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Coleção Capa Preta

Volume 1
DELÍCIAS DO CRIME
História Social
do Romance Policial

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ERNEST MANDEL
Mandei, Ernest, 1923-
M239d Delícias do crime: história social do romance
policial/Ernest Mandei; tradução de Nilton Goldmann. -
São Paulo: Busca Vida, 1988.
(Capa Preta; V.I)

Bibliografia. Tradução

1. Ficção policial e de mistério - História e crítica I. Nilton Goldmann


Título. lI. Título: História social do romance policial. III.
Revisão Técnica
Série.
Carlos Antonio Machado
88-0318 CDD-809.30872

índices para catálogo sistemático:

I. Ficção policial e de mistério: História e crítica 809.30872


2. Ficção policial e de mistério: Perspectiva marxista: Histó-
ria e crítica 809.30872

ISBN85-7126-00I-X
Copyright Ernest MandeI

Título original: Delightful Murder


A History of the Crime Story

Preparação: Sônia Maria de Amorim


Revisão: Serena Pignatari, Fernando B. Gião e Sílvio Neves Ferreira
Montagem: Paulo Rogério Akio Kato
Capa: Isabel Carballo

Direitos adquiridos pela


EDITORA BUSCA VIDA
Rua dos Pinheiros, 928
05422 - São Paulo-SP
Te!.: 815-2311

Em memória de Gisela
(20 de junho de 1935 - 14 de fevereiro de 1982), que me
deu dezesseis anos de amor e companheirismo e para quem
a espontaneidade e a generosidade em relação a todos os
1988 seres humanos ocorriam tão naturalmente quanto a respi-
Publicado no Brasil ração.
Sumário

Prefácio/9
1. De herói a vilão/15
2. De vilão a heróil31
3. Das ruas para a sala de visitas/45
4. De volta às ruas/57
5. A ideologia do romance policial/69
6. Do crime organizado à detecção organizada/87
7. Do crime organizado ao crime estatal/97
OBRAS DO AUTOR PUBLICADAS 8. Produção em massa e consumo em massa/107
EM PORTUGUÊS 9. Diversificação externa/119
10. Diversificação interna/133
11. Violência: explosão e implosão/145
Capitalismo tardio (Abril Cultural) 12. Do crime aos negócios/155
Introdução ao marxismo (Ed. Movimento) 13. Dos negócios ao crime/167
O lugar do marxismo na história (Ed. Aparte) 14. Estado, negócios e crime/l77
A teoria leninista da organização (Ed. Aparte) 15. De uma função integrativa a uma função
A formação do pensamento econômico de Karl Marx (Zahar) desintegrativa do romance policial/189
Marxismo revolucionário atual (Zahar) 16. Fechando o círculo?/203
Trotsky - um estudo da dinâmica de seu pensamento
Bibliografia1213
(Zahar)
Prefácio
PARA INÍCIO DE CONVERSA, devo confessar
que gosto de ler romances policiais. Antigamente achava
que eram simplesmente diversões escapistas: enquanto os
lemos não estamos pensando em outras coisas; quando ter-
minamos sua leitura não pensamos mais neles e pronto.
Porém, este pequeno estudo constitui, por si só, uma pro-
va de que este raciocínio é, no mínimo, impreciso. É claro
que quando acabamos de ler qualquer romance policial
deixamos de nos fascinar por ele, da mesma forma que eu,
por exemplo, não posso deixar de ficar fascinado pelo
grande sucesso do romance policial como gênero literário.
Trata-se obviamente, portanto, de um fenômeno so-
cial: milhões de pessoas em dezenas de países, em todos os
continentes, lêem romances policiais. Inúmeros autores e
um grande número de editores capitalistas se tornaram mi-
lionários produzindo este tipo de artigo, intuindo com pre-
cisão as necessidades que o gênero satisfaz como uso-bene-
fício - ou, para colocar em linguagem corrente, a exati-
dão com que os editores aferiram a curva da demanda. E
por quê? Qual a origem dessas necessidades? Como se mo-
dificaram através dos anos e como se relacionam com a es-
trutura geral da sociedade burguesa? Estas são algumas
das perguntas que tentarei responder.
Meu enfoque é o método dialético clássico como foi
desenvolvido por Hegel e Marx. A seguir, transcrevo a des-
crição de Hegel sobre o tratamento dado a um problema
semelhante:
12 13

Ao encararmos a totalidade da nossa existência, cruzam as grandes curvas da ideologia social e da evolução
encontramos na nossa consciência comum a maior social como um todo?
variedade de interesses e as formas de satisfazê-los. Por ter tratado a história do romance policial como
Em primeiro lugar, a grande área das necessidades fí- um dado social e não literário, ignorei deliberadamente pe-
sicas; os grandes mundos das profissões (e dos produ- lo menos uma importante dimensão: a personalidade, ca-
tos manufaturados) em seus amplos empreendimen- ráter e vida da maior parte dos autores, pois na verdade
tos e inter-relações, assim como o comércio, a nave- são inúmeros. Portanto, considerar o lado oferta do ro-
gação e as artes técnicas, e a classe operária (para sa- mance junto com o lado demanda tornaria a tarefa in-
tisfazer essas necessidades). Além disso (encontra- transponível. Apenas em alguns casos, desviei-me dessa ro-
mos), o domínio do direito e das leis, da vida familiar, ta e me detive na psicologia individual do escritor policial.
da divisão dos Estados, de todo o campo abrangente Porém, existe outra razão para ignorar as personali-
do país. Mais além (encontramos), a necessidade de re- dades, além das idéias dos autores. Em grande parte esse
ligião, que pode ser detectada em todos os corações e gênero pertence àquela parcela da produção literária que
que recebe lenitivo na vida religiosa. E, finalmente, os alemães chamam Trivialliteratur, que implica um gran-
(existe) o exercício da ciência, ela própria subdividida de volume de "escrita mecânica", na qual os autores com-
em inúmeros ramos interligados, isto é, a totalidade põem, decompõem e recompõem fios do enredo e persona-
do conhecimento e da compreensão que tudo abran- gens como se estivessem numa esteira rolante. A personali-
ge. dade dos autores, nesses casos, só é relevante na medida
E, quando surge uma nova ciência, questiona-se em que isso os torna capazes e propensos a escreverem de
a necessidade intrínseca de tal carência em relação às tal forma.
outras áreas da vida e do mundo. À primeira vista, Aos que consideram frívolo para um marxista perder
pois, não podemos fazer qualquer coisa a não ser re- tempo analisando romances policiais, só me resta oferecer
gistrar a existência desta nova necessidade, nem pode- esta desculpa final: o materialismo histórico pode - e deve
mos explicá-Ia imediatamente, pois tal explicação - se concentrar em todos os fenômenos sociais. Nenhum
acarretaria uma análise mais detalhada. deles é, por natureza, menos digno de ser estudado do que
os outros. A grandeza dessa teoria - e a prova da sua vali-
O que a ciência (nos) pede é a compreensão so- dade - repousa precisamente na sua capacidade de poder
bre a essencial relação íntima (da nova carência para explicá-los.
o resto da vida) e suas mútuas necessidades (p. 137 e
ss., tradução do autor, inclusive as linhas grifadas).

Muito bem. Não serei eu mais do que uma vítima da


ideologia burguesa sendo tragado no turbilhão, junto com
milhões de outros infelizes, construindo uma elaborada ra-
cionalização para um simples vício idiossincrático? A expe-
riência pessoal e a negativa em me sentir culpado por me
entregar a um prazer proscrito pelos fariseus (pois a revo-
lução como a religião possui seus tartufos) me levaram a
interrogar profundamente o mais difícil e complexo enig-
ma da teoria social: como as leis da psicologia individual
De herói a vilão
o MODERNO ROMANCE POLICIAL deriva da li-
teratura popular sobre "os bons bandidos": de Robin
Hood e Til Eulenspiegel, passando por Fra Diavolo, até
Rinaldo Rinaldini, de Vulpius, e Die Rãuber (Os bandolei-
ros) e Verbrecher aus verlorener Ehre (O criminoso da
honra perdida), de Schiller. Porém, nisso houve um salto
mortal dialético. O herói bandido do passado se tornou o
vilão de hoje, e o representante da autoridade vilã do pas-
sado, o herói dos nossos dias.
A tradição das histórias dos bandidos é venerada no
mundo ocidental, começando com os movimentos sociais
que contestavam os regimes feudais e recebendo um pode-
roso ímpeto com o início da decadência do feudalismo e o
surgimento do capitalismo no século XVI.
Em Rebeldes primitivos (1959) e Bandidos (1969),
Eric Hobsbawn mostrou que os "bandidos sociais" são la-
drões de uma categoria especial a quem o Estado (e as clas-
ses dominantes) encara como fora-da-lei, embora perma-
neçam dentro dos limites da ordem moral da comunidade
camponesa. Porém, essa tradição literária é, no mínimo,
ambígua. Anton Block convincentemente demonstrou que
esses rebeldes eram na realidade tudo, menos beneméritos,
além de serem capazes de explorar, com perversidade, os
camponeses se aliando aos proprietários locais contra o
poder central. É óbvio que é mais fácil para um camponês
lidar com este tipo de bandido do que com nobres e merca-
dores, razão pela qual os camponeses não apoiavam as au-
toridades contra estes antigos rebeldes.
19
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landeses, oriundos, eles próprios, dos pelotões navais
Nathan Weinstock, por outro lado, demonstrou que
ou dos empregados contratados para as colônias, se-
esses bandidos não eram arautos da revolução democráti-
qüestrados na Irlanda e vendidos como animais aos
co-burguesa, e nem mesmo reformistas agrários. Eram,
ricos mercadores ingleses nas costas do continente
sim, lumpen pré-proletários empobrecidos e assaltantes
nômades, cujas qualidades e defeitos eram bastante diver- recém -desco berto.
Passaram a ser conhecidos como os Homens
sos dos dos membros da burguesia ou dos assalariados. In-
Sem Patrão ... os ingleses enviaram diversas expedi-
corporavam uma rebelião populista, pequeno-burguesa,
ções navais para capturá-los, mas inevitavelmente es-
contra o feudalismo e o capitalismo emergente. Esta é uma
sas incursões terminavam em pântanos ou matagais,
das razões pelas quais a tradição dos contos e dramas sobre
ao lado de caminhos forjados para eles pelos homens
os rebeldes e os bandidos é tão extensa dentro da literatura
mundial, não se limitando apenas à sociedade ocidental. de Kerrivan.
No modo de produção da Ásia, deu margem à obra-prima
do épico chinês do século XIII: Shuihu-Zhuan (Na mar- É interessante observar que Sigmund Freud demons-
gem do rio)". Porém, é significativo que a Espanha, país trava grande preferência por boas histórias de bandidos e,
que considerou a história dos bandidos como um gênero li- segundo Peter Brückner (Freuds Privatlektüre, Kõln,
terário - o romance picaresco -, tenha sido o lugar em 1975), traçou um paralelo entre a psicanálise e o romance
que a decadência do feudalismo foi mais profunda e o pro- picaresco, comparando-o com um espelho da sociedade
cesso de declínio mais protelado, deixando a sociedade visto por baixo, arrastando-se pelas ruas.
num impasse durante séculos. (A literatura italiana refletiu Porém, embora "o bom bandido" expressasse uma
uma estagnação semelhante, embora menos pronunciada.) revolta populista e não-burguesa contra a ordem feudal, a
Do outro lado do Atlântico - onde não existia uma burguesia revolucionária poderia não obstante comparti-
ordem social feudal, mas onde o absolutismo inglês reina- lhar o sentimento de injustiça do bandido, diante das for-
va com todas as suas arbitrariedades - a revolta populista mas extremas do governo tirânico e arbitrário. Em grande
com "os bons bandidos" também surgiu na vida real: parte da Europa e da América Latina, a luta contra o espí-
rito da Inquisição e contra a tortura tornou-se a quintes-
Peter Kerrivan era um menino irlandês que em sência do combate liberal pelos direitos humanos. A perpé-
meados do século XVIII tinha ficado impressionado tua luta do liberal italiano Alessandro Manzoni contra a
com a marinha inglesa, onde fora tratado tão cruel- tortura, já no século XIX, é, com justiça, reconhecida.
mente como escravo. Fugiu do navio do Novo Conti- Menos comentado é o horror da justiça semifeudal nos pri-
nente e se tornou chefe de um bando de proscritos ir- mórdios do século XIX até na Alemanha Ocidental, nas
margens do Baixo Reno. O decreto que se segue, por exem-
I. Shi Nai'an e Luo Guanzhong, Outlaws of the marsh, Indiana plo, promulgado em 1803, emprega uma linguagem que
University Press, Bloomington, Ind., 1981. Robert van Gulik (Willow
pattern, 1965), diplomata holandês que se tornou autor de romances po-
prenuncia a terminologia nazista:
liciais, criou um ficcional juiz chinês do século XVII, Jen-Dieh Dee, que
alguns críticos erroneamente pensaram se tratar de uma figura histórica.
Considerando havermos constatado que os po-
Entretanto, apesar de o juiz ser um personagem de ficção, os enredos de
van Gulik são baseados em registros judiciários verdadeiros. Não se tra- vos ciganos acima mencionados, apesar de todos os
ta, portanto, aqui de "clássicos" romances policiais, uma vez que a tra- esforços e precauções, ainda não foram extermina-
dição que van Gulik descreve se desenvolve em torno da oposição do do- dos, mas conseguiram se disseminar de um lugar para
mínio arbitrário dos mandarins ou de outros opressores, mais do que outro em bandos pequenos ou grandes, além de che-
com a solução dos mistérios.
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garem a ponto de resistir à prisão, é chegado portanu les que o desafiavam, embora romanticamente e, em últi-
o momento de realizar seu total extermínio. ma análise, de maneira ineficaz.
Assim que um deles for apanhado pela primeir A tradição de protesto social e rebelião expressa nas
vez cometendo uma má ação ou ainda não tendo sid histórias dos bandoleiros emergiu de uma história mitifica-
estigmatizado com a letra "M" nas costas, uma reir da e perdurou nos contos folclóricos, canções e formas de
cidência irremediavelmente acarretará sua conduçê conhecimento oral. Porém, foi consolidada na literatura
ao patíbulo. por autores da classe média, da burguesia e até da aristo-
Um cigano estigmatizado, uma vez reconhecic cracia: Cervantes, Fielding, LeSage, Defoe, Schiller,
indubitavelmente como tal, deverá deixar o territór Byron e Shelley. As obras destes autores foram escritas es-
dentro de quatorze dias (que lhe serão concedidos p sencialmente para o público da classe alta - obviamente a
ra partir), sob pena de enforcamento caso o estign única capaz de comprar livros naquela época.
tenha sido aplicado neste território ou em outra loc Ao lado dos romances desses autores, contudo, sur-
lidade. Caso o referido cigano volte a este territór giu uma atividade literária de maior apelo popular: os vo-
após ter partido, deverá então ser enforcado. lantes lidos e vendidos nos mercados, o famoso Images
d'Epinal; as grandes tiragens dos complaintes; as crônicas
Estes decretos também se aplicarão às mulhen
populares como o Newgate Calendar e o melodrama po-
ciganas e aos jovens que atingirem a idade de 18 ano.
pular, que atingiu seu auge nos teatros de Paris do Boule-
uma vez que se ligam imprudentemente aos acim
vard du Temple. Estas crônicas diferem das histórias dos
mencionados bandos, seguindo-os e vivendo de assa
bandoleiros, uma vez que refletem uma sociedade pré-ca-
tos a mão armada e roubo.
pitalista baseada na pequena produção de bens com uma
De forma geral, todos os nômades, entre eles de
ideologia ainda semifeudal, cujo modelo tácito é uma so-
vendo-se incluir também os músicos e atores ambu ciedade cristã integrada, onde, como enfatizou Stephen
lantes, assim como os mendigos semitas e todos o King, os malfeitores são proscritos que se recusam a execu-
mendigos estrangeiros, deverão deixar o territórir
tar um trabalho honesto numa comunidade honesta. Esses
dentro de quatro semanas a partir da publicação d: bandidos, porém, podem ser redimidos se abraçarem os
presente decreto.
valores cristãos fundamentais e o castigo que recebem nes-
tas diversas histórias representa um apelo para que a comu-
Não é ilógico, portanto, que os autores burgueses li nidade se conforme com esses valores.
berais ou revolucionários devessem se identificar com I
U ma sociedade como esta ainda pode lidar com seus
desculpar a revolta do valoroso bandido contra a lei e a ar malfeitores sem especialistas - ou pelo menos é o que
dem desumanas, apoiadas por um sistema que eles próprio: acham os ideólogos. Não há necessidade de um herói poli-
desejavam subverter. Esses autores não podiam, é claro cial ou de um detetive nestes enredos, apenas uma boa li-
justificar os ataques à propriedade particular ou o assassi ção de caridade cristã no epílogo. No século XVIII, é cla-
nato dos donos das propriedades (embora o assassinatc ro, isso já estava se tornando rapidamente anacrônico e al-
dos tiranos fosse uma outra história), mas podiam muite gumas das histórias do Newgate Calendar já começavam a
bem compreender que atos de desespero nasciam de ums demonstrar os primeiros desvios desses padrões.
ordem social injusta e de instituições políticas irracionais. No século XIX, o Boulevard du Temple era chamado
Uma vez extirpados estes problemas, a Razão regeria a so- o Boulevard du Crime. A maioria dos mais populares me-
ciedade e o crime desapareceria para sempre. A munição lodramas se preocupava com o crime e não é difícil adivi-
deveria ser concentrada sobre o Sistema e não sobre aque- nhar por quê. Durante dois séculos, o Estado semifeudal
22 23

