dutra fora eleito no final de
1945, cuja campanha eleitoral incluíra a questão habitacional na agenda política.
A FCP, o primeiro órgão estatal voltado exclusivamente para a provisão de
moradias à população de renda baixa, foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 9.218, em data
representativa para os trabalhadores, 1º de maio de 1946. Destacam-se neste decreto os
artigos: Artigo 6º - estabelece a preferência para aquisição ou construção de moradia, na
seguinte proporção, 60% para trabalhadores em atividades particulares, 20% servidores
públicos ou de autarquias e 20% para outras pessoas; Artigo 7º - a moradia adquirida
não pode ser objeto de negócio, destinando-se exclusivamente, à habitação dos
beneficiários e seus dependentes; e o Artigo 11 – Os Governos (em todos os níveis de

1
4
poder) ficam autorizados a desapropriar terrenos destinados à construção de moradia
popular.
Tais artigos apresentam novidades no que tange aos critérios e as condições para
a aquisição da moradia produzida pela FCP, bem como ainda, a desapropriação
enquanto instrumento de política urbana que busca garantir o acesso e a prevalência do
direito ao espaço urbano às classes populares.
Entretanto, segundo Melo (1990), a criação da FCP se deu em meio ao
acirramento político da época, com diferentes projetos políticos, incluindo o retorno do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) às eleições. A bancada do PCB para a Assembleia
Constituinte era formada por 14 deputados e um senador, perfazendo 9% do eleitorado
(AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Duras críticas à criação da FCP foram feitas por associações profissionais, como
foi o caso do Instituto de Arquitetura e Clube de Engenharia; por sindicatos, com
destaque para o Sindicato da Indústria da Construção Civil; além da oposição político-
partidária, tanto com a União Democrática Nacional (UDN) quanto com o PCB, cada
qual alegando pontos demagógicos e/ou ideológicos à criação da FCP (MELO, 1990).
O esforço do governo Dutra para a criação da FCP consistia em atender tanto as
necessidades para o desenvolvimento do setor industrial, a partir da redução do custo de
reprodução da força de trabalho, quanto para ampliar o apoio das massas populares
urbanas com as políticas distributivas contidas nos objetivos fundantes da instituição
(MELO, 1990).
Todavia, apenas com o Decreto-Lei n.º 9.777, de 1946, é que a FCP passa a ter
objetivos claros e bases financeiras para funcionar como uma instituição para o
financiamento e provisão de casas populares. Para Azevedo e Andrade (2011, p.2, grifo
do autor), com esse decreto a FCP passaria “[...] a ter a possibilidade de atuar em áreas
complementares que fariam dela um verdadeiro órgão de política urbana lato sensu.”. E
ainda, tal medida refletia “[...] a percepção de que não era possível enfrentar o problema
de moradias sem atacar os entraves representados pela ausência de infraestrutura física e
de saneamento básico.” (AZEVEDO; ANDRADE, 2011, p.3)

1
5
Os objetivos iniciais da FCP, conforme apresentado por Azevedo e Andrade
(2011), com o passar dos anos, a experiência se encarregaria de demonstrar o quão
irrealista e pretenciosas eram tais metas. Todavia, a proposta grandiosa de um órgão que
atendesse toda a demanda das políticas urbanas, de certa forma, evidenciou que não
bastava “apenas” prover a população com moradia, mas inserir a moradia no todo
urbano, ou seja, garantir à população que sua moradia estivesse incluída ao espaço da
cidade.
A boa intenção contida nos objetivos iniciais da FCP em seguida foi submetida
aos interesses do plano político e nas dificuldades técnicas e financeiras. Entende-se,
portanto, que:

A tarefa era desproporcional à força, aos recursos e à maturidade


institucional da Fundação da Casa Popular. Não eram apenas
constrangimentos de ordem técnica, financeira e administrativa que
tornavam inviável a abertura de tantas frentes de trabalho. No plano
político, muitos desses objetivos poderiam ser considerados assuntos
de “peculiar interesse” do município, faltando-lhe competência
constitucional para atuar livremente nessas áreas. (AZEVEDO;
ANDRADE, 2011, p.3)

