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PUC-SP
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA
INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA
INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
SÃO PAULO
2014
Banca Examinadora
_________________________________________
________________________________________
________________________________________
DEDICATÓRIA
Ao meu orientador Prof. Dr. Fábio Fernandes por acreditar nesse trabalho e pela paciência e
compreensão durante todo o processo.
À PUC-SP e à sempre atenciosa Edna Conti pelo apoio constante durante esse período.
Agradeço também à todos os colegas do TIDD com quem tive o prazer de conviver, debater e
aprender ao longo desses dois anos.
RESUMO
This research aims to verify how videogames allow the creation, sharing and
collaboration of user-generated content, and the characteristics of fan communities that are
created to such objective. For this work we minimally define videogames as digital games that
are dependent of a computational support for its realization. Some useful videogames for the
better understanding of the activities of creation and alteration of content by players and the
manner they happen, particularly the creation of mods: the name commonly used to refer to
the practice of alteration of a videogame’s characteristics through the manipulation of files
and/or processes that are constitute it, resulting in a different experience from the one
originally planned by its developer. With this we try to offer clues and pointers towards a
deeper understanding of the manners the roles of producer and consumer, author and user,
player and fan are transforming with the ascension of new technologies and now (digital)
media. With this intent we give special attention to the players turned “modders” – amateur
content creators for a specific videogame -, through the online communities engaged in the
creation and distribution of this kind of content. Three author groupings are used as
theoretical foundation for this research. The first é composed by authors that helps us to think
questions regarding participatory culture and the promises of the internet, among them we can
cite Howard Rheingold, Sherry Turkle, clary Shirky, Axel Bruns and particularly Mizuko Ito
and Henry Jenkins. In the second grouping Katie Salen and Eric Zimmerman and Jesper Juul
offer the concepts that allow us to take into account the expressive dimensions od
videogames. The third grouping, with a special emphasis in the works of Olli Sotamaa, David
Nieborg and Julian Kucklich that offers us empirical study cases for us to study the questions
related to modding as a productive practice. We attempt to operationalize a theoretical
perspective that deal with the expressive potential of videogames and how the interventions
characterized as mods are one of the most intriguing ways to subvert the author/user and
producer/consumer relationships. We also attempt to suggest similarities and differences
between videogames and other media. Other objective is to enrich the debate regarding online
participation and the artifacts it produces, trying to think participatory culture and the media
convergence in the contemporary consumption and production practices through videogames.
Palavras-chave: digital games, videogames, user-generated content, online interest-
driven communities, participatory culture, modding, fan, fandom.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Equipamento montado para Tennis for Two e foto aproximada do osciloscópio em
funcionamento (esquerda) e PDP-1 e monitor com SpaceWar! sendo executado (direita) ..... 29
Figura 2 - Tela Inicial Adventure e dois comandos “yes” e “walk north” ............................... 35
Figura 3 - Versão caseira de Pong (esquerda acima), Atari 2600 (esquerda abaixo), fliperama
original Pong (direita)............................................................................................................... 42
Figura 4 - Da esquerda para a direita: Atari 400, Apple II e IBM PC 5150 ............................. 45
Figura 5 - Fragmento da revista Compute! Magazine, outubro de 1984 .................................. 47
Figura 6 - Relação entres os três agrupamentos propostos: Regras, interação lúdica e cultura54
Figura 7 - Anúncio em revista de "trainer" para Castle Wolfenstein (esquerda). Tela inicial em
sua original e modificada (direita) ............................................................................................ 74
Figura 8 - Tela do jogo Lode Runner em andamento ............................................................... 77
Figura 9 - Menu do Editor de Níveis em Lode Runner ............................................................ 79
Figura 10 - Tela principal de Pinball Construction Set ........................................................... 82
Figura 11 - Tela de jogo modo um jogador (esquerda). Modo editor de pistas (direita) ......... 84
Figura 12 - Telas dos videogames Hovertank 3D (esquerda) e Catacomb 3D (direita)........... 92
Figura 13 - Castle Wolfenstein (esquerda) e Wolfenstein 3D (direita) ..................................... 92
Figura 14 - Wolfenstein 3D com modificação feita por jogador via hack (esquerda) e tela do
videogame Shadowcaster utilizando mesmo motor de jogo .................................................... 95
Figura 15 - Seleção de telas: Doom versão original (esquerda acima) e mods Brutal Doom
(direita acima), Star Wars (esquerda abaixo) e Aliens Total Conversion (direita abaixo) ..... 100
Figura 16 - Captura de tela do primeiro nível de Quake (acima) e captura de tela de vídeo com
melhores momentos de competição realizada na QuakeCon 2013 (abaixo) .......................... 105
Figura 17 - Modelos alternativos de personagens para partidas multijogador criados por
jogadores/artistas amadores. Da esquerda para direita: “Tis”, “Sonic” e “Gaben Helm” ...... 107
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1 ORIGENS DAS PRÁTICAS PARTICIPATIVAS EM VIDEOGAMES ............ 19
1.1 FÃS, FANDOMS E MODDING ................................................................................ 24
1.2 SPACEWAR! .............................................................................................................. 28
1.3 COLOSSAL CAVE ADVENTURE E O SURGIMENTO DOS VIDEOGAMES DE
AVENTURA EM TEXTO .......................................................................................... 33
1.4 MULTI-USER DUNGEONS: MUNDOS VIRTUAIS EM FORMA DE TEXTO .... 37
1.5 FLIPERAMAS, COMPUTADORES PESSOAIS E CONSOLES DE VIDEOGAMES
..................................................................................................................................... 41
1.5.1 Computadores pessoais e a criação de um mercado consumidor................................ 44
1.5.2 A indústria de jogos para computador dá seus primeiros passos ................................ 48
1.5.3 O crash dos consoles caseiros e o surgimento de um novo líder ................................ 49
1.6 AS FORMAS DO CONTEÚDO GERADO POR USUÁRIO EM VIDEOGAMES . 50
2 MODDING SOB O OLHAR DAS REGRAS, INTERAÇÃO LÚDICA E
CULTURA ................................................................................................................. 53
2.1 REGRAS, INTERAÇÃO LÚDICA E CULTURA..................................................... 53
2.1.1 Definindo “jogo” ......................................................................................................... 58
2.1.2 Regras .......................................................................................................................... 60
2.1.3 Interação lúdica (play) ................................................................................................. 62
2.1.4 Cultura ......................................................................................................................... 63
2.2 JOGOS COMO CULTURA ABERTA E AUTORIA DA EXPERIÊNCIA .............. 65
2.2.1 Sistemas de Jogos, Ferramentas de edição e criação e Motores de Jogos .................. 68
2.2.2 Código fonte aberto ..................................................................................................... 71
2.2.3 Cheats, Exploits e Hacks ............................................................................................. 71
2.3 PRIMEIROS EXPERIMENTOS EM CONTEÚDO GERADO POR USUÁRIOS ... 76
2.3.1 Lode Runner (1983) .................................................................................................... 76
2.3.2 Pinball Construction Set e os videogames de fazer videogames ................................ 80
2.3.3 Excitebike (1984) ........................................................................................................ 83
2.4 ID SOFTWARE: A CRIAÇÃO DE UM GÊNERO, UM MODELO DE NEGÓCIOS
E UMA FORMA DE RELAÇÃO COM SEUS JOGADORES ................................. 86
2.4.1 Origens humildes, grandes ambições .......................................................................... 87
2.4.2 Commander Keen e Shareware ................................................................................... 88
2.4.3 Wolfenstein 3D, Jogos de Tiro em Primeira Pessoa e a busca pela imersão na
simulação. .................................................................................................................... 90
2.4.4 Doom ........................................................................................................................... 96
2.4.5 Quake e a popularização dos motores de Jogo .......................................................... 103
2.5 A EXPLOSÃO CAMBRIANA DOS JOGOS DE TIRO EM PRIMEIRA PESSOA
................................................................................................................................... 110
3 PLAYBOUR, INOVAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO: DILEMAS DA
PRODUÇÃO AMADORA NA ERA DA CONVERGENCIA DIGITAL .......... 116
3.1 ENCONTRANDO AS COMUNIDADES DE MODDING...................................... 121
3.2 O MODDER EM FOCO ........................................................................................... 127
3.3 PROFISSIONALIZAÇÃO E PLAYBOUR.............................................................. 130
3.4 INOVACÃO.............................................................................................................. 135
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 138
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 141
11
INTRODUÇÃO
1
Conhecido em inglês como “Game Engine”, pode ser descrito como o software utilizado como plataforma de
construção do jogo. Por meio dele, são combinados os vários elementos que o constituem (gráficos, animações,
sons, algoritmos de comportamento e regras do jogo, etc.) a fim de criar o programa executável que será
adquirido e jogado pelo jogador.
12
comumente utilizado para identificar toda sorte de plataforma para criação, compartilhamento
e categorização de conteúdo online gerado por usuários da internet. Apesar de geralmente ser
utilizado com certo viés comercial para denominar a ideia de software enquanto serviço que
se tornou predominante em sites como MySpace, Facebook, Tumblr e tantos outros que
surgiram e se foram desde 2005, quando O’Reilly (O’REILLY, 2007) popularizou o termo, o
fato é que temos que admitir que houve uma profunda transformação na relação entre usuários
e produtores de conteúdo e informação online na última década. A explosão das redes sociais,
dos blogs e o sucesso de experiências como a Wikipédia são apenas os casos mais
emblemáticos de um movimento que ainda está em processo.
Essas tendências de aproximação entre consumidores e produtores cada vez mais
presentes em outras mídias, conforme elas progressivamente assumem plataformas de
produção e consumo digitais, desde muito cedo fazem parte das práticas de autores e
jogadores de videogames. Como discutiremos ao longo do segundo e terceiro capítulo,
ferramentas que permitem a jogadores produzirem e compartilharem conteúdo original criado
por eles existem desde pelo menos os anos 80. É possível inclusive argumentar, com faremos,
que alguns dos primeiros videogames como SpaceWar! e Colossal Cave Adventure,
distribuídos gratuitamente a partir dos anos 60 e 70 respectivamente, possuíam implícita a
abertura para a alteração e modificação de seu conteúdo por jogadores. Além disso,
discutiremos como a popularização dos computadores pessoais ofereceu a jovens entusiastas a
oportunidade de aprender programação através da modificação e experimentação com
videogames.
Podemos afirmar que pelo menos desde os anos 80 videogames comerciais de sucesso
foram lançados com ferramentas explicitamente desenvolvidas para a criação de conteúdo por
jogadores e essas ferramentas fizeram parte de seu apelo comercial. Ao longo do terceiro
capítulo, discutiremos Excitebike (Nintendo, 1983), Pinball Construction Set (Eletronic Arts,
1983) e Lode Runner (Brøderbund Software, 1983) enquanto casos emblemáticos dessa
situação.
Como discutiremos, a noção de abertura ao conteúdo gerado por usuário já era
corrente entre desenvolvedores e jogadores. Acredita-se que é mais apropriado, porém,
apontar os anos 90 como o período onde a ideia de modding toma sua forma mais bem
definida e explora com maior intensidade as possibilidades e os limites da ideia de um usuário
coautor da experiência. Buscaremos justificar como, ao menos em parte, esse fenômeno se
deveu à popularização do acesso à internet - que nesse período progressivamente tomou a
14
2
A game is a system in which players engage in an artificial conflict, defined by rules, that results in a
quantifiable outcome.
15
Rheingold e Sherry Turkle, mas que ganham proeminência a partir dos anos 2000. Utilizamos
como autores de referência para esses assuntos, principalmente, Clay Shirky, Axel Bruns,
Mizuko Ito e Henry Jenkins.
Dentre os autores citados, parece-nos importante enfatizar a importância dos dois
últimos. O trabalho de Henry Jenkins nos oferece boa parte do ferramental teórico que
utilizamos para discutir e analisar a maneira como as comunidades de modding se relacionam
com os artefatos midiáticos catalizadores de suas formações, seguindo as pistas e sugestões
oferecidas por ele ao estudar os fandoms enquanto casos especiais dos tipos de comunidades
de conhecimento, que se popularizam dentro do que ele chama de “cultura da convergência”.
Por outro lado, Mizuko Ito e o amplo estudo da interação por meio de comunidades e
serviços de comunicação online, especialmente entre jovens, feito por ela e seu grupo de
pesquisas, nos oferece ainda um ponto de partida para uma discussão das diferentes formas de
apropriação e produção amadora de artefatos culturais. A ênfase nas diferentes dinâmicas e
papéis dos participantes dessas comunidades propostas por Ito e sua equipe em Hanging out,
Messing Around, and Geeking Out (ITO, 2010b), nos oferecem uma entrada particularmente
útil na discussão do “aprendizado e produção coletiva de inovações sociais, culturais e
técnicas que estão radicalmente reconfigurando nossa paisagem midiática” (ITO, 2010a).
Por outro lado, a grande diversidade de tipos e formas de conteúdo gerado por usuário
encontrado quando analisamos os artefatos resultantes do trabalho dos membros dessas
comunidades, nos força a algumas distinções terminológicas importantes se desejamos
enfatizar uma em especial: o modding. Como argumentaremos no segundo capítulo,
acreditamos que os videogames são particularmente aptos à intervenção e alteração por parte
de usuários em dois níveis: enquanto fonte de inspiração e suporte para criação de artefatos
midiáticos tradicionais – imagens, vídeos e textos, por exemplo – e como plataforma para a
criação de artefatos midiáticos particulares aos videogames enquanto mídia digital.
Tentaremos, com base nos trabalhos de alguns autores ligados ao que se convencionou
denominar “game studies”, classificar qualitativamente as diferenças entre videogames e
outros objetos midiáticos. Utilizando alguns de seus conceitos, busca-se apontar as
particularidades das intervenções criativas que visam explorar essas características. Com a
ajuda especialmente de autores como Katie Salen e Eric Zimmerman, e Jesper Juul,
tentaremos operacionalizar uma perspectiva teórica que trabalhe sobre essa diferença e na
maneira como o poder retórico e expressivo de um videogame somente se realiza durante o
processo de experiência da simulação e como as intervenções classificadas como mod,
17
conceito que vamos retrabalhar ao longo de todo esse trabalho, é uma das maneiras mais
intrigantes de subversão das relações autor/usuário e produtor/consumidor.
Finalmente, através da análise de um corpo de trabalhos, especialmente artigos de
outros autores que lidaram com diferentes comunidades de modding, procuraremos encontrar
similaridades em suas fundações, práticas e nas relações com os desenvolvedores dos
videogames que são apropriados por elas.
A fim de realizar satisfatoriamente os objetivos assinalados previamente, decidimos
dividir esse trabalho em cinco capítulos, sendo três principais, cada um efetuando um
movimento distinto, mas complementar.
No primeiro capítulo, que compõe o primeiro movimento, são apresentados alguns dos
conceitos principais para pensarmos mídias digitais, em especial aquelas que permitem a
comunicação em rede e os videogames e certas formas de cultura participativa que surgem da
intersecção delas. Também tentaremos dar início a uma narrativa que destaque alguns dos
casos mais interessantes de abertura à intervenção criativa que ocorreram ao longo da história
dos jogos eletrônicos, apontando por um lado seu contexto e por outro sua importância. Para
isso, alguns videogames foram selecionados e divididos em subcapítulos, nos quais se tentará
expor mais pormenorizadamente as características que se julga torná-los especiais para a
discussão desse trabalho. Por fim, tentaremos justificar através da combinação desses dois
argumentos a discussão que se dará no capítulo seguinte.
O segundo capítulo se ocupará em trazer autores ligados aos game studies e uma
discussão teórica que tente ligar as práticas apresentadas com a perspectiva do jogador como
produtor e da ideia de apropriação do sistema de jogo. Buscaremos equilibrar com base na
metodologia apresentada por Katie Salen e Eric Zimmerman, as três dimensões pelas quais
um jogo pode ser entendido: regras, interação lúdica e cultura e como elas se relacionam às
formas de intervenção transformadora que jogadores podem efetuar. Acredita-se que uma
clarificação nesse sentido ajuda a embasar com maior propriedade a discussão do capítulo
seguinte.
No terceiro capítulo, será feita uma discussão utilizando as características levantadas
pelos trabalhos de outros autores que lidaram com comunidades de modding específicas, para
discutir as relações entre desenvolvedores e fãs nelas travadas. Em especial, tentaremos
chegar a uma definição de mod que leve em consideração as formas de expressividade
particulares de um videogame em relação às outras mídias e avaliação prática das formas
como as atividades de modding subvertem uma série de papéis na relação do usuário com o
videogame.
18
E também:
3
A game is a system in which players engage in an artificial conflict, defined by rules, that results in a
quantifiable outcome.
4
A game is a rule-based system with a variable and quantifiable outcome, where different outcomes are assigned
different values, the player exerts effort in order to influence the outcome, the player feels emotionally attached
to the outcome, and the consequences of the activity are negotiable.
20
5
[...] on the first, a medium is a technology that enables communication; on the second, a medium ia a set of
associated “protocol” or social and cultural practices that have grown up around that technology. Delivery
systems are simply and only technologies; media are also cultural systems. Delivery technologies come and go
all the time, but media persist as layers within an ever more complicated information and entertainment stratum.
21
6
Because they are voluntary, people do not remain in communities that no longer meet their emotional or
intellectual needs. Because they are temporary, these communities from and disband with relative flexibility.
25
Parece-nos importante notar o uso do termo “fã” na citação acima. No início de sua
carreira acadêmica, Jenkins estudou com atenção a maneira como grupos de fãs de
determinadas propriedades intelectuais de massa, em especial fãs de séries de televisão e
livros, se relacionavam com o objeto de seu interesse e, mais particularmente, uns com os
outros na construção dessas comunidades. O fã, entendido em oposição ao consumidor casual
de um determinado produto midiático, é o indivíduo que busca consumir ativa e criticamente.
Ao longo dos anos 80 e 90, Jenkins escolheu essas comunidades como objeto de
estudo, especialmente pelo caráter “grassroots” das suas práticas de produção e consumo de
conteúdo midiático. A expressão grassroots, que poderia ser traduzida literalmente como
“raiz de grama”, tem sua origem ao descrever movimentos ou mobilizações sociais de base
popular, organizados fora do modelo de participação política tradicional, envolvidos em uma
determinada causa social, mas Jenkins a utiliza para descrever também a maneira como
comunidades de fãs que estudou operavam (JENKINS, 2006a, p. 257).
Jenkins aponta que são as políticas de consumo de mídia que são contestadas por essas
comunidades de fãs e não necessariamente temas ligados à política tradicional. Fãs fazem uso
de imagens e conceitos provenientes da cultura de massa, base de entendimento comum
compartilhada por esses indivíduos, para questionarem seu status subordinado, vislumbrar
alternativas e expor suas frustrações a respeito da sociedade. Essa ideologia contestadora, no
entanto, não precisa ser um elemento explícito do objeto de fandom, que muitas vezes faz
justamente o oposto ao reforçar estereótipos e ao ignorar grupos subalternos. É justamente a
comunidade de fãs, através de práticas de reapropriação e ressignificação desses objetos
culturais, que pode fornecer-lhe um espírito de resistência cultural. (JENKINS, 2006b, p.60)
O fã é o indivíduo que consome entusiasticamente um determinado produto ou
conjunto de produtos culturais de massa, muitas vezes procurando aprofundar, expandir e
refletir quanto ao próprio conhecimento sobre eles, integrando-os em sua própria experiência
social cotidiana. “Para o fã, o consumo naturalmente inspira produção, leitura gera escrita, até
que esses termos pareçam logicamente inseparáveis” (JENKINS, 2006b, p.41).
Because they are tactical, they tend not to last beyond the tasks that set them in motion. Sometimes, such
communities can redefine their purpose. Insofar as being a fan is a lifestyle, fans may shift between one series
and another many times in the history of their affiliation. Yet, as a fan community disbands, its members may
move in many different directions, seeking out new spaces to apply their skills and new openings for their
speculations, and in the process those skills and new openings for their speculations, and in the process those
skills spread to new communities and get applied to new tasks.