impediu o desenvolvimento do teatro popular. Neste Ínte- com a aglomeração de uma miserável massa de mendigos,
rim, a imprensa do século XVIII fez o que pôde para es- nas cercanias de Paris, que publicou um livro intitulado
conder do grande público a realidade sobre o crescimento Des classes dangereuses de Ia population dans les grandes
do crime nas ruas da capital francesa. No final do século, vil/es.
Sébastien Mercier escreveria: "As ruas de Paris são segu- O crescimento do crime nas ruas não podia mais ser
ras, noite e dia, excetuando-se alguns incidentes". Porém, ignorado. O aumento da liberdade de imprensa tornou
acrescentou: "Escondem-se ou suprimem-se toda a delin- gradativamente impossível suprimir este fato, sendo que
qüência escandalosa e os crimes que possam assustar as alguns setores da burguesia não desejavam, de forma algu-
pessoas e apontar para a falta de vigilância daqueles que ma, fazê-Io. O novo teatro popular e a imprensa popular
são responsáveis pela segurança da capital". Theodore eram, afinal de contas, negócios e, desta forma,por que
Zeldin, que cita este trecho, conclui que um século mais não deveriam tentar aumentar os lucros e acumular capi-
tarde a situação era exatamente oposta. A imprensa de Pa- tal, suprindo o gosto do público com histórias de arrepiar
ris noticiava 143 assaltos noturnos só no mês de outubro de os cabelos sobre assassinatos, reais ou imaginários? Desta
1880; em 1882, a população se tornou tão apreensiva que maneira, foi assim que Paris viu proliferar não só melodra-
os cafés foram proibidos de continuar abertos depois da mas sobre assassinatos como também o maior sensaciona-
meia-noite e meia. lismo possível na imprensa marrom sobre crimes verdadei-
Entretanto, esta dissipação do sentimento de segu- ros como o da viúva Chardon e seu filho, assassinados em
rança ocorreu entre a pequena burguesia e as camadas al- dezembro de 1834 por Lacenaire, que seria imortalizado,
fabetizadas da classe trabalhadora muito antes de surgir após a Segunda Guerra Mundial, no filme O bulevar do
entre as classes mais altas e a alta sociedade. Enquanto os crime. Às vezes até ocorria um encontro dramático entre o
bairros ricos permaneciam relativamente seguros, durante fato e a ficção, como quando Mme. Sénépart, viúva de um
os primeiros anos do século, os pobres se encontravam ex-diretor do Théâtre de l' Ambigu, foi assassinada em
quase ao desamparo. O número de pessoas condenadas 1835, no seu apartamento, no número 24 do Boulevard du
por crimes em Paris se elevou de 237 por 100.000 habitan- Temple, por um estudante de medicina.
tes em 1835para 375, em 1847, e 444, em 1868. No início do A crescente preocupação com o crime é mais bem
século XIX, criminosos profissionais, até então desconhe- exemplificada por Thomas De Quincey em Do assassinato
cidos no século passado, se tornaram uma realidade. como uma das Belas Artes, que surgiu em 1827 (com um
Balzac calculou que durante a Restauração existiam pós-escrito acrescentado em 1854). De Quincey tinha sido
cerca de 20.000 criminosos profissionais em Paris (dentro editor da Westmoreland Gazette em 1818 e 1819, enchendo
de uma população total de 1,25 milhão), enfrentando um as colunas com histórias sobre assassinatos e julgamentos
contingente militar de aproximadamente o mesmo tama- de criminosos. No ensaio de 1827, ele de fato insistiu nas
nho. O escritor relacionou o aparecimento dos criminosos delícias do assassinato,e da especulação sobre a descoberta
profissionais com o surgimento do capitalismo e a conse- de quem teria cometido o crime entre "amadores e diletan-
qüente emergência do desemprego. "Todas as manhãs", tes", abrindo desta forma o caminho para Edgar Allan
escreveu ele em Code des gens honnêtes, "mais de vinte mil Poe, Gaboriau e Conan Doyle. De Quincey também ini-
pessoas (em Paris) despertam sem noção de como vão se ciou a ligação entre o jornalismo popular e a narrativa so-
alimentar ao meio-dia." Não era de surpreender, acrescen- bre o assassinato como o fariam Dickens, Poe, Conan
tou ele, que essas circunstâncias acarretassem a emergência Doyle e tantos outros autores de romances policiais, che-
de uma classe de criminosos profissionais. Verdadeiramen- gando até Dashiell Hammett, E. Stanley Gardner e outros
te, já em 1840, o escritor H. A. Fregier ficou tão comovido contemporâneos.
26 27

trodução da aventura e do drama na vida cotidiana. O ce- pessoais (Kriminalromane auf Reisen, voI. 10, pp. 381-82).
nário romântico e bucólico das antigas histórias dos ban-
Mais fundamentalmente, Erich Fromm demonstrou
doleiros se tornou paulatinamente sem sentido dentro des-
que a sensação de tédio, monotonia e enfado nada mais é
se contexto. Aquilo que Jules Janin disse sobre o melodra-
do que manifestação de uma ansiedade mais profunda.
ma parisiense se aplica igualmente bem ao romance poli-
Existem duas formas de se combater o tédio: se tornar pro-
cial: "Ele (o governo) tolera estas pequenas peças para o
dutivo e conseqüentemente realizado ou fugir das suas ma-
divertimento do povo".
nifestações. Esta última saída é o método característico do
Esta literatura também é estimulada por uma ansie- homem contemporâneo normal, que busca incessantemen-
dade muito mais profundamente arraigada: uma contradi- te diversões e distrações sob as mais diversas formas. Os
ção entre os impulsos biológicos e os freios sociais que a sentimentos de depressão e tédio se tornam mais agudos
sociedade burguesa não resolveu e na realidade não poderá quando se está sozinho ou ao lado dos mais íntimos. Todas
resolver. No século XVIII a literatura popular tomou a as nossas diversões têm a função de escapar ao tédio atra-
forma de uma contradição entre a natureza e uma ordem vés das várias fugas à nossa frente. Especificando melhor,
social irracional. Agora, se tornou uma contradição entre a Fromm escreveu:
natureza e a - racional - sociedade burguesa. E, acima
de tudo, o espaço crescente dos romances policiais na lite- Milhões de pessoas ficam fascinadas com as re-
ratura popular corresponde a uma necessidade objetiva da portagens sobre assassinatos e pelos romances poli-
classe burguesa de reconciliar a consciência do "destino ciais. Correm aos cinemas para assistirem a filmes eu-
biológico" da humanidade, da violência das paixões, da jos dois temas principais são: o assassinato e o infor-
inevitabilidade do crime com a defesa e a justificação da túnio. Este interesse e este fascínio não são apenas ex-
ordem social vigente. A revolta contra a propriedade pri- pressões de mau gosto e anseio pelo escândalo, mas
vada se torna individualizada. Com a motivação deixando correspondem a um profundo desejo pela dramatiza-
de ser social, o rebelde se torna ladrão e assassino. A crimi- ção da última instância da vida humana, isto é, a vida
nalização dos ataques sobre a propriedade privada torna e a morte, através do crime e do castigo, da luta entre o
possível transformar esses próprios ataques em apoios homem com a natureza (pp. 142-43,194, traduzido do
ideológicos da propriedade privada. alemão).
Seria contraditório insistir em que a necessidade de se
distrair da monotonia jaz no âmago da popularidade do ro- A dramatização do assassinato, que tão inocente-
mance policial e que, simultaneamente, uma profunda ansie- mente agita os nervos das pessoas alienadas, pode ser usa-
dade está contida nessa necessidade? Acho que não. Num da com o propósito de defender a propriedade privada,
brilhante rasgo de intuição, Walter Benjamin, observou certa uma vez que essa defesa assim se forma de uma maneira
vez que "um viajante lendo, num trem, um romance policial impensada.ê As pessoas não lêem romances policiais para
está, temporariamente, substituindo uma ansiedade por ou-
tra". Os viajantes temem as incertezas da viagem, a chegada 2. A atual literatura popular digestiva (Trivial/iteratur) possui dois
ao destino, a incógnita sobre o que acontecerá quando a via- componentes: o romance policial (e seu precursor, "as histórias sobre o
gem tiver acabado. Portanto, temporariamente suprimem (e Oeste' ') e a literatura feminina romântica. As edições destes dois gêne-
ros são semelhantes, basta comparar os números citados na pág. 110
desta forma esquecem) esses medos envolvendo-se nos ino-
deste livro com os números de cópias vendidas pela "rainha" e pelo
centes temores ligados ao crime e aos criminosos que, eles "rei" da literatura romântica (Barbara Cartland: 100 milhões; Harold
bem o sabem, não guardam qualquer relação com suas vidas Robbins: 200 milhões). O autor alemão Johannes Mario Simmel oscilou
28 29

melhorar o intelecto ou para refletir sobre a natureza da Um filósofo produz idéias, um poeta poemas,
sociedade ou da condição humana, mas simplesmente co- um padre sermões, um professor compêndios, e assim
mo diversão. É assim perfeitamente possível que leitores por diante. Um criminoso produz crimes. Se olhar-
críticos da sociedade ou mesmo leitores socialmente revo- mos mais de perto para a ligação entre este último
lucionários gostem de romances policiais, sem com isto al- segmento da produção e da sociedade como um todo,
terarem seus pontos de vistas básicos) Porém a "massa" nos livraremos de muitos preconceitos. O criminoso
de leitores não será levada a buscar a mudança do status não só produz crimes como o direito penal e com isto,
quo social lendo romances policiais, embora esses roman- também, o professor que dá aulas sobre o direito pe-
ces retratem conflitos entre indivíduos e a sociedade. A cri- nal, e, além disso, o inevitável compêndio pelo qual es-
minalização destes conflitos os torna compatíveis com a se mesmo professor deposita tais aulas no mercado
defesa da "lei" e da "ordem" burguesas. geral como "produtos". Isto acarreta o aumento da
Eis aí, em suma, o significado objetivo para a ascen- riqueza nacional, sem contar com a satisfação pessoal
são do romance policial em meados do século XIX, num que - segundo uma testemunha competente como o
determinado ponto do desenvolvimento do capitalismo, da Sr. Professor Roscher nos informa - o manuscrito
mendicância, da criminalidade e da primitiva revolta social do compêndio leva ao seu próprio criador.
contra a sociedade burguesa. E também numa determina- O criminoso, além do mais, produz toda a polí-
da etapa da evolução da literatura. O romance policial po- cia e a justiça criminal, guardas, juízes, carrascos, ju-
pular ,que atende a grandes porções da classe média e ca- rados etc. e todas aquelas diferentes variantes dos ne-
madas mais altas e letradas da classe operária,conseguiu al- gócios que formam igualmente as diversas categorias
go que o romance burguês, com seu restrito público, nunca da divisão social do trabalho, desenvolvem as diferen-
obteve. Com a crescente necessidade 'da burguesia de de- tes capacidades do espírito humano, criam novas ne-
fender e não de atacar a ordem social, o bom bandido foi cessidades e novas formas de satisfazê-Ias. A tortura,
transformado no criminoso cruel. Ninguém menos do que por exemplo, deu margem ao aparecimento das mais
Karl Marx observou: engenhosas invenções mecânicas, empregando diver-
sos artífices honestos na produção desses instrumen-
tos.
de um gênero a outro, vendendo um total de 55 milhões de exemplares O criminoso produz uma impressão, parcial-
de suas obras, um número espetacular para um autor de língua alemã. mente moral e parcialmente trágica, conforme o caso,
Contudo, trata-se de um homem excepcional, cujo último romance poli- e, dessa forma, presta um "serviço" estimulando os
cial, Bitte laSSI die Blumen leben (Não matem as flores, 1983), cruzou o sentimentos morais e estéticos do público. Produz
umbral da literatura séria, além de conter também uma mensagem pro-
gressista. não só os compêndios de direito penal, não só os có-
3. Segundo Lôwy (Die Weltgeschichte ist das Weltgericht), Buk- digos penais como os legisladores desta matéria e
hárin era um fanático leitor de romances policiais, que chegava atrasado também a arte, a literatura, os romances e até as tra-
para importantes reuniões do partido porque não conseguia largar o ro- gédias, como não só Schu/d de Müllner e Die Rãuber
mance que estivesse lendo na ocasião. De fato, em 1924, Bukhárin che- de Schiller demonstram, mas também Édipo e Ricar-
gou a escrever um artigo no Pravda sobre a utilidade de se lançarem ro- do lI/. O criminoso quebra a monotonia e a seguran-
mances policiais na URSS, propondo a utilização desse gênero literário
popular como meio para a educação de massa. Um primeiro romance ça cotidiana da vida burguesa. Desta forma impede a
(ou melhor, uma série), com o título de Mess Mend, foi publicado na- estagnação e dá margem àquela tensão e agilidade in-
quele mesmo ano e difundido em larga escala. Escrito por uma mulher, cômoda sem a qual até o atrito da competição seria
Marietta Staginjan, tinha ilustrações do grande pintor Malevitch. anulado. Desta maneira, o criminoso dá um estímulo
30

às forças produtivas. Enquanto o crime ocupa uma


parte desta população. Assim, o criminoso surge como
e assim reduz a competição entre os trabalhadores -
até certo ponto impedindo que os salários caiam abai-
xo do mínimo -, a luta contra o crime absorve outra
parte desta população. Assim, o criminoso surge como
um daqueles "contrapesos" naturais que acarretam
um equilíbrio correto e abrem toda uma perspectiva
de ocupações úteis (Teorias sobre a mais-valia, Parte
I).

De vilão a herói
o ARQUÉTIPO DA FIGURA DO POLICIAL da
moderna literatura é baseado num dos primeiros policiais
mais conhecidos da História: o amigo inseparável de Fou-
ché, Vidocq. Tratava-se de um bandido, ex-presidiário,
que forçou diversos criminosos a servirem de informantes
para o Ministério do Interior de Napoleão, um homem que
forjou sua própria lenda, não só através da sua pragmática
vilania (que virtualmente desconhecia limites), mas tam-
bém através das suas mentirosas Memórias, publicadas em
1828. O Bibi-Lupin, de Balzac, e o inspetor Javert, de Vic-
tor Hugo, foram obviamente baseados nessa ilusória e ate-
morizante figura cujas ações e mentalidade frutificaram,
um dia, em variadas, embora insípidas, personagens como
J. Edgar Hoover, Heinrich Himmler e Beria.
Na primeira parte do século XIX, a grande maioria
da classe média e da intelectualidade era essencialmente
hostil à polícia. Na maior parte dos países ocidentais, o
aparato do Estado era ainda, anacronicamente, semifeu-
daI; uma instituição contra a qual a classe burguesa tinha
que lutar (embora inconscientemente) em seus esforços pa-
ra consolidar seu poder econômico e social. Onde o Estado
já era aburguesado - Inglaterra, França, Bélgica, Holan-
da e no jovem Estados Unidos -, a burguesia liberal pre-
feria que continuasse fraco, confiante em que as leis do
mercado seriam suficientes para perpetuar seu domínio. O
gasto do Estado era considerado um desperdício, uma de-
dução improdutiva da mais-valia que não faria outra coisa
a não ser reduzir o volume de capital que poderia ser acu-
34 35

mulado. A força policial era tida como um mal necessário Num trabalho divisor de águas, Classes laborieuses
dedicada à usurpação do direito e das liberdades do indiví- et classes dangereuses, o historiador francês Louis Cheva-
duo; quanto mais fraca, melhor. lier escreveu:
De qualquer maneira, existia um motivo muito mais
prático para a hostilidade em relação à polícia. A Lei das Desde os últimos dias da Restauração até esses
Falências, pelo menos na Inglaterra, ainda considerava a primeiros anos do Segundo Império, durante os quais
insolvência como uma ofensa criminosa. O número de de- uma Paris monumental se ergueu das ruínas da velha
vedores entre a população carcerária ultrapassava de muito cidade, o crime foi um dos maiores temas de tudo que
os assassinos ou mesmo os ladrões. Juízes, policiais e car- foi escrito em Paris e sobre Paris, uma cidade cuja
cereiros lidavam com dívidas, títulos bancários e contas criminalidade sobrepuja a tudo o mais por causa do
muito mais do que com crimes violentos. As principais víti- lugar proeminente que o crime ocupa nas preocupa-
mas eram, conseqüentemente, comerciantes de classe mé- ções diárias do povo. O medo que vem do crime é
dia e seus refinados clientes, como Dickens retratou tão constante, apesar de atingir o seu mais alto grau du-
inesquecivelmente na imortal figura do Sr. Micawber e no rante alguns frios e desoladores invernos. Muito mais
seu romance Bleak house.! A disciplina industrial ainda importante do que o medo do crime, porém, é o inte-
não havia incutido com firmeza nos cidadãos a idéia de resse do público por ele e tudo que lhe diz respeito.
que não tinham o direito de gastar 21 xelins, quando sua Além desses casos de terror e medo, entretanto, a cu-
renda era de apenas 20. O crédito ao consumidor ainda riosidade sobre o crime é uma das formas de cultura
não tinha possibilitado as vendas a prazo, de forma que não popular dessa época, como também das próprias
era de surpreender que a classe média tendesse a ser hostil em idéias do povo, suas imagens e palavras, crenças, ní-
relação a todo o sistema legal e à sua execução. veis de consciência e maneira de falar e de se compor-
Tudo isso começou a mudar entre 1830 e 1848. Fo- tar (pp. 36-37).
ram os anos do início da revolta da classe trabalhadora
contra a pobreza e a exploração capitalista: a revolta Outra mudança ocorreu nessa mesma época: o crime
dos tecelões de seda de La Croix-Rousse em Lyon, na se tornou gradativamente um empreendimento capitalista.
França, e dos tecelões de algodão da Silésia, na Prússia; a Em 1850, a maior parte das acusações criminais feitas na
sublevaçã? do movimento cartista na Inglaterra; o surgi- França ainda era por causa do roubo, porém, em 1860, a
mento da msurreição de Paris em junho de 1848. A violên- fraude se tornou o delito mais comum. Entre 1830e 1880, o
cia e o ímpeto destas rebeliões instauraram o medo na bur- número de roubos registrados se elevou 2386,10,de fraudes
guesia pela primeira vez: talvez o poder não se reproduzis- 3236,10e de contos-do-vigário 630% (Zeldin, p. 165). Pe-
se eternamente apenas através da operação das leis do mer- quenos comerciantes, artesãos, professores, funcionários
cado. Um Estado mais forte e uma força policial corres- públicos menos categorizados e camponeses sem dúvida es-
pondentemente mais poderosa eram necessários para man- peravam não serem presos, embora estivessem igualmente
ter uma vigilância sobre as camadas inferiores, sobre as dispostos a ver, atrás das grades, aqueles que os tentaram
classes eternamente descontentes, periodicamente rebeldes enganar, roubando-lhes as parcas economias ou os peque-
e portanto criminosas, sob o ponto de vista burguês. nos salários.
À medida que as prisões eram lentamente evacuadas
.. 1: Diversos outros livros de Dickens são uma espécie de romances pelos devedores e preenchidas por uma população carcerá-
policiais, entre eles Barnaby Rudge e, é claro, o inacabado Mystery of ria de malfeitores, ladrões, assaltantes, capangas e assassi-
Edwin Drood. nos, elevou-se correspondente mente o status social dos
36 37