O que se destaca no trecho supracitado é a disputa por prestígio político a partir


da divisão de poderes institucionalizados, que por sua vez, evidenciam que a prioridade
não possui foco no social, com vistas à “possível solução” do problema habitacional,
mas sim no plano político-eleitoreiro.
Outro grave problema apontado por Azevedo e Andrade (2011) centrava-se nas
fontes de financiamento da FCP, pois estas dependiam basicamente dos Estados para o
recolhimento do imposto de 1% (um por cento) sobre o valor do imóvel adquirido, cujos
preços fossem superiores a 100 mil cruzeiros. Contudo, a FCP carecendo de
instrumentos de pressão política, muitos Estados se negaram a repassar ou nem mesmo
recolhiam o imposto devido. A inexistência de uma fonte fixa e segura para arcar com
as operações da fundação a deixava ao mesmo tempo refém das oscilações
orçamentárias da União.

1
6
Destarte, Melo (1990) e Azevedo e Andrade (2011) afirmam que foram feitas
adaptações nos objetivos da FCP em 1952 no sentido de reduzir as atividades
complementares da mesma. Somente em casos excepcionais é que a FCP se
responsabilizaria pelas obras de urbanização, principalmente em municípios com
orçamentos reduzidos, mas sob a garantia de taxas ou contribuições.
Desse modo, entende-se que muitos municípios, diante da incapacidade de arcar
com as taxas ou contribuições para as atividades complementares à produção de
habitações da FCP, introduziram na realidade social das cidades outros tipos de
perversidades sociais. Parte da população era contemplada com uma casa, todavia, a
localização desta comumente se apresenta sem ou com poucos atributos urbanísticos e
em áreas não contíguas ao sítio urbano. Dito de outra forma, há claramente a
constituição de uma política de provisão de habitação e não uma política habitacional no
sentido amplo, pois, prioriza-se a construção de conjuntos habitacionais, entretanto,
estes são precariamente atendidos por abastecimento de água, rede de esgoto, rede
elétrica e equipamentos públicos.
Associado à execução parcial da política urbana contida nos projetos financiados
ou produzidos pela FCP destacam-se, ao mesmo tempo, os critérios para a distribuição
dos conjuntos residenciais nas diversas cidades, uma vez que, estes critérios “eram
casuísticos e não obedeceram a nenhum planejamento sistemático” (MELO, 1990,
p.51), e ainda, em grande medida, arbitrários e marcadamente caracterizados pelo
padrão clientelístico, no qual, a FCP passa a responder às diversas pressões políticas
(MELO, 1990).
Dessa forma, a disponibilização do terreno pela prefeitura à FCP era uma
condicionante importante para a cidade ser contemplada. Todavia, a atuação da FCP
frente ao enfrentamento da questão habitacional no país ficou comprometida, pois,
amarrou-se aos interesses políticos locais, que são em grande medida e por sua vez,
difusos aos objetivos fundantes do órgão federal.
Nesse sentido, a relação entre a FCP e os municípios pleiteantes reforça o modo
predatório que prevaleceu ao confronto à crise habitacional. Melo (1990) assevera,

1
7
Desejosos de demonstrar prestígio político, políticos locais obtinham a
construção de casas sem proceder a estudos preliminares e
levantamentos. Uma vez realizada a construção, as amortizações
mensais estavam além do poder aquisitivo local e não se apresentavam
candidatos solváveis. Daí a existência de casos em que conjuntos
permaneceram desabitados por vários anos. (MELO, 1990, p.53)

A associação da FCP e o poder local não só permitiu a continuidade das


desigualdades sociais, como agravou-as, haja vista aos índices de urbanização e
favelização que o Brasil apresentou durante as décadas de 1940 até meados de 1960. A
título de exemplo, para Santos (2009), a urbanização brasileira destaca que entre 1940 e
1980 dá-se a verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira.
A taxa de urbanização em 1940 era de 26,35%, ao passo que, em 1980 alcança 68,86%.
Nesses quarenta anos a população triplica, ao mesmo tempo, a população urbana se
multiplica por sete. Por outro lado, Maricato (s/d) 8 assevera que o processo de
crescimento das favelas no país é parte do processo de urbanização à luz da
“industrialização com baixos salários” que cria, por sua vez, um mercado de moradias
restrito e concentrado. O processo de urbanização combinou modernidade com
exclusão. A característica do Brasil urbano do século XX perpassa pela concentração de
terras, renda e poder.
O acesso à moradia era limitado devido a certos fatores, tais como: restrições de
informação, de prazo, de número de inscrições e de unidades oferecidas, conforme foi
apontado por Azevedo e Andrade (2011).
Mas, não são apenas por esses fatores de ordem técnica que se explica a reduzida
extensão da política habitacional proposta à época. Hão de se incluir as razões
propositalmente produzidas pela ideologia dominante, no qual, o sistema capitalista cria
tanto o discurso quanto à prática de confrontar os problemas sociais, todavia, sem
intenção de resolvê-los.
A obra de Azevedo e Andrade (2011) ainda destaca os números da produção de
casas e conjuntos da Fundação da Casa Popular, até dezembro de 1960, de acordo com