26
O fã, enquanto fenômeno sociológico, só passa a existir quando traduz esses processos
individuais em alguma forma de atividade cultural, através do compartilhamento desses
sentimentos e pensamentos com outros fãs daquele mesmo objeto cultural. O poder do fã é
transformar reações pessoais em interações sociais e uma cultura do espetáculo em cultura
participativa. Jenkins utiliza-se do termo “fandom” para denominar as organizações sociais e
as práticas culturais criadas pelos mais apaixonadamente engajados consumidores de
propriedades midiáticas de massa.
Fãs e fandom precedem a internet enquanto fenômenos sociais, tendo suas origens já
no século XIX com as primeiras comunidades de leitores. Dito isso, as possibilidades de
interação que o surgimento da conexão de computadores via redes online determinou um
ponto de mudança epistemológico para a noção de inteligência coletiva e para como
comunidades de fãs se formam e organizam. Se fandoms já eram uma espécie de comunidade
de conhecimento bem antes da internet, o novo ambiente digital aumentou a velocidade e o
alcance dos fluxos de comunicação entre seus integrantes.
Outro ponto que Jenkins levanta repetidamente é a progressiva influência que fãs
passam a ter sobre os artefatos midiáticos que lhe são caros. Se antes essa influência tinha
7
Fans reject the idea of a definitive version produced, authorized, and regulated by some media conglomerate.
Instead, fans envision a world where all of us can participate in the creation and circulation of central cultural
myths. Here, the right to participate in the culture is assumed to be “the freedom we have allowed ourselves”, not
a privilege granted by a benevolent company, not something they are prepared to barter away for better sound
files or free Web hosting. Fans also reject the studio’s assumption that intellectual property is a “limited good”,
to be tightly controlled lest it dilute its value. Instead, they embrace an understanding of intellectual property as
“shareware”, something that accrues values it moves across different contexts, gets retold in various ways,
attracts multiple audiences, and opens itself up to a proliferation of alternative meanings.
27
alcance e escopo reduzidos em função, ao menos em parte, das limitações dos sistemas de
entrega disponíveis – em sua grande maioria fanzines e outras formas amadoras de produção
distribuídas em feiras e encontros promovidos por eles - “ao longo da última década a Web
levou esses consumidores das margens da indústria de mídia em direção aos holofotes; [e a]
pesquisa a respeito de fandom foi abraçada por importantes pensadores nas comunidades
acadêmicas ligadas ao direito e aos negócios” (JENKINS, 2006a, p.257). Isso se dá, é claro,
em função da importância cada vez maior dada pelos conglomerados midiáticos a
consumidores como fãs em potencial e em sua utilidade na promoção e divulgação de suas
propriedades intelectuais. Com a competição cada vez maior entre conteúdos midiáticos pela
atenção e fidelização de consumidores, o fã se torna progressivamente um bem valioso e que
merece ser adquirido e bem cuidado.
Todos esses aspectos que vimos, convergência midiática, cultura participativa e o
crescimento das “comunidades de conhecimento”, não deixaram de ser percebidos pelos
produtores tradicionais de conteúdo midiático e sua importância para um negócio bem
sucedido é cada vez mais difundida.
Para essa nova tendência, o consumidor ideal é ativo, emocionalmente comprometido
e socialmente relacionado. Assim como o fã de Jenkins, todo consumidor de mídia é um fã
em potencial esperando para ser “convertido”. As marcas e detentores de propriedades
intelectuais convidam sua audiência a fazer parte de sua comunidade e por vezes oferecem a
estrutura para sua participação, seja por canais de diálogo via representantes, fóruns de
discussão oficial, oferta de produtos e promoções, etc. (JENKINS, 2006a, p.20). Esse
processo de cooptação de fãs não é diferente nos videogames, sendo a liberação e promoção
de ferramentas de modding parte das táticas utilizadas por desenvolvedores para atraírem e
manterem fãs interessados em suas propriedades intelectuais.
Isso não quer dizer que esses fãs angariados através do trabalho de relações públicas e
marketing não possam ser críticos e protetores ferozes daquilo que acreditam ser a essência
daquela marca ou propriedade intelectual. A lealdade de um fã tem como preço a difícil
missão de corresponder a suas expectativas.
Abrir essa porta à comunidade de fãs é ao mesmo tempo uma oportunidade de se
aproximar e tentar exercer um maior controle sobre eles e seus hábitos de consumo para as
companhias, como é a chance de fãs dialogarem diretamente com representantes desses
conteúdos midiáticos que lhe são caros, podendo influenciar em decisões que de outra forma
estariam fora de sua alçada. Como o próprio Jenkins coloca: “o fandom nasce, afinal, do
equilíbrio entre fascinação e frustração: se o conteúdo midiático não nos fascina, não haveria
28
desejo de engajar/interagir com ele; mas se não nos frustrasse em algum nível, não haveria o
ímpeto de reescrevê-lo ou refaze-lo” (JENKINS, 2006a, p. 258).
Nas próximas seções desse capítulo tentaremos por meio de uma narrativa histórica
que atravessa diversos videogames e as plataformas nas quais eles existiram, apontar
características que consideramos importantes para entender suas origens, seu potencial
participativo e as formas de apropriação possíveis por parte de jogadores. Se não
consideramos esses casos necessariamente exemplares do que definiremos como mod,
julgamo-nos importantes precursores que ajudaram a estabelecer o contexto no qual os mods e
a oferta de ferramentas de modding se tornam ideias comuns no inconsciente coletivo de
desenvolvedores e jogadores de videogames.
1.2 SPACEWAR!
Figura 1 - Equipamento montado para Tennis for Two e foto aproximada do osciloscópio em
funcionamento (esquerda) e PDP-1 e monitor com SpaceWar! sendo executado (direita)
desses programas parecia extraterrestre num mundo onde os computadores mais baratos ainda
custavam centenas de milhares de dólares. Dessa forma, “Spacewar!”, acabou chegando à
DEC, desenvolvedora do PDP-1, que passou a utilizá-lo como o último de seus programas de
diagnóstico, e que por isso, acabava sendo enviado na memória de toda máquina nova que era
vendida, ajudando a espalhá-lo para outras instituições.
Dentre os jogadores ilustres de “Spacewar!”, encontra-se ninguém menos que Nolan
Bushnell. Durante a faculdade, em meados dos anos sessenta, ele tomou conhecimento do
videogame através do PDP-1 funcionando na instituição na qual estudou, e essa visão do
futuro, juntamente com seu conhecimento e interesse por parques de diversão, fez com que
Bushnell imaginasse a possibilidade comercial de explorar esse tipo de produto num futuro
próximo. Alguns anos mais tarde, Computer Space, desenvolvido por Bushnell e seu sócio
Ted Dabney, em parceria com a fabricante de máquinas de jogos eletrônicos de “pergunta e
resposta”, Nutting Associates, teve sua primeira máquina instalada em 1971. Computer Space
era uma versão simplificada e de apenas um jogador de “Spacewar!”.
Apesar de seu sucesso relativo, o videogame foi considerado complexo demais para os
frequentadores de bares nos quais as máquinas foram instaladas, não sendo capaz de atrair
público suficiente para justificar sua fabricação em grande escala. Essa experiência, no
entanto, abriu as portas para que Bushnell funda-se sua própria empresa, a Atari, que viria a
ser conhecida como a popularizadora dos primeiros fliperamas e consoles de videogame
disponíveis no mercado durante os anos seguintes (DONOVAN, 2010).
É curioso notar que “Spacewar!” foi provavelmente um dos primeiros casos de
remediação para e por uma mídia digital. Seguindo as pistas de Richard Grusin, podemos
afirmar que mídia alguma trabalha isoladamente das demais ou de forças políticas e
econômicas. O que é novo a respeito das novas mídias, incluídos os videogames, são as
formas pelas quais elas remodelam mídias antigas. No caso de “Spacewar!” isso se dá de
maneira profunda e marcante, ao oferecer uma versão “mais autêntica e imediata da
experiência” (BOLTER & GRUSIN 2000, p.15). Falando de Pong, lançado apenas em 1971,
Grusin comenta: “o jogo sugere novos propósitos formais e culturais para a tecnologia digital”
(BOLTER & GRUSIN 2000, p. 90). Acreditamos que o mesmo pode ser dito de “Spacewar!”
e sua batalha espacial hipermediada que foi para muitos o primeiro contato com essa forma de
interação com os computadores.
Para essa pesquisa, além da importância histórica muito brevemente recontada acima,
a importância de “Spacewar!” está em ser o resultado do esforço coletivo e incremental do
trabalho de diversos indivíduos diferentes, onde cada um à sua maneira - graças ao acesso ao
33
código fonte, ao conhecimento e às ferramentas necessárias - foi capaz de contribuir com uma
pequena parcela do produto final. As raízes colaborativas e a possibilidade de um jogador
facilmente passar ao papel de contribuinte, que são alguns dos elementos que serão
repetidamente ressaltados ao longo desse trabalho, já apareciam em certo grau nesse que foi
um dos primeiros e mais influentes videogames de sua geração.
É verdade, no entanto, que “Spacewar!” não se encaixa verdadeiramente no conceito
de mod que proporemos no próximo capítulo, sendo mais um precursor de certas tendências
que se popularizariam a partir do fim dos anos 70 com o advento dos primeiros computadores
pessoais, que levariam a ideia de possibilitar ao jogador ser coautor da experiência.
Independentemente disso, seria impossível ignorar a relevância cultural de “Spacewar!”
enquanto artefato digital.
O segundo caso que proporemos como possuindo ainda que de forma não totalmente
realizada certas características que são caras aos mods e às práticas que discutimos nesse
trabalho, é o videogame Adventure e sua versão modificada por um fã Colossal Cave.
Entre 1975 e 1976, William Crowther, então funcionário na empresa Bolt Beranek and
Newman (BBN), localizada em Cambridge, Massachussetts e diretamente envolvida com o
desenvolvimento da rede de computadores ARPANET, criou a primeira versão do videogame
Adventure.
Crowther, assim como outros funcionários da BBN, tinha autonomia para utilizar seu
tempo livre nas máquinas da maneira que achasse mais conveniente. Para Crowther,
Adventure foi um exercício de criatividade que tinha como objetivo permitir que suas filhas,
então ainda meninas, pudessem interagir com o computador de maneira autônoma e
experimentassem parte do fascínio que Crowther e sua esposa compartilhavam pela
espeleologia. Essa primeira versão do videogame foi desenvolvida em um PDP-10 - modelo
mais recente da mesma linha de computadores utilizado pelos hackers de “Spacewar!” – na
linguagem de alto nível FORTRAN (MONTFORT, 2005).
Como inspiração para a temática do videogame, Crowther utilizou-se de sua
experiência como espeleólogo – ele visitava rotineiramente o sistema de cavernas de Flint
Mammoth, no Kentucky, com sua então esposa e mãe das meninas - e no seu interesse pelo
jogo Dungeons & Dragons - o jogo de mesa que vinha capturando o imaginário de jovens
34
Adventure e Colossal Cave são importantes para a história dos videogames por terem
estabelecido as características principais de um gênero extremamente popular durante os anos
70 e início dos 80, o videogame de “aventura em texto”. Diversos outros videogames,
seguindo a mesma estrutura básica, foram criados nos anos seguintes, essencialmente por
estudantes e membros de instituições de ensino superior com acesso e conhecimento de como
operar e programar computadores. Muitos desses outros videogames também viram
circulação pelo período nessas primeiras redes de computadores, sendo distribuídos
gratuitamente (MONTFORT, 2005, p.95-113).
Alguns desses videogames clássicos como Dungeon - que mais tarde teria seu nome
mudado para Zork em função da ameaça de processos por parte dos publicadores dos jogos de
RPG Dungeons & Dragons - foram posteriormente adaptados para os primeiros computadores
pessoais ao longo dos anos 80. Infocom, empresa formada inicialmente pelos autores da
primeira versão de Dungeon/Zork, foi uma das primeiras a produzir diversos títulos
comerciais bem sucedidos para esse mercado nascente.
Durante o fim dos anos 80 e início da década de 90, os videogames de aventura em
texto perderiam progressivamente espaço no mercado para outros gêneros, inclusive para
videogames de aventura gráficos, caracterizados por sua jogabilidade “aponte e clique” (point
and click) baseada na interação via mouse. Não obstante, até hoje existem comunidades
dedicadas à criação e compartilhamento de videogames de aventura em texto, que possuem
diversas ferramentas que facilitam grandemente a criação desse tipo de ficção interativa
(MONTFORT, 2005, p. 194) 8.
Acreditamos que Adventure/Colossal Cave é um caso importante a ser mencionado
por algumas razões:
• Ele ilustra um caso de estranhos se conectando em função do fascínio de um deles
pelo videogame. Adventure foi um dos primeiros casos documentados de
modificação do código fonte por um jogador entusiasta, a fim de expandir a ideia
do autor original. Mesmo quando as ferramentas e as plataformas de
desenvolvimento eram rudimentares e de difícil acesso, já existia entre os
jogadores desses primeiros videogames o ímpeto criativo de apropriação,
modificação e criação sobre o material de inspiração.
• O acesso ao videogame e o contato posterior de Don Woods com Crowther foi
apenas possível graças ao acesso de ambos a então nascente ARPANET. Colossal
8
Disponível em: http://www.ifarchive.org. Acesso em 18 jan. 2014.
37
objetos e personagens com resultados próximos do que seria esperado no mundo real de
maneira programática. Essa mudança, aparentemente trivial, permitiu com que situações
emergentes ocorressem com frequência durante a simulação.
Além disso, o software que funcionava como servidor do MUD era capaz de salvar e
transmitir o estado dos vários objetos e personagens existentes no mundo, em tempo real, para
todos aqueles que estivessem próximos, mantendo a sincronia da simulação para aqueles
afetados. Um ponto importante de ressaltar é a persistência desse mundo, quer dizer, a
simulação preexistia à criação de personagens pelos usuários e não deixava de existir quando
eles não estavam conectados.
Para além desse surpreendente arcabouço tecnológico, o aspecto mais curioso de
MUD eram as possibilidades de interação através de palavras e gestos possíveis entre
personagens controlados pelos jogadores. Para participar do mundo virtual, era necessário que
seus jogadores se conectassem ao servidor principal – localizado em um dos computadores da
Universidade de Essex – pela nascente rede de computadores da época. Isso permitia
inclusive que jogadores geograficamente distantes do servidor pudessem participar do
videogame, mesmo que precariamente.
O objetivo inicial de todo esse esforço, além do desafio técnico e intelectual
necessários para viabilizá-lo e certo espírito transgressor, foi tentar recriar as condições de
uma partida de Dungeons & Dragons através da rede da universidade. Essas partidas são
geralmente marcadas pelas aventuras resultantes da interação entre os personagens
interpretados e controlados por vários jogadores com os perigos do mundo no qual habitam,
controlado pelo “Mestre do Jogo”.
Para incentivar que novos jogadores entrassem no videogame e se interessassem por
ele, Bartle assumiu o papel de “Mestre do Jogo” e criou diversas áreas exploráveis, quebra-
cabeças e inimigos que podiam ser enfrentados e derrotados pelos personagens dos jogadores.
Cada um desses desafios oferecia recompensas e aqueles jogadores que demonstrassem
dedicação suficiente recebiam a cobiçada habilidade de se tornar um “wizard”, inglês para
feiticeiro. Um wizard possuía privilégios sobre o servidor, sendo capaz de alterar o mundo
para os demais jogadores, criando ou alterando atributos e características de itens e inimigos
ou criar novas áreas para serem exploradas, por exemplo.
O sucesso de MUD foi imediato, chegando mesmo a atravessar o oceano de volta aos
Estados Unidos em 1980, através de uma mensagem enviada por Bartle e Trubshaw à lista de
e-mail de Zork no MIT, convidando os usuários americanos a experimentarem o videogame
(KING & BORLAND, 2003, p.54).
39
Graças ao sucesso comercial desses primeiros videogames, tivemos ao longo dos anos
90 o lançamento dos primeiros videogames online gráficos. Essa segunda geração ou foi
diretamente influenciada, ou teve como líderes ex-usuários e desenvolvedores da primeira.
Como exemplos de videogames gráficos lançados nesse período estão NeverWinter Nights
(Stormfront Studios, 1991) e Shadow of Yserbius (Ybarra Productions, 1992).
Posteriormente, ainda nos primeiros anos de funcionamento da “World Wide Web”,
teremos o lançamento de videogames como Meridian 59 (Archetype Interactive, 1996),
Ultima Online (Origin Systems, 1997) e Everquest (Sony Online Entertainment, 1999), que
marcam definitivamente a transição para a internet moderna e são os primeiros grandes
sucessos comerciais do gênero conhecido comumente como Massively Multiplayer Online
Game (MMOG) ou Massively Multiplayer Online Role Playing Game (MMORPG), no qual
milhares de jogares simultâneos participam de aventuras em servidores online de maneira
ainda muito parecida, em sua essência, com aquela dos primeiros MUDs.
O sucesso dos MUDs e, mais contemporaneamente, dos MMOGs e seu impacto na
cultura da internet não são o objeto desse trabalho, mas são janelas para toda uma sorte de
interação entre homem e máquina e espaço para o surgimento de novas formas de interação
social e descoberta individual. Sherry Turkle, ao estudar os MUDs durante os anos 90 afirma:
MUDs são um novo tipo de jogo de salão virtual e uma nova forma de
comunidade. Além disso, MUDs baseados em texto são uma nova forma de
literatura escrita de forma colaborativa. Jogadores de MUD são autores de
MUD, os criadores assim como os consumidores dessa mídia. Nisso,
participar em um MUD tem muito em comum com escrita de roteiros, arte
performática, teatro de rua, teatro de improviso – ou mesmo comédia
dell’arte. [...] Conforme jogadores participam, eles se tornam autores não
apenas de texto, mas deles próprios, construindo novos self através da
interação social9 (TURKLE, 1995 p.11-12, tradução nossa).
Acreditamos que essas mesmas características ainda são marcantes do gênero e seus
sucessores.
O que nos interessa apontar ao citar essa forma de videogame, são algumas das
maneiras de expressão criativa que eram possíveis neles. Através do acesso às linguagens de
scripting e outras ferramentas criadas para a produção, vem sendo tentadas em MMOGs e
MUVEs, com maior ou menor intensidade. Podemos citar o caso de jogos como Ryzom
9
MUDs are a new collaboratively written literature. MUD players are MUD authors, the creators as well as
consumers of media content. In this, participating in a MUD has much in common with script writing,
performance art, street theater, improvisational theater – or even commedia dell’arte. But MUDs are something
else as well. […] As players participate, they become authors not only of text but of themselves, constructing
new selves through social interaction.
41
(Nevrax, 2004) e Neverwinter (Cryptic Studios, 2013), que permitem a criação de áreas e
missões personalizadas que podem ser compartilhadas com outros usuários, por exemplo.
World of Warcraft (Blizzard Entertainment, 2004), por outro lado, permite que usuários
alterem a aparência e programem novas funcionalidades para sua interface gráfica.
Everquest Next (Sony Online Entertainment), ainda em desenvolvimento, promete que
as melhores criações produzidas por jogadores em um servidor auxiliar serão integradas
diretamente aos servidores oficiais e poderão ser apreciadas por todos os demais. Tudo isso,
claro, sem considerarmos a impressionante capacidade de MUVEs como o Second Life
(Linden Research, Inc, 2003) em serem plataformas para a criação de jogos e outras
atividades lúdicas e educacionais por seus usuários.