agentes da lei. Entretanto, nos países anglo-saxões em es- permanece bastante distante da realidade. A esmagadora
pecial, a burguesia se sentia suficientemente autoconfiante maioria dos crimes, especialmente os violentos, cometidos
para não elogiar a polícia, cujos membros não eram mais vi- de fato durante o século XIX na Inglaterra, França, Ale-
lões, uma vez que haviam deixado de ser apenas uma ne- manha e Estados Unidos (sem mencionar a Itália, Espa-
cessidade, passando dessa forma a serem encarados como nha, Bélgica, Holanda, Suécia e Suíça), não demonstra
benfeitores. A polícia podia manter a ordem e lidar com qualquer esforço de ocultação assombrosamente arquiteta-
eficiência em relação aos crimes rotineiros. Ao contrário do ou maquinações contra inocentes bodes expiatórios. E
de um conceito errôneo, bastante difundido, os policiais se houvesse quaisquer protótipos agraciados com essa cu-
nos primeiros romances policiais - desde Edgar Allan Poe riosa combinação de conhecimento, sofisticação, inteligên-
passando por Arthur Conan Doyle até Mary Roberts Rine- cia e imaginação típica dos primeiros superinvestigadores,
hart - não se assemelhavam àqueles cômicos guardas do estes deviam estar ocupados com questões mais desafiado-
cinema mudo ou palhaços de circo, mas a diligentes andari- ras e satisfatórias do que perseguir criminosos.
lhos que geralmente triunfavam no final da história e ape- Os primeiros romances policiais, portanto, eram al-
nas em casos excepcionalmente difíceis eram enganados tamente formalizados e muito distantes do realismo e do
pelos bandidos. naturalismo literário; mais do que isso, não se preocupa-
vam, verdadeiramente, com o crime "em si". O crime era
Estes policiais não eram ricos empresários ou descen- o arcabouço para um problema a ser solucionado, um que-
dentes da nobreza; não faziam parte da classe dominante, bra-cabeças para ser montado. Em muitos casos, o crime
mas em geral pertenciam à baixa classe média, ou então ocorre mesmo antes do começo da história; os ocasionais
àquela que buscava a almejada mas dificilmente atingível ilu- crimes posteriores, cometidos à medida que a trama se de-
são burguesa, à permanentemente integrada camada superior senrola, são quase casuais, com o propósito de estimular a
da classe trabalhadora. A arrogante burguesia não via razão .investigação do primeiro assassinato ou para fornecer pis-
para elogiar as superiores qualidades intelectuais da baixa tas suplementares para a identificação do assassino. Rara-
classe média ou dos elementos do alto proletariado, especial- mente se trata de atos independentes de violência homicida
mente na Inglaterra, onde todos deveriam conhecer seus res- com o propósito de estimular ódio, paixão pelo castigo ou
pectivos lugares e onde, como nos estados do sul dos Estados uma sensação de vingança.
Unidos (antes e após a Reconstrução), os "arrogantes" mem- Portanto, o verdadeiro tema dos primeiros romances I

bros das classes mais baixas eram considerados não só suspei- policiais não é o crime ou o assassinato, mas o enigma. O
tos, como definitivamente subversivos. O verdadeiro herói do problema é analítico e não social ou jurídico. Como o pro-
romance policial, portanto, tinha que ser um brilhante inves- fessor Dove enfatizou, o padrão clássico do romance poli-
tigador oriundo da classe alta e não um esforçado policial. cial é uma seqüência de sete passos criada pela primeira vez
Eis a razão das origens de Dupin e Sherlock Holmes, Dr. por Poe e Conan Doyle: o problema, a solução inicial, a
Thorndike e Arséne Lupin, como também do inspetor Lecoq complicação, o estágio de confusão, as primeiras luzes, a
de E. Gaboriau, inspirado e orientado pelo barão Moser, solução e a explicação (p. 11). Em "As Vinte Regras do
portanto bastante diferente do policial comum. Romance Policial" ·(The American Magazine, setembro de
A própria noção de "ser mais esperto" do que um cri- 1928), S. S. Van Dine também salienta o que chama de
minoso, caso isto possua algum fascínio, implica a existên- "jogar limpo" com o leitor, uma das regras fundamentais
cia de um criminoso de inteligência superior e de um deteti- do bom autor de um romance policial. "A luta de intelec-
ve de ainda maior astúcia para enfrentar esse excepcional tos", em outras palavras, se desenrola simultaneamente
malfeitor. A primeira dessas implicações ficava e ainda em dois níveis: entre o grande detetive e o criminoso e entre
38 39

o autor e o leitor. Nessas duas lutas, o mistério é a identi- objetivos como as flutuações do preço das ações de uma
dade do culpado para o qual tanto o detetive quanto o lei- companhia no mercado. A mente analítica tem domínio
tor devem ser conduzidos através de um sistemático exame sobre a mente sintética. Nenhum equilíbrio dialético entre
das pistas. Entretanto, enquanto o herói do romance sem- análise e síntese é sequer considerado. E o que é o romance
pre sai vencedor, o leitor não deve de forma alguma su- policial senão a apoteose do pensamento analítico na sua
plantar o autor, pois desta forma a necessidade psicológica forma mais pura?
à qual o romance policial deveria corresponder não será Os maiores triunfos da inteligência analítica foram
mitigada: não haverá tensão, "suspense", uma solução conquistados nas ciências naturais, em especial nas suas
surpreendente ou uma catarse. aplicações na tecnologia e construção de artefatos mecâni-
A arte do romance policial é atingir estas metas sem cos. A interação entre a inteligência analítica, o progresso
recorrer a truques baratos. As pistas devem estar todas científico, o desenvolvimento da indústria moderna e dos
presentes. Substituição secreta de um gêmeo idêntico por transportes, de um lado, e o surgimento do método capita-
outro não é permitida, ou passagens secretas para escapar lista de produção e distribuição, do outro, foi tantas vezes
de quartos fechados por dentro. O leitor deve se surpreen- descrita que já se tornou um lugar-comum. Encontramos
der ao saber a identidade do assassino e isto sem transgre- uma interação paralela na origem e nos primórdios do ro-
dir o "jogo limpo". Surpreender sem enganar é demons- mance policial.
trar uma genuína maestria do gênero. Agatha Christie é, O trabalho policial contemporâneo se baseou em pri-
por isso, adequadamente, chamada "a rainha da impostu- mitivas mas poderosas inovações técnicas tais como a ge-
ra", pois, na verdade, praticar a arte da impostura en- neralização dos registros de endereços e nomes dos cida-
quanto se "joga limpo" ao mesmo tempo é a quintessência dãos (geralmente diante da grande resistência encontrada
da ideologia da classe dominante inglesa. ao objetivo inicial de transformar indivíduos em números)
A natureza dos primeiros romances policiais está, e num crescente emprego de relatórios de delatores sobre
portanto, relacionada igualmente às funções da literatura possíveis criminosos. Em Sp/endeurs et misêres des courti-
popular e às forças mais profundas que operam sob a su- sanes Balzac declara:
perfície da sociedade burguesa. A transformação do crime,
se não dos próprios problemas humanos em "mistérios" "A polícia possui fichas quase sempre precisas
que possam ser solucionados, representa uma tendência sobre todas as famílias e indivíduos cujas vidas são
comportamental e ideológica típica do capitalismo. suspeitas e cujas ações são censuráveis. Nenhum des-
No mercado, os proprietários de bens se relacionam lize lhe escapa. O ubíquo caderno de aponta-
entre si somente através da troca. Desta forma suas rela- mentos, balancete das consciências, é tão meticulosa-
ções se tornam alienadas e materializadas; tornam-se mente mantido como as contas do Banco da França.
apenas relações entre coisas - que se refletem até na lin- Assim como o banco anota o menor atraso, avalia to-
guagem. Uma garçonete, certa vez, me disse em Nova dos os créditos, taxa os capitalistas, examina as ope-
York: "Você é o do rosbife com repolho, não é?" Portan- rações com rigor, da mesma forma a polícia man-
to, todas as relações humanas na sociedade burguesa ten- tém a vigilância sobre a honestidade dos cidadãos.
dem a se tornar quantificadas, mensuráveis e empiricamen- Neste particular, como no tribunal, o inocente nada
te previsíveis. São divididas em componentes e estudadas tem a temer, pois só tomam medidas contra os infra-
como se estivessem sob um microscópio (ou através de um tores. Não importa quão bem situada seja uma famí-
computador), como se fossem substâncias físicas como um lia, esta não poderá escapar dessa providência social.
pedaço de metal ou uma matéria química, ou fenômenos A discrição deste poder, além do mais, é tão grande
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quanto sua extensão. Esta imensa quantidade de re- que nada mais é do que o clássico protótipo da máquina
gistros nas delegacias - de relatórios, anotações, fi- moderna.
chas -, este oceano de informações dorme sem se Do ponto de vista técnico, esse novo gênero literário
mover, profundo e calmo como o mar. Estas fichas, integrava três elementos: a "história ao contrário" (rêcit à
nas quais os antecedentes são analisados, não são rebours) desenvolvida por Godwin (Caleb Williams, 1794);
mais do que pedaços de informação que morrem den- a técnica da adivinhação-dedução, originária da Pérsia, e
tro das paredes do Ministério; a Justiça não consegue introduzida na literatura contemporânea por Voltaire (Za-
fazer uso legal deles, mas encontra o caminho através dig), e o coup de théatre emprestado do melodrama.ê
da própria luz e desta forma os emprega - nada
mais" (p. 377). Godwin, ideólogo político e precursor do anarquis-
mo criou em Ca/eb Williams uma espécie transicional de
romance que, segundo a observação de Stephen Knight,
Porém, o mesmo Balzac faz seu herói Jacques Collin não corresponde à ideologia orgânica cristã (semifeudal,
vociferar bruscamente contra um promotor: "O senhor se pequena produção de bens) ou à ideologia individualista
vinga diariamente ou pensa desagravar a sociedade e ainda burguesa do romance policial. Demonstra, porém, uma ra-
assim me pede para não me vingar!" (p. 586). dical ideologia pequeno-burguesa (semijacobina): o autor
Uma verdadeira brecha ocorreu por volta de 1840 anseia por uma pequena comunidade composta de indiví-
com a invenção e imediata difusão da fotografia. Registros duos honestos, amigáveis e basicamente iguais, isto é, pe-
de criminosos e de pistas podiam ser tirados, mantidos e quenos proprietários.
estocados para uso futuro. Não demorou muito para que Os primeiros grandes escritores de romances policiais
seguissem a coleta e o registro das impressões digitais. Por- foram Edgar AlIan Poe, Emile Gaboriau, William Wilkie
tanto, não foi por acaso, disse Walter Benjamin, que exis- Collins, Arthur Conan Doyle, R. Austin Freeman, Mary
tiu uma correspondência cronológica entre a descoberta da Roberts Rinehart, Gaston Leroux e Maurice Leblanc, em-
fotografia e a origem do romance policial. C. L. Ragghian- bora possa ser acrescentado a esta lista um grande número
ti demonstrou que a invenção da fotografia prejudicou o de autores contemporâneos ingleses e franceses.
realismo e o naturalismo na pintura durante muito tempo.
Pierre Francastel lembra como o pintor francês Os crimes da rua Morgue, de Edgar AlIan Poe, é
Gustave Courbet, precursor dos impressionistas, começou considerado o primeiro romance policial propriamente di-
a destruir o "tema da pintura", representando aparências to. Isto sem dúvida é verdade, uma vez que Auguste Du-
óticas em vez de objetos identificáveis. Deveria ser acres- pin, o protótipo do detetive amador, soluciona o mistério
centado que também tiveram seus efeitos o desenvolvimen- através de pura técnica analítica. A idéia de um "orango-
to das ferrovias e as mudanças que isto acarretou na per- tango" como assassino, contudo, poderia no mínimo ser
cepção das paisagens e no movimento das imagens. O ro- considerada insólita. Pessoalmente, prefiro duas outras
mance policial é para a "grande" literatura o que a foto- pequenas obras-primas de Poe: Thou art the man (1844),
grafia é para a "grande" pintura. O romance policial está que é a primeira história policial com um "verdadeiro" as-
proximamente ligado à maquinaria, assim como a inteli- sassino no sentido clássico da palavra, e A carta roubada
gência analítica aperfeiçoada, uma vez que o romance poli- (1845), que não trata de um assassinato e sim de um furto.
cial clássico é um quebra-cabeças formalizado, um meca- 2. Veja a interessante discussão sobre a "história ao contrár!o" ou
nismo que pode ser composto e decomposto, enrolado e "construção de trás para diante e a arte do 'suspense' " em Denms Por-
desenrolado outra vez como as engrenagens de um relógio, ter, The pursuit of crime, Yale UniversityPress, 1981, pp. 24ss.
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No inspetor Lecoq, Emile Gaboriau criou um deteti- num relance discriminar a história do homem e a ocu-
ve que alia os poderes dedutivos de Dupin com a cuidadosa pação ou profissão que exerce. Apesar de esse exercí-
investigação das pistas (Le crime d'Orcival, 1867). Os fran- cio parecer pueril, aguça as faculdades de observação
~e~espodem}ustificadamente protestar que o romance po- e ensina ao indivíduo onde e o que deve buscar. Atra-
hCI~1e de ongem francesa e não inglesa, uma vez que Ga- vés das unhas de um homem, da manga do seu casa-
bO~lau, ex~secretário do folhetinista Paul Feval, foi o pri- co, das suas botas, das suas calças, da calosidade do
meiro a cnar uma verdadeira série de romances policiais. seu indicador e polegar, da sua expressão, dos punhos
Devemos também notar que os problemas sociais e políti- da sua camisa - através de cada um destes detalhes
C?S~ã~ muito mais acentuados nos seus livros do que nas - se revela claramente a tendência deste homem.
histórias de Poe ou Conan Doyle, especialmente no tocan-
te ao conflito entre proprietários rurais, monarquistas con- Se acrescentarmos que Conan Doyle estudou medici-
servadores, e burgueses liberais. na na Universidade de Edimburgo sob a orientação do
Um dos mais famosos romances policiais de todos os Prof. John Bell - defensor da teoria da metodologia de-
tempos - The moonstone, de William Wilkie Collin - dutiva na diagnose das doenças, um homem que nunca se
surgiu em 1868 em Ali the year round, uma revista editada cansava de repetir aos alunos para que empregassem os
por Charles Dickens. Collins, para citar Benvenuti e Rizzo- olhos, ouvidos, mãos, cérebro, intuição e, acima de tudo,
ni, "concebeu a idéia de escolher o criminoso entre o me- todas as suas faculdades dedutivas -, então indubitavel-
nos suspeito dos personagens, retratando nos seus livros mente se destaca o nexo da base do romance policial com a
_ detalhes de procedimentos médicos, legais e policiais com triunfante sociedade burguesa, sua maquinaria, sua ciência
absoluta precisão" . ' natural e a coisificação das relações humanas burguesas.
Devemos observar também que a expressão "roman- Este pensamento foi resumido pelos Goncourts no seu
ce policial" (detective story) foi empregada pela primeira Journal (16 de julho de 1856): "Ele (Edgar Allan Poe) ino-
vez em 1878 pela romancista americana Anna Katharina va na literatura científica e analítica onde as coisas desem-
Greene, no seu livro The Leavenworth Case. Porém o ver- penham um papel mais importante do que as pessoas" .
dadeiro pai do romance policial, ou pelos menos o homem Boileau e Narcejac expressariam a mesma opinião
m~is, responsável pela enorme popularidade desse gênero, um século mais tarde, argumentando que o romance poli-
fOI, e claro, Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock cial trata primordialmente de "homens como objetos" do-
Holmes (Um estudo em vermelho, 1887; As aventuras de minados pelo destino (p. 125). Em The red thumb mark
Sherlock Holmes, 1892; As memórias de Sherlock Holmes, (1907), R. Austin Freeman, citado por Boileau e Narcejac
1894). Com efeito, o próprio Conan Doyle fez uma descri- como o criador do romance policial científico, desenvolve
ção clássica sobre a tentativa de transformar a criminolo- ainda mais a tentativa de tornar a criminologia uma ciência
gia numa ciência exata em Um estudo em vermelho: exata. E aquilo que os Goncourts disseram sobre Poe se
aplica igualmente a ele: o autor trata mais com fatos do
Como todas as outras artes, a ciência da Dedu- que com pessoas.
ção e da Análise só pode ser conquistada através de O mesmo não pode ser dito sobre Mary Roberts Ri-
um demorado e paciente estudo. Antes de se voltar nehart (The circular staircase; The great mistake), que so-
para os aspectos morais e mentais do problema, que lucionava seus enigmas através do estudo da atmosfera e
apresentam as maiores dificuldades, deixe o investiga- da psicologia e não através de uma elaborada reunião de
dor começar a dominar problemas mais elementares. pistas. Mesmo assim, seus casos eram essencialmente jogos
Deixe que ele, ao encontrar um ser humano, saiba de inteligência dedutiva. Rouletabille, o herói de Gaston
44

Leroux, se apóia exclusivamente, muito mais do que Sher-


lock Holmes, na sua inteligência analítica, desconfiando
das provas que acredita serem sempre enganosas (Le
mystêre de Ia chambre jaune, 1912). Rouletabille, inspira-
do em parte em Arséne Lupin, criado por Maurice Leblanc
(L'Arrestation d'Arsêne Lupin, 1905; Arsêne Lupin, gen-
tleman cabriouleur, 1907), é ainda o mais popular herói
dos romances policiais depois de Sherlock Holmes. Filho
de uma mãe aristocrata, Arsene Lupin é uma estranha
reencarnação do velho "bandido nobre", acrescido das
qualidades do Grande Detetive. Suas façanhas misturam a
exaltação da habilidade analítica e da racionalidade do ro-
mance policial com a ação trepidante e as metamorfoses de
identidade do folhetim. Ele rouba dos ricos e dá aos po-
bres, enquanto defende viúvas, órfãos e os espoliados. Um
mestre do disfarce e da fuga, Lupin não rouba por dinhei-
ro, mas, como Benvenuti e Rizzoni observam, "por satis-
fação psicológica, pelo prazer de desafiar a sociedade, para
ridicularizar suas instituições mais antigas e para chamar
atenção contra os costumes repressivos". Suas vítimas pre-
diletas são os agiotas, os bancos, as companhias de seguro,
as igrejas, o Tesouro, os milionários e até o Kaiser Wilhelm
lI, assim como ladrões, assassinos, chantagistas e espiões.