8
Ver mais em: Maricato, E. Favelas – um universo gigantesco e desconhecido. Disponível em:
http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_favelas.pdf > Acesso em: 2 de abril
de 2015.

1
8
o tamanho populacional das cidades (Tabela 1) e a distribuição das mesmas nas regiões
do país (Tabela 2).

Tabela 1 – Casas e conjuntos construídos pela FCP, por tamanho populacional


das cidades até 31 de dezembro de 1960
Tamanho Casas % Número de %
populacional das construídas conjuntos
cidades construídos
Até 5.000 836 5 22 15
5.000 a 10.000 914 5 24 17
10.000 a 20.000 1.109 7 22 15
20.000 a 50.000 2.586 15 35 25
50.000 a 100.000 2.157 13 19 13
+ de 100.000 9.362 55 21 15
Total 16.964 100 143 100
Fonte: Adaptado de Azevedo e Andrade (2011, p.15)

A localização espacial das casas e conjuntos estava em consonância com as


necessidades habitacionais do país, pois, era nas grandes cidades que a falta de
habitação era mais crítica. Entretanto, chama a atenção o fato de os municípios com até
50.000 mil habitantes responderem por 32% das casas e 72% dos conjuntos. Ou seja, a
distribuição de casas e conjuntos nas cidades menores não se relaciona apenas com as
políticas distributivas de casas populares, mas, sobretudo pelas vantagens políticas
alcançadas.

Tabela 2 – Casas e conjuntos construídos por região, até dezembro de 1960 pela
FCP
Regiões Número de casas % Número de conjuntos %
construídas construídos
Norte - - - -
Nordeste 2.317 14 31 22
Centro-oeste 1.860 11 10 7
Sudeste 11.837 70 84 60
Sul 950 5 18 11
Total 16.964 100 143 100
Fonte: Adaptado de Azevedo e Andrade (2011, p.16)

1
9
A concentração de casas e conjuntos por região também evidencia o fator
político enquanto critério para a construção dos mesmos. Tal fato é destacado pela
contradição que segue, pois, mesmo o Sudeste sendo a região mais populosa e
respondendo por 60% das casas e 70% dos conjuntos construídos pela FCP, o estado de
São Paulo, mais populoso e a época com número maior de municípios, não está na
primeira posição quanto ao número de construções. Minas Gerais e Rio de Janeiro
(antigo estado da Guanabara) são os maiores beneficiados por conta das lideranças
políticas e arranjos regionais de poder, a exemplo da força política encabeçada por
Juscelino Kubitschek na presidência da República (AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Chama a atenção também o fato de que o número total de casas e conjuntos
construídos não ter sido maior (Tabela 3), pois, diante do discurso de crise da habitação
e dos índices de urbanização que o país apresentava, a FCP entregou até dezembro de
1960, 16.964 casas e 143 conjuntos habitacionais.

Tabela 3 – Casas e conjuntos construídos por Estados, até dezembro de 1960,


pela FCP
Estados Número de casas % Número de %
construídas conjuntos
construídos
Rio Grande do 240 1,5 7 5
Norte
Bahia 100 0,5 4 3
Minas Gerais 4.248 25 46 32
Rio de Janeiro 3.993 24 5 3
(antigo Estado
da Guanabara)
São Paulo 2.959 17 24 17
Mato Grosso 160 0,5 2 1
Goiás 180 1 4 3
Fonte: Adaptado de Azevedo e Andrade (2011, p.16)

Os números tacanhos e a distribuição das casas e conjuntos pelos estados,


conforme apresentados na Tabela 3, permitem entender que a produção de habitações
pela FCP não foi de fato para resolver o “problema da crise da moradia”, pelo contrário,