Finalmente, vale ressaltar a inovação do esforço de Bartle e Trubshaw ao criar uma
versão multijogador de um de seus videogames favoritos: seu resultado foi o surgimento de
um gênero de grande importância para a história e a indústria dos videogames. Entre outros
assuntos, discutiremos no terceiro capítulo desse trabalho alguns exemplos da relação entre
modding e inovação e o papel dos fãs enquanto agregadores de valor a uma propriedade
intelectual.
Se um videogame pode ser considerado marco zero para a indústria dos videogames,
esse videogame foi Pong (Atari, 1972), de 1972. Primeiro videogame lançado pela Atari,
Pong foi o segundo projeto de máquina de fliperama produzido por Nolan Bushnell e Ted
Dabney, sendo desenvolvido por Allan Alcorn - primeiro funcionário da nova empresa - como
exercício de treinamento para se familiarizar com a tecnologia a ser utilizada para desenvolver
seus futuros videogames.
Bushnell sugeriu o projeto tendo como inspiração um dos videogames disponíveis
para o Magnavox Odyssey, o primeiro console de videogame comercial do mundo, o qual
havia visto numa feira de tecnologia alguns meses antes. Nesse videogame, dois jogadores
controlam “raquetes virtuais” que rebatem uma “bola” de um lado o outro da “quadra”
definida pelo televisor.
Pong era um videogame simples e divertido, ao mesmo tempo em que era fácil de
aprender possuía profundidade suficiente para alguém proficiente se destacar. Essas
características o tornaram perfeito para a introdução da ideia de videogames a um público
pouco acostumado com esse tipo de tecnologia e Pong acabou se tornando o primeiro
lançamento da nova empresa.
Figura 3 - Versão caseira de Pong (esquerda acima), Atari 2600 (esquerda abaixo), fliperama
original Pong (direita)
Até 1974, mais de 8.000 máquinas oficiais haviam sido vendidas, quase sempre para
bares, restaurantes, parques de diversão e outros estabelecimentos comerciais do gênero.
Percebendo o sucesso das novas máquinas de fliperama, diversas empresas concorrentes
produziram videogames similares, aproveitando-se do mercado criado pela Atari.
O sucesso de Pong permitiu que a Atari financiasse a fabricação de novas máquinas, o
desenvolvimento de novos videogames que seriam lançados nos anos seguintes como Space
Race (Atari, 1973) e Tank (Atari, 1974) e também o desenvolvimento de uma versão caseira
de Pong.
Esse console caseiro, que devia ser conectado ao televisor para funcionar, era capaz de
executar exclusivamente uma versão caseira do jogo de fliperama Pong. Apesar disso, graças
a um acordo de exclusividade com uma das maiores redes de lojas de varejo dos Estados
Unidos, a Sears, a Atari garantiu a produção de 150.000 unidades dessa nova máquina para o
período do natal de 1975-76. O resultado positivo dessa empreitada garantiu a viabilização da
fabricação desses consoles de maneira independente pela Atari. Em 1976, pelo menos 75
companhias diferentes haviam se comprometido com o desenvolvimento e fabricação de
consoles de videogames caseiros similares a Pong (KENT, 2001, p.94), esperando capitalizar
na febre e no sucesso da Atari.
O sucesso da versão caseira de Pong incentivou uma investida mais agressiva da Atari
sobre o mercado caseiro. Em 1977, a Atari lançaria seu primeiro console de videogame
multijogos, o Atari Video Computer System (VCS). O VCS, diferentemente de fliperamas da
época, como Pong, que integravam numa mesma placa os componentes necessários para o
funcionamento do videogame, o VCS possuía uma arquitetura mais próxima a de um
computador, distinguindo entre o hardware padrão do console e os cartuchos onde os
videogames eram armazenados. Essa arquitetura permitia à Atari comercializar cartuchos
separadamente e por um menor custo do que se produzisse um console novo para cada
videogame, essa economia era convertida em menores preços e maior variedade para seus
consumidores.
Foram produzidas inicialmente 400.000 unidades do aparelho. O console não foi um
sucesso imediato, vendendo abaixo do esperado. Isso deveu-se em parte à grande quantidade
de consoles concorrentes que invadiram o mercado no período e que acabaram por diluir as
vendas e em parte por dificuldades de distribuição num período onde a “febre” dos
videogames caseiros parecia estar chegando ao fim. Felizmente para a Atari e a nascente
indústria dos videogames, esse medo se dissipou nos anos seguintes com a progressiva
44
aquisição de consoles por consumidores. Incentivada pelas vendas de seu console, a Atari
produziu diversas versões de videogames originados nos fliperamas para o mercado caseiro.
potencial e entrou com certo atraso na disputa, o que permitiu que marcas menores pudessem
abocanhar uma parcela desse mercado incipiente. Inicialmente de forma tímida, a IBM lançou
por fim o IBM PC (1981), seu sucessor o IBM PC XT (1983) e finalmente o IBM PC AT
(1984). Esses computadores acabariam por consolidar a arquitetura de hardware “PC
compatible” da IBM como o padrão vitorioso e que se tornaria dominante no mercado a partir
do início dos anos 90 graças a sua adoção por diversas fabricantes e montadoras de
computadores não proprietários, mas compatíveis com o hardware e o software produzidos
para os computadores IBM, em especial seu sistema operacional: o MS-DOS desenvolvido
pela Microsoft.
Fonte: EVAN-AMOS(2011b), RAMA & MUSÉE (s.d.), RIJCKE(2007), adaptado pelo autor
Durante o final dos anos 70 e início dos 80, com a ausência de grandes publicadoras
prontas para abastecer o mercado com videogames de qualidade, parte significativa da
produção de videogames durante esses primeiros anos era efetivamente artesanal. Indivíduos,
em sua maioria jovens com pouca experiência em desenvolvimento de software e/ou
administração de negócios, produziram em seus quartos e garagens alguns dos primeiros
grandes sucessos do mercado dos computadores pessoais. Depois de programados, esses
videogames eram manualmente gravados em disquetes ou fitas, embalados em sacos plásticos
e vendidos nas lojas de computadores locais, quase sempre em pequenas tiragens. Apesar
disso, a demanda reprimida era tal que invariavelmente esses jogos encontravam alguém
disposto a tentá-los. Alguns desses indivíduos mais empreendedores, percebendo as
possibilidades financeiras, fundaram as primeiras empresas de publicação de videogames para
computadores pessoais, dando início a um dos filões de uma das indústrias do entretenimento
de massa mais lucrativas da atualidade.
Um fator significativo para o sucesso dos computadores pessoais como plataformas
para videogames, do ponto de vista tecnológico, era sua interface de interação com usuário
diferenciada. Inicialmente via teclado e depois - em função da adoção de interfaces gráficas -
via mouse a partir de meados dos anos 80. Esses computadores eram capazes de receber
versões adaptadas de diversos videogames criados e até então, exclusivos às universidades,
especialmente aqueles de gêneros como os “aventura em texto”, “estratégia”, “simulação” e
“role playing games”. Eles também forneceram a seus desenvolvedores uma plataforma
tecnológica qualitativamente diferente daquela disponível aos consoles caseiros e fliperamas,
quase sempre restritos a poucos botões e opções de configuração, permitindo maior
experimentação em tipos e estilos de videogames possíveis.
Desde o início da produção de videogames para computadores pessoais, a
possibilidade de modificações sobre os processos e dados por jogadores esteve presente.
Podemos citar, por exemplo, jogos de estratégia por turnos nos quais jogadores eram capazes
de modificar os atributos das unidades que participavam das batalhas como Wargame
Construction Set, jogos de simulação de esportes, nos quais era possível mudar o nome e os
parâmetros de jogadores e times como em Computer Baseball (Strategic Simulations, Inc,
1981) e Football Manager (Addictive Games Ltd., 1981) e outros nos quais era possível
editar missões e mapas em certo grau, Starfleet Orion (Epyx, 1978).
49
No mundo dos consoles caseiros, o período do fim dos anos 70 e início dos 80 foi
marcado por uma passageira, mas profunda crise. Além da competição com diversos consoles
menos populares lançados por outras fabricantes de hardware, a Atari - que ainda dominava o
mercado com seu VCS – teve de lidar com o surgimento de diversas desenvolvedoras
independentes de cartuchos de videogames para seu console. A competição pela atenção e
dinheiro dos consumidores, o alto custo de produção, dificuldades de distribuição e a ausência
de regulação no preço dos cartuchos de jogos, causaram uma rápida e abrupta desvalorização
em seu valor de varejo. Esses fatores, assim como a impressão geral de que os videogames,
especialmente os consoles caseiros, eram uma moda que chegava ao fim, causou o
fechamento de diversos estúdios e fabricantes de consoles e o rápido encolhimento da então
nascente indústria dos videogames.
Essa crise somente seria superada alguns anos depois, quando a Nintendo lançou a
versão ocidental de seu console Family Computer (Famicom) - o celebrado Nintendo
Entertainment System (NES) - em 1985 nos Estados Unidos e no ano seguinte na Europa.
Para evitar que problema semelhante ocorresse com seus produtos, a Nintendo seguiu um
modelo de negócios que exigia a adaptação de desenvolvedores independentes a uma série de
regras que buscavam garantir a qualidade dos videogames produzidos: uma tiragem mínima
de 10.000 cartuchos para cada jogo e a permissão para o lançamento de no máximo cinco
jogos por ano eram alguns dos termos mais notórios. A principal arma da Nintendo para
forçar essas medidas foi a instalação de um chip no console que bloqueava a leitura de
cartuchos produzidos por terceiros, forçando com que os jogos fossem originais e possuíssem
o selo de aprovação da Nintendo.
De maneira geral, consoles de videogame caseiros possuem diversas restrições
tecnológicas ao acesso, modificação e armazenamento de dados necessários para a produção
de um mod, além de uma interface de interação menos eficiente do que teclado e mouse. Isso,
no entanto, não quer dizer que não existam casos bastante antigos e alguns particularmente
interessantes para pensarmos as atividades de modding. O próprio NES possui exemplos que
serão discutidos brevemente no próximo capítulo.
50
Tentamos levantar nesse capitulo alguns dos temas e conceitos que serão recorrentes
ao longo do trabalho. Também procuramos oferecer o contexto sob o qual acreditamos que a
filosofia de participação nos videogames e as práticas através das quais ela se realizou durante
os primeiros anos dessa mídia. Procuramos também iniciar a discussão a respeito de cultura
participativa, de como os videogames e a internet oferecem não apenas tecnologias para a
geração cada vez mais fácil, eficiente e inclusiva de conteúdo por seus usuários, mas também
ajudam a promover o compartilhamento de ideias, a cooperação em direção a objetivos
comuns e a colaboração na criação e troca de conhecimento entre seus participantes.
Os videogames foram uma das formas mais populares e interessantes de uso das
capacidades criativas das mídias digitais que se desenvolveram devido à massificação do
acesso a seus suportes tecnológicos, a dizer computadores pessoais e consoles caseiros, nas
últimas décadas. Parafraseando Grusin e Bolter, videogames possuem a capacidade de
remediar elementos provenientes de outras mídias, incorporando sons, filmes, narrativas com
o objetivo de produzir uma experiência particular sobre seus usuários, mais imediata do que
aquela de qualquer outra mídia anterior.
No caso dos videogames, essa experiência está intrinsecamente ligada ao processo que
torna o jogador um participante ativo dentro da simulação produzida programaticamente.
Videogames estão, portanto, bem equipados para atenderem o desejo de imediatismo de nossa
cultura e que os autores julgam ser uma dos apelos principais das novas mídias digitais para
seus consumidores (BOLTER & GRUSIN, 2000 p.22-27).
Complementarmente, como vimos no início do capítulo, os videogames também estão
particularmente bem equipados para lidar com as características principais da “cultura da
convergência” midiática que Jenkins julga em processo na contemporaneidade. Videogames,
enquanto artefatos culturais, são inspirados e afetados pela cultura popular na qual seus
criadores estão inseridos e cada vez mais as mídias de massa e suas propriedades intelectuais
compõe esse pano de fundo comum que modula as relações entre indivíduos. “Spacewar!” e
Colossal Cave Adventure, discutidos nesse capítulo, são apenas alguns exemplos incipientes
que comprovam essa relação. Da mesma forma, certos videogames alcançaram status de
ícones dentro da cultura popular de massa, sendo reapropriados em filmes, revistas em
quadrinhos, músicas, etc. Conforme Jenkins insistentemente aponta, esse movimento de
convergência se dá tanto através dos esforços dos conglomerados da indústria midiática,
51
quanto dos fãs e consumidores entusiastas, que buscam, cada um por motivos e maneiras
diferentes, apropriar-se desses artefatos culturais.
No caso dos videogames, particularmente, temos uma grande variedade de interesses
específicos a respeito dos quais comunidades de conhecimento são criadas e uma quantidade
maior ainda de conteúdos midiáticos produzidos.
Comunidades podem ser criadas para diversos fins, entre eles:
1. A discussão das melhores táticas e estratégias;
2. A criação e manutenção de elos afetivos entre jogadores;
3. Facilitar a interação online entre membros de “clãs” e “guildas”;
4. Compartilhar conteúdo midiático, notícias e informações a respeito dos
videogames e seu desenvolvimento;
5. Trocar informações, ferramentas e conhecimentos necessários para efetuar
modificações e alterações sobre o videogame, denominadas aqui pelo termo
mods. Essas comunidades podem ser criadas e administradas pela
desenvolvedora do videogame em questão e, portanto ser oficial, ou serem
criadas e administradas por jogadores.
fazer filmes animados de dentro de um ambiente virtual 3D em tempo real” (PICARD, 2006,
p.1 apud Marino, 2004, p1).
O foco das comunidades de fãs de Star Trek que Jenkins estudou era principalmente a
produção e compartilhamento de fanfiction. O fanfiction se caracteriza principalmente pela
apropriação por parte de fãs dos personagens e mitologia provenientes de um artefato
midiático de massa a fim de produzir histórias e narrativas alternativas. A prática do fanfiction
possui em cada comunidade regras tácitas e explícitas que corroboram certo tipo de produção
que é valorizada por ela e até que ponto a voz autoral do fã pode afetar e alterar os elementos
essenciais do artefato original.
Nosso objeto de pesquisa principal, o modding, é um dos tipos de fandom que pode
surgir ao redor de um determinado videogame. Acreditamos que os videogames permitem,
para além do fanfiction, a apropriação e alteração dos próprios processos computacionais que
o realizam. Diferentemente do fanfiction, o mod não é um artefato secundário desse consumo
e apropriação; ele é a reconfiguração de certos elementos e características do artefato original
pelo fã. O fã que produz um mod está modificando a experiência oferecida por um
videogame, seja no nível narrativo quanto no de interação com os processos que constituem
sua simulação, mas ambos, videogame original e mod, são experiências de mesmo tipo.
Além disso, diferentemente do fanfiction, nem sempre o mod precisa se inspirar nos
temas, personagens e narrativas do artefato original, apropriando-se somente dos elementos
programáticos que controlam a simulação e construindo sobre essa estrutura novos temas,
personagens e narrativas de interesse do modder. Uma forma relativamente comum de mod,
conhecida pelo termo “total conversion” (conversão total em tradução livre) chega mesmo ao
extremo de alterar ambos os aspectos, narrativa e simulação, a fim de criar experiências
radicalmente diferentes das originais. Exploraremos as dimensões do modding a partir do
olhar do design de jogos e alguns dos temas apenas brevemente abordados aqui no próximo
capítulo.
53
Esse capítulo tem como objetivo duplo discutir por um lado aspectos relevantes do
design de jogos para que pensemos o modding e o definamos enquanto uma das maneiras que
jogadores intervêm de maneira criativa sobre um videogame e por outro, continuar a apontar
algumas das formas mais importantes que esse tipo de produção cultural assumiu ao longo da
história dos videogames, tarefa iniciada no último capítulo.
Para esse fim julgamos ser necessário um passo atrás, no qual avaliamos jogos de uma
maneira geral e videogames de modo mais particular, a fim de não nos perdermos em
generalizações e descrições incorretas a respeito de suas características distintivas principais
em relação a outros objetos culturais e são justamente sobre as quais esses fãs atuam na
produção de mods e outras formas de alteração possíveis que discutiremos. Isso nos levará ao
longo desse capítulo, a uma avaliação mais aprofundada dos jogos enquanto sistemas abertos,
das características e possibilidades de tecnologias de suporte digitais, em especial
computadores pessoais, para jogos e de algumas das formas mais importantes que isso
ocorreu na história dos videogames. Esse caminho possibilitará que retornemos no próximo
capítulo à internet enquanto plataforma para a criação de comunidades de jogadores/criados e
aos efeitos e características que o estreitamento dos laços entre produtores e consumidores
tem sobre as relações entre indústria e os fãs de videogames.
Ao longo dos próximos subcapítulos tentaremos expor resumidamente os pontos
principais do modelo e dos conceitos de Salen e Zimmerman. Acreditamos que o trabalho
desenvolvido por Katie Salen e Eric Zimmerman em Rules of Play (Salen e Zimmerman,
2003), nos oferece uma base importante para executarmos o trajeto teórico que permitirá
entender as particularidades dos videogames, já que ele busca pensar jogos e seu design a
partir de três dimensões diferentes, mas complementares: regras, interação lúdica e cultura.
design de jogos, objeto principal do livro. Como deixam explícito, um de seus objetivos
principais é entender o que faz jogos serem diferentes e o que faz o design de jogos único
enquanto um campo de pesquisa.
Em função desse objetivo, Rules of Play, não se restringe a discutir apenas videogames,
procurando olhar os jogos em todas as mídias, digitais ou não, a fim de entender o que há de
comum em todos eles, desde brincadeiras de roda, a competições esportivas e videogames de
grande complexidade sistêmica. Isso não quer dizer, no entanto, que jogos digitais não sejam
utilizados repetidamente ao longo das discussões presentes no trabalho.
Para atingir esse objetivo, Salen e Zimmerman, organizam o livro em quatro unidades
principais: a primeira estabelece definições para conceitos fundamentais na discussão dos
jogos e de seu design e as demais discutem individualmente uma dimensão pela qual um jogo
e seu design podem ser analisados, a dizer, regras, interação lúdica (play) e cultura. Essas três
dimensões são expostas pelos autores da seguinte forma:
• REGRAS contêm os esquemas formais de design de jogos que focam nas estruturas
lógicas e matemáticas essenciais de um jogo.
• INTERAÇÃO LÚDICA (PLAY) contém os esquemas experienciais, sociais e
representacionais do design de jogos que colocam a participação dos jogadores em
primeiro plano com o jogo e com outros jogadores.
• CULTURA contém os esquemas de design de jogos contextuais que investigam os
aspectos culturais dentro de contextos mais amplos nos quais os jogos são projetados e
praticados. (SALEN & ZIMMERMAN, 2003, p.102)
Figura 6 - Relação entres os três agrupamentos propostos: Regras, interação lúdica e cultura
simplesmente regras, o ato de jogar, e não podem ser vistos como atividades isoladas de um
contexto cultural, abordagem que nos parece fundamental para entender as diferentes formas
que a produção de conteúdo por jogadores toma.
É com base nesse tripé explicativo que os autores buscam enfatizar a natureza sistêmica
dos jogos, utilizando-se de teorias auxiliares como cibernética, psicologia cognitiva, teoria
literária, semiótica, entre outras, para aprofundar cada uma dessas dimensões.
Salen e Zimmerman, entendem jogos enquanto intrinsecamente sistêmicos e qualquer
jogo pode ser entendido como sistema. “Um sistema é um conjunto de coisas que afetam
umas às outras dentro de um ambiente para formar um padrão que é diferente de qualquer
uma de suas partes individuais10” (SALEN & ZIMMERMAN, 2003, p.50). A fim de
esquematizar essa ideia, os autores fazem uso do modelo apresentado por Stephen W.