Das ruas para


a sala de visitas
o PERÍODO ENTRE GUERRAS constituiu a idade
de ouro do romance policial. É verdade que alguns dos me-
lhores trabalhos foram escritos na década de 40 e que al-
guns precursores de Agatha Christie já publicavam seus li-
vros antes de 1914. Porém a Primeira Guerra Mundial po-
de ser considerada como um divisor de águas entre o tipo
de histórias escritas por Conan Doyle e Gaston Leroux e os
grandes clássicos das décadas de 20 e 30.
Não é fácil enumerar os autores mais representanti-
vos dessa idade de ouro. Alguns serão deixados de lado,
por enquanto, uma vez que serão mais minuciosamente
discutidos como desenvolvimentos posteriores do romance
policial: os criadores dos heróis inspetores de polícia e das
histórias de espionagem. Outros- como Sax Rohmer, O.
Philip Oppenheimer e Nick Carter - pertencem ao tipo de
literatura colportage. Outros, ainda, serão omitidos por
razões subjetivas: aqueles que, segundo minha opinião,
não possuem a habilidade de construir a trama e criar
"suspense", não sendo, portanto, suficientemente repre-
sentativos. Em resumo, admito francamente que a seleção
está aberta a qualquer desafio.
Dois livros representam a transição pré-Primeira
Guerra Mundial, situando-se entre os pioneiros e a idade
de ouro: Trent's last case (1913), de E. C. Bentley, e At the
Villa Rose (1910), de A. E. W. Mason, o primeiro superior
ao segundo (pelo menos na minha opinião, que não é com-
partilhada por especialistas como Julian Symons). Estes
dois romances possuem todos os ingredientes dos clássicos
49
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da idade de ouro, exceto ritmo e o estilo de tensão ininter- Earl D. Biggers inventou Charlie Chan, um detetive
rupta. Teria o stacatto da metralhadora da Primeira Guer- chinês que atua em Honolulu (The chinese parrot, 1926;
ra Mundial algo a ver com essa modificação? Charlie Chan carries on, 1930).
Enumeraríamos os representantes clássicos da idade S. S. Van Dine (pseudônimo de Willard Huntington
de ouro do romance policial na seguinte ordem: Agatha Wright) foi o mais erudito autor de romances policiais, e
Christie, G. K. Chesterton, Anthony Berkeley (Francis esta sua erudição transformou seu herói, Philo Vance,
Iles), Dorothy Sayers, Earl D. Biggers, J. Dickson Carr, S. num personagem intolerável (The canary murder case,
S. Van Dine, ElIery Queen, Margery Allingham, Rex 1927).
Stout, Erle Stanley Gardner, Mignon B. Eberhard, Nicho- J. Dickson Carr tentou racionalizar o aparentemente
Ias Blake, Raymond Postgate e Frances e Richard Lockrid- sobrenatural, especialmente nas suas histórias com Gideon
ge. Edgar WalIace é um caso fronteiriço entre a literatura FalI (The Emperor's snuff box, 1942). Um dos seus melho-
colportage e um verdadeiro espírito criativo (afinal de con- res romances com Sir Henry Merivale como herói é The
tas foi o criador de King Kong). Stanislaw-André Steeman Plague court murders (1934).
Ngaio Marsh e Josephine Tey fazem a ponte entre esses Ellery Queen (pseudônimo literário de dois primos,
clássicos e as histórias centradas no inspetor de polícia, em- Manfred D. Lee e Frederick Dannay) foi talvez o mais há-
bora a natureza dos seus temas os situem na idade de ouro. bil escritor deste grupo. Entretanto, uma imaginação sem
Não é fácil resumir as contribuições destes autores ao rédeas e falta de autocrítica foram tornando seu trabalho
romance policial. Com certa relutância faríamos os seguin- mais e mais bizarro, com situações que prejudicavam a ve-
tes comentários: rossimilhança (The French powder mystery ; 1930; The de-
Agatha Christie, cujos melhores livros incluem O as- vil to pay, 1938; Calamity town, 1946; The origin of evil,
sassinato de Roger Ackroyd (1926), Assassinato no Ex- 1951) .
presso Oriente (1934) e Os crimes ABC (1936), assim como Margery AlIingham foi a criadora de Albert Cam-
Assassinato na casa do pastor (1930) - o primeiro da série pion, protótipo do detetive particular que esconde sua inte-
com Miss Marple - foi uma mestra na criação e manuten- ligência atrás de uma máscara de vazia imbecilidade (Death
ção do "suspense". of a ghost, 1934; Flowers for the Judge, 1936).
G. K. Chesterton (The incredulity of Father Brown, Rex Stout, um mestre da narrativa, se inclinava para
1936; The scandal of Father Brown, 1935), essencialmente a motivação puramente dedutiva representada por seu he-
um autor de contos do gênero policial, possui o mérito de rói Nero Wolfe (Too many cooks, 1938; Might as well be
haver introduzido a meta física no romance policial. Seu dead, 1956; The doorbell rang, 1965).
detetive, padre Brown, é um sacerdote que se fundamenta Erle Stanley Gardner, um advogado criminalista,
na "compreensão do pecado" e na teologia católica em ge- mudou o cenário do romance policial, passando-o para os
ral para provar que as coisas não são exatamente o que pa- tribunais no seriado com Perry Mason (The case of the
recem ser. shoplifter's shoe, 1938). Top of lhe heap (1952) é uma das
Anthony Berkeley (Francis Iles) é um mestre da de- melhores histórias com Donald Lam como herói, escritas
dução lógica, especialmente exemplificado em The poiso- por Gardner sob o pseudônimo de A. A. Fair. A sócia de
ned chocolate case (1929). Lam, Bertha Cool, é uma das primeiras mulheres detetives
. Do.rothy Sayers, com seu herói Lord Peter Wimsey, que trabalha no ramo com o fim explícito de ganhar o má-
introduziu o esnobismo e o senso de humor no romance ximo de dinheiro possível, investindo-o em seguida em dia-
policial (Unnatural death, 1927; Murder must advertise mantes.
1933). ' Mignon B. Eberhard foi um imitador americano de
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Agatha Christie, enquanto Ngaio Marsh (Overtures to aquele em que recaem menos suspeitas), embora possa ser
death, 1948) e Josephine Tey, autores ingleses, tentaram desmascarado pelo detetive.
aplicar as técnicas do romance policial para desvendar mis- Na maioria das vezes, a personalidade desse indiví-
térios históricos: seria o Rei Ricardo III realmente culpado duo é formalizada e convencionalizada, geralmente incor-
pelos crimes da Torre? (The daughters of Time, 1951). porando um único impulso ou paixão que motiva o crime.
Frances e Richard Lockridge introduziram o casal na O número de paixões é bastante limitado: ganância, vin-
detecção do crime (The Norths meet murder, 1940). Stanis- gança, ciúme (ou amor ou ódio frustrado), sendo que a ga-
law-André Steeman, um talentoso belga de origem polone- nância burguesa significativamente supera os outros im-
sa, criou o delegado Wenceslav Vorobeitchek, inspetor de pulsos.
polícia de origem idêntica. Seu livro L 'Assassin habite au O herói do romance policial clássico, como o de seus
21 (1940) utiliza com eficácia uma técnica já empregada predecessores, confronta argúcia analítica com astúcia cri-
por Christie em Assassinato no Expresso Oriente: um gru- minal. Os assassinos fazem o que é possível para cobrir
po de assassinos que se fornecem álibis mutuamente. Ray- seus rastros e o "suspense" reina até que sejam descober-
mond Postgate é famoso pelo seu livro Verdict of Twelve tos e a prova da culpa seja apresentada. A chave para este
(1940). Nicholas Blake é o criador do detetive Nigel Stran- sistema convencionalizado de crime e castigo não é ética,
geways. piedade ou compreensão, mas uma prova formal da culpa
O que caracteriza os clássicos do romance policial e que deverá, por sua vez, conduzir a um veredicto de "culpa-
os destaca dos seus precursores tanto quanto dos autores do" pelo júri. O caráter abstrato e racional da trama, o cri-
posteriores é o caráter extremamente convencional e for- me e o desmascaramento do assassino tornam o romance
malizado das suas tramas. Em grande escala, marca a volta policial clássico, muito mais do que seus precursores, o au-
da famosa regra de Aristóteles em relação ao drama: uni- ge da racionalidade burguesa dentro da literatura. A lógica
dade de tempo, lugar e ação. Em todos esses romances são formal reina acima de tudo. O crime e o desmascaramento
observadas algumas regras comuns. O número de persona- são como oferta e procura no mercado: leis abstratas abso-
gens é pequeno e todos estão presentes na cena do crime- lutas quase completamente alienadas dos verdadeiros seres
ou melhor ainda, permanecem lá durante o romance. Na humanos e dos conflitos das paixões reais dos homens.
mais pura das representações dos clássicos, o espaço de Isto é o que diferencia o romance policial da literatu-
tempo é curto. O verdadeiro arcabouço temporal é o perío- ra "não-trivial" que se ocupa do crime. Não é o mistério
do durante o qual os suspeitos permanecem juntos e du- do ato criminoso (quem matou quem?), mas a trágica am-
rante o qual o crime é cometido, embora acontecimentos bigüidade da motivação humana e do destino que se situa
passados possam fornecer a chave da motivação do crimi- no âmago de obras como Der Fali Deruga de Ricarda
noso. O assassinato inicial é o cerne da ação, ocorrendo no Huch ou Crime e castigo de Dostoiévski, sem citar "Mac-
princípio da trama, às vezes mesmo antes do começo da beth " e "Édipo Rei". A verdadeira literatura, como a ver-
história. dadeira arte, reflete a sociedade através do "espelho que-
O assassino é um único indivíduo, embora possa ter brado" da subjetividade do autor, repetindo uma fórmula
cúmplices, sem contudo fazer parte de conspirações, à ma- de Trotsky, reiterada por Terry Eagleton. Na Triviallitera-
neira de Sax Rohmer, Edgar Wallace ou mesmo Fantomas, tur esta subjetividade está ausente e a sociedade está "re-
ou arquivilões como o famoso adversário de Sherlock Hol- fletida" apenas para servir, com fins comerciais, a algumas
mes, o Professor Moriarty ou Fu-Manchu. O culpado é prováveis necessidades dos leitores.
sempre um único indivíduo e deve ser descoberto pelo lei- Entretanto, aqui cessa a semelhança entre o romance
tor (geralmente partindo do princípio de que o culpado é policial clássico e seus originais antepassados. Existem im-
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portantes diferenças entre Sherlock Holmes, inspetor Le- ces policiais ainda tinham alguma relação com os verdadei-
coq ou Dr. Thorndyke, de um lado, e Hercule Poirot, ros criminosos, com as cIases "perigosas" ou
Lord Peter Wimsey e Albert Campion, do outro. No seu "criminosas", com crimes reais cometidos nos bairros po-
esforço para conseguir unidade de tempo, lugar e ação, o bres e nas zonas de bordéis. Os crimes do romance policial
romance policial clássico abandona as ruas cobertas de ne- clássico, por outro lado, se tornaram obscuros, abstratos e
blina de Londres e os contrastes da Paris metropolitana em fictícios. É precisamente pelo fato de o universo do roman-
favor da sala de visitas e da casa de campo inglesa. A Lon- ce policial clássico ser o do latifundiário bem-sucedido,
dres de Conan Doyle ou a Paris de Gaston Leroux (sem classe dominante do período pré e pós 1914, nos países an-
mencionar Arsêne Lupin) refletiam (embora de uma forma glo-saxões (e numa escala menor na França; nos outros
crescentemente convencional e simplificada) a verdadeira países imperialistas a espécie desapareceu após a Primeira
luta que o burguês industrial, o lojista e o banqueiro ti- Guerra Mundial), que o tratamento do crime pôde se tor-
nham que travar para conquistar seus lugares na competi- nar tão altamente esquematizado, convencional e artifi-
ção universal da civilização burguesa emergente. cial.
Na casa de campo inglesa de Agatha Christie ou nas Na realidade não seria um exagero despropositado
mansões da classe alta americana de Ellery Queen ou Rex sustentar que o verdadeiro problema do romance policial
Stout, vemos não uma burguesia conquistadora, mas uma clássico não é, de forma alguma, o crime - e certamente
classe estabilizada, na qual os rentiers* - e não os empre- não é a violência ou o assassinato como tal. É a morte e
sários - é que dão as cartas. Na verdade, o confinamento o mistério, com pronunciada ênfase no segundo. Pois este
do cenário do romance policial clássico para a própria esta- é o único fator irracional que a racionalidade burguesa não
bilidade da classe alta freqüentemente se torna formaliza- consegue eliminar: o mistério das próprias origens, o mis-
do como acontece nos romances de Rex Stout: Nero Wolfe tério das próprias leis do movimento e, acima de tudo, o
cobra preços astronômicos, de forma que os mistérios a se- mistério da destinação final. A autoconfiante burguesia
rem resolvidos geralmente dizem respeito aos ricos burgue- anglo-saxônica das décadas de 10, 20 ou mesmo em 1935
ses. A descrição do ambiente da classe alta é às vezes api- (apesar da Depressão), como incorporada na inabalável se-
mentada com humor e ironia, como nos livros de Dorothy gurança de um Philo Vance ou no infalível intelecto de um
Sayers e Rex Stout e parcialmente nas obras de Anthony Ellery Queen, incansavelmente procura resolver o Mistério
Berkeley e A. A. Fair. Porém, o domínio do ambiente e Maior, descascando camada após camada de falsas impres-
dos valores da classe alta é óbvio demais para deixar de ser sões, pistas ilusórias ou falsas. A vida e a sociedade são
ignorado. pergaminhos que ninguém, a não ser a Inteligência Supe-
Embora o romance policial clássico seja um gênero rior, se atreve a procurar ler. Não é isto, afinal, o que a
altamente formalizado, a conexão estrutural deste forma- ciência moderna, surgindo com a burguesia, procura con-
lismo com a essência da sociedade burguesa não é em si quistar? Porém, o mistério sempre volta. Cada herói tem
formal, mas profundamente enraizada e forte. Os crimes que passar repetidamente por idênticos movimentos, uma
das salas de visitas, casas de campo, mansões de milionários vez que cada ano traz em seu bojo um novo arsenal de
e salas de reunião de diretoria são marginais na sociedade, enigmas - cada trimestre ou semestre, para os escritores
exceções e não regras. Os assassinos dos primeiros roman- mais prolixos. O herói de Dickson Carr, Gideon Fell, che-
ga a se especializar em mistérios nos quais o que parece ser
* Pessoas que vivem de rendas - aluguéis, juros, ganhos com títulos fi- sobrenatural acaba sendo, no fim, perfeitamente natural,
nanceiros -, sem desenvolver atividade produtiva (em francês no origi- justificado por explicações lógicas e científicas.
nal). (N. do T.) No romance policial clássico, a burguesia triunfante
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celebra a vitória da sua "classe" sobre as forças da obscu- refa de conduzir os negócios de Estado ou administrar os
ridade; porém a vitória nunca é final ou completa, pois ou- povos coloniais - é comodamente entregue a outros, aos
tro assassino, outro conjunto de pistas contraditórias está setores inferiores da classe, pelo menos enquanto a situa-
à espreita. Como Lord Peter Wimsey, o detetive de Do- ção se mantém razoavelmente estável.
rothy Sayers, exclamou em Unnatural death (1927): "As-
sassinatos solucionados são assassinatos malsucedidos. Os Robert Graves e Alan Hodge escreveram:
assassinatos realmente bem-sucedidos são aqueles que per-
manecem um mistério". (Segundo Sayers, na Inglaterra da A literatura menor foi agora dominada pelo ro-
década de 20 apenas cerca de 600,10dos responsáveis por mance policial. Um grande número de escritores obti-
mortes supostamente causadas por estratagemas ardilosos veram bons lucros desta maneira, criando então uma
foram levados a julgamento por assassinato.) estranha situação. Na Inglaterra, embora algumas de-
Por fim, a maioria dos heróis famosos dos romances zenas de assassinatos e vultosos roubos ocorram
policiais clássicos fazia parte das classes altas: Lord Peter anualmente, não mais do que dois ou três destes casos
Wimsey, Sir Henry Merivale (que diziam ter sido baseado possuem as mínimas características de interesse aos
fisicamente em ninguém menos que Winston Churchill, criminologistas, no que diz respeito a motivação ou
embora não na época em que este gozava sua maior fama), procedimento; nem em qualquer desses casos um de-
Albert Campion e Roderick Alleyn - todos membros da tetive particular desempenhou um papel decisivo na
aristocracia. Philo Vance, Ellery Queen, Nigel Strange- condução do culpado a julgamento - estas ações fo-
ways, Hercule Poirot e Nero Wolfe são ricos excêntricos e ram realizadas através do competente procedimento
refinados burgueses; como também o são Perry Mason, a rotineiro da Scotland Yard. Entretanto, de meados
maior parte dos heróis de Anthony Berkeley e o Sr. e Sra. da década de 20 em diante, alguns milhares de roman-
North. Na realidade, examinando toda a relação de heróis ces policiais foram publicados anualmente, todos se
dos clássicos romances policiais, a única exceção seria ocupando de crimes extraordinários e desconcertan-
Charlie Chan, uma vez que não se poderia esperar que um tes, dos quais apenas alguns poucos davam à polícia o
inspetor chinês, na década de 20, pudesse fazer parte da mínimo de crédito para a solução do mistério. Esses
classe dominante. 1 livros não tinham o intuito de fornecer narrativas rea-
Na verdade, esses detetives, na maioria, são burgueses listas sobre o crime e sim de servir como enigmas para
diletantes e não capitalistas funcionais, para empregarmos testar a acuidade dos leitores no acompanhamento de
a terminologia de Marx, mas isso também é típico da socie- pistas encobertas. Podemos afirmar sem susto que ne-
dade burguesa que se baseia numa divisão funcional do nenhum deles, entre cem, revelava qualquer conheci-
trabalho dentro da classe dominante. Ganhar dinheiro, mento de primeira mão sobre os elementos compreen-
afinal de contas, é um trabalho de horário integral na com- didos como: organização policial, instituto médico-le-
petitiva atmosfera do capitalismo, e aqueles que se especia- gal, impressões digitais, armas de fogo, veneno, leis
lizam nisso têm pouco tempo livre para outros afazeres. O da probabilidade - e sequer um, entre mil, tinha
trabalho de tentar descobrir o mistério total - como a ta- qualquer preocupação com verossimilhança. Os mais
fantasiosos romances amadores (do ponto de vista
1. Monsenhor Ronald A. Knox, ensaísta inglês e apologista da re- criminológico) se tornaram os mais populares. Esses
ligião, escreveu diversos romances policiais, assim como Ten Com- romances policiais, contudo, não têm a intenção de
mandments of Detection (Apresentação de The Best Detective Stories,
Londres, 1929), onde diz claramente: "Nenhum chinês deve aparecer no serem julgados através de parâmetros realistas, da
romance ... " mesma forma que não julgaríamos os pastores e as
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pastoras de Watteau em termos modernos de criação