2
0
fez deste problema uma bandeira política com fins eleitoreiros. Em outras palavras, a
partir da necessidade real de produção de moradias para as classes pobres criou-se um
discurso de que o Estado deveria atacar o “problema”, em seguida, criou-se um órgão
estatal que seria responsável por produzir as habitações populares, a FCP, todavia, tanto
o discurso quanto a prática tiveram o papel de ludibriar a população pobre e nunca por
fim ao mesmo.
Destarte, Azevedo e Andrade (2011) asseveram que a preocupação do governo
perpassava por apresentar respostas às demandas sociais face à situação política com
viés revolucionário, no qual, subjacente ao programa habitacional proposto, tinha-se a
ideia de propagar a propriedade privada enquanto fator de estabilidade política, ao passo
que, o trabalhador lograria, simultaneamente à moradia, civilidade, sucesso e ascensão
social.
A agitação política do Brasil em meados do século XX, fez com que o Estado,
com características conservadoras, produzisse estratégias demagógicas e ações
reformistas com vistas ao controle coercitivo às questões sociais, econômicas e
políticas.
Nesse sentido, “aos governos populistas não interessava ‘resolver o problema’,
ou equacionar os termos da solução, mas, antes, dele derivar dividendos políticos, quer
sob a forma de votos, quer de prestígio.” (AZEVEDO; ANDRADE, 2011, p.34-35,
grifos dos autores)
Portanto, o período entre 1962 a 1964 levou a FCP a ser vista como um órgão
completamente ultrapassado e incapaz de resolver a questão habitacional. Com a
derrubada do Governo de João Goulart pelo Golpe Militar de 31 de março de 1964,
tem-se o fim do modelo populista de política habitacional, ao passo que, no mesmo ano
da extinção da FCP surge o Banco Nacional de Habitação (BNH) enquanto a instituição
estatal responsável para por em prática o Plano Nacional de Habitação e, assim, ganhar
apoio tanto das massas populares quanto dos empresários e industriais da construção
civil.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

2
1
A atuação do Estado quanto à questão da habitação apresenta dois momentos
distintos na história brasileira. O primeiro momento corresponde ao período Imperial e
República Velha, ante a influência do paradigma liberal, no qual a participação estatal
se restringiu aos decretos e leis que regulamentaram o uso e ocupação do solo urbano e
ainda, às concessões de incentivos para a construção de moradias populares pelo capital
privado. O segundo momento iniciado com a Revolução de 1930 marca nitidamente a
participação do Estado como agente produtor de moradias populares, contudo, tal
realização não se deu sem uma série de contradições e descontinuidades.
A criação da primeira instituição voltada para a produção de habitações
populares, a Fundação da Casa Popular, logo nos primeiros anos da República
Populista, a princípio colocou a carência de moradias como problema a ser solucionado.
Entretanto, os interesses político-partidários prevaleceram em detrimento dos sociais,
dos quais podem ser descritos os modos predatórios e clientelísticos para a obtenção de
uma moradia.
Em resumo, a introdução de políticas habitacionais na pauta dos governantes se
revelou duplamente eficaz. Em primeiro lugar, as ações estatais no plano habitacional
foram caracterizadas pela habilidade em criar um discurso que atingia às massas
populares urbanas e assim garantir a existência de uma base de apoio político. E no
segundo momento, a inoperância estatal frente ao tamanho das necessidades de
moradias criou um círculo vicioso, no qual a população mais pobre era iludida
continuamente, pois, apenas uma parcela muito pequena era contemplada com uma casa
enquanto a maioria acreditava que seria atendida e, por isso, ainda votava naqueles
candidatos que discursavam sobre a priorização no “combate à crise de moradias”.
Desse modo, as consequências dessas ações estatais no plano habitacional
produziram e agravaram as perversidades sociais ao longo do tempo. Desde então, o
modo de enfrentamento do Estado brasileiro à questão habitacional não produziu
espaços urbanos menos desiguais social e economicamente. Pelo contrário, as políticas
urbanas não foram bem conduzidas, pois, criaram e reforçaram os problemas inerentes

2
2
ao processo de urbanização, nos quais os custos sociais são elevadíssimos para a parcela
mais pobre da população.

REFERÊNCIAS

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