Littlejohn em Theories of Human Communication. Sistemas são compostos dos seguintes
elementos:
• Objetos: as partes, elementos e variáveis que fazem parte do sistema. Elas podem ser
físicas, abstratas ou ambas, dependendo da natureza do sistema;
• Atributos: qualidades do sistema e de seus objetos;
• Relações internas: como esses objetos trabalham em relação a cada um dos demais.
Sistemas não existem num vácuo, mas são afetados por seus arredores;
• Ambiente: qual é o contexto do sistema.
Mudar a maneira como enquadramos um jogo - seja pelos seus aspectos formais,
experienciais ou culturais, por exemplo - afeta como definimos seus quatro elementos
descritos acima.
Como sistemas, jogos provêm contextos para interação que podem ser
espaços, objetos e comportamentos que jogadores exploram, manipulam e
habitam. Sistemas se apresentam de várias formas, de sistemas mecânicos e
matemáticos a sistemas conceituais e culturais. Um dos desafios de nossa
atual discussão é reconhecer as diversas formas pelas quais um jogo pode ser
enquadrado como um sistema11 (SALEN & ZIMMERMAN, 2003, p.50,
tradução nossa).
10
A system is a set of things that affect one another within an environment to form a larger
pattern that is different from any of the individual parts.
11
As systems, games provide contexts for interaction, which can be spaces, objects, and behaviors that players
explore, manipulate, and inhabit. Systems come to us in many forms, from mechanical and mathematical
56
Sistemas podem ter outros sistemas como parte de seus elementos constituintes. “O
sistema formal que constituindo as regras de um jogo estão incorporados em seu sistema de
interação lúdica. Da mesma forma, o sistema de interação está incorporado no enquadramento
cultural do jogo12” (SALEN & ZIMMERMAN, 2003, p.52).
Finalmente, sistemas podem ser fechados ou abertos. Essa distinção se torna importante
quando discutimos jogos para além de suas propriedades formais e consideramos suas
dimensões sociais e culturais.
Quando visto como sistema formal composto de regras logicamente definidas e de
substrato matemático, um jogo pode ser considerado um sistema fechado, pois seus elementos
não necessitam trocar informações com seu ambiente para existirem e funcionarem.
Enquanto sistema cultural, jogos devem necessariamente ser percebidos como sistemas
abertos a influência de outros contextos como a sociedade, língua, história, ideologia, etc., que
se não diretamente relacionados, mas que por se cruzarem modulam sua percepção.
Finalmente, como sistemas experienciais, jogos podem ser considerados tanto sistemas
abertos ou fechados. O ato de jogar um jogo coloca seus participantes numa posição
interseccional entre o sistema formal fechado, do qual precisam compartilhar para
efetivamente jogarem o jogo e o sistema cultural no qual tanto eles quanto o jogo estão
imersos e que necessariamente afetam a percepção e a experiência do jogo por seus
participantes.
Para ajudar a descrever melhor esse espaço interseccional e algumas de suas
características principais, Salen e Zimmerman resgatam um conceito proposto por Huizinga e
a respeito do qual muito foi falado no campo dos game studies: o círculo mágico. Para esse
trabalho acreditamos que basta considerar o círculo mágico como a “ideia que uma fronteira
existe entre um jogo e o mundo fora do jogo” (ZIMMERMAN, 2012) e que ele, nas palavras
de Huizinga, é um “mundo temporário, dentro do mundo normal, dedicado à performance de
um ato a parte”13 (HUIZINGA, 1955, p.10). A característica principal dessa performance a
que Huizinga referencia-se, no caso dos jogos, reside na interação dinâmica entre os
elementos do sistema, entre eles, seus jogadores.
systems to conceptual and cultural ones. One of the challenges of our current discussion is to recognize the many
ways that a game can be framed as a system,
12
The formal system constituting the rules of a game are embedded in its system of play. Likewise, the system
of play is embedded in the cultural framing of the game.
13
[…] temporary worlds within the ordinary world, dedicated to the performance of an act apart.
57
14
It takes place within a system, it is relational, it allows for direct intervention within a representational context,
and it is iterative.
58
mágico, em função de sua atividade influenciar em pelo menos um dos outros três modos de
interatividade descritos por Salen e Zimmeman.
De maneira geral, o terceiro modo descreve o espaço de interatividade no qual o designer
de jogos trabalha durante o projeto das regras de um jogo. Oferecer escolhas é uma das
maneiras mais comuns de se criar interação que um sistema de jogo utiliza. Uma das
obrigações de um jogo bem projetado é oferecer escolhas que resultem em desfechos
interessantes para seus jogadores.
Salen e Zimmerman constroem sua definição de jogo a partir dos trabalhos de oito
autores importantes que discutiram em profundidade o assunto e que apresentaram definições
para esse objeto. Entre esses autores estão figuras como o historiador dos jogos David Parlett,
Clark C. Abt, o antropólogo Johann Huizinga, Roger Callois Bernard Suits, os designers de
jogos Chris Crawford e Greg Costijyan e, finalmente, o trabalho conjunto de Brian Sutton-
Smith e de Elliot Avedon. Com base numa matriz de elementos comuns das definições desses
autores, Salen e Zimmerman, apresentam a seguinte definição conceitual mínima para “jogo”:
Essa definição não tem como pretensão pôr fim ao debate a respeito do assunto, mas
apenas servir como ponto de partida para a discussão a ser feita ao longo do livro. Os autores
elaboram cada um dos elementos que a compõe da seguinte forma:
15
A game is a system in which players engage in an artificial conflict, defined by rules, that results in a
quantifiable outcome.
59
Artificial: jogos mantém uma fronteira do assim chamado “mundo real” tanto no
espaço quanto no tempo. Apesar de jogos obviamente ocorrerem dentro do mundo real,
artificialidade é uma de suas características definidoras.
Conflito: todos os jogos incorporam uma disputa de poderes. A disputa pode tomar
diversas formas, de cooperação à competição, de conflito individual com um sistema de jogo
a conflito social entre múltiplos jogadores. Conflito é central para jogos.
Regras: concordamos com os autores que regras são uma parte crucial dos jogos.
Regras fornecem a estrutura da qual o jogar/brincar emerge, ao delimitarem o que os
jogadores podem ou não fazer.
Desfecho quantificável: jogos têm um objetivo ou desfecho quantificável. Na
conclusão de um jogo, um jogador ganha, perde ou recebe alguma forma de avaliação
numérica de seu desempenho.
Definir “jogo”, porém, é apenas o primeiro passo necessário para discutir o design de
jogos enquanto o domínio da estética de sistemas dinâmicos. Considerando os jogos a partir
desse ponto, os autores exploram, ao longo do livro, a complexidade e variedade desses
sistemas a fim de oferecer um modelo metodológico e ferramentas práticas que auxiliem
designers de jogos a entenderem melhor os desafios inerentes à produção de experiências
interativas que sejam mais significativas para seus jogadores. Ajudar designers de jogos a
criarem oportunidades para experiências interativas significativas é, inclusive, um ponto
crucial para a existência do livro, segundo seus autores. Salen e Zimmerman definem essa
noção da seguinte forma:
16
Meaningful play emerges from the interaction between players and the system of the game, as well as from the
context in which the game is played. One way of framing what players do when they play a game is to say that
they are making choices. They are deciding how to move their pieces, how to move their bodies, what cards to
play, what options to select, what strategies to take, how to interact with other players. They even have to make
the choice whether or not to play! When a player makes a choice within a game, the action that results from the
choice has an outcome.
60
Na visão dos autores jogar um jogo deve ser considerado uma atividade autotélica,
isso é, a significância da experiência não se encontra em uma finalidade ou sentido fora de si
mesma. Todo jogo bem projetado deve possuir prazeres intrínsecos que têm como objetivo
seduzir continuamente seus jogadores a adentrarem seu “círculo mágico” e para ali
retornarem em função da significância da experiência oferecida por eles. Isso não quer dizer,
no entanto, que jogos não sejam capazes de possuir valor extrínseco e que afetem a vida de
quem o joga para além do contexto específico criado pela interação lúdica, mas apenas que o
papel principal do designer de jogos não se reduz a uma visão funcionalista - e, portanto,
reducionista - das experiências que um jogo pode produzir.
Jogos possuem uma qualidade particular em relação a outros objetos culturais que
Salen e Zimmerman nomeiam “igual-mas-diferente”. Essa noção diz respeito ao apelo
continuado que um bom jogo tem sobre seus jogadores - apesar de ser um sistema constituído
por regras e desfechos que se repetem a cada seção - graças ao espaço de possibilidades
criado quando seus participantes exploram seu espaço de possibilidades. Diferentemente de
um livro ou filme, que não muda cada vez que é lido – mesmo que a experiência de lê-lo seja
marcadamente diferente cada vez – o jogo permite interações dentro de seu espaço de
possibilidades sempre diferentes em função de ser um sistema dinâmico, mesmo que
composto por elementos predeterminados.
Uma observação a ser feita em relação à definição de “jogo”, proposta e defendida pelos
autores, é que ela não faz distinção com base no suporte físico e tecnológico necessário
utilizado: jogos analógicos e digitais estão cobertos por ela. O suporte tecnológico
proveniente do uso de um computador – tanto no que se diz respeito ao hardware quanto ao
software - são elementos que compõe o sistema do jogo, mas não representam sua totalidade.
Nas próximas seções apontaremos algumas das diferentes características que surgem quando
o meio digital é considerado, mas é importante salientar que para os autores a experiência e o
contexto de um jogo de xadrez jogado em um tabuleiro e peças de madeira ou numa versão
digital sendo executada num computador pessoal, exibida num monitor e controlada por um
mouse não é diferente, em ambos os casos o mesmo jogo está sendo jogado, do ponto de vista
formal.
2.1.2 Regras
As maneiras que cada jogo utiliza para estabelecer essa relação sensorial de ação e reação
e quais processos cognitivos serão exigidos são particulares de cada caso: um jogo musical
pode exigir uma alta carga de concentração para coordenar respostas motoras do jogador em
resposta à informações visuais e sonoras oferecidas pelo sistema, enquanto um jogo de
palavras como Scrabble, exige das capacidades linguística e de varredura visual do jogador
mais intensamente, por exemplo.
Como insistem Salen e Zimmerman, o papel do designer de jogo é criar um conjunto de
regras, os quais os jogadores habitam, exploram e manipulam - das maneiras expostas
sinteticamente nos últimos parágrafos – estando o aspecto experiencial da interação lúdica de
onde o jogador extrai significado apenas indiretamente sob o controle do designer.
Do ponto de vista do poder de modificação e criação de um jogador, podemos considerar
aquilo que é produzido por ele através de ferramentas de edição de terreno, níveis, estágios ou
fases, conforme o caso do videogame em questão, como aberturas oferecidas ao sistema
experiencial. Quer dizer, quando um jogador, graças a um editor de fases, por exemplo, cria
63
2.1.4 Cultura
17
Player-as-producer artifacts not only reflect the meanings and values of the games from which they arise, but
also contribute to the meaning and value of the cultural contexts in which the games exist. Some forms of player
production move from inside the game outward (inside > out), such as when the Family Album is used to extract
a retelling story out of game play. Other forms can move from outside the game inward (outside > in), such as
when a player-generated character model is downloaded for use in the game. In both cases, the permeability of
the magic circle feeds innovation, resulting in rich systems of cultural production and new forms of creative
expression
65
serve de estopim, o modding nos parece uma das mais interessantes e próximas das questões
de design de jogos tão cara a Salen e Zimmerman. No caso do modding temos um movimento
duplo, no qual a interação promove sobre o jogador o ímpeto não apenas de compartilhar sua
experiência ou criar um objeto cultural, ou conhecimento derivado dela – como, por exemplo,
um guia criado para esclarecer as mecânicas do jogo, uma estória que tome a narrativa e os
personagens do jogo como inspiração ou um vídeo demonstrando o domínio técnico do
jogador sobre o sistema criado pelo jogo -, mas de alterá-lo fundamentalmente a partir de suas
dimensões formal e experiencial, isso é, alterar as regras e a forma que a interação ocorrem,
reconfigurando o espaço de possibilidades do jogo e alterando consequentemente sua retórica
e as experiências que pode causar.
Para Salen e Zimmerman, esse segundo tipo é a maneira mais comum pela qual
jogadores tomam para si o papel de designers e buscam intensificar a significância das
interações lúdicas ao alterar o espaço de possibilidades e criar modos alternativos de jogar. Os
autores advogam baseados na opinião expressa por Bernard DeKoven em seu livro, The Well-
Played Game: A Player’s Philosophy, de 1978, que os participantes de um jogo possuem
sempre a prerrogativa de modificar suas regras a fim de encontrar um jogo que funcione para
eles.
Como já dito anteriormente, a experiência do jogo existe apenas na interação dentro do
espaço de possibilidades que ele proporciona a seus participantes e, por isso, é deles a
autoridade máxima de decidir se o jogo atinge seu objetivo ou não. Não é necessária a
aprovação de ninguém além da comunidade de jogadores envolvidos para que regras sejam
alteradas e novas regras sejam criadas e testadas, efetivamente dando aos participantes a
última palavra a respeito do jogo que desejam jogar.
Salen e Zimmerman veem que essa perspectiva iterativa de construção da experiência
de interação dos participantes deve fazer parte da metodologia de um designer de jogos:
ajustar, modificar e recombinar os diversos elementos que formam um jogo são etapas
67
necessárias para refinar sua experiência. Essa, no entanto, nem sempre é a perspectiva adotada
pelos jogadores, seja porque não se dão conta dessa prerrogativa, seja porque em alguns casos
a fixidez das regras é característica essencial da experiência, como por exemplo, numa partida
de um jogo competitivo.
Quando um jogador passa ao papel de produtor da experiência do jogo, ele está dando
um salto para fora da interação lúdica e está tomando o jogo por suas partes a fim de alterá-
las. Esse movimento o coloca numa perspectiva atípica, na qual o jogo passa a ser modificar
os processos que serão experimentados por ele – e por outros a quem ele porventura venha a
compartilhar suas criações – quando entrarem em contato com essa versão modificada da
simulação. Essa mudança de papéis não apenas transforma a relação do jogador com o jogo
enquanto objeto cultural, mas também oferece a oportunidade de transformar o jogo em seus
aspectos mais fundamentais.
Acreditamos que os fãs que passam a produzir mods de um jogo partilham da
percepção de que o jogador sempre possui a prerrogativa de transformar o jogo, sendo essa
uma das características principais para entender a maneira que modders encaram o tipo de
atividade efetivamente transformadora sobre o artefato cultural original na qual se engajam.
Falando a respeito de estratégias de resistência que dão origem a mods de jogos, Salen
e Zimmerman propõe a distinção conceitual das modificações feitas por jogadores em três
tipos de estratégias:
• Estratégias de alteração fazem mudanças a estruturas existentes do jogo;
• Estratégias de justaposição combinam elementos inesperados dentro de um
espaço de jogo;
• Estratégias de reinvenção retrabalham estruturas de jogo inteiras em níveis
mais profundos.
Um mesmo mod pode combinar essas três estratégias de diferentes maneiras.
Acreditamos que se genérica, tal distinção ajuda a distinguir o modo pelo qual -
independentemente da abertura à intervenção que o usuário utiliza para criar um mod – ele
está, em última análise, apropriando-se de um objeto cultural estranho e tornando-o algo
diferente e mais pessoal.
No caso dos videogames, no entanto, esse tipo de intervenção é mais complicado,
devido aos elementos constituintes do sistema de jogo estarem incorporados no código que
controla os processos que criam o espaço habitado pelos jogadores. Nos jogos digitais existe
um agente mediador com o qual não é possível argumentar e dialogicamente chegar a uma
nova conformação dos elementos do jogo que seja mais expressiva para seus participantes. É
68
necessário que ou o videogame possua aberturas projetadas em seu design para que esse tipo
de intervenção ocorra, ou que o jogador seja capaz de forçar essas aberturas através de cheats,
hacks e exploits.
Uma das considerações que um designer de jogos pode tomar durante o processo de
projetar um jogo é estabelecer maneiras de influenciar ou potencializar a sua abertura às
modificações por jogadores. Essas aberturas implicam em tornar a relação do jogador com as
regras e a experiência do jogo mais direta e oferecer explicitamente maior agência criativa ao
jogador. Essa escolha de design implica necessariamente que o jogo se torna mais suscetível a
elementos extrajogo, se abrindo a usos não esperados e potencialmente transformadores de
sua retórica. Além disso, essa decisão quase sempre implica em maior trabalho no design do
sistema de jogo, a fim de garantir que ele possua uma arquitetura que viabilize esse uso.
Existem diferentes formas de projetar um jogo para que possua sistemas abertos à
intervenção de jogadores sobre certos elementos de seu sistema: acesso às variáveis que
determinam certos parâmetros ou às regras do jogo diretamente por meio do código
programado para controlar a simulação, ou o acesso a elementos visuais, sonoros e narrativos
que compõe os elementos contextuais com os quais o jogador interage com a simulação, são
algumas das maneiras mais comuns e poderosas de permitir a intervenção de jogadores sobre
a experiência. Nas próximas seções discutiremos as formas mais comuns como essa abertura é
oferecida através da liberação de ferramentas especialistas, motores de jogos ou do código
fonte do videogame em questão ou tomada através de cheats, exploits e hacks.
desenvolvedores. Podemos citar como exemplo a descoberta de um modo de fazer com que o
sistema de colisão – as regras da simulação física – não funcione apropriadamente e permita
com que um jogador atravesse um obstáculo de maneira não esperada.
Exploits são desenvolvidos quando o resultado do trabalho de jogadores de maior
conhecimento técnico, que abusam de falhas de segurança no sistema para acessar dados e
processos do jogo “à força”, a fim de manipulá-los conforme desejarem. Isso é feito
geralmente através da criação de programas auxiliares que extraem e/ou injetam dados que
alteram a execução do jogo. Nesse sentido, exploits são um tipo de hack. Um exemplo do que
estamos falando, seria a criação de um programa que pode tornar personagens “incorpóreos”
para a simulação, permitindo com que ele atravesse qualquer obstáculo, conforme comando
do jogador. Exploits conhecidos como trainers, podem dar acesso e permitir a alteração de
atributos de personagens e itens, liberar equipamentos, dar acesso a áreas impossíveis de
modo normal, enfim, pode tornar a simulação criada pelo videogame um playground para a
exploração do jogador.
A prática do desenvolvimento desse segundo tipo de exploits é claramente fruto do
interesse de jogadores buscando maneiras de “quebrar” o jogo e moldá-lo de maneira que os
beneficie. Nesse sentido, exploits são similares à terceira categoria, hacks.
Hacks, similarmente aos exploits, são os produtos da intervenção de jogadores sobre o
código do jogo. A diferença principal entre ambos é a intenção e os resultados desse tipo de
ação. Um exploit “quebra” um videogame a fim de dar acesso à parâmetros e processos,
dando ao jogador maior poder sobre eles. Hacks não possuem uma finalidade tão explícita,
muitas vezes sendo uma atividade exploratória do código, reconstruindo-o a partir da
engenharia reversa de suas partes expostas, como os arquivos instalados pelo jogo e a análise
das informações de que ele faz uso durante sua execução. Essa exploração pode ser
considerada um jogo em si mesma, na qual o jogo visto enquanto software é o objeto a ser
desvendado.
Um hacker pode encontrar coisas curiosas e escondidas no código e nos arquivos
digitais que formam o videogame, como os fragmentos de uma área ou personagem não
implementados no jogo final. Esse foi o caso do polêmico mod para o videogame Grand Theft
Auto: San Andreas, conhecido como Hot Coffee, no qual um minijogo de sexo criado pelos
desenvolvedores, mas escondido na versão final, foi descoberto e destravado por um hacker
(BOWLES, 2005).