de ovelhas (pp. 300-03).
Em resumo, este é o problema. A literatura' 'trivial"
convencionalizada e formalizada, como todas as formas de
arte convencionalizadas e formalizadas, não deve refletir
de forma alguma a realidade. São criadas para satisfazer
necessidades subjetivas, desempenhando assim uma fun-
ção objetiva: reconciliar o perturbado, aborrecido e ansio-
so indivíduo da classe média com a inevitabilidade e per-
manência da sociedade burguesa. A necessidade subjetiva
a ser preenchida pelo romance policial clássico nos anos
entre guerras foi a nostalgia.
Para a massa da pequena burguesia dos países anglo-
saxões e da maior parte da Europa, assim como para partes
das camadas mais amadurecidas da classe dominante, a
Primeira Guerra Mundial marcou um divisor de águas e
uma correspondência com o Paraíso Perdido: o fim da es-
tabilidade, a liberdade de gozar a vida num ritmo sossega-
do, a um custo aceitável, a crença num futuro assegurado e
num progresso sem limites. A guerra e sua destruição, os
milhões de mortos, as revoluções resultantes e a inflação,
as sublevações econômicas e as crises significaram o final
irrevogável daquela doucer de vivre que autores burgueses
sérios, tão diversificados entre si, como Marcel Proust,
Stefan Zweig, John Galsworthy e Scott Fitzgerald, expres-
saram com tanta sensibilidade. Quando terminou a guerra,
a estabilidade não retomou à pequena burguesia, ainda es-
sencialmente conservadora, que foi tomada pela nostalgia.
A administração republicana nos Estados Unidos, o gover-
no conservador de Baldwin na Inglaterra, Poincaré na
França, Stresemann e Brüning na Alemanha se apoiaram
politicamente neste sentimento. O romance policial clássi-
co representou essa nostalgia no campo da literatura' 'tri-
vial" . A casa de campo e a sala de visitas, cenários dos ro-
mances, como os pastores de Watteau, não eram reflexos
da vida contemporânea, mas uma reminiscência do Paraí-
so Perdido. Através delas, a "Boa Vida" dos dias anterio-
res à guerra podia ser revivida - na imaginação, já que
não podia ser na realidade. De volta às ruas
A EVOLUÇÃO DO ROMANCE POLICIAL reflete
a própria história do crime. Com a Lei Seca nos Estados
Unidos, o crime atingiu sua maioridade, se expandindo das
margens da sociedade burguesa até o âmago de todas as
atividades. Seqüestros e guerras entre quadrilhas não fa-
ziam mais parte apenas da literatura popular, devorada
pelos leitores com pitadas de excitação e medo; diariamen-
te estavam diante de um grande número de cidadãos.
Entretanto, a expansão do crime na América, que te-
ve seu início na década de 20, embora tenha sido desenca-
deada pela Lei Seca, não estava de forma alguma limitada
a violações da lei que proibia a fabricação e venda de bebi-
das alcoólicas. E, com a chegada da Depressão, ocorreu
um novo e assustador impulso a todo tipo de crime - as-
saltos a bancos e assassinatos cometidos durante esses as-
saltos são os exemplos mais marcantes.
Com a expansão quantitativa do crime, ocorreu sua
transformação qualitativa, com o conseqüente domínio do
crime organizado. Existe um fascinante paralelo entre as
leis que regem a concentração e a centralização do capital
no seu todo e a lógica do controle total do crime organiza-
do sobre o contrabando de bebidas, a prostituição, o jogo,
as loterias e sua predominância em cidades como Las Ve-
gas, Havana e Hong Kong. Com a expansão das ativida-
des, mais capital se fazia necessário para o investimento em
caminhões, armas, assassinos, capangas, subornos para a
polícia e para os políticos, exploração de fontes estrangei-
ras de abastecimento (exportação de capital). Quanto mais
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capital disponível, mais altos lucros e, portanto, as possibi- tem dinastia, nobreza, nem exército permanente,
lidades de reinvestimento. Daí a extensão organizacional e além de alguns homens mantendo guarda sobre os ín-
a difusão geográfica. dios; nada de burocracia com postos permanentes ou
Os peixões devoram os peixinhos, e as grandes orga- direito à aposentadoria. E, mesmo assim, encontra-
nizações facilmente sobrepujam os empresários indivi- mos aqui duas grandes quadrilhas de especuladores
duais, seja entre quadrilhas criminosas seja entre fabrican- políticos que ocupam alternadamente o poder estatal
tes de aço. Até as regras do jogo, os procedimentos, são e o exploram através dos métodos mais corruptos e
surpreendentemente semelhantes: uma competição acirra- com os fins mais corruptos - e a nação fica impoten-
da, seguida de uma cautelosa consulta (como as famosas te diante destes dois cartéis de políticos que são osten-
convenções das quadrilhas em maio de 1929 em Atlantic sivamente seus empregados, mas que na realidade a
City, e em setembro de 1931, em Chicago) que conduz aos dominam e a pilham. (vol. 2, pp. 483-84)
cartéis (sindicatos), os quais organizam a divisão dos terri-
tórios e mercados, e as fusões de fato (incorporações). Su- A importância do suborno para os políticos e delega-
perchefes (os mais anônimos possíveis) impõem disciplina dos de polícia pode ser aferida pelos milhões de dólares en-
e, quando há uma mudança no relacionamento de forças, volvidos. Dizem que em 1924 o chefe da polícia de Nova
o:o!"re .uma ~enovaç~o ?a competição. Meyer Lansky, o York, Joseph A. Warren, recebia 20 mil dólares por sema-
gemo financeiro do sindicato do crime, é citado pelos auto- na, ao passo que seu sucessor, Grover A. Whalen, passou a
res franceses Jean-Michel Charlier e Jean Marcilly como receber, a partir de 1926, 50 mil dólares. Centenas, se não
te?do sido inspirado pelo livro Making profits, do econo- milhares de policiais menos graduados, recebiam, é claro,
rrusta de Harvard, William Taussig. somas menores (ver Charlier e Marcilly, p. 75). Dizem que
O crime organizado, é claro, antecede a Lei Seca. um policial graduado de Hong Kong chegou a receber até 9
Jornalistas corajosos haviam desmascarado redes de su- mil libras mensais em subornos (equivalente a 150 mil dóla-
borno e corrupção, ligando a construção civil e os empre- res anuais); dizem também que um detetive, durante doze
sários de obras públicas com políticos locais e estaduais em anos de serviço na polícia de Hong Kong, chegou a acumu-
diversas regiões dos Estados Unidos durante o período que lar uma fortuna de 40 milhões de dólares locais (equivalen-
sucedeu a Guerra Civil. Friedrich Engels estava apenas ex- te a 7 milhões de dólares americanos) só em subornos (ver
pressando uma opinião gradualmente compartilhada pela O'Callaghan, pp. 82-5). A própria Máfia - originária de
média dos cidadãos americanos quando escreveu que o sis- uma luta política legítima: resistir à tomada e à pilhagem
tema bipartidário nada mais era que o meio pelo qual duas da Sicília pelos Bourbons - gradualmente se expandiu em
quadrilhas de ladrões competiam na pilhagem do público: importação e fabricação, imigração ilegal, contrabando
etc. É interessante notar que as Triades, a sociedade secre-
É bastante conhecida a forma pela qual os ame- ta chinesa, teve uma origem política semelhante no século
ricanos vêm, há trinta anos, tentando se livrar dessa XVII, na luta contra a conquista da China pela dinastia
brincadeira que se tornou intolerável e do modo co- Manchu. A organização chinesa, como a italiana, foi
mo, apesar de tudo, continuam a se afundar cada vez transplantada para a América através da imigração, no fi-
mais nesse mar de corrupção. É precisamente na nal do século XIX e início do século XX.
América que melhor vemos como ocorre este proces- As Triades nunca conseguiram organizar o crime nos
so de o poder estatal se tornar independente em rela- Estados Unidos numa escala semimonopolista, por não te-
ção à sociedade, da qual, segundo o projeto original, rem conquistado o controle do mercado de massa do ál-
ele deveria ser um mero instrumento. Aqui não exis- cool proibido e produtos afins durante a década de 20.
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Mais tarde, conseguiram uma certa autonomia através do isto ocorreria mais tarde. Porém, a conscientização das
tráfico de drogas. Embora a Máfia mantivesse sua posição massas sobre a natureza das atividades criminosas tinha
de força dominante no submundo americano até o final da despertado, bastante cedo e violentamente, a ponto de fa-
década de 20, nunca conseguiu estabelecer o monopólio do zer parecerem crescentemente atípicos, senão improváveis,
contrabando das bebidas. O mercado era por demais am- os assassinatos ocorridos nas salas de visitas.
plo, e a organização e o capital necessários muito grandes A conscientização das massas veio à tona pela pri-
para serem controlados por um grupo etnicamentecentra- meira vez com as chamadas revistas de mistério, que foram
do e dotado de base restrita como a Máfia siciliana. Era crescendo simultaneamente com o aumento do crime orga-
necessária portanto uma maior amalgamação que foi obti- nizado. O protótipo delas era a série Black Mask, fundada
da através da liderança de Lucky Luciano e incluía não só em 1920 por dois conhecidos intelectuais americanos: H.
a Máfia como todo os Estados Unidos, além de ter se ex- L. Mencken e George Jean Nathan, numa tentativa de le-
pandido pelo exterior. vantar dinheiro para financiar sua cara e sofisticada revista
Foi a constituição do sindicato do crime que marcou Smart Set. Diversos colaboradores de Black Mask mais
a verdadeira maioridade do crime organizado na sociedade tarde se tornaram famosos, como Erle Stanley Gardner e
burguesa. O sindicato do crime nos Estados Unidos _ Dashiell Hammett.
adeq,u~damente chamado A Organização - é apenas o O termo roman noir geralmente tem sido aplicado à
pro~OtlPOe não, de maneira alguma, o único exemplo. O literatura pós-guerra das décadas de 40 e 50, iniciada, se-
Japao,. a França, a Inglaterra, a Alemanha , o Brasil , a Ar- gundo dizem, pela série noire dos romances policiais de
gentma e a Turquia - para citar apenas alguns países _ Marcel Huhamel. Isto não é verdade: o roman noir nasceu
possuem, cada um, uma estrutura equivalente. Embora as verdadeiramente na década de 30 e cresceu dentro da tradi-
Triades nunca tenham obtido um determinado status nos ção da Black Mask.
E~t~dos Unidos, conseguiram-no na China pré-revolucio- Foi então que ocorreu a primeira grande revolução
nana, pelo menos nas cidades maiores como Xangai, e no romance policial. As duas figuras predominantes desta
agora parec~ que estão conquistando em Hong Kong, Cin- revolução foram Dashiell Hammett e Raymond Chandler.
gapura e Taiwan. Pouco se sabe no Ocidente sobre o sindi- Três outros nomes proeminentes talvez devessem ser acres-
cato do crime japonês chamado Yakuza que, segundo centados: o belga Georges Simenon, o francês Léon Mallet
c~nst~, .r~nde anualmente alguns bilhões de dólares que e o canadense Ross Macdonald. Entretanto, o herói de Si-
sao divididos entre duas facções inimigas, o Sumiyoshi menon, o Inspetor Maigret, já representa mais uma outra
Rengo, que parece dominar o crime em Tóquio e o Yamu- etapa: a polícia retoma o lugar ocupado pelo detetive parti-
gushi Rengo, que aparentemente controla grande parte do cular. E embora o personagem de Ross Macdonald, Lew
cnme no Japão ocidental (Atlanta Journal and Constitu- Archer, ainda seja um detetive particular, mesmo assim
tion, 8 de janeiro de 1948). chegou tarde demais para ser considerado um participante
. A maioridade do crime organizado colocou um pon- da mudança ocorrida na década de 30. Nestor Burma, o
to final no romance policial ambientado numa sala de visi- herói de Léon Mallet, é o que mais se aproxima do padrão
tas. E impossível se imaginar Hercule Poirot, sem falar em Hammett -Chandler.
Lord Peter Wimsey ou Padre Brown, lutando contra a Má- Em seu ensaio "The Simple Art of Murder", Cham-
fia. Até o terrível Nero Wolfe se assusta ao ter de confron- dler, na realidade, teorizou sobre esta mudança, datando-a
tar Zeck, o misterioso personagem do crime organizado. como iniciada com a obra de Hammett. Foi uma quebra
Isto não quer dizer que os romances policiais começaram a abrupta da delicadeza do romance policial clássico, espe-
se ocupar com o sindicato desde o início da década de 30', cialmente do crime baseado em razões psicológicas indivi-
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duais como a avareza e a vingança. A corrupção social, es-
um patético mordo mo numa casa de campo inglesa ou um
pecialmente entre os ricos, tornou-se então o tema central,
jovem cafajeste querendo se apossar de uma herança antes
junto com a brutalidade, um reflexo não só da mudança
que o tio mude o testamento, mas, ainda assim, um crimi-
dos valores burgueses provenientes da Primeira Guerra
noso que possua apenas um poder limitado - e não um
Mundial, como do impacto do banditismo organizado.
poderoso líder estilo Máfia, nem mesmo uma grande em-
Entretanto, embora a mudança de local e de atmos- presa.
fera seja bastante real, ainda persiste uma inconfundível Este detetive particular duro, cínico e sentimental
continuidade com os detetives particulares do tipo tradi- perseguirá os criminosos através de obstinados interroga-
cional: Sherlock Holmes, Lord Peter Wimsey, Albert tórios e mudanças constantes de cenário, e não através da
Campion, Philo Vance, Ellery Queen e Nero Wolfe. Isto é, cansativa análise de pistas e da encadeada motivação analí-
a romântica busca da verdade e da justiça pelo que elas re- tica. A ênfase neste processo de "perseguição" é em si uma
presentam em si. Sam Spade, Philip Marlowe, Nestor Bur- pista sobre a mudança de valores burgueses refletida na
ma e Lew Archer podem parecer personagens durões, cini- "revolução" do romance policial clássico. Está ligada a
camente desprovidos de quaisquer ilusões quanto à ordem uma outra mudança: os calejados detetives particulares,
social vigente, porém, no fundo, ainda são sentimentais, embora ainda sejam individualistas par excellence, não são
otários diante de moças em perigo e diante de fracos em mais excêntricos ou ricos diletantes; são profissionais da
confronto com os fortes. Num trecho clássico de "The investigação e vivem disso, embora modestamente. Não
Simple Art of Murder", o próprio Chandler descreve esta trabalham em casa, mas num escritório, e geralmente são
mistura de cinismo com romantismo: auxiliados por uma incipiente organização, ou um sócio, e
às vezes uma secretária; estes homens marcam uma etapa
Por estas ruas sórdidas deve passar um homem transicional entre a investigação como uma arte refinada e
que não tem mácula ou medo. O detetive deste gênero como uma profissão organizada em grande escala.
de história deve ser um homem assim. É o herói, é tu- Raymond Chandler (O sono eterno, 1939; Adeus mi-
do. Deve ser um homem completo e um homem nor- nha adorada, 1940) não deve ser julgado unicamente sob o
mal e também um homem extraordinário. Deve ser, prisma de seu itinerário pessoal: de uma escola pública in-
para empregar um lugar comum, um homem honrado glesa para o funcionalismo público, daí para o comércio
por instinto, por inevitabilidade, sem se preocupar do petróleo americano, passando à literatura crítica social,
com isso e certamente sem fazer qualquer alusão a is- para em seguida ir para Hollywood até a rendição diante
so. do macarthismo. Sua contribuição criativa para a literatu-
ra em geral e para o romance policial em particular não po-
de ser ignorada. Entretanto, como sua obra é motivada pe-
Não é difícil perceber a ingenuidade deste retrato. A
lo desprezo à corrupção da grande cidade, ,sua inclinação
idéia de um confronto individual com o crime organizado, ideológica é geralmente mal interpretada. E sempre a es-
à Dom Quixote, tem uma certa dose de fantasia adolescen- trutura do poder local que é denunciada nos livros de
te no seu conteúdo e nenhuma relação com a realidade so- Chandler e nunca a estrutura nacional. (O mesmo não é
cial das décadas de 20 ou 30. Para que as aventuras de Sam verdade, por falar nisso, nos trabalhos socialmente mais
Spade, Philip Marlowe e Lew Archer possuam credibilida- críticos de John MacDonald, como por exemplo seu ro-
de, estes homens devem enfrentar, em última análise, cri- mance Condominium, 1977.) Portanto, a ideologia de
minosos menores. O culpado pode ser um milionário local, Chandler é ainda basicamente burguesa, como enfatizou
um astro de Hollywood ou um rico aventureiro, em vez de corretamente Stephen Knight:
66 67

Em todos os seus romances é bastante óbvio O calejado Lew Archer, de Ross Macdonald, quase
que o cenário domina a estrutura; o herói não se en- fecha o círculo. É quase inteiramente um "produto dos
caixa numa seqüência predeterminada de aconteci- acontecimentos". A maioria dos seus casos envolve desa-
mentos, como ocorre na obra de Christie, que traba- parecimentos e, ao perseguir os culpados, o faz impelido
lha partindo do final da trama. O própriocostume de pelas circunstâncias mais do que por uma iniciativa pes-
~ha?dler de escrever em meias folhas de papel tinha o soal.
mtuito de aguçar o enfoque em pequena escala, tor- A revolução no cenário e no modus operandi foi se-
nando as conexões globais menos evidentes, capaci- guida por uma revolução de tom e de linguagem. O vaga-
tando-o a se concentrar no ato de reescrever o texto roso e, às vezes, até relaxado estilo de Agatha Christie e o
em maiores detalhes e não na revisão da trama. Chan- humor arrogante de Dorothy Sayers ou S. S. Van Dine,
dler observou, meio de brincadeira, que quando tinha com suas anedotas elitistas e sua pseudo-sofisticação, dão
alguma dúvida fazia um homem entrar pela porta em- lugar a uma parcimônia de recursos. Os diálogos diretos e
punhando um revólver. vigorosos passam a ser considerados como realmente enge-
As cenas são controladas pelo crivo de Marlowe nhosos, seu tratamento atingindo, às vezes, toques de
em relação aos personagens e não pelos personagens maestria. Um vencedor do Prêmio Nobel, André Gide, es-
em SI; e a necessIdade do detetive de reagir com total e creveu o seguinte, nos seus Diários (16 de março de 1943),
det~lhada negatividade em relação aos outros é que sobre Dashiell Hammett, comparando-o a dois outros es-
abnl~a~ta as cenas. Chandler não estava disposto a critores premiados com o Nobel:
restringir esta evolução em favor de uma trama bem
feita, uma vez que o tipo de desenvolvimento era o Li com interesse bastante aguçado (e por que
ponto central da sua filosofia: estava escrevendo as não dizer admiração) O falcão maltês (1930), de Das-
aventuras pessoais de um herói e não tramas que cria- hiell Hammett, de quem já havia lido, no verão passa-
vam um problema penetrantemente enfocado ou um do, embora numa tradução, o surpreendente Safra
padrão de realidade social. (p.129 - o grifo é nosso.) vermelha (1929), muito superior ao Falcão, ao A ceia
dos acusados (1934) e a um quarto romance, obvia-
A realidade social e a crítica são muito mais fortes no mente escrito em série, cujo nome agora me escapa.
di~cípulo de Chandler, o mais prolixo representante dos Em inglês, ou pelo menos em inglês-americano, mui-
cnadores de detetives particulares: Ross Macdonald, um tas sutilezas me fogem, mas em Safra vermelha os
canadense educado em seu próprio país (The moving tar- diálogos, escritos de forma magistral, chegam a supe-
get, ~949; Thechill, 1964; Thefarsideofthedollar, 1965), rar os de Hemingway ou até de Faulkner, enquanto a
e mais abertamente anticapitalista do que Chandler embo- narrativa está organizada com perícia e um implacá-
ra seu herói, Lew Archer, seja um sujeito mais suave do vel cinismo. Neste gênero específico, acredito, é o li-
qu~ o Philip Marlowe de Raymond Chandler: "Sou um de- vro mais extraordinário que já li.
tet~ve. ,uma espécie de sociólogo dos pobres". "Aquele va-
le l~teIro espalhado lá embaixo pode parecer a terra pro- Dois precursores devem ser citados: Donald Hender-
metida. Pode ser que seja para alguns. Só que, para cada son Clarke (Louis Beretti: The story of a gunman, 1929) e
uma des.sas fazendas com ar condicionado, piscina e pista William Riley Burnett (Little Caesar, 1929), ambos inspira-
d.e aternssagem particular, existem dúzias de barracos de dos em histórias de gângsteres reais. Um livro posterior de
ZInCO e trailers arrebentados, onde vivem tribos perdidas Burnett, High sierra, que segundo Javier Coma (p. 43) foi
de trabalhadores imigrantes." inspirado no caso Dillinger, contém o que poderia muito
68

bem ser considerada a filosofia de um gângster (uma moti-


vação do que apareceria muito mais tarde em O poderoso
chefão, de Mario Puzo): "Ouça, neste país só uns poucos
têm muita grana. Milhões não têm o que comer, não por-
que não exista comida, mas porque não têm grana pra
comprar. Outros têm. Muito bem. Então por que os que
não têm não se juntam e põem a mão nesta grana?" (Tradu-
zido a partir do livro de Coma, citado em espanhol.) Po-
rém o gângster Roy Erle, o herói do livro de Burnett, é a
favor de uma expropriação individual e não coletiva. Isto
não muda o sistema dos que têm e dos que não têm; muda
apenas a lista dos que têm.
No romance policial com o calejado detetive particu-
lar, a revolução de trama, cenário, estilo e solução também
remonta às inovações tecnológicas: o que a fotografia e as
estradas de ferro foram para os antigos romances policiais,
o cinema e o automóvel são para o roman noir.
Perseguindo criminosos em vez de examinar pistas,
substituindo uma seqüência de cenas por uma trama bem
construída, movimentando-se mais e mais rapidamente de
cena para cena, o que é o roman noir senão o cinema ex-
plodindo em literatura popular, como mais tarde o policial
explodiu primeiro no cinema através dos filmes sobre
gângsteres e mais tarde com os filmes de suspense? George
Raft conduz a Philip Marlowe, que nos conduzirá a
Humphrey Bogart e a Hitchcock.
Como Mary McCarthy escreveu na resenha literária
do New York Times (abril, 1984) sobre a escritora Joan Di-
dion:

Como a câmera, este dispositivo mental não


pensa, mas projeta imagens bastante fantasmagóricas
e perturbadoras em sua maioria, precisamente por se-
rem mudas. Mesmo quando sonorizadas, como é o
caso aqui, permanecem caladas e de certa forma as-
sustadoras em sua espantosa aversão ao pensamento.