Em outros casos, um hack pode ter como finalidade encontrar e converter arquivos de
vídeo e áudio em formatos utilizáveis em outros aplicativos ou modificar os arquivos onde os
73
elementos textuais estão localizados, a fim de traduzi-los para uma língua anteriormente não
suportada. Esse último caso, inclusive, se assemelha ao tipo de prática conhecida como
fansubbing (JENKINS, 2006a), bastante comum entre jovens fãs de animações japonesas e
que voluntariamente se organizam para traduzi-las e disponibilizá-las para outros fãs sem esse
conhecimento.
Finalmente, um hack pode ser a única forma que um fã é capaz de intervir sobre um
videogame de maneira criativa, modificando-o a seu desejo. Como dito anteriormente, jogos
podem ser pensados como sistemas abertos à intervenção por terceiros e mesmo influenciar e
facilitar essa atitude com a liberação de ferramentas especialistas ou mesmo do código fonte e
dos arquivos que o compõe. Isso, no entanto, nem sempre ocorre, tendo o fã empenhado em
modificar um desses videogames que recorrer a modos não oficiais e quase sempre mais
difíceis e propensos a erros. Isso não quer dizer, no entanto, que a prática seja pouco comum,
pelo contrário, comunidades criadas especificamente para essa prática existem e basta uma
busca feita na internet para encontrar dezenas de projetos relacionados aos mais diferentes
jogos.
A atividade de “hackear” um videogame é tão antiga quanto sua existência enquanto
objeto cultural: já nos anos 70 e 80, temos casos de jogos comerciais que graças à curiosidade
de seus jogadores, tiveram seu código e dados modificados, apesar de serem distribuídos sem
essa intenção. Seria impossível, portanto, apontar um precursor para tal atividade. Não
obstante, Castle Wolfenstein, nos parece um exemplo especialmente pertinente para
discutirmos esse tipo de modificação.
Castle Wolfenstein (Muse Software, 1981) foi desenvolvido por Silas Warner para
diversas plataformas, Apple II, DOS, Atari 400/800 e Commodore 64. Em Castle Wolfenstein,
o jogador controla um prisioneiro de guerra em sua fuga de um castelo controlado pelo
exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial. O protagonista é visto por uma câmera
em terceira pessoa e deve navegar as sessenta salas que compõe o castelo a fim de completar
diversos objetivos secundários, como encontrar os planos de guerra nazistas e finalmente
escapar vivo.
Como características principais de sua jogabilidade estão o complexo mapa repleto de
segredos – granadas podem ser usadas para se abrir passagens alternativas entre as salas, por
exemplo – e o foco na evasão de confrontos diretos com os guardas que ocupam as salas: se
74
cuidadoso o jogador pode esquivar-se de seu campo de visão e pode mesmo vestir uniformes
nazistas para se camuflar entre eles. O que nos interessa mais do que o jogo em si, no entanto,
são dois elementos secundários: por um lado o anúncio de um “trainer” para o jogo e uma
conversão total feita por jovens entediados num verão.
Em 1983, um trainer chamado The Great Escape Utility, anunciado por $15 em uma
revista especializada. A ferramenta propunha “remodelar” qualquer característica do jogo.
Elimine demoras de inicialização, travamentos (de computador) e espera por baús. Consiga
qualquer item, em qualquer quantidade. Comece em qualquer sala, em qualquer rank.
Melhore sua mira. Até mesmo adicione itens” (IF THEY..., 1984).
Figura 7 - Anúncio em revista de "trainer" para Castle Wolfenstein (esquerda). Tela inicial em
sua original e modificada (direita)
moram em cogumelos e foram criados pelo belga Pierre Culliford. Nas palavras de um de
seus criadores:
E mais adiante:
19
So we changed the game. The nazi guards became Smurfs, the mostly unintelligible German voices became
mostly unintelligible Smurf voices. We created a new title screen, new ending screen, new opening narration,
and an opening theme, and changed the setting from Germany to Canada.
20
The conversion was pretty straightforward, needing only a paint program, a sector editor, and Muse Software's
very own 'the Voice' to add in the new audio.
76
Desenvolvido por Douglas E. Smith, Lode Runner teve sua origem nos laboratórios de
computação da Universidade de Washington, onde ele trabalhou como assistente durante a
faculdade. Inicialmente um projeto pessoal desenvolvido nos momentos de ócio, acabou
sendo difundido pelos computadores do laboratório, onde era jogado por usuários
interessados. Já nessa versão seminal, parte do apelo do jogo era a possibilidade dos usuários
criarem seus próprios níveis e testar novas funcionalidades por meio de um editor rudimentar
(IGN, 1999). Desse processo de iteração surgiu o protótipo do jogo que mais tarde, por
insistência de um sobrinho, seria convertido para Apple II.
Esse protótipo, após algumas versões e um contrato com a publicadora Brøderbund,
seria lançado como Lode Runner em 1983 para o Apple II. Posteriormente, versões para
diversas plataformas, entre elas o Commodore 64, o IBM PC, o Atari 800 e Famicom.
77
Fonte: tela capturada da versão para Apple II de Lode Runner pelo autor
rapidamente a ação correta a ser tomada. Lode Runner possui também elementos de lógica, já
que cada nível exige uma abordagem específica, baseada no entendimento que o jogador
possui das mecânicas e da inteligência artificial determinística do jogo.
Para facilitar o processo de prototipação e alteração dos diversos níveis necessários
para o jogo, Smith desenvolveu uma ferramenta de edição de níveis que não exigia
conhecimentos de programação e permitia a criação de um novo nível em questão de minutos.
Anedoticamente, durante o desenvolvimento do jogo, Smith utilizou-se da ajuda voluntária de
garotos de sua vizinhança, entusiasmados com a oportunidade de participar do processo.
Esses jovens ajudaram Smith a testar e balancear o jogo e, graças a ferramentas que ele havia
criado, chegaram mesmo a criar alguns dos 150 níveis que acompanharam a primeira versão
comercial do jogo. Em entrevista John Romero reconta o causo:
Doug vivia em Seattle e era mais velho que os outros jovens no bairro. Um
grupo de jovens costumava ir e testar seus jogos para ele – como um time de
Garantia de Qualidade de graça. Eles achavam o jogo simplesmente
sensacional. Eles queriam fazer os níveis também. Então ele fez [o editor] e
essas crianças fizeram um monte de níveis que estavam no jogo – não eram
todos de Doug. Acabou que um desses jovens era Daron Stinnett, o produtor
executivo de Dark Forces, Jedi Knight e Outlaw, o que faz dele alguém
envolvido com jogos há muito tempo, e tudo começou com Lode Runner21
(BARTON, 2013).
21
Doug lived in Seattle and was older than the other kids in the neighborhood. A couple of the kids used to come
over and test his games for him – like a free QA [quality assurance] team. They thought his game was just
awesome. They wanted to make the levels, too. So he did, and those kids made a ton of the levels that were in
the game – it wasn’t all Doug. It ended up that one of these kids was Daron Stinnett, the executive producer of
Dark Forces, Jedi Knight, and Outlaw, so he’s been involved in games for a long time, and it all started on Lode
Runner.
79
Fonte: tela capturada da versão para Apple II de Lode Runner pelo autor
Brick: blocos padrão que podem ser removidos pela habilidade do personagem;
Cement: não pode ser removido pela habilidade do personagem;
Ladder: compõe as escadas que o jogador utiliza para se mover verticalmente;
Rope: permite ligar duas plataformas diretamentes;
Hidden Trap Door: é um tile que aparenta ser do tipo “Brick”, mas ignora colisão
com o personagem, fazendo com que ele o atravesse e acabe caindo;
Level Cleared Ladder: surge apenas quando o jogador coleta todos os “Chest of
Gold” espalhados no nível e deve ser escalado para passar-se ao próximo nível;
Chest of Gold: objeto que deve ser coletado para permitir a passagem de nível;
Enemy: determina a posição inicial de um inimigo e onde ele surge após alguns
instantes caso seja morto por um buraco que tenha fechado sobre ele. Entre um e cinco “tiles”
de inimigo podem existir em um determinado nível;
Player: indica a posição onde o personagem do jogador inicia aquele nível;
Clear Block: “tile” vazio que compõe o fundo do nível e não possui interação.
reforçar a percepção de que parte do sucesso do jogo deveu-se a seu editor de níveis, foi o
lançamento no ano seguinte de Championship Lode Runner, uma versão do jogo feita
especialmente para desafiar os jogadores mais experientes e que tinha parte de seus níveis
contribuídos por entusiastas.
Ao longo dos anos seguintes, diversos jogos ofereceriam ferramentas similares de
criação de níveis, em alguns casos permitindo e facilitando a distribuição dos mesmos a
outros jogadores. Podemos citar Boulder Dash (First Star Software, 1984) e Soko-Ban
(Spectrum Holobyte, 1984) como outros dois exemplos de videogames bem sucedidos do
mesmo período, que ofereciam editores de níveis para que seus jogadores experimentassem
com essa dimensão de criação da interação.
Outro jogo importante para a discussão desse trabalho é Pinball Construction Set.
Também lançado em 1983, é considerado o jogo que definiu o gênero dos videogames do
estilo “construction set/construction kit” que definiriam a linha de títulos da então nascente e
desconhecida publicadora, Eletronic Arts, e outros títulos similares lançados por concorrentes
ao longo dos anos 80.
Bill Budge em 1981, então ainda funcionário da Apple, lançou por conta própria
Raster Blaster. Influenciado pelo entusiasmo de seus colegas de trabalho com as mesas de
pinball disponíveis no serviço, Budge tentou recriar a experiência do jogo digitalmente com
Raster Blaster. Para isso, desenvolveu um jogo no qual, apesar das limitações de
processamento da época, a simulação de colisão entre as bolas, a mesa e as palhetas fosse
eficiente e não impactasse negativamente o desempenho do jogo. O sucesso comercial de
Raster Blaster incentivou Budge a iniciar o desenvolvimento de um novo videogame de
pinball que viria a ser lançado apenas em 1983 com o nome Pinball Construction Set (PCS).
A maior novidade desse novo jogo dizia respeito à inclusão de ferramentas de criação
e edição de mesas para que jogadores intrépidos pudessem criar seus próprios designs e
posteriormente compartilhá-los, distribuindo o arquivo gerado com outros proprietários do
jogo em questão. Para viabilizar tal tarefa, Budge desenvolveu ferramentas de criação
robustas, mas extremamente simples e eficientes, graças ao uso de uma interface gráfica. Essa
interface gráfica foi inspirada em seu contato com os protótipos, sendo desenvolvidos e
testados, à época, em seu trabalho na Apple e que posteriormente debutariam no sistema
operacional do emblemático Machintosh (1984), mais novo computador da Apple.
81
Em termos da interação básica oferecida, PCS é muito similar a Raster Blaster: o jogo
todo se passa sobre uma mesa de pinball virtual, na qual o jogador tem um número pré-
determinado de tentativas e nelas deve lançar uma bola da canaleta lateral da mesa, com força
ajustável e posteriormente direcioná-la com o uso de palhetas controladas através do teclado a
outros elementos que conferem pontos conforme seu tipo. O objetivo do jogador é alcançar a
maior pontuação possível antes que todas as suas tentativas se esgotem, fato que ocorre
quando todas as bolas em jogo atingem áreas específicas da mesa que as removem da partida.
O que marca e difere PCS do jogo anterior de Budge e dos demais jogos similares da
época, é justamente o foco que coloca na criação e edição dessas mesas: a primeira imagem
que o jogador vê ao iniciá-lo é apenas a mesa sem elementos interativos e ao lado direito a
“caixa de ferramentas” com diversos componentes geralmente presentes em um jogo de
Pinball e que podem facilmente serem arrastados e posicionados nela. Acompanham o jogo
cinco mesas de demonstração utilizando esses componentes e servindo como alvos para a
experimentação do jogador: a qualquer momento durante a simulação de uma partida basta
apertar um botão e o modo de edição é acionado, permitindo a alteração de características de
mesa.
A própria maneira de interação, altamente visual e utilizando-se de um cursor que
podia ser apontado através de um joystick, teclado ou mouse, foi uma novidade, facilitando
ainda mais a produção de conteúdo por indivíduos com interesse pelo tema, mas poucos
conhecimentos técnicos.
Ao todo, são dezesseis elementos diretamente inspirados em mesas tradicionais, entre
eles palhetas, rebatedores, molas, imãs, canaletas, botões a serem ativados, etc., que podem
ser arrastados e posicionados na mesa.
Além disso, o usuário tem a capacidade de redesenhar o contorno da mesa,
modificando os pontos que formam seus limites e pode criar elementos novos como barreiras
e divisões e posicioná-los dentro da área jogável. Ele também pode escolher as cores de cada
um desses elementos, conforme a paleta de cores disponíveis para seu computador, assim
como, definir o som e a pontuação que cada um deles irá gerar quando atingido pela bola.
Finalmente, o usuário pode alterar diretamente parâmetros relacionados à simulação física do
jogo: gravidade, velocidade, elasticidade e aceleração. A figura 10 oferece a visão geral do
jogador ao executar o aplicativo do videogame: dividem a tela a mesa de pinball à esquerda e
à direita está o menu e as peças a serem utilizadas em sua personalização.
82
Toda mesa criada no jogo pode ser salva em um arquivo próprio que contém todas as
suas informações, podendo assim ser facilmente guardada para usos futuros ou para
compartilhamento com outros indivíduos que possuam o jogo. O jogador é convidado a ser
não apenas participante do jogo, mas também coautor da experiência.
PCS foi inicialmente publicado de maneira independente por Budge através da
empresa que montou para comercializar Raster Blaster. Trip Hawkins, que havia conhecido
Budge durante o período em que ambos trabalharam para a Apple, ofereceu-se para publicar
PCS através de sua recém-fundada Eletronic Arts. Tendo dificuldades em administrar sua
empresa de garagem, Budge aceitou a oferta. A decisão foi acertada, como atestam as diversas
versões de PCS produzidas para outros computadores pessoais do período e as mais de
300.000 cópias eventualmente vendidas.
A popularidade do conceito resultaria em três títulos inspirados que foram
desenvolvidos por outros profissionais contratados pela Eletronics Arts: Stuart Smith’s
Adventure Construction Set (Eletronic Arts, 1985), Racing Destruction Set (Eletronic Arts,
1985), e Will Harvey’s Music Construction Set (Eletronic Arts, 1984). Além desses, outros
videogames similares como Garry Kitchen’s GameMaker (Activision, 1985), Wargame
83
Construction Set (Roger Damon para Strategic Simulations Inc., 1986) e Shoot'Em-Up
Construction Kit (Sensible Software, 1987) foram lançados no período.
Todos esses videogames, em maior ou menor grau e para gêneros e estilos diferentes,
buscavam alcançar o mesmo objetivo: oferecer a usuários entusiastas um pacote de
ferramentas e funcionalidades que permitissem a autoria de experiências interativas próprias
sem a necessidade de outros conhecimentos prévios em programação ou arte digital. Mais do
que oferecerem um conjunto de regras e objetivos claramente definidos por seu
desenvolvedor, esses jogos são melhor entendidos como plataformas para a exploração e
personalização dessas regras e objetivos por parte do usuário.
Lançado em 1983, o Famicom, versão nipônica original do NES, foi concebido como
um equipamento híbrido, que além de um joystick e a capacidade de ler cartuchos, teria em
seu hardware portas de entrada para a instalação de outros periféricos comuns à época, como
teclados, leitores de disquetes, fitas cassete e até mesmo um modem de conexão à rede,
podendo competir com os demais computadores pessoais da época. Esses periféricos foram
lançados no Japão, mas nunca chegaram ao restante do mundo em função da mudança de foco
em seu público alvo, que a Nintendo efetuou quando lançou o NES no restante do mundo
como um console de videogame para crianças.
Um desses periféricos, o Famicom Data Recorder, lançado pela Panasonic em 1984,
utilizava-se de fitas cassete para armazenar dados e tinha a proposta de servir como
ferramenta para o ensino da linguagem de programação BASIC de maneira análoga à como
diversos computadores pessoais do período tentaram justificar sua existência. A
funcionalidade oferecida por esse periférico acabou sendo utilizada por alguns
desenvolvedores de videogames para o console, que o utilizaram para gravar e carregar dados
referentes aos jogos.
O primeiro videogame a aproveitar-se dessa funcionalidade foi, curiosamente, Lode
Runner, em sua versão para o console lançada pela Nintendo em 1984. Essa versão possuía
ferramentas de criação de níveis bastante similares à da versão para computadores pessoais
que foi descrita anteriormente.
84
Figura 11 - Tela de jogo modo um jogador (esquerda). Modo editor de pistas (direita)
(Microsoft, 2005), Playstation 3 (Sony, 2006), Wii (Nintendo, 2006) e os recém lançados
WiiU (Nintendo, 2012), Xbox One (Microsoft, 2013) e Playstation 4 (Sony, 2013). Esses
consoles se aproximam cada vez mais, em termos de hardware e funcionalidade, à
computadores pessoais de mesa tradicionais. Com a possibilidade de armazenamento de
dados e acesso à internet, parece justo julgar que esses essas limitações se tornam cada vez
menos relevantes para justificar a relativa ausência de funcionalidades que permitam a
produção e principalmente o consumo de conteúdo gerado por usuários nessas plataformas.
Apesar da relativa aproximação tecnológica dos últimos anos, os consoles caseiros
estão longe de se comparar aos computadores pessoais no que se diz respeito à
disponibilização de ferramentas de edição e ainda mais quando pensamos em motores de
jogo. A fim de justificar essa ausência, podemos apontar como a interação em videogames
tradicionalmente foi controlada através de joysticks e mais recentemente por meio de
comandos de voz e gestos, nenhuma tão eficiente quanto um mouse e, especialmente, um
teclado. Consoles caseiros são máquinas construídas para o consumo de mídia, de preferência
sentado num sofá na sala de estar e não para sua produção, não havendo uma biblioteca de
softwares auxiliares para tal atividade à disposição de seus usuários, como ocorre nos
computadores pessoais. Esses dois elementos tornam claro que para se lançar um jogo com
esse tipo de abertura, é necessário incorporá-las em ferramentas especialistas criadas
especialmente para serem utilizadas com uma interface menos eficiente e num ambiente
menos propício.
Não obstante, podemos citar casos esporádicos desse tipo de abertura desde os
primeiros consoles até a geração atual, apesar de todas as limitações técnicas e práticas
envolvidas. Mais recentemente, videogames para consoles como Disney Infinity (Disney
Interactive, 2013) e os videogames LittleBigPlanet (Media Molecule, 2008), LittleBigPlanet 2
(Media Molecule, 2011), LittleBigPlanet PSP (Media Molecule, 2009), LittleBigPlanet PS
Vita (Media Molecule, 2012) da série LittleBigPlanet. Essa última um caso particularmente
interessante pela ênfase dada a esse aspecto criativo e como prova de que o potencial para
maior e melhor integração de ferramentas especialistas podem gerar ótimas oportunidades
para a agência criativa em consoles caseiros.
Retornando aos computadores pessoais - especialmente o IBM PC, vencedor absoluto
da corrida pelo mercado doméstico - podemos ver a partir dos anos 90 uma grande variedade
de títulos dos mais variados gêneros abraçando a ideia de liberação, não apenas de
ferramentas especialistas, mas também de seus motores de jogo para a comunidade de
jogadores.
86
Teremos também, ao longo dos anos 90 e início dos anos 2000, como discutido no
capítulo anterior, o aumento progressivo da importância das comunidades online de interesse,
tanto no que se diz respeito à sua capacidade de auto-organização e produção de
conhecimento, quanto no interesse de desenvolvedores de jogos em atrair e manter fãs para
seus produtos. Para os videogames em computadores pessoais esse período ficou marcado
pela popularização dos jogos de tiro em primeira pessoa e sua predominância no imaginário
coletivo em função dos polêmicos debates a respeito da violência nos videogames.
Acreditamos que para entender a importância desse gênero para a popularização do
modding de videogames, enquanto uma atividade criativa realizada coletivamente, deve-se
contar a história do início e isso significa falar de um estúdio de desenvolvimento em
particular: id Software.