A ideologia
do romance policial,
A PREOCUPAÇÃO COM A MORTE é tão antiga
quanto a humanidade. A morte, como o trabalho, é a nos-
sa sina inevitável, apesar de ser uma fatalidade natural me-
diada por condições sociais determinadas por estruturas
específicas. As causas da morte e seu momento depen-
dem em grande escala das condições sociais. A mortalida-
de infantil e a expectativa de vida têm variado grandemen-
te através da história, assim como as noções relativas à
morte. A história social da morte é uma preciosa fonte de
informação sobre a história social da vida.
O desenvolvimento da produção de bens e a emer-
gência generalizada da produção de bens, ou o capitalis-
mo, alteraram profundamente a postura em relação à mor-
te. Nas sociedades primitivas e de classe, ainda baseadas·
essencialmente na produção de "uso-valor" , a morte é vis-
ta como uma conseqüência da natureza, como alguma coi-
sa para a qual as pessoas precisam se preparar, ajudadas
pela atenção de suas famílias e dos grupos sociais nos quais
estão integradas. Daí o respeito aos velhos e à cultura dos
antepassados, que é parte de uma tentativa de aceitar a
morte como um fim natural da vida.
Nas sociedades baseadas na produção e na circulação
de valores de troca, reina, acima de tudo, a competição en-
tre os indivíduos. As pessoas são julgadas, não pela matu-
ridade de suas experiências ou por sua força de caráter,
mas pelo seu desempenho na competição desenfreada. As :
pessoas mais velhas são, portanto, consideradas um fardo,
gradativamente inúteis, uma vez que não trabalham ou ga-
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nham dinheiro. A proteção aos idosos torna-se mais e mais cial; dificilmente encontramos um que não contenha uma
despersonalizada, anônima e controlada por organismos morte violenta (os romances policiais de Paul Erdman são
burocráticos. uma interessante exceção). Entretanto, a morte no roman-!
Por causa da mudança do destino dos idosos, da ce policial não é tratada como um destino dos homens ou
transformação do relacionamento entre o indivíduo e a co- uma tragédia, e sim como objeto de indagação. Não é vivi-
munidade e da absoluta supremacia da mais-valia e do di- da, sofrida, temida ou combatida, mas torna-se um cadá-
nheiro, do capital e da riqueza, o ser alienado, na socieda- ver a ser dissecado, algo a ser analisado. A coisificação da
de burguesa,torna-se obcecado pela integridade do corpo, morte se encontra no âmago do romance policial.
instrumento indispensável para o trabalho e para a renda, Este fenômeno da coisificação da morte no romance
e conseqüentemente muito mais obcecado com a morte. policial equivale à troca da preocupação com o ~est.ino hu-
Daí vem a imagem de que a morte é um acidente catastrófi- mano pela preocupação com o cnme e, como ja disse an-
co e não uma inevitável conclusão da vida. Na verdade, es- tes, esta é a linha que divide os assassinatos ocorridos nas
tatisticarnente-os acidentes são mais e mais as maiores cau- grandes obras - desde Sófocles até Shakespeare, Stend-
sas da morte: desastres nas estradas, guerras, e "doenças hal, Goethe, Dostoiévski, Dreiser - dos crimes nos ro-
da civilização" . A morte acidental assumiu o lugar da mor- mances policiais. A preocupação com o crime, contudo, é
te ontológica na consciência burguesa da morte e certa- uma preocupação com algumas regras objetivas, com a lei
mente n~ sua ideologi~. I. • e a ordem, com a segurança individual, a segurança pelo
Boileau e Narcejac insistem em que o medo é a raiz destino de alguém (ou de alguma família), numa limitada
ideológica do romance policial. Entretanto, o medo, espe- porção da vida (por definição, assuntos como guerras, re-
cialmente o medo da morte, é tão antigo quanto a humani- voluções e recessões extrapolam o campo de ação deste ti-
dade. Não se consegue explicar por que o romance policial po de segurança). A preocupação com o crime e a seguran-
não se originou no quinto século a.C. ou durante a Renas- ça pessoal conduz inevitavelmente a uma polarização ma-
cença. O romance policial necessita de um tipo específico niqueísta. A segurança pessoal é, por definição, um bem;
de medo da morte, que tenha suas raízes nas condições da um ataque contra ela é, pela própria natureza, um mal. A
sociedade burguesa. A obsessão com a morte, vista como análise psicológica, a complexidade e ambigüidade das mo-
um acidente, conduz à obsessão com a morte violenta e tivações e do comportamento humano não têm lugar den-
portanto, à obsessão com o assassinato e com o crime. tro deste maniqueísmo. O romance policial está baseado
Tradicionalmente, a preocupação com a morte é tra- na mecânica da divisão formal dos personagens em dois
tada como uma questão antropológica (magia, teologia, fi- campos: os maus (os criminosos) e os bons (o detetive e, de
losofia) ou uma tragédia individual (religião institucionali- certa forma, a ineficaz polícia).
zada, literatura, psicologia). Com o advento do romance Contudo, a extrema polarização do universo do ro-
policial como um gênero literário específico,ocorre um sig- mance policial é acompanhada por uma despersonalização
nificativo corte nesta tradição. A morte - e mais especial- do bem e do mal, que é a parte essencial da desumanização
mente o assassinato - se situa no centro do romance poli- da morte. O bem e o mal não estão incorporados nos ver-
dadeiros seres humanos, nas personalidades verdadeira-
1. Um amigo suíço, Marc Perrenoud, elaborou a primeira tentati- mente complexas. Não há uma luta de paixões e vontades,
va de uma análise marxista sobre a relação da humanidade com a morte apenas um embate de espíritos analíticos em oposição à in-
(Marx: Ia mort et les autres, manuscrito mimeografado). Em relação à
história social da morte, ver dois livros recentes de Michael Vovelle: La teligência preventiva. As pistas têm que ser descobertas,
mort et l'Occident de 1300 à nos jours (Paris) e O homem diante da uma vez que os rastros foram encobertos. Em vez de con-
morte (Paris, 1977) de Phillipe Ariés. flito humano, existe uma competição entre inteligências
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abstratas, uma competição semelhante a um mercado onde noso quanto o detetive, o crime e a justiça, a prisão e a
o que está em jogo é uma luta entre preços de custo e pre- propriedade, são produtos da mesma sociedade, de uma
ços de venda, e não entre seres humanos complexos. Esta etapa específica do desenvolvimento social. O crime e sua
coisificação do conflito reflete a coisificação da morte co- detecção não são apenas coisificados, mas também banali-
mo u}TIacoisifícação do destino humano. zados e desprovidos de quaisquer problemas. São aceitos
E clar~ que essa coisificação não é puramente negati- como verdade fora do contexto específico social e do con-
v~. Nas sociedades feudais e despóticas, a tortura é o prin- creto desenvolvimento histórico que os criou.
cipal método de "provar" os crimes e desmascarar os cri- O racionalismo burguês é sempre uma combinação
minosos. Inocentes morriam sob tortura em meio a dores de racionalidade e irracionalidade e produz uma crescente
horríveis. Através da formalização do processo de coleta tendência em direção à total irracionalidade. Por isso o ro-
de provas, submetido às regras baseadas nos princípios dos mance policial, enquanto coloca a inteligência analític~ e a
valores burgueses, a justiça criminal do século XIX repre- coleta de pistas científicas no cerne da detecção do cnme,
sentou um avanço histórico no desenvolvimento da liber- geralmente recorre a paixões cegas, tramas loucas e refe-
dade humana, embora este avanço tenha sido limitado e rências à mágica, se não à loucura clínica, para "explicar"
contraditório. Caracterizar este avanço como hipocrisia é por que os criminosos cometem crimes. O próprio Conan
fechar o,s olho~ ao fato evidente de que a eliminação da Doyle simboliza esta contradição com sua crescente preo-
to~t~ra e uma Importante conquista da revolução demo- cupação com o sobrenatural, que o levou, quase no fim da
c~atlco-burguesa,. que os socialistas não rejeitam, mas pre- .vida , a escrever um livro provando a existência das fadas.
cisam defender e integrar à revolução socialista e à constru- .
ção do socialismo. Mesmo se a paixão individual fosse o motivo dommante
para o crime, ainda existiria o problema de por que um de-
Ao substituir disputas acadêmicas por coleta de pro- terminado contexto social produz mais e mais loucura, en-
vas no processo de detecção de um crime, ao substituir quanto outros não - um problema nunca levantado pelo
confissões extraídas sob tortura por provas formalizadas romance policial clássico.
a~~eit~sno tribunal como base de um veredicto de culpa, a A própria estrutura do romance policial clássico re-
c~encI~, pelo menos parcialmente, suplanta a magia; a ra- flete esta combinação. Como o professor Dresden salien-
cíonalídade, pelo menos parcialmente, suplanta a irracio- tou no seu trabalho Marionettenspel met de Dood, escrito
nalidade. Neste sentido, como enfatizou Ernst Bloch o ro- em holandês, esse romance se movimenta em dois níveis si-
mance policial reflete e resume o progresso histórico venci- multâneos de realidade. Por um lado, tudo deve parecer
do pela burguesia revolucionária por motivos óbvios de tão real e corriqueiro quanto possível. A hora exata é sem-
autodefesa e auto-interesse.
pre mencionada e são sempre fornecidos os locais exatos,
Porém, racionalidade e racionalismo não são idênti- às vezes até detalhados com mapas e outros esboços. As
~os. A. racionalidade coísífícada é incompleta e portanto ações dos personagens são descritas nos mínimos detalhes,
m~uficlentem.ente racional. Não consegue apreender ou ex- assim como roupas e aparência física. Ao mesmo tempo,
phcar a condição humana em sua totalidade mas a divide tudo é envolto em ambigüidade e mistério: sombras sinis-
artificialmente em compartimentos separado~: econômico
tras expreitam ao fundo; as pessoas não são o que parecem
político (cidadão), cultural, sexual, moral, psicológico ~
ser; a irrealidade constantemente assume o lugar da reali-
religioso, O~.criminosos são produtos dos próprios impul-
dade. Simenon enfatiza este contraste - e combinação -
sos, os heróis produtos da busca de justiça (ou ordem).
em duas frases perspicazes: "Maigret observou os tran-
Dentro de um contexto tão formalizado,é impossível com-
seuntes e disse para si mesmo que Paris estava povoada por
preender, ou até colocar, a forma pela qual tanto o crirni-
seres misteriosos e ilusórios, com quem raramente cruza-
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mos durante o curso de alguma tragédia"; e "Era bom vol- os romances policiais "sérios" começaram a firmar raízes
tar para a voz da Sra. Maigret, para o odor do apartamen- nacionais apenas depois da Segunda Guerra Mundial (com
to com os móveis e os objetos em seus devidos lugares" . autores como Hansjórg Martin, Thomas Andresen, Fried-
A desordem reconduzida à ordem e esta voltando à helm Werremaier, Richard Hey, Irêne Rodrian e Ky), em-
desordem; a irracionalidade perturbando a racionalidade; bora J. D. H. Temme houvesse escrito muitos romances
a racionalidade restaurada após as sublevações irracionais: policiais na década de 1860.2 Somente neste momento a
aí está o cem e da ideologia do romance policial. ideologia burguesa, no seu sentido mais puro, se tornou to-
Não é por acaso que o romance policial clássico se talmente difundida. Mas, em ambos os casos, sublevações
desenvolveu praticamente nos países anglo-saxões. Uma sociais significativas - guerra, derrota, ocupação estran-
das características centrais da ideologia predominante na geira e subseqüente expansão econômica espetacular -
Inglaterra e Estados Unidos, durante a segunda metade do tornavam impossível escrever histórias com uma atmosfera
século XIX e os primeiros anos do século XX, foi a ausên- de ordem e normalidade seculares. O contexto do crime é a
cia, ou pelo menos a extrema fraqueza, dos conceitos de riqueza e os negócios, às vezes com uma dimensão social
luta de classes como instrumentos para a interpretação dos modestamente crítica.
fenômenos sociais. (Na Inglaterra, isso representava uma Significativamente, os criminosos, na maior parte
regressão, quando comparado aos períodos anteriores. ) Is- desses romances, são empresários ou gerentes de grandes
so refletia a estabilidade da sociedade burguesa e a auto- empresas. Seus motivos, quase sempre, são a cobiça ou a
confiança da classe dominante. A intelectualidade em geral pressão exercida pelas dificuldades financeiras.
e os autores de livros em particular, fossem eles socialmen- Uma antologia substancial de romances policiais da
te críticos ou conservadores, interpretavam essa estabilida- América Latina, editada por Donald Yates, Latin blood:
de como um fato consumado. The best crime and detective stories of South America, foi
Nessas circunstâncias, era natural que esses autores publicada em 1972. O autor holandês Erik Lankester du-
associassem a revolta contra a ordem social a uma ativida- plicou esta coletânea em seu Zuidamerikaanse Misdaad-
de criminosa, para identificar o proletariado rebelde com verhalen (1982), incluindo famosos escritores que se ocu-
as "classes criminosas" (uma expressão que aparece repeti- param com romances policiais, como Borges, Cortázar,
damente nos romances policiais populares anglo-saxões). Gabriel García Márquez e Ben Traven.
O que começou como natural logo adquiriu uma função Embora a criminalização das classes mais baixas seja
social que rapidamente se tornou eficaz. Na França, ao uma característica particular dos romances policiais anglo-
contrário, embora intelectuais que escrevessem para uma saxões mais "triviais", não é raro se encontrarem assassi-
platéia exclusivamente burguesa pudessem empregar tal ex- nos da classe média e até das classes altas nos romances po-
pressão, as classes médias baixas e os trabalhadores letra- liciais clássicos das década de 20 e de 30 (os romances de
dos,' que perfaziam a massa leitora do romance poli-
cial, certamente não aceitariam tais idéias após experiên- 2. O romance policial japonês teve origem com Edogawa Rampo
cias como a revolução de 1848 e a Comuna de Paris. Ape- na década de 20: Nisen doka (A moeda de cobre de dois-sen, 1923), mas
nas porque a luta de classes era mais pronunciada e mais na realidade se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial: 14 milhões
de exemplares foram vendidos em meados da década de 60, 20 milhões
politizada na França do que nos países anglo-saxões, foi em meados da década de 70. Além de Rampo, os principais autores são
muito mais dificil, muito menos eficaz - e, portanto, me- Seicho Matsumoto, Masahi Yokomizo (O caso de Honjin, 1947), Yoh
nos abertamente praticado - criminalizar o conflito de Sano e Shizuko Natsuki (A morte passada). Todas estas referências vêm
classes ou subordiná-lo a conflitos individuais. de Ellery Queen: Japanese Golden Dozen: The detective story world in
É interessante notar que, na Alemanha e no Japão, Japan, Charles E. Tuttle, Tóquio, 1972.
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Agatha Christie, por exemplo). 3 O ponto crucial não é a Quando o centro do mundo capitalista transferiu-se
origem econômica do assassino, mas sua apresentação co- da Inglaterra para os Estados Unidos, o sistema internacio-
mo um desajustado social, um "grosseirão" que infringe nal já havia cessado sua expansão, iniciando seu declinio,
as normas da classe dominante e que por este motivo deve embora o capitalismo americano continuasse a crescer. O
ser punido. desenvolvimento do capitalismo americano vinha portanto
Da mesma maneira, é apenas parcialmente correto acompanhado pela fé decrescente nos valores burgueses,
assemelhar as tradições inglesas e americanas do romance embora até 1929, se não 1945, esses valores permanecessem
policial. Na Inglaterra, o capitalismo emergente estava in- mais abertamente aceitos na sociedade americana do que
tegrado num Estado consolidado, produto de um prolon- nos países capitalistas menos estáveis e ricos.
gado desenvolvimento histórico, e unido, em relação à su- Entretanto, este declínio estava combinado com uma
perestrutura social, a diversos remanescentes da superes- tradição histórica diferente, uma forma diferente de inte-
trutura feudal. Daí a atmosfera geral das divisões de classe gração da ordem capitalista e do Estado burguês. Apenas
aceita por consenso no romance policial clássico inglês, porque o capitalismo norte-americano era o "mais puro"
uma aceitação expressa até no nível da linguagem. A vio- do mundo (uma vez abolida a escravidão), sem resquícios
lência, ausente do centro do cenário social, é empurrada semifeudais e sem ordem hierárquica de origem pré-capita-
para a periferia (as colônias, a Irlanda, os cortiços das clas- lista, os valores sociais predominantes estavam menos pro-
ses operárias). O Estado é relativamente fraco, a polícia fundamente ancorados na tradição e menos completamen-
londrina desarmada por causa da aparente estabilidade da te interiorizados pela população. A burguesia era muito
sociedade. De certa forma, tratava-se de uma falsa impres- menos reverente em relação ao seu próprio Estado.
são, mas que determinou a maneira pela qual a ideologia A corrupção, a violência e o crime encontravam-se
dominante refletia a realidade inglesa e, conseqüentemen- em evidência, não apenas na periferia da sociedade ameri-
te, o arcabouço dentro do qual se desenvolveria o romance cana, mas no seu próprio âmago. Enquanto o serviço pú-
policial na Inglaterra. blico inglês era um verdadeiro empregado da sociedade
burguesa e o político inglês bem-sucedido considerado um
3. Sobre a psicopatologia da violência, atentem para esta passa- sábio notório, o funcionário público norte-americano era
gem do romance de aventuras de Jack Higgins, Solo (Pan, Londres
198ücl): ' encarado, no século XIX, como virtualmente inútil, e os
políticos bem-sucedidos apenas como vigaristas. A partir
- Regras do jogo. Eles não eram o alvo. das origens, então, o romance policial norte-americano
- O jogo? disse Morgan. - E que jogo seria este? apresentou o crime como sendo muito mais integrado na
. - .você ~everia saber. Já ve!ll jogando há muito tempo. O
mais excitante Jogo do mundo, onde sua própria vida é a derra- sociedade como um todo do que entre os ingleses.
deira aposta. Você pode honestamente me dizer que já fez alguma O tema é ainda a luta entre os interesses individuais e
outra coisa que te desse tanto élan? as paixões, embora os acontecimentos dos romances sejam
- Você está louco, disse Morgan. menos artificiais, menos tangenciais à ordem burguesa co-
Mikali pareceu um tanto surpreso. - Por quê? Eu costu- mo um todo, do que nos romances policiais ingleses. A
mava fazer a mesma coisa quando usava uniforme e ainda por ci-
ma ganhava medalhas! Exatamente a posição que você está ocu- paixão, a cobiça, o poder, a inveja, o ciúme e a proprieda-
pando agora. Quando olha no espelho, é a mim que você está ven- de não colocam apenas o indivíduo contra o indivíduo,
do. mas crescentemente acarretam conflitos entre homens e
Mikali. é um famo~,? solista ?e ~oncertos ~ um assassino patológi- grupos ou famílias, chegando até a revoltas contra o con-
C? Morg~ ~ um alto oficial do exercito e tambem uma espécie de assas- formismo de classe. O crime torna-se um meio pelo qual se
sino patológico,
galga a escada social ou uma forma de se continuar a ser
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um capitalista apesar dos desastres financeiros. É a estrada triunfam. É uma literatura reconfortante, socialmente in-
q~e conduz do inferno ameaçado até a reconquista do pa- tegrante, apesar da preocupação com o crime, a violência e
raiso. E o pesadelo que persegue o sonho americano como o assassinato.
a sombra persegue o corpo. As diferenças entre Dashiell S. Vestdijk chamou a atenção para as semelhanças e
Hammett, Rayrnond Chandler, Ross Macdonald e até El- diferenças do romance policial com o jogo de xadrez. Em
lery Queen de um lado, e Agatha Christie, Dorothy Sayers, ambos os casos, temos um número limitado de jogadores e
Anthony Berkeley e John Dickson Carr do outro, são pro- regras estritamente convencionais, que por natureza são
venientes desta especificidade da sociedade burguesa dos mecânicas e puramente racionais; ambos são determinis-
Estados Unidos. tas, cada movimento previsto pelo anterior e conduzindo
Mesmo assim, a ideologia comum do romance poli- ao próximo. Entretanto, as diferenças não são menos sur-
cial original e clássico na Inglaterra, Estados Unidos e preendentes. No xadrez, o vencedor é aquele que realmen-
países continentais europeus permanece essencialmente te demonstra uma superior habilidade racional e memória
burguesa. Morte coisificada, detecção criminal formaliza- (embora a capacidade de concentração e ausência de
da, aceita nos tribunais de justiça, que operam segundo re- reações nervosas e de ansiedade também sejam um fator
gras estritamente definidas; a perseguição do criminoso pe- importante para determinar o vencedor). Por outro lado,
lo herói descrita como uma batalha de cérebros; seres hu- no romance policial clássico,o vencedor é predeterminado
manos reduzidos à "pura" inteligência analítica; racionali- pelo autor. Como uma raposa caçada, o criminoso jamais
dade parcialmente fragmentada elevada ao status de um escapa, não sendo portanto um jogo limpo e sim um jogo
absoluto princípio diretor do comportamento humano; sujo sob a capa de uma falsa legalidade. É um jogo com
conflitos individuais empregados como um substituto ge- dados viciados. A racionalidade burguesa é a racionalidade
neralizado para conflitos entre grupos e camadas sociais- do trapaceiro. Não é o "melhor homem" quem vence, e
tudo isso é ideologia burguesa par excellence, uma síntese sim o mais rico. A propriedade privada, a lei e a ordem de-
impressionante da alienação humana dentro da sociedade vem triunfar sem tomar conhecimento do preço que isso
burguesa. poderá custar em vidas e sofrimento. Para que "a sobrevi-
Isto desempenha um poderoso papel integrativo para vência do mais apto" (isto é, do mais rico) possa ser esca-
todos, menos para uma parcela extremamente crítica e so- moteada como um "jogo limpo", o detetive deve ser um
fisticada de leitores. Sugere paixões individuais, impulsos e supercérebro e o vencedor predeterminado deve demons-
ganância, e a própria ordem social - a sociedade burguesa trar ser o melhor jogador.
- tem que ser aceita como tal, não importando suas defi- Muitos autores de romances policiais começaram co-
ciências e injustiças. Sugere também que aqueles que pren- mo "escritores mecânicos", fabricando material em troca
dem os criminosos e os entregam às delegacias, aos tribu- de ínfimas quantias pagas pelas revistas de mistério. Po-
nais, às prisões ou à cadeira elétrica estão servindo aos in- rém, o impulso secreto que os impelia podia ser tudo, me-
teresses da grande maioria dos cidadãos. A natureza de nos mecânico. Na biografia sobre o criador de Sherlock
classe do Estado, da propriedade, da lei e da justiça perma- Holmes, Portrait of an artist: Conan Doyle, Julian
nece completamente obscura. A total irracionalidade alia- Symons enfatiza que o decente, ordeiro, patriótico e tipica-
da à racionalidade parcial, expressão condensada da alie- mente burguês vitoriano, Conan Doyle, inventou um herói