2.4.3 Wolfenstein 3D, Jogos de Tiro em Primeira Pessoa e a busca pela imersão na
simulação.
Apesar de jogos em primeira pessoa não serem novidade – jogos como Akalabeth:
World of Doom (Origin Systems, 1980), lançado por um então adolescente, Richard Garriot, e
séries como Wizardry (Sir-Tech Software, Inc., 1981), apresentavam masmorras labirínticas
repletas de perigos que deviam ser navegadas pelo jogador a partir dessa perspectiva - a
imersão do jogador, permitida pela interação em tempo real com o espaço tridimensional
criada pela simulação desse tipo de perspectiva, definitivamente foi algo pouco tentado. A
interação nos jogos citados ocorria em turnos; cada ação do jogador avança seu personagem
um passo à frente na simulação de maneira análoga à estrutura dos jogos de tabuleiro nos
quais foi inspirada. Além disso, as limitações tecnológicas dos computadores da época, e, ao
menos parcialmente, o nível de maturidade da indústria e do design de jogos, fizeram com que
a simulação em primeira pessoa em tempo real começasse a se popularizar somente a partir do
início anos 90.
O aspecto principal de um jogo em primeira é justamente seu ponto de visão que -
diferentemente da maioria dos jogos popularizados por fliperamas e consoles caseiros – busca
simular a percepção espacial de encontrar-se dentro do mundo no qual a ação se desenrola,
oferecendo a sensação de controle sobre um agente que explora o espaço tridimensional
91
gerado pelo videogame. A inovação dupla dos videogames produzidos pela id Software estava
justamente ligada à velocidade e ao tipo de interação rápida e visceral oferecida por eles e
resultou no estabelecimento da estrutura básica de um dos gêneros de videogame mais
populares, influentes e controversos: o first person shooter (FPS), videogame de tiro em
primeira pessoa.
Enquanto o restante da equipe se dedicava a finalizar os jogos que terminariam seu
contrato com a Softdisk e produziam uma nova série de títulos, da agora franquia,
Commander Keen, John Carmack dedicou-se, por seis semanas, exclusivamente ao
desenvolvimento de uma nova versão do motor de jogos que mudaria o futuro do estúdio.
Interessado em gráficos tridimensionais desde que havia começado a programar e inspirado
por simuladores de voo como o espacial de ficção cientifica, Wing Commander (Origin
Systems, 1990), e uma versão preliminar do videogame Ultima Underworld: The Stygian
Abyss (Blue Sky Productions, 1992), que teve oportunidade de experimentar numa visita a
uma feira de videogames naquele ano, Carmack procurou desenvolver um motor de jogo
capaz de simular de maneira eficiente as características de um espaço tridimensional
navegável em primeira pessoa, mas que garantisse a imersão proporcionada pela
movimentação rápida e livre de um personagem no espaço.
Para esse fim, Carmack fez uso e desenvolveu diversas técnicas de optimização que
envolviam, entre outras coisas, eliminar polígonos, considerados desnecessários, como o chão
e o teto dos cenários, fazer com que o computador apenas representasse os elementos do mapa
diretamente sob o campo visão do personagem e a utilização de truques de perspectiva para
aproximar com imagens bidimensionais o comportamento esperado de um objeto
tridimensional. Tecnicamente, o motor de jogo desenvolvido por Carmack não era 3D, o
jogador não conseguia controlar o eixo vertical da câmera e olhar para cima ou para baixo,
Ultima Underworld, por outro lado, possuía essa característica.
O primeiro videogame a ser lançado utilizando esse novo motor de jogo foi Hovertank
3D, em abril de 1991. Apesar dos gráficos e história simples - as paredes eram de cores
sólidas e o jogador devia controlar um tanque por corredores labirínticos, a fim de resgatar
sobreviventes de um holocausto nuclear enquanto destruía os mutantes resultantes - os
elementos principais do gênero FPS estão claramente presentes em Hovertank 3D.
92
Em novembro do mesmo ano, foi lançado Catacomb 3D, que utilizava uma versão
aperfeiçoada do motor de jogos que permitia a associação de texturas às paredes das fases,
oferecendo maior variedade e detalhe gráfico aos ambientes. Catacomb 3D colocava o
jogador no papel de Pelton Everhail, um mago com a missão de derrotar Gremlinar e seus
lacaios. Outro elemento novo de Catacomb 3D, em relação à Hovertank 3D, é a inclusão da
mão do personagem principal, posicionada na parte inferior da tela, oferecendo uma
representação mais intensa da presença física do personagem controlado pelo jogador na ação.
Ambos, Hovertank 3D e Catacomb 3D, foram lançados pela Softdisk.
Todos esses elementos de design de jogo e inovações técnicas retornariam com maior
refinamento e intensidade em Wolfenstein 3D (id Software, 1992), lançado em maio de 1992.
Wolfenstein 3D era uma releitura dos videogames multiplataformas clássicos. Castle
Wolfenstein, comentado em seção anterior, e sua sequência Beyond Castle Wolfenstein (Muse
Software, 1984). Os videogames produzidos pela Muse eram caracterizados pela navegação
93
sala a sala, em terceira pessoa, de complexos militares controlados por forças nazistas, nos
quais o jogador deveria navegar fazendo uso tanto de violência quanto de subterfúgios, como
esconder os corpos de inimigos derrotados e vestir seus uniformes, por exemplo. Ao longo do
processo de desenvolvimento de Wolfenstein 3D, a maior parte dos elementos não
relacionados ao enfrentamento direto com as forças de segurança nazista e a procura de salas
secretas, armas e powerups foram deixados de lado, dando ênfase ao combate rápido e brutal
oferecido pelo videogame graças ao excelente desempenho gráfico do motor de jogo.
Ao invés da tensa e cuidadosa exploração proposta pelos títulos originais, Wolfenstein
3D festejava reflexos rápidos e ação ininterrupta. Seu protagonista, William "B.J."
Blazkowicz, deve escapar do complexo nazista onde se encontra encarcerado, mas não sem
antes transformar Hitler em uma pilha de detritos fumegantes. Para isso, ele dever explorar as
instalações à procura de chaves que abrem a passagem para outros andares da instalação,
coletar tesouros e armas e no processo matar toda sorte de inimigos. O humor negro e as
mortes explicitamente gráficas davam o tom pueril, com o qual o tema era tratado em
oposição ao videogame no qual se inspirou.
Os lançamentos de Catacomb 3D, Wolfenstein 3D e de Ultima Underworld durante
um intervalo de aproximadamente seis meses entre eles, marca o nascimento dos videogames
em primeira pessoa de grande destaque nos computadores pessoais. Wolfenstein 3D, lançado
inicialmente como shareware pela Apogee, vendeu aproximadamente 150.000 unidades e
Spear of Destiny (id Software, 1992), sua versão expandida para varejo tradicional, lançada
pela empresa FormGen Corporation, teve tiragem de aproximadamente 135.000 unidades
(AU, 2003). Por outro lado, Ultima Underworld e seu sucessor Ultima Underworld II:
Labyrinth of Worlds (Origin Systems, 1993), venderam conjuntamente mais de meio milhão
de unidades22. No caso de Wolfenstein 3D é preciso lembrar também que seu modelo de
negócios, no qual o primeiro episódio era distribuído gratuitamente, ajudou a disseminar
ainda mais o videogame em questão, garantindo a ele e seu estilo de jogo uma notoriedade
que de outra forma talvez não fosse possível.
22
Mallinson, Paul. "Games That Changed The World Supplemental Material". PC Zone. Archived from the
original on October 29, 2010. Retrieved November 11, 2010.
94
Figura 14 - Wolfenstein 3D com modificação feita por jogador via hack (esquerda) e tela do
videogame Shadowcaster utilizando mesmo motor de jogo
Buscando, como bons hackers, por qualquer coisa interessante, jogadores com maior
conhecimento técnico rapidamente descobriram como reverter o processo de compactação de
dados utilizado em Wolfenstein 3D e passaram a acessar e modificar seus arquivos gráficos,
de personagens a áudio e mapas.
Kushner (KUSHNER, 2003, p.95) reconta a surpresa e satisfação entre os membros
da equipe quando uma versão modificada de Wolfenstein 3D, na qual a música-tema e os
antagonistas nazistas haviam sido substituídos por Barney – o dinossauro rosa apresentador de
programas infantis – e o tema de seu programa, e as paredes marcadas com os dizeres “Kill
Barney”. Como não podia deixar de ser, o objetivo do hack era permitir a seu jogador
alegremente abusar do pobre dinossauro. Além desse, outros hacks com diferentes temas e
propósitos foram criados e distribuídos online. Eles, no entanto, levantavam três problemas:
• De um ponto de vista prático, criar uma dessas modificações não autorizadas
era um processo relativamente trabalhoso e propenso a erros. Elas também
possuíam um caráter destrutivo: para funcionar era necessário que os arquivos
originais fossem sobrescritos, processo que deveria ser revertido manualmente
com o uso de um backup toda vez que se desejasse jogar o jogo original;
• De um ponto de vista financeiro, esses hacks ameaçavam abrir o mercado para
jogos clone produzidos utilizando ilegalmente o motor de jogos desenvolvidos
pela id Software;
• Do ponto de vista legal, as implicações de ter Barney sendo assassinado em seu
jogo e a responsabilidade jurídica que poderia recair sobre a id Software em
função do desrespeito à propriedade intelectual alheia através de seu jogo.
96
2.4.4 Doom
Doom, repetindo a fórmula de Wolfenstein, teve seu lançamento inicial via shareware
pela Apogee. Em 10 de dezembro de 1993, foi oficialmente hospedado nos servidores da rede
de computadores da Universidade de Madison-Wisconsin. Tal foi a demanda para downloads,
que o servidor não aguentaria a sobrecarga (KUSHNER, 2003, p.123). Inicialmente o jogo
não possuía uma campanha de marketing estruturada, contando apenas com a propaganda nos
meios online e a disseminação “boca-a-boca” via BBSs voltados à software shareware e
videogames. Com o sucesso imediato, os trabalhos para uma continuação ser vendida no
varejo resultou no lançamento de Doom II: Hell on Earth (id Software, 1994), em Master
Levels for Doom II (id Software, 1995) e Final Doom (id Software, 1996), lançados
paralelamente ao desenvolvimento de Quake.
Doom foi um sucesso estrondoso para o estúdio, ultrapassando as melhores
expectativas de seus criadores. Apesar de Microsoft Flight Simulator 5.0 (subLOGIC, 1993) e
Myst (Cyan, 1993), lançados naquele ano, serem maiores sucessos comerciais, Doom vendeu
aproximadamente 1.4 milhão de cópias e Doom II, e sua versão de varejo, Doom II, algo perto
de 1.8 milhão de cópias até 1998 (BARRACUDA, 1998). Considerando que apenas uma
pequena porção dos indivíduos que fizeram o download da versão shareware efetivamente
comprou uma versão completa do jogo, Doom teve uma exposição de dimensão muito maior
do que o total de suas vendas.
Doom abandona a prisão nazista e coloca o jogador numa estação especial militar
localizada em Phobos, uma das luas de Marte, infestada por demônios de outra dimensão.
Doom mantém a mesma estrutura básica que foi sendo aperfeiçoada pelos outros títulos FPS
97
lançados pela id Software: o jogador deve navegar por mapas repletos de itens escondidos e
uma horda de inimigos para encontrar chaves de segurança que lhe darão acesso ao próximo
mapa. Velocidade, reflexos rápidos, gráficos e um tom macabro foram aliados à violência
simulada que geraria tantas polêmicas nos anos seguintes a seu lançamento.
Do ponto de vista técnico, o motor de jogo de Doom – retroativamente nomeado id
Tech 1 – era consideravelmente mais avançado que suas versões anteriores: ele permitia entre
outras coisas a presença de texturas no chão e teto, criação de salas e corredores com paredes
não perpendiculares e de diferentes alturas, elementos dinâmicos como elevadores, janelas e
iluminação dinâmica. Todas essas mudanças mudaram radicalmente o design de níveis e a
experiência de navegá-los: se a disposição de salas e corredores em Wolfenstein 3D possuía
algum semblante de um complexo militar real, os níveis em Doom eram verdadeiros labirintos
tridimensionais, com perigos à espreita em cada canto graças à iluminação variável.
Ao longo dos anos seguintes, Doom teria seu motor de jogo licenciado para o
desenvolvimento de diversos outros títulos comerciais, como Hexen (Raven Software, 1995),
Heretic (Raven Software, 1996) e Strife (Rogue Entertainment, 1996).
programa auxiliar. Isso permitiu que jogadores sem qualquer conhecimento prévio uns dos
outros, tivessem um local comum para se encontrarem e competirem entre si em partidas
multijogador. Para ter acesso ao servidor DWANGO era necessário pagar cerca de nove
dólares por mês, além do custo com a conexão por telefone. Apesar da mensalidade, em 1995
o serviço tinha 22 servidores e mais de dez mil assinantes (KUSHNER, 2003, p. 155).
Devemos lembrar que no período, a “World Wide Web” e os protocolos que garantiriam a
conexão entre servidores autônomos descentralizados ainda estavam em vias de se tornarem
uma realidade concreta. Com desenvolvimento de alternativas que faziam uso dos protocolos
utilizados pela internet e o surgimento de uma nova geração de jogos com possibilidades de
conexão via internet de graça, o serviço deixou de ser oferecido m 1998 (IGN, 1998).
Ambas as inovações, por um lado a de Doom ao oferecer o modo multijogador básico,
e a dos fundadores de DWANGO por outro ao em potencializar as capacidades do videogame
através do uso das tecnologias de comunicação surgidas na época, ajudam a exemplificar as
formas como as novas mídias e formas de consumo de informação e entretenimento
rapidamente foram transformadas pelo meio digital. O serviço, apesar de rapidamente extinto,
ajudou a solidificar a importância de uma presença online e a dimensão social dos
videogames, fatos que marcariam a geração seguinte de FPSs particularmente.
criação de níveis desenvolvida por fãs com base no código liberado por Carmack. Para, além
disso, outro fã chamado Greg Lewis desenvolver uma ferramenta chamada DeHackEd, capaz
de alterar informações referentes ao próprio funcionamento do jogo, como o comportamento
dos inimigos, atributos das armas e o texto mostrado pela interface (KUSHNER, 2003, p.
134-5). Ao longo dos anos, a comunidade produziria diversas outras ferramentas como
alternativas ou incrementos a essas duas.
As controvérsias levantadas em relação aos hacks de Wolfenstein 3D rapidamente
tomaram proporções muito maiores, tendo a id Software, após discussões internas a respeito
do assunto, decidido por definir os seguintes termos para oferecer a sua benção aos trabalhos
realizados pela comunidade de modders que nascia ao redor do jogo:
• Os criadores não deviam taxas ou royalties à id Software e era permitido
requisitar pagamento pelas suas criações;
• As ferramentas e modificações não poderiam funcionar com a versão
shareware de Doom;
• Os criadores deviam deixar claro que suas ferramentas e modificações não
eram um produto da id Software e que ela não seria capaz de oferecer
assistência a seu produto e nem ao jogo original após ele ter sido modificado
através da inclusão de um arquivo de texto com os termos legais do acordo.
Foram nesses termos que durante os anos seguintes diversos WADs foram criados,
compartilhados e, em alguns casos, comercializados. Certas publicadoras e revistas
especializadas lançaram compilações de WADs. A própria id Software lançaria The Master
Levels for Doom II, sua própria compilação de 20 WADs criados sob encomenda e 1830
WADS amadores entre os melhores produzidos pela comunidade e escolhidos por John
Romero. Final Doom também teria a presença de dois “megaWADS” – mapas de dimensões e
complexidade muito maiores do que geralmente se via - produzidos por times de modders
selecionados na comunidade.
A popularidade das partidas multijogador, fosse em rede local ou por conexão por
modem via DWANGO ou outros programas auxiliares que permitiam a conexão gratuita
através da internet, foram inspiração para a criação de milhares de WADs voltados à modos
multijogador e a criação de variações sobre o deathmatch criadas através de programas como
DeHackEd.
WADs criados por fãs buscavam não apenas reproduzir o estilo e os gráficos originais,
sendo uma grande porção deles recriações de franquias da cultura popular como Aliens, os
100
Simpson, Dragon Ball, Star Wars e tantas outras que compartilhavam do interesse desses
entusiastas. Nesses mods você tem a apropriação dos personagens, ambientes e termas dessas
propriedades intelectuais sob uma perspectiva modulada pelas características do motor de
jogo e do design de jogos original de Doom.
Figura 15 - Seleção de telas: Doom versão original (esquerda acima) e mods Brutal Doom (direita
acima), Star Wars (esquerda abaixo) e Aliens Total Conversion (direita abaixo)
Fonte: (FALK, 1994), (FISHER, 1994) e (ABENANTE, 2010). Adaptado pelo autor
23
I still remember the first time I saw the original Star Wars DOOM mod. Seeing how someone had put the
death star into our game felt so amazingly cool. I was so proud of what had been made possible, and I was
completely sure that making games that could serve as a canvas for other people to work on was a valid
direction.
101
As diversas ferramentas produzidas por fãs permitiram a produção das mais variadas
modificações do jogo original. Graças às aberturas técnicas oferecidas pela arquitetura do
jogo e pelos hacks e ferramentas de edição e criação desenvolvidos por fãs, Doom se tornou
plataforma para a criação de uma infinidade de mapas e modos de jogo que explorariam e
levariam ao limite o motor de jogo criado por Carmack.
Em um movimento que poderia ser visto como surpreendente, caso não tivéssemos o
conhecimento do empenho de certos membros fundadores como Carmack para isso, no ano
seguinte ao lançamento de Quake, 1997, a id Software liberou o código fonte do motor de
jogo de Doom. Inicialmente sob uma licença de código aberto que permitia seu uso para fins
não comerciais e, em 1999, sob a licença GNU, General Public License (GPL), menos restrita
e amplamente reconhecida, essa decisão abriu as portas para que novas e mais radicais
modificações fossem possíveis e realizadas pela comunidade.
Em artigo publicado em 1999, intitulado The Magic Cauldron, Eric S. Raymond,
famoso promovedor do movimento do software de código aberto, ao analisar os diferentes
esforços e dilemas que o movimento sofria a partir de um ponto de vista de indivíduos
racionais proposto pela teoria dos jogos, utiliza Doom como um de seus estudos de caso
(RAYMOND, 1999, p. 16-17).
Em sua análise, Raymond aponta certas características que podem fazer a escolha de
se abrir o código fonte de um software uma escolha racional. Verificando o estado inicial de
Doom, nenhuma de suas características parecia justificar a abertura de seu código: suas
características principais enquanto software, eram a tecnologia de ponta capaz de produzir
gráficos até então não conseguidos em um computador pessoal e sua interação primariamente
de único jogador.
Doom não apresentava nenhum dos critérios que colocariam um projeto como
candidato ideal a um modelo de código aberto, a dizer: estabilidade, confiabilidade e
escalabilidade não eram aspectos críticos, sua complexidade não impedia outras formas de
avaliação de seu design e implementação que não por pares independentes, seu uso não era
crítico a seus usuários ou seus negócios, ele não era utilizado para possibilitar infraestruturas
de comunicação e computação e seus métodos principais não faziam parte de um
conhecimento de engenharia comum, muito pelo contrário. A escolha racional, portanto, era
manter seu código fonte fechado.
102
24
Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Doom_source_ports. Acesso em 18 jan. 2014.
25
Disponível em: http://zandronum.com/. Acesso em 18 jan. 2014.
103
ao administrar a versão do jogo e dos mods que devem ser baixados, instalados e ativados
para participar das partidas.
Vinte anos depois de seu lançamento, Doom ainda possui uma comunidade dedicada e
produtiva, como pode ser rapidamente comprovado ao se visitar sites agregadores mantidos
por fãs como DoomWorld26, um dos primeiros e mais importantes para a comunidade de
modding e que ainda é frequentemente atualizado.
A série Quake surge num momento chave da popularização do acesso à internet e tem
em suas capacidades multijogador e na competição online um grande foco. Sony lançaria o
Playstation em 1994, o Saturn da Sega sairia em 1995 e a Nintendo teria seu Nintendo 64 nas
prateleiras em 1996. Todos esses consoles venderiam a ideia dos gráficos poligonais e
interação com um ambiente tridimensional como o futuro da mídia. Do ponto de vista
tecnológico, Quake consegue realizar nos computadores pessoais gráficos tridimensionais em
tempo real equivalentes aos que a nova geração de consoles caseiros trazia ao grande público.
O grande número de continuações que Doom recebeu no período reflete por um lado o
impacto e popularidade do jogo e por outro, as dificuldades e os atrasos que o
desenvolvimento de Quake sofreu. Quake foi o último jogo no qual John Romero, principal
designer de mapas e interação dos jogos anteriores, fez parte da equipe. Em grande parte os
problemas internos derivaram da percepção do restante da equipe, da falta de compromisso
por parte de Romero no desenvolvimento de Quake e da frustração causada pelas dificuldades
técnicas em construir um motor de jogos com renderização tridimensional em tempo real e
capaz de jogos multijogador online de maneira eficiente.
Quake foi também o primeiro jogo em que Tim Willits, um criador de WADs da
comunidade de modders, participou como designer de mapas para a id Software (KUSHNER,
2003, p.170). Willits é um caso emblemático de uma prática que se tornaria relativamente
comum, pois além de ser um dos primeiros, se tornou também o principal responsável pela
função nos jogos seguintes da série com a saída de Romero (KUSHNER, 2003). Romero por
sua vez, também contrataria diversos membros da comunidade para fazer parte da equipe de
desenvolvimento de seu jogo solo, Daikatana (Ion Storm, 2000) (KUSHNER, 2003, p.199).
26
Disponível em: http://www.doomworld.com/. Acesso em 18 jan. 2014.
104
enquanto Quake II vendeu mais de um milhão de cópias (ID SOFTWARE, 2014). Os três
jogos também foram criticamente e popularmente aclamados e teriam ao longo dos anos uma
comunidade engajada principalmente na participação em partidas online competitivas e
também uma comunidade de modders ativa e criativa.
Figura 16 - Captura de tela do primeiro nível de Quake (acima) e captura de tela de vídeo com
melhores momentos de competição realizada na QuakeCon 2013 (abaixo)
Do ponto de vista social, Quake teria nos clãs grupos de jogadores que se organizam
em times para competir contra outros times em partidas locais e online, uma das primeiras e
mais marcantes tentativas de tornar o videogame em um esporte no sentido tradicional. Um
dos desdobramentos mais interessantes dessa comunidade que surgiu ao redor do jogo foi o
progressivo e orgânico crescimento de um evento não oficial ao redor dela.
Em função de seu sucesso e suas capacidades multijogador, em 1996, ocorreu em
Dallas, Texas, a primeira QuakeCon: uma convenção de jogadores entusiastas que
inicialmente se encontravam em canais de IRC voltados ao jogo, em especial #quake.
106
QuakeCon inicialmente foi organizada como um evento não oficial, onde cada jogador trazia
seu computador para a instalação de uma rede local para se jogar os modos competitivos de
maneira casual ou competitiva em um dos diversos campeonatos sediados pelo evento.
Em sua primeira edição, realizada em um prédio próximo à sede da id Software, seus
funcionários visitaram de surpresa o evento e interagiram com os fãs de seus jogos,
relacionamento que se repetiria ao longo dos anos.
A tradição se mantém até hoje, dezoito anos depois, com milhares de participantes
trazendo seus computadores para celebrar a cultura que surgiu inicialmente ao redor dos jogos
produzidos pela id Software. Percebendo a possibilidade de utilizar o evento como forma de
promoção para seus produtos e como forma de fortalecer a comunidade ao redor deles, a id
Software desde 1997 o patrocina, mas não faz parte de sua organização, conjuntamente com
outras marcas de produtos relacionados (QUAKECON, 2014).
Outro desdobramento não planejado, mas que tomou vida própria quando colocado
nas mãos da comunidade de jogadores, foi a funcionalidade de gravar “demos”. Um demo é
um arquivo gerado pelo motor de jogo capaz de armazenar com precisão os estados de jogo
de uma determinada partida, permitindo assistir a todos os eventos que aconteceram nela a
partir do ponto de vista de quem a gravou. Depois de salvo, qualquer outro jogador é capaz de
carregar o demo em sua cópia do jogo e assistir como a ação transcorreu.
Inicialmente as práticas mais comuns estavam diretamente relacionadas à gravação de
partidas multijogador para a posteridade e speedruns – tentativas de completar o jogo no
menor tempo possível – por jogadores habilidosos. Com o tempo, no entanto, jogadores
encontraram maneiras e interesse de utilizarem essa funcionalidade para a criação de
narrativas contadas através do uso da visão em primeira pessoa – e cheats que permitiam uma
navegação mais livre do ambiente – e do modo multijogador. Nessa maneira de produção
criativa, um jogador controla a “câmera” que filma a ação, enquanto os outros interpretam a
interação entre personagens, movimentando-se no espaço e digitando as falas dos
personagens, criando dessa forma um filme a ser redistribuído. Essa prática daria forma a um
tipo de produção de fãs conhecida, posteriormente, como machinima, levantada no segundo
capítulo.
107
Fonte: (EVISON, 2001), (DANIEL, 2001) e (MONSTER, 2000), adaptado pelo autor.
27
Disponível em: http://www.planetquake.com/. Acesso em 18 jan. 2014.
28
Disponível em: http://www.moddb.com/. Acesso em 18 jan. 2014.
109
O fim dos anos 90 e início dos 2000, viu o fim da id Software como força
predominante no gênero FPS; a demanda do mercado por jogos do gênero, a longa demora até
o lançamento de seu próximo título, Doom 3 (id Software, 2004) e a importância cada vez
maior dos jogos competitivos online, são apenas alguns dos fatores que permitiram que
desenvolvedores concorrentes conseguissem construir seu espaço no mercado e na mente dos
consumidores.
111
29
Disponível em: https://www.unrealengine.com/udk/licensing/purchase/#Terms. Acesso em 18 jan. 2014.
30
Disponível em: http://steamcommunity.com/workshop/?l=portuguese. Acesso em 18 jan. 2014.
114
gerado por artistas amadores em dois de seus jogos, Team Fortress 2 (Valve Corporation,
2007) e Dota 2 (Valve Corporation, 2013), a Valve está fazendo uso do poder das novas
formas de produção permitidas pelas capacidade das novas mídias.
Team Fortress 2 e Dota 2 utilizam um modelo de negócios diferente e particularmente
interessante de utilização dessa mão de obra gratuita e voluntária. Ambos os videogames
podem ser baixados e jogados gratuitamente, e, por si só, são experiências completas,
satisfatórias e criticamente consideradas positivas. Esporadicamente seu estúdio
desenvolvedor adiciona itens cosméticos contribuídos voluntariamente por artistas amadores -
com base em diretrizes de estilo previamente definidos - no repertório de itens que podem ser
adquiridos. Esses itens mudam a aparência dos personagens controlados pelo jogador e são
conseguidos aleatoriamente ao fim de partidas online, podem ser trocados entre jogadores e
podem ser comprados de uma loja online incorporada ao videogame. Para cada venda de um
item seu contribuinte recebe uma parcela do lucro31. Até junho de 2013, os quatrocentos
produtores amadores que tiveram suas contribuições aceitas e incluídas em Team Fortress 2
dividiram mais de dez milhões de dólares entre si em pagamentos de royalties por seu
trabalho (TF2 TEAM, 2012).
Como a tabela demonstra, no entanto, diversas outras desenvolvedoras também
criaram seus próprios motores de jogo que, em maior ou menor grau, foram eles próprios
comercializados ou possuíam aberturas para jogadores criarem suas próprias modificações.
Como veremos no próximo capítulo, alguns desses outros motores terão comunidades de
jogadores dedicados e ativos participando na produção de mods, como é o caso, por exemplo,
dos videogames desenvolvidos pelo estúdio Bohemia Interactive.
É preciso considerar que se a discussão desse final de capítulo concentrou-se
especialmente em uma desenvolvedora e em um gênero de videogames, pela importância de
ambos, como vimos ao longo do trabalho, as diferentes maneiras, como a criação de conteúdo
por usuários, utilizou as aberturas possíveis e não se restringe nem ao modding e tampouco a
um gênero específico de videogame. Retornaremos a esse ponto, brevemente, no próximo
capítulo.
James Au, escrevendo a respeito do sucesso e crescente importância das comunidades
de modding que se formaram ao redor de diversos jogos ao longo do início dos anos 2000,
cita Will Wright:
31
Disponível em: http:// www.teamfortress.com/workshop /?l=english. Acesso em: 18 jan. 2014.
115
Toda essa inventividade guiada por fãs não deixou de ser percebida pela
indústria de jogos em geral. “Eu sempre me impressionei pela comunidade
que se formou ao redor de “Quake II” em particular”, diz Will Wright,
criador de “The Sims”. “Em algum momento os autores de mods não apenas
criaram coisas novas para o jogo, como também novas ferramentas para
[criar] conteúdo. [Isso] é um ótimo exemplo de como fãs realmente
dedicados podem surpreender você completamente com sua criatividade, se
oferecidos a oportunidade.” E isso iria inspirar Wright, alguns anos mais
tarde, a fazer do modding um elemento principal em “The Sims”32 (AU,
2002, tradução nossa).
32
All this fan-driven inventiveness did not go unnoticed in the wider game industry. “I was always impressed by
the community that formed around ‘Quake II’ in particular,” says “The Sims” creator, Will Wright. “At some
point the mod authors not only made new stuff for the game but also new tools for content [It's] a great example
of how the hardcore fans can totally surprise you with their creativity, given the chance.” And it would inspire
Wright, a few years later, to make modding a key feature in “The Sims”
116
categorias claramente definidas, deixa claro que gêneros de participação são renegociados e
estão em fluxo constantemente. É importante notar também, que mesmo se a motivação
principal do engajamento com esses grupos vêm de um interesse comum, ele pode levar à
construção de relacionamentos e amizades que transcendem esse foco. Além disso, um
mesmo indivíduo pode e geralmente participa de múltiplos grupos de ambos os gêneros de
participação.
Com base na distinção principal apresentada, Ito propõe três gêneros de participação
relacionais que refletem as práticas, modos de aprendizagem e formação de identidade
resultantes do engajamento com as novas mídias:
“Hanging out”: espaços para a co-presença onde seus participantes engajam-se em
contato social constante e casual e que move fluidamente entre contato online e off-line.
Marcado pela socialização via serviços de mídias sociais, de mensagem instantânea e de
ligações telefônicas que provém a sensação de estarem passando tempo junto a seus pares,
estendendo as maneiras diretas e pessoais com que isso se dá (ITO, 2010b, p. 38-39). São os
espaços onde compartilhar, postar, linkar e recomendar fotos, vídeos, músicas, etc., são
práticas comuns. “O desejo social de compartilhar espaços e experienciais com amigos agora
é suportado por uma rede e uma ecologia de mídia digital que habilita essas mudanças fluidas
na atenção e co-presença entre contextos off-line e online” (ITO, 2010b, p.50).
“Messing Around”: gênero de participação que marca formas mais intensas de
engajamento com as novas mídias. O primeiro modo diz respeito a capacidade e curiosidade
relacionadas a procurar e encontrar informações a respeito de um assunto ou objeto via
mecanismos de busca genéricos ou específicos ou pela navegação por links de maneira
exploratória. Essas atividades dizem respeito ao aprendizado de formas particulares de
obtenção e avaliação de informações e conhecimento que não estão ligadas às formas
tradicionais de fazê-lo, geralmente ensinadas em escolas (ITO, 2010b, p.55).
O segundo modo está ligado ao desejo e (eventualmente) a habilidade de manipular
objetos midiáticos com maior autoridade, que está ligada ao processo de exploração via
tentativa e erro e outras formas exploratórias de produção midiática. A facilidade de copiar,
colar e desfazer mudanças nas ferramentas de edição disponíveis quando se fala de mídias
digitais, combinado à informação online a uma pesquisa de distância, permite o aprendizado
autodidata dessas tecnologias e da produção desses artefatos.
Esses experimentos podem levar a um processo de desenvolvimento de habilidades
que não fazem parte de um currículo tradicional de ensino e podem oferecer novas formas,
inclusive ao desenvolvimento de habilidades que ofereçam oportunidades profissionais
118
futuras. Esse gênero de participação diz muito a respeito das vantagens de se crescer em uma
era de saturação midiática, mídias interativas e software social. (ITO, 2010b, p.65).
“Geeking out”: refere-se principalmente ao gênero de participação relacionado a um
intenso comprometimento ou engajamento geralmente relacionado com uma propriedade
midiática ou tipo de tecnologia (ITO, 2010b, p.65). Apesar dos interesses poderem variar e
em certos casos estarem relacionados a atividades não dependentes dessas novas mídias, as
práticas e contextos o são: a capacidade de engajar-se com mídias e tecnologias de maneira
intensa, autônoma e em razão de interesses pessoais é uma característica do ambiente
midiático e momento histórico atuais (ITO, 2010b, p.65).
Os exemplos oferecidos do trabalho são de jovens envolvidos em atividades como a
tradução feita voluntariamente por fãs de animações e revistas japonesas – “Lanimes” e
“mangás” respectivamente -, as produções culturais de fãs de franquias como Harry Potter e
certas formas de engajamento com jogos, inclusive o modding. Além do uso frequente e
intensivo dessas novas mídias, altos níveis de conhecimento especializado ligados a modelos
alternativos de status e credibilidade, assim como uma disposição a contornar ou quebrar
regras sociais e tecnológicas, são marcas desse gênero de participação (ITO, 2010b, p.66).
Os três gêneros de participação apresentados hanging out, messing around e geeking
out descrevem três níveis diferentes de investimentos em atividades relacionadas às novas
mídias de uma maneira que integra um entendimento dos padrões técnicos, sociais e culturais.
Fica claro que diferentes jovens em diferentes momentos, possuem níveis variáveis de
conhecimento, interesse e motivação midiáticos e tecnológicos. (ITO, 2010b, p.75)
Para a discussão desse trabalho, as ferramentas conceituais e os objetos de estudo que
nos interessam mais imediatamente, são aqueles relacionadas ao estudo da participação
motivada por interesses em comum entre pares no universo dos jogos. São nesses espaços que
surge a oportunidade para que indivíduos encontrem online grupos que partilhem de seus
interesses e possam socializar.
Tratando dos diferentes contextos onde jogos e jogar podem acontecer dentro da
ecologia mais ampla da sociedade e cultura, Mizuko Ito e Matteo Bittanti (ITO, 2010b),
organizam as práticas relacionadas em alguns tipos metodológicos com implicações
particulares. Jogar é percebido como uma prática progressivamente inclusiva; a percepção de
que apenas jovens do sexo masculino se engajam nesse tipo de atividade é refutada quando
olhamos o espectro dos diferentes modos como jogos passam a fazer parte das práticas de
diferentes grupos e contextos.
119
Essa distinção tenta levar em conta fatores particulares dos jogos considerados
enquanto um tipo de mídia interativa, personalizável e modificável por seus jogadores, assim
como pela sofisticação técnica de certas formas que essas práticas tomam e os diferentes
modos de sociabilidade que elas permitem. Jogar jogos cria um espaço deslocado das práticas
e obrigações cotidianas, com seus próprios valores, metas e medidas de desempenho e
permitem a exploração de diferentes identidades em um contexto relativamente seguro.
É nesse sentido e baseado nos dados etnográficos coletados na pesquisa, que Ito e
Bittanti sugerem tipos de práticas que acontecem nos três gêneros de participação delineados
anteriormente. São eles:
“Killing Time”: diz respeito aos momentos que jogar, geralmente de maneira solitária,
preenche as pequenas lacunas do dia e períodos de espera entre acontecimentos e momentos
importantes. Geralmente é o espaço dos jogos casuais de celular e de internet simples,
repetitivos e de baixo impacto.
“Hanging out”: são os gêneros de participação que acontecem quando jogar um jogo
se torna pretexto para um engajamento em forma de sociabilidade ligadas à formação e
reforço de laços de amizade. Nesses casos, mesmo que a interação lúdica seja um componente
importante, ela não é o componente principal, similarmente às formas de sociabilidade ligadas
à música, esportes e outras atividades do tipo. O exemplo principal são videogames
multijogador locais e de fácil aprendizado, que suscitem momentos de interação mais
competitiva com momentos majoritariamente lúdicos. Videogames de dança e esportes
lançados para consoles como o Wii da Nintendo e que utilizam o periférico de captura de
movimento Kinect do Xbox 360, são exemplos particulares das formas de passar tempo juntos
consideradas.
“Recreational Gaming”: quando jogar o jogo se torna o ponto principal da interação
social, seja no contexto de um ambiente de competição entre jogadores ou naqueles onde a
cooperação entre jogadores para superar os desafios que um videogame propõe - como é o
caso em diversos MMORPGs – é aspecto principal da interação, tem-se o que Ito e Bittanti
denominam recreational gaming. Os videogames que promovem essa forma de engajamento
comumente exigem maior dedicação e comprometimento de tempo, atenção e estudo por
parte de seus jogadores e em contrapartida, os retribuem com desafios e oportunidades para
desenvolverem identidades ligadas à perícia, desempenho e virtuosismo num contexto
diferente daqueles de sua vida cotidiana (ITO, 2010b, p.213). Esses contextos se tornam
importantes também como pontos de entrada para outras formas - mais técnica e
midiaticamente complexas - de aprendizagem e compartilhamento de conhecimento.
120
Por essa variedade de modos é difícil definir precisamente o modding sem que se corra
o risco de ignorar aspectos essenciais da prática. Olli Sotamaa introduz a prática da seguinte
maneira:
E em outro artigo:
Julian Kücklich por sua vez prefere apenas contextualizar a prática historicamente:
Desde o início dos anos 1990, a relação entre a indústria dos jogos digitais e
seus consumidores tem mudado significantemente. Em grande parte isso se
deve à emergência de modificações de jogos de computador, ou modding,
como uma prática cultural disseminada. Enquanto Castle Smufenstein
(1983), uma modificação do clássico Castle Wolfenstein, é comumente vista
como o primeiro mod, o modding não se firmou até depois da publicação do
código fonte de Doom pela id Software em 1997, e o subsequente
33
Modifications, also known as mods, are an intriguing and long-lasting form of player-production and have
been an essential part of PC gaming for over a decade now. In short, mods are digital artefacts that avid gamers
design by tinkering with their favourite games.
34
The urge to modify existing computer systems can be tracked at least back to the first generation hackers who
treated the early machines as they were toys and were responsible for programming some of the first modern
computer games. Early computer games were important vehicles for learning about programming and
understanding the potentials of the machines. In a sense modifying games was an organic part of gamer lifeworld
in the early days of computer gaming. (Haddon 1988, Sotamaa 2005.) Still, the mod phenomenon as known
today is tightly connected to the emergence of online PC gaming in the early 1990’s. Games like Doom (ID,
1993) introduced both new forms of network-based play and clever ways of supporting the gamer-made content
creation. Simultaneously, the increasing access to the Internet and the emergence of World Wide Web gave birth
to devoted fan groups.
123
Hector Postigo, por sua vez, parte da seguinte definição em seu trabalho de estimação
do valor financeiro do trabalho de modders envolvidos em atividades de produção e
distribuição de mods para jogos:
E mais adiante:
35
Since the early 1990s, the relationship between the digital games industry and the consumers of digital games
has changed significantly. To a large extent, this is due to the emergence of computer game modification, or
“modding”, as a widespread cultural practice. While Castle Smurfenstein (1983), a modification of the classic
Castle Wolfenstein, is commonly seen as the first mod, modding did not come into its own until after id
Software’s publication of the Doom source code in 1997, and the subsequent development of level editors such
a s WorldCraft by the players themselves.
36
Recent work by Henry Jenkins and others has brought significant attention to fan-programmers and the
ascendance of the fan in new media consumption and production (Hartley, 2006; Jenkins, 2006c; Taylor, 2006).
Referred to generally as “modders”, fan-programmers have been mapped onto theories of “convergence,” where
fans and producers are converging in their roles (Jenkins, 2006b). Fan-programmers form knowledge
communities (part of what Pierre Levy has called “collective intelligence”) whose actions are informed by
participatory culture and that at times are in opposition to the commodity-driven proprietary nature of the
cultural industries (Jenkins, 2006a; Levy, 1997).
37
Fan-programmers who design add-on components to games have various designations based on what they do.
Modders, for example, make modifications, or “mods,” to a game. These mods can range from changes in the
physics of the virtual world to total conversions in game play that can lead to changes in story line and game
type. Mappers, on the other hand, specialize in designing new levels, or “maps,” for a game. In this form of add-
on, the same game characters and game play are present, but play occurs in virtual worlds entirely or partly
designed by fan-programmers. To these groups we may add “skinners,” who design new types of characters, and
124
David B, Nieborg explorando a cultura dos mods para jogos de tiro em primeira
pessoa, observa que:
E a seguir:
weapons makers, who make new tools for use inside the virtual world. For the sake of clarity, I refer to software
packages created by fan-programmers for games generally as add-ons, using the terms maps, mods, skins, and so
on when talking specifically about a type of add-on.
38
Mods are as diverse as there are computer games. They can differ in size and complexity and can make little
adjustments to the original game or give a game a complete new look.
39
For long, users have tinkered with the possibilities of modifying the content and gameplay of games. The
earliest computer games were collaborative texts, (re)produced and (re)distributed by their users. Since the rise
computer networks, the ethos of these (virtual) communities consisted of users encouraging each other to
enhance and tweak new (gaming) technologies (c.f. Castells, 2003; King & Borland, 2003). Looking at the
historical context in which FPS mods originated (e.g. Au, 2002; Kushner, 2003), there are many answers to the
origin of the modding ethos and the modding community as it thrives today.
125
É importante enfatizar, contudo, que o modding é apenas uma forma entre outras pela
qual a atividade de produção criativa sobre videogames acontece, não sendo necessariamente
melhor ou mais avançada que as discutidas ao longo capítulos anteriores. Comunidades de
pessoas envolvidas nesse tipo de atividade criativa já existiam de forma fragmentada e menos
expressiva quando pensamos em MUDs – e suas variações – e nas trocas de arquivos com
modificações a jogos, seja via hacks, ferramentas especialistas ou acesso ao código fonte,
como foram os casos de Castle Smurfenstein, os níveis e mesas criados em Lode Runner e
Pinball Construction Set respectivamente, e as diversas versões e variantes de jogos como
Adventure/Colossal Cave e Dungeon que circularam pelas primeiras redes de computador à
procura de alguém para jogá-los.
Além disso, é preciso reforçar que videogames de outros gêneros também possuíram
aberturas similares para que atividades de modding surgissem e se desenvolvessem,
agregando verdadeiras comunidades de jogadores e criadores ao redor deles. Warcraft II:
Tides of Darkness (Blizzard Entertainment, 1995), Warcraft III: Reign of Chaos (Blizzard
Entertainment, 2002), StarCraft (Blizzard Entertainment, 1998), StarCraft II (Blizzard
Entertainment, 2010), Age of Empires II: The Age of Kings (Ensemble Studios, 1999), Age of
Mythology (Ensemble Studios, 2002), Age of Empires III (Ensemble Studios, 2005) são
apenas alguns dos exemplos possíveis de videogames de estratégia em tempo real que
possuem ferramentas para a edição e criação de mapas, missões e unidades. Videogames de
estratégia por turnos como Civilization II (MicroProse, 1996), Civilization III (Firaxis Games,
2001), Civilization IV (Firaxis Games, 2005) e Civilization V (Firaxis Games, 2010)
acolheram as práticas de modding, assim como, Crusader Kings (Paradox Interactive, 2004) e
Crusader Kings II (Paradox Interactive, 2012) que apresentam ferramentas como editores de
mapas, civilizações e outros parâmetros importantes ao sistema de jogo. Séries de videogames
de RPG como Neverwinter Nights (BioWare, 2002) e Neverwinter Nights 2 (Obsidian
Entertainment, 2006), Elder Scrolls, composta por Elder Scrolls: Daggerfall (Bethesda
Softworks, 1996), Elder Scrolls: Morrowind (Bethesda Softworks, 2002), Elder Scrolls:
Oblivion (Bethesda Softworks, 2006) e Elder Scrolls: Skyrim (Bethesda Softworks, 2011),
ofereceram a seus jogadores complexos e podersos motores de jogo. SimCity 2000 (Maxis,
1994), SimCity 3000 (Maxis, 1999) e especialmente SimCity 4 (Maxis, 2003), possuem
ferramentas para edição e criação de edifícios e a franquia de esmagador sucesso comercial
The Sims, em particular The Sims (Maxis, 2000), The Sims 2 (Maxis, 2004) e The Sims 3 (The
Sims Studio, 2009).
127
Em relação a esses outros casos, alguns muito bem sucedidos, podemos diferenciar os
FPSs com base principalmente no caráter precursor, na escala de produção e na maturidade
das comunidades de modders que surgiram ao redor deles e também pelo fato de alguns dos
mods criados por elas terem se tornado eles próprios videogames de sucesso comercial. Por
esses motivos, a maior parte dos exemplos utilizados ao longo desse trabalho está ligada aos
FPSs, mas é importante enfatizar que não são os únicos casos.
de combate de maneira realista. Como a maior parte dos videogames FPS que vimos até
agora, o apelo maior e mais duradouro está ligado à experiência multijogador que ele
proporciona.
Sotamaa (SOTAMAA, 2004, p.7-9) sugere classificar as motivações para a
participação dos modders estudados nessa comunidade em cinco agrupamentos principais,
mas que podem sobrepor-se:
a) Jogar: a motivação principal desses indivíduos é melhorar ou modificar algum
elemento do jogo para tornar sua experiência mais significativa.
b) Hacking: o interesse principal está relacionado à exploração do funcionamento interno
do videogame e seus processos computacionais. A investigação do videogame
enquanto software e a manipulação de seus elementos técnicos são atividades comuns.
c) Pesquisa: encontram fontes documentais e visuais que ajudem à construção de uma
simulação mais fidedigna, em especial no que diz respeito à veracidade e minúcia dos
elementos militares criados pela comunidade.
d) Trabalho artístico: a experiência da criação é o melhor que o modding tem a oferecer.
O videogame serve como meio para a expressão de modder e a motivação pode variar
da puramente estética até a mais política.
e) Cooperação: visitar as páginas dedicadas à atividade e participar em projetos coletivos
se torna uma forma importante de sociabilidade com pares, indivíduos que possuem
com interesses e afinidades similares. Quanto maior e mais ambicioso um projeto de
mod, maior a necessidade de habilidades sociais para administrar e motivar aqueles
envolvidos.
A primeira coisa que podemos perceber é que existem motivações diferentes para se
participar de comunidades interessadas na prática do modding, algumas antagônicas, como o
caso daqueles que fazem parte por motivos puramente amadores e aqueles que fazem uso da
oportunidade para se prepararem para o ingresso numa desejada posição na indústria dos
videogames. Nas duas análises podemos perceber que a noção de apropriação de um objeto
midiático para modificá-lo e torná-lo algo mais significativo para seu usuário é uma temática
comum ao modding da mesma forma que é a outros fandoms. O modding também consiste em
uma atividade prazerosa que permite a interação com pares que compartilham daquele
interesse, servindo como um espaço de sociabilidade especial onde conhecimentos e
habilidades específicas de cada membro do grupo podem encontrar uso e valorização.
129
40
This form of leisure produces uncommon pleasures and significant social rewards for its participants. In this
regard modding shares characteristics with other hobbies that permit people to engage in work like behaviour in
noncoercive environments (Gelber, 1999). As Kücklich (2005) argues modders share some traits with voluntary
workers as well, as modding is not at least directly financially directed. Voluntary work is, however, largely
limited to non–profit oriented projects and therefore indicates rather different values compared to the highly
competitive and profit–oriented games industry.
130
É justamente nessa interseção entre fandom e indústria que surgem alguns dos
elementos particulares e em alguns casos mais conflituosos, do modding, como será discutido
a seguir.
livre como uma forma de lazer ou simplesmente como uma extensão do jogar, não possuiriam
valor intrínseco.
Se for verdade que para parte dos envolvidos não existe uma motivação financeira
para suas atividades e mesmo para aqueles que possuem um interesse explícito em adquirir
experiência e qualificações para um emprego na indústria dos videogames a atividade seja
prazerosa, os benefícios retirados pelos estúdios dessa atividade estão ligados, implicitamente,
a uma desqualificação do valor existente nelas. Por outro lado, existe a prática de contratação
por estúdios de modders já familiarizados com as etapas do processo de desenvolvimento de
um videogame e que já possuam o conhecimento técnico para serem produtivos com as
ferramentas disponíveis. A experiência em atividades de modding no portfólio é um
importante diferencial para futuros funcionários, em especial porque oferece funcionários
melhores e mais baratos (AU, 2002; SOTAMAA, p.115).
Ao longo da exposição seguinte, tenta-se reforçar questões levantadas durante a
argumentação de Kücklich, a fim de contrabalancear o discurso oficial de estúdios de
desenvolvimento que se utilizam do trabalho não remunerado de seus fãs.
Dois trechos de entrevistas com representantes de estúdios de desenvolvimentos para a
publicação online especializada, GameSpy, ilustram bem a percepção da indústria em relação
ao modding. Em primeiro lugar, Chris Taylor durante promoção de Dungeon Siege (Gas
Powered Games):
41
GameSpy: Why was it important for you guys to release editing tools for Dungeon Siege? You've also done a
lot to support the entire modding community through Siege University.
Chris Taylor: Most of this drive comes from our experience working on Total Annihilation. We learned that a
great community could propel a game to new levels of fun and turn it into more than anyone thought it could be.
We found this idea to be very exciting, and in many ways, feel it is the way of the future. Imagine, people all
over the world working together on teams to create fantastic new adventures, stories, characters ... the
possibilities are endless, and this is just the beginning!
132
42
GameSpy: There are a lot of FPS games shipping in March. What does UT2004 do that the other games don't?
What makes UT2004 so unique?
Cliffy B: UT2004 is not just a game, it's a platform. By purchasing this (reasonably priced) game you're going to
not only have access to one of the deepest game "toyboxes" ever, you're going to unlock a gateway to hundreds
of great user-made mods and thousands more user-created levels. We've only scratched the surface here, and
with events such as the $1,000,000 NVIDIA Make Something Unreal Contest, the future is even brighter.
133
realização de um desses concursos, “Make Something Unreal”, patrocinado pela Epic Games
com o apoio da fabricante de placas de vídeo – componente essencial para o bom desempenho
gráfico de videogames - para computador NVIDIA.
Esse tipo de competição, para Sotamaa, é uma das formas como estúdios acabam por
enfraquecer o discurso de que o modding é uma atividade puramente prazerosa exercida por
fãs e deixam claras as intenções comerciais por trás desta relação. Os projetos vencedores
desse tipo de competição, mais ambiciosos e complexos, são geralmente produto do trabalho
de equipes organizadas e que se profissionalizam para viabilizar sua realização (SOTAMAA,
2003, p.21-22). Ora, se esse é o caso, como poderia o modding ser apenas atividade de lazer e
motivada por imperativos estéticos e sem fins lucrativos? Diferentes motivações existem em
paralelo e ao preferir não distinguir entre elas em seu discurso oficial, estúdios estão de
maneira indireta desvalorizando a importância desse trabalho não pago ao mesmo tempo em
que colhem seus melhores frutos.
Parte substancial das atividades modding discutidas aqui é realizada com base em
ferramentas e tecnologia - em especial os motores de jogo e editores de mapa - livremente
disponibilizadas pelos desenvolvedores dos videogames originais. De um ponto de vista
financeiro, essa liberação voluntária faz sentido, já que para que um mod funcione é preciso
que haja uma versão pré-instalada do videogame original no computador de quem o baixa43.
Em jogos nos quais o modding é planejado e ferramentas são cedidas pelo estúdio
desenvolvedor, segue-se disso a aceitação e cumprimento por parte dos modders de regras de
uso descritas em acordos de uso comumente denominados “end user license agreement”
(EULA). Esses acordos variam em formato e conteúdo conforme o interesse específico de
cada estúdio, mas sempre procuram proteger a propriedade intelectual de usos considerados
indevidos por seus proprietários. Tradicionalmente, esses acordos ditam que produtos
derivados – entre eles os diferentes tipos de mods - não devem exigir retribuição financeira de
seus usuários finais.
Sotamaa (SOTAMAA, 2003), ao estudar a produção de fãs para os jogos da série
Quake, ressalta dois trechos do acordo que exemplificam bem a situação:
43
Quando falamos da prática do modding que não é permitida ou intencional, como frequentemente acontece
quando falamos de mods criados através de hacks e ferramentas desenvolvidas para “quebrar” as proteções do
videogame original a fim de modificar seus dados e processos, os modders correm o risco frequente de terem
suas modificações barradas pela ameaça de processos por parte dos detentores dos direitos sobre a propriedade
intelectual que está sendo utilizada de maneira “indevida” por eles. Essa prática comumente toma a forma do
contato formal por representantes legais dos estúdios via notificações de “cease and desist” (C&D) contra
membros do projeto de modificação em questão.
134
Você não deverá alugar, vender, financiar, emprestar, oferecer com base em
um acordo de pagar por vez jogada ou de outra maneira, explorar
comercialmente ou distribuir comercialmente as Criações Originais. Você é
liberado apenas a distribuir, sem qualquer custo ou cobrança, as Criações
Originais para outros usuários finais, contanto que tal distribuição não
infrinja contra quaisquer direito de terceiros e não seja de outra maneira
ilegal ou ilícita. Basicamente, o desenvolvimento de modificações é apoiado,
mas apenas até onde o conteúdo amador não entra em conflito com os
interesses comerciais de companhias44 (SOTAMAA, 2003, p.23).
3.4 INOVACÃO
Grande parte dos mods produzidos na comunidade estudada por Postigo possuem
complexidade e escopo limitados e são produzidos de maneira solitária. Esses mods são
criados por jogadores que desejam adicionar novas dimensões aos jogos que lhe são caros e
tendem a ser projetos menos ambiciosos e realizados de maneira verdadeiramente amadora
(POSTIGO, 2003, p. 305). Sotamaa encontra situação similar em seu estudo (SOTAMAA,
2003). Uma verificação rápida na produção de comunidades voltadas a outros jogos parece
confirmar a tendência.
Apesar disso, certos mods que realizam mudanças aparentemente pequenas e pontuais
nos gráficos e jogabilidade podem ser extremamente populares por facilitarem determinadas
ações ou minimizarem pequenos pontos negativos da experiência original. Descrevendo os
mods em World of Warcraft, que são restritos a alterações na interface gráfica do jogo, Bonnie
Nardi e Janis Kallinikos apontam que eles podem “reduzir o esforço, fazer partes invisíveis do
jogo visíveis, ajudar jogadores a se coordenarem e capturarem aspectos importantes da
história construída pelo jogador” (NARDI & KALLINIKOS, 2010, p.9). Além disso, esses
mods permitem ao jogador expressar suas preferências pessoais e personalizar sua
experiência. No caso desses mods os jogadores não buscam criar um novo jogo ou modo de
jogo, mas encontrar meios pelos quais tornar a interação lúdica mais agradável.
Do outro lado do espectro temos os mods de total conversion, geralmente
desenvolvidos por equipes amadoras organizadas por membros de uma comunidade de
modders. Essas “conversões totais” são o tipo mais complexo de mod: podem combinar
elementos audiovisuais (modelos, texturas, efeitos e trilha sonoros, etc.), mapas ou níveis,
temas, narrativa e regras novos, e procuram transformar completamente a experiência original
do videogame. Um processo de profissionalização dessas equipes, ao menos do ponto de vista
organizacional e no comprometimento de tempo e energia colocados por seus membros,
também qualificam a diferença entre total conversions e outros tipos de mods.
Se as motivações dos modders variam do interesse puramente amador ao objetivo
claro de utilizar essa experiência como porta de entrada na indústria (POSTIGO, 2003, p.310),
um fato que é inegável é a inventividade e a tendência a inovações dos projetos mais
populares.
136
CONCLUSÃO
Buscou-se ao longo desse trabalho contextualizar algumas das diversas maneiras que a
produção criativa por jogadores de videogames pode acontecer. Entendeu-se os videogames
como um dos diversos objetos midiáticos que compõe a cultura popular de massa, essa
entendida como guiada pelos interesses econômicos dos grandes conglomerados que
controlam as indústrias midiáticas, entre elas a dos filmes, televisão, música e os próprios
videogames. Não obstante essa origem, buscou-se demonstrar através de Jenkins e outros
autores, como as chamadas novas mídias e a progressiva expansão no uso de plataformas
tecnológicas digitais progressivamente aproximam consumidores de uma situação de maior
agência sobre esses objetos. A convergência digital opera de maneira que detentores de
propriedades intelectuais e consumidores entusiastas passam progressivamente a travar algum
diálogo, seja porque isso traz benefícios econômicos ao primeiro ou porque o segundo é capaz
de articular-se coletivamente para ter sua opinião ouvida.
O papel dos fãs e das comunidades de discussão e produção criativa formadas por eles
ao redor de objetos midiáticos de massa como séries de filme, televisão e livros foram
inspiração direta para o tratamento que as comunidades formadas ao redor de diversos
videogames foram consideradas ao longo do trabalho.
No caso específico dos videogames, procurou-se em estabelecer o panorama geral dos
gêneros de participação relevantes através do trabalho de Mizuko Ito e sua equipe de
pesquisadores, assim como, tentamos explorar como aspectos culturais são elementos
constituintes integrais de se jogar um jogo e das experiências que ele proporciona.
A maior parte dos consumidores tem pouco interesse em exercer alguma agência sobre
o objeto de seu entusiasmo e isso é verdade também para videogames; apesar desses serem
inerentemente compostos por sistemas interativos, poucos são os casos nos quais é exigido do
jogador pensar e agir para além do círculo mágico que o jogo inscreve ao seu próprio redor.
Videogames que possuem, seja por design intencional ou graças à engenhosidade de
jogadores detentores dos conhecimentos técnicos necessários, a capacidade de serem
modificados ou serem utilizados como sistemas para a criação de outros jogos, perfazem o
interesse desse trabalho.
O trabalho procurou mostrar como o meio digital no qual os videogames existem e
certas qualidades intrínsecas deles enquanto jogos, a dizer sua natureza sistêmica e
transmidiática, permitem formas de apropriação e criação derivadas particularmente únicas.
Procurou-se também indicar com diversos exemplos considerados historicamente relevantes,
139
45
Dísponível em: http://unity3d.com/. Acesso em: 18 jan. 2014.
46
Dísponível em: https://www.yoyogames.com/studio. Acesso em: 18 jan. 2014.
47
Dísponível em: http://www.stencyl.com/. Acesso em: 18 jan. 2014.
48
Disponível em: http://monogame.codeplex.com/. Acesso em: 18 jan. 2014.
49
Disponível em: http://www.sfml-dev.org/. Acesso em: 18 jan. 2014.
50
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