nação burguesa, impera absoluta. O romance policial é o com uma personalidade totalmente oposta: um homem ce-
império do final feliz - onde o criminoso é sempre apa- rebral, boêmio, um violinista viciado em drogas. Symons
nhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e no sugere que na realidade existiam dois Conan Doyles: "Por
final a legalidade, os valores, a sociedade burguesa sempre trás do rosto robusto e dos exuberantes bigodes,seocultava
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um outro homem, sensível, perplexo e constrangido". No entanto, o Inspetor Maigret é um dos cidadãos
Os primeiros trabalhos de Edgar Allan Poe eram do- mais banais entre todos os pequenos-burgueses, feliz em
minados pela sua atormentada ansiedade e por alucinações voltar para a esposa depois de um dia normal de trabalho,
que o impediam de levar uma vida normal, como também recebendo um salário condizente, um homem que nunca
de ganh~r seu sustento. De repente, obteve um emprego sonharia em visitar sequer uma prostituta, quanto mais mi-
como editor do Graham's, um jornal popular da Filadél- lhares. A vida que o autor acredita que gostaria de ter vivi-
fia. Pela primeira vez na vida se viu em melhor situação e do está em seus livros. Entretanto, não sabemos se isso se-
desesperadamente tentou manter o emprego. Teria sido es- ria realmente verdade, uma vez que, após ter conseguido
te impulso que transformou seus escritos gótico-românti- algum dinheiro (não necessariamente milhões), Simenon
cos no puro racionalismo de Os crimes da rua Morgue? Pe- passa a ter um certo livre-arbítrio. No entanto, mostrou-se
lo menos é a hipótese do historiador literário Howard Hay- bastante fraco e acabou fazendo a escolha errada, não só
craft em The life and times of the detective story, Vemos o do ponto de vista da moralidade social, como também do
paralelo com u!ll autor mais velho como Thomas De Quin- ponto de vista da felicidade pessoal. Como ele próprio ~x-
cey, cujas alucmações foram torcidas em lógica razoável e plicou ao jornal Le Monde (15 de novembro de 1981): "E a
zombaria na sua obra intitulada Do assassinato como uma vida que me mantém vivo ... já vi a miséria de perto em to-
das Belas Artes. Na biografia de Dorothy Sayers, escrita dos os cortiços do mundo. Conheço de perto os ricos e par-
por James Brabazon, descobrimos que uma mulher obvia- ticipei com eles de diversas orgias." Isso tudo seria perfei-
mente frustrada, incapaz de ter um relacionamento normal tamente dispensável na realidade? Foi o resultado de im-
com. um homem do mesmo padrão intelectual e moral , pulsos descontrolados, que ele não deixou de sentir, embo-
projeta-se em seus livros na personagem da Srta. Harriet e ra com profunda culpa, e que tentou sublimar através de
do fantasioso "companheiro ideal", Lord Peter Wimsey. seus livros.
O caso de Georges Simenon é ainda mais óbvio. Se- O escritor mais consciente dos motivos que o levam a
gundo suas próprias palavras, foi muito religioso até a ida- escrever é Graham Greene. Como enfatizou o reacionário
de de treze anos, a ponto de querer se tornar padre. Po- historiador alemão Joachim Fest tFrankfurter Allgemeine
rém, após seu primeiro contato sexual, "Percebi que toda Zeitung, 10 de abril de 1982), por trás de seus livros encon-
aquela história de culpa e pecado era bobagem. Descobri tra-se "a necessidade de fugir do tédio da vida, da monoto-
que todos aqueles pecados de que havia ouvido falar não nia sofrida como uma dor, fugindo dela através da expe-
eram pecados coisa alguma". (Entrevista ao jornal The riência do medo e do extremo perigo". Aqui encontramos
Sunday Times, 16 de maio de 1982.) Ao lermos sua como- a literatura escapista que auxilia o autor a suportar os ma-
vente autobiografia, Mémoires intimes, encontramos um les da sociedade burguesa, correspondentes à própria ne-
h?mem profundamente infeliz e atormentado pela culpa. cessidade do autor, não só através de sua vida (suas viagens
Simenon se jacta de ter ido para a cama com dez mil mu- e aventuras de espionagem), como através de suas obras.
lheres, oito mil delas prostitutas, uma vez que obviamente Na sua autobiografia, Pontos de fuga , Greene escreveu:
não conseguia estabelecer um relacionamento humano real "Às vezes me pergunto como toda essa gente que não es-
com mulher alguma. ("Quanto mais vulgar a mulher, mais creve, compõe ou pinta é capaz de escapar do absl!rdo, da
podemos considerá-Ia uma 'mulher' e o ato adquire maior tristeza e do medo pânico que caracteriza a condição hu-
sisnífícado.") Ele tem consciência de ter tornado a família mana" .
profund~mente infeliz com suas extravagâncias, bebedei- Adam Hall transforma seu herói Quiller, o espião
ras e eg.o~s~os, sentindo que de certa forma contribuiu pa- tecnocrata num trabalhador anônimo, igual aos emprega-
ra o suicidio da filha Marie-Jo. dos de urna grande empresa, instituição ou governo. É um
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quadro de total alienação. Lendo sua exposição para um
recruta em potencial, ficamos com uma pergunta: será este cial, através do assassinato de homens maus; o outro pro-
apena~ o. universo de QuilIer ou estamos vendo o reflexo cura uma solução para o problema social através da auto-
do propno desespero interno do autor? organização e auto-emancipação do oprimido.
London parte do debate elementar entre o organiza-
. Você tem que aprender a cruzar a linha e viver a dor nietzscheano da Agência de Assassinatos e seu inimigo
~Ida f?ra ~a sociedade[!J, se afastar das pessoas, se marxista (que é também o amante da filha do assassino), e
Isolar inteiramente. Aqui, os valores são diferentes. passa a retirar, através de uma sutil análise, camada por
c:. aso um ~om:m demonstre alguma amizade em rela- camada do problema. O chefe da Agência de Assassinatos
çao a voce, de-lhe as costas, duvide dele, desconfie caçoa da ineficiência dos tradicionais anarcoterroristas,
d~l~ e nove entre dez vezes você estará errado, mas é a tentando verdadeiramente construir uma "organização
décima vez que fará você escapar de uma morte imun- perfeita", e assim fazendo chega assustadoramente perto
da, num hotel vagabundo, por ter aberto a porta para de se tornar um precursor zinovievista ideológico de Stálin.
um ~home~ que. você pensou ser seu amigo. Lá fora Alguns dos seus assassinos-filósofos aderem a rígidos prin-
voce. estara sozinho, e não terá ninguém em quem cípios morais, que se recusam a infringir, mesmo ao custo
c~>nfIar, nem sequer nas pessoas que mandam em vo- das próprias vidas; mas, ao mesmo tempo, assassinam por
ce: Nem mesmo em mim. Se você cometer um erro dinheiro. O herói marxista, por outro lado, é de certa for-
f~IO n~ hora errada, no lugar errado, e parecer que es- ma um anti-herói - um individualista rico que acaba des-
ta traindo a missão ou ameaçando o Aparelho eles truindo o chefe da Agência de Assassinatos enquanto tenta
acabam com você. E eu também. ' desesperadamente salvá-lo. É um homem incapaz de dedu-
zir ou ver além dos próprios motivos, exceto o respeito ge-
, Muita água rolou sob a ponte desde os tempos da ral à santidade da vida humana, embora isso não o impeça
f?rmul~ ?~ Raymond Chandler sobre a qualidade do dete- de eliminar uma dúzia de pessoas. Porém, mais que o as-
tive sohtano perambulando pelas ruas. sassino fanaticamente íntegro, ele é o verdadeiro idealista,
l!I?berto Eco, que passou a se interessar pelo roman- completamente desinteressado por dinheiro.
ce POhCI~1 at:avés da semiótica, tentou elucidar melhor Todos os debates, aventuras e crescente "suspense"
seus motivos Interiores ao escrever seu famoso romance O deste significativo romance ocorreram contra o pano de
nome da rosa. Ele sug~re que foi motivado pelo desejo de fundo da premonição de Jack London sobre o declínio do
matar um monge, desejo que o acometeu precisamente (I) capitalismo em barbárie, o ódio contra a exploração e a in-
e!ll março ~e 1978. Na verdade, se fosse fácil psicanalisar'a justiça, o horror à guerra e sua identificação com as "pes-
s~ mesmo, ISSOacarretaria a falência de toda uma profis- soas do abismo", o que o torna, aos olhos de Trotsky, um
sao. dos maiores pensadores revolucionários deste século. Po-
Jack ~on?on é um dos casos mais fascinantes e co- rém, estas dolorosas reavaliações também refletem o tor-
moventes. As vesperas do seu trágico suicídio, em 1916, ti- mento de London que, por fim, levou-o ao suicídio. Foi
nha quase acabado de escrever um dos mais surpreenden- um homem incapaz de se decidir por um curso de ação po-
tes romances policiais de todos os tempos. Assassination lítica; não conseguiu viver de acordo com as próprias con-
Bu~e,!uLtd., e a única história policial verdadeiramente fi- vicções e sua desesperada busca pela felicidade pessoal,
Iosófica, uma luta de intelectos entre dois homens que re- que tão comoventemente projetou nos diversos heróis de
pre?en.tam correntes opostas em filosofia e em movimentos seus livros, também acabou redundando em fracasso.
radícaís. Um representa a tentativa de eliminar o mal so-
Do crime organizado
à detecção organizada
COM O ADVENTO do crime organizado em larga
escala, ocorreu, na vida real, uma mudança proporcional
na detecção e no combate ao crime. Na década de 30 cres-
ceu maciçamente, pelo mundo ocidental, o sistema de san-
ções na aplicação da lei. Um desenvolvimento semelhante
na literatura ligada ao crime foi, portanto, uma conse-
qüência inevitável. No final da década de 30 e início dos
anos 40, o detetive particular passa a entrar em declínio,
sendo eclipsado pelo agente de polícia, que possui o apoio
de uma organização de amplo raio de ação. Um novo tipo
de romance policial nasceu então: o "romance pro-
cessual"
Charlie Chan, inspetor Maigret e Ellery Queen são tí-
picas figuras de transição. Embora pertença à polícia ha-
vaiana, Charlie Chan recebe pouco ou quase nenhum
apoio dos seus superiores. Na verdade, trava sozinho uma
luta intelectual contra o assassino. Embora o inspetor Mai-
gret receba algum auxílio da sua divisão, isso ainda está
muito distante de uma organização que se apóia numa ex-
tensiva habilitação técnica. Ellery Queen coopera com o
pai, um inspetor de polícia, conseguindo desta maneira, às
vezes, requisitar alguns recursos policiais, embora ainda
seja essencialmente um analista solitário, típico do detetive
particular dos clássicos romances policiais. O verdadeiro
sintoma da ascensão da polícia no romance policial é a
substituição da análise individual pelos recursos organiza-
cionais como principais meios de apanhar o criminoso.
Os detetives de polícia conseguiam se tornar os heróis
dos romances policiais por causa da mudança ocorrida nos
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v.alores burgueses que está refletida naquele gênero literá- Estas técnicas estão dispostas em seções autônomas
no. O período pós-Primeira Guerra Mundial com a inten- do departamento policial, combinando vantagens da divi-
sificação da luta de classes, assistiu a uma mudança na ati- são do trabalho e a centralização dos resultados deste tra-
tude da classe dominante em relação ao aparelho permanen- balho. A medicina legal, mais e mais sofisticada, facilita a
te do Estado, ao qual tinha se mantido hostil durante o sé- determinação da causa e da hora da morte. Os laboratórios
~u~oXIX. Não m~is considerada um mal necessário, a po- se especializam em identificar suspeitos, através da análise
hCI~passou a ser VIsta, a?s olhos da burguesia, como a per- de manchas de sangue, partículas de poeira ou fios de ca-
s?mfIcação do bem social. Desta forma, os policiais po- belos encontrados nas vítimas ou mesmo em suas roupas.
?laII? ~e to:nar os heróis dos romances, uma vez passado o No seu romance O primeiro círculo, Soljenítsin mos-
inevitável intervalo entre causa e efeito. tra prisioneiros habilitados, trabalhando num projeto do
A transição dos policiais, de objetos de ligeiro des- NKVD de identificação de vozes humanas e codificação da
prezo para heróis, foi também auxiliada pelo fato de que informação, assim como o sistema Bertillon identifica as
nem todos os detetives da polícia são plebeus; alguns po- impressões digitais, capacitando a polícia a centralizar in-
dem ser egressos da classe alta e até da nobreza como formações sobre dezenas de milhões de indivíduos pelo
exemplificado por Roderick Alleyn, criação de' Ngaio mundo afora. O governo francês sob Giscard d'Estaing
Mars~. Esta .mudança de local de recrutamento ocorreu iniciou um plano para estabelecer tais registros computa-
tambe~ !Ia vida real, um reflexo do crescimento do apare- dorizados, de forma que qualquer habitante do país pos-
lho POhClal,da sua crescente estrutura hierárquica e da ne- suísse uma ficha centralizando informações que iam da da-
ce~sldad~ da hierarquia policial se adaptar à própria hierar- ta do seu nascimento, passando pela escola, registro do
quia social. exército, endereços sucessivos, pagamento do imposto de
Uma explicação adicional para a ascensão da polícia renda, prisões etc.
no romance policial é a necessidade de legitimá-Ia aos Além dessa massa de recursos científicos, existe a
olhos do públ!co. O detetive policial não é mais apenas o obstinada rotina, investigando centenas e até milhares; po-
defenso~_da lei e da ordem, num sentido mais vulgar, e sim liciais, prontos a dispor de infinita paciência, além de su-
o guardião da propriedade privada como instituição que portar um infinito tédio em seguir suspeitos, perseguir pis-
ameaçada pela guerra, pela crise e pela revolução, não ~ tas, localizar situações comprometedoras, sem mencionar
mais reproduzida automaticamente pelas forças do merca- os aparelhos de escuta eletrônicos legais ou pseudolegais.
do, mas deve ser preservada por um permanente aparelho Amostras embrionárias destas técnicas, é claro, po-
de repressão. dem ser encontradas nas atividades de Sherlock Holmes e
Por fim, ~s dimensões assumidas pelo crime organi- nos romances de R. Austin Freeman - mas elas são, ne-
zado tornaram rrnperatrva a criação de novos métodos de cessariamente, embrionárias, secundárias e casuais. Trata-
sanções legais, não só na realidade, como na literatu- se de ferramentas de trabalho caseiras, saídas não das divi-
ra. Não é possível um único gênio resolver simultaneamen- sões de uma moderna fábrica. Quando um detetive de polí-
te cinqüenta assassinatos, como um mestre de xadrez, jo- cia, com a força de uma organização policial inteira, su-
gando, ~o mesmo tempo, contra cinqüenta amadores. Co- planta o herói prima donna do romance policial clássico, a
mo não e possível se vencer a Máfia somente através do in- detecção do crime atinge sua maioridade como um moder-
telec~o; são ne~ess.ários a sistematização e o aumento pro- no negócio empresarial científico, assim como o crime con-
greSSIVOS de maqumas de detectar o crime, empregando-se temporâneo atinge a maioridade quando sindicatos do cri-
todas as técnicas da ciência contemporânea e da adminis- me semelhantes a grandes empresas suplantam criminosos
tração organizada. individuais e pequenas quadrilhas de rua. Toda uma varie-
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dade de inspetores policiais emerge como heróis com um non, mas no fim agem segundo a análise psicológica do
to~tur~~e espectro de idiossincrasias, gostos e i~clinações ambiente e do que sabem sobre as pessoas envolvidas no
pSlcologlcas. crime. A intuição e o sentimento, mais do que a fria inter-
O v~rd~deiro precursor é provavelmente o inspetor pretação das pistas, os levam às soluções.
French, cnaçao de Freeman Wills Crofts, que trouxe todos
Os inspetores Ghote, West e Gideon, Tibbs, da Silva,
os recursos .de detecção policial para a literatura. Junto o comandante Adam Dalgliesh e, acima de tudo, a equipe
co~ ~ supermtc:ndente Henry Wilson, de G. D. H. Cole, e da 87 ~ Delegacia e o delegado Delaney parecem mais pró-
d~ JUIZ Bencohn e do superintendente Hadley, de John ximos dos detetives verdadeiros, concentrando-se em in-
I?Icks~n Carr, Crofts antecipa, ligeiramente, a clássica sé- quéritos rotineiros, interpretação de pistas e emprego de
ne de inspetores policiais c?mo heróis que incluem, acima recursos científicos - suplementados por palpites, teorias
de tl!d~,. o inspetor Rodenck Alleyn, de Ngaio Marsh; o e às vezes preconceitos.
cormssano Wenceslav Vorobeitcheck, de Stanislaw-André
Steeman; o comissário Belot, de Claude Aveline; o inspe- Um autor muito pouco valorizado desse gênero é
tor Napoleon Bonaparte, de Arthur W. Upfield; o inspe- Janwillem van de Wetering, cujo retrato de Amsterdam é
tor-chefe Reginald We~ford, de Ruth Bendell; o inspetor muito mais realista do que o de Nicholas Freeling, e cujos
Alan Grant, de Josephine Tey; o inspetor Roger West e o detetives Grijpstra e de Gier são muito mais humanos do
co~~n?ante Gaeorge Gi~eon, de John Creasey; a equipe de que o Inspetor Van der Valk. Alguns dos seus romances
POhClaIS da 87. Del~gaCla, de Ed McBain; o inspetor Gho- (como O cadáver no dique, 1976 contêm verdadeiro
te, de H '. R. F. ~e~tmg; Virgil Tibbs, de John Ball; o capi- "suspense", uma solução inesperada e evidenciam uma
tão-d~tetIv~.brasIlelro Jo~é d~ Silva, de R. L. Fisk; o inspe- atitude geral em relação à vida, à sociedade, ao crime, aos
tor SUI~OBarlach, de Fnednch Dürrenmatt; o comissário criminosos e à lei muito mais próxima do ceticismo normal
holande~ Van der Valk e mais tarde sua esposa de Nicho- contemporâneo do que os daltônicos defensores da lei e da
Ias Freehng; ..o cO,missário de polícia de Estocol~o, de sjo- ordem.
wall e Waho, alem dos tiras do Harlem, de Chester Hi- Sjõwall e Wahõ são os autores mais criticamente in-
mes: ~d Johnson Coffin e Grave Jones. Recentemente, telectuais dos romances desse gênero; criticam a sociedade
~ esta. hsta podemos acrescentar o chefe dos detetives nova- burguesa, assim como a polícia. Em The laughing police-
iorquíno Edward Delaney, de Lawrence Sanders, e o inspe- man, o controle burguês dos meios de comunicação, em-
tor da Scotland Yard Adam Dalgliesh, de P. D. James, pregado para suprimir verdades desagradáveis, é desmas-
sendo que estes últimos, ao que parece, foram criados ba- carado de forma impressionante.
seando-se em figuras reais. Os detetives do Harlem de Chester Himes (A rage in
. Cada um desses personagens levou o romance poli- Har/em, 1957; Cotton comes to Harlem, 1968) são um caso
cial para uma determinada posição. Roderick Alleyn e à parte. Esses violentos personagens operam principalmen-
~Ian Grant são os que mais se aproximam dos heróis clás- te contra os negros, apoiando a lei dos brancos. Cumprem
SICOS '. Embora gozem do apoio fornecido pela polícia, sua seu dever por estarem convencidos de que os escroques,
maneira de o~erar não se diferencia muito de, por exem- gângsteres e assassinos negros que perseguem tornam a vi-
plo, um Charlie Chan, um Philo Vance, um Ellery Queen da ainda pior para os moradores do Harlem. E como
ou mesmo de Perry Mason e Nero Wolfe. odeiam isso tudo! Himes traça um retrato convincente do
. Van ~er ~al.k, Martin Beck, Wenceslas e Bãrlach se mundo, às vezes cômico, às vezes grotesco, do Harlem, cu-
sItu~m mais proximos de Maigret. Na verdade, são mais jo fundo trágico - a injustiça, a humilhação e o sofrimen-
apoiados por uma infra-estrutura do que o herói de Sime- to - está sempre presente. Seus livros, às vezes, parecem
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ser romances realistas, até naturalistas, mascarados em ro- rossímil- e muito mais eficaz na sua denúncia sobre o sta-
mances policiais. Podemos reconhecer este realismo básico tus quo - do que as histórias de horror que encontramos
sem esquecer o lamentável reformismo, que claramente nos romances policiais contemporâneos.
demonstra não haver uma saída fundamental para a maio- Além do mais, o estilo - especialmente o diálogo-
ria dos negros oprimidos. é brilhante, fazendo parecer insípidos os diálogos de auto-
Chester Himes, por acaso, é a prova viva da capaci- res como Hammett, Chandler, Ross Macdonald e Herning-
dade que um homem tem para compreender um ambiente way. O diálogo, realista, representa a alienação básica da
sem jamais ter vivido nele. Na realidade, nunca pôs os pés sociedade burguesa, à medida que as pessoas tentam, de-
no Harlem. Quando jovem, em Missouri, passou sete anos sesperadamente, romper a solidão se comunicando, mas
e meio na prisão por assalto a mão armada. Esta horrível nunca conseguindo, falando em sentenças sincopadas e
experiência e a traumática auto consciência do contato coti- quebradas como as mostradas abaixo.
diano com o racismo contra os negros dos Estados Unidos
vêm permeando todos os seus livros, que não se restringem - Mamãe, por favor, descobrimos uma coisa
aos romances policiais. (Ver, por exemplo, suas autobio- que ...
grafias The quality of hurt, 1972, e My life of absurdity, - Não, desculpe, ouça aqui. Você consegue ser
1976.) Steven F. Miliken escreveu um interessante livro so- levada para a delegacia como uma ladra ou sabe Deus
bre este autor. o quê, fica lá a tarde inteira praticamente presa, en-
Segundo nossa opinião, de longe o melhor romance quanto eu ficou chorando no ombro do sr. Salle, es-
pol~cial desse gênero é La nuit du grand boss (1979), dos tragando o sábado dele também ... e ele...
italianos Fruttero e Lucentini. (Esses dois autores haviam - Mamãe, quando telefonei a senhora não es-
escrito previamente uma poderosa sátira sobre a alta classe tava lá!
de Turim: La donna della domenica, 1972) Em La nuit são - Estava a caminho. Assim que Pietra me disse
abandonadas quase todas as convenções do gênero. Não que você tinha sido presa de novo, chamei um táxi e
existe um herói individual. O comissário Santamaria nada corri para ...
mais é que um coordenador de uma equipe na qual uma - Mamãe, eu não fui presa. Veja, estou aqui. E
obscura secretária feminista acidentalmente descobre uma Graziano ...
pista-chave que desmascara dois assassinos. Ao mesmo - Então o que você está fazendo aqui? Não me
tempo, é a mais contundente denúncia sobre a sociedade diga que é uma coincidência.
burguesa jamais escrita, muito mais penetrante do que - Mas é uma coincidência. Já disse ao delega-
qualquer obra de Simenon, Dürrenmatt ou Sjõwall e Wa- do que Graziano ...
h.o. Fruttero e Lucentini não usam um excêntrico bilioná- - Ah! - exclamou a sra. Guidi -, foi ele
no que corrompe as autoridades ou um empresário lunáti- quem encontrou minha filhinha desaparecida! Deve
co disp~sto a conquistar o domínio do mundo. Expõem o ter sabido e queria me fazer uma surpresa.
verdadeI~o poder do presidente de uma multinacional (no - Não, ele não sabia de nada e quando me en-
caso, a Fiat) que domina a cidade de Turim através de uma controu sentada aqui na escada ...
impenetrável rede, na qual um segmento das autoridades - Onde ele está agora? Não entendo ... que es-
da Igreja, da Democracia Cristã, da Máfia local e da equi- cada?
pe de futebol local, desempenham seus papéis. Não se trata - Ele foi lá para cima também, com Graziano.
de um chefe tentando dominar o ambiente, mas sim da sua - Esqueça este Graziano. Ele estava com você?
quase indiferença em relação a ele. O retrato é bastante ve- - Não, já estava lá em cima. Esperei um pouco
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por ele no carro e depois entrei também e fiquei senta-


da na escada ...
- Não entendo, esqueça esta história da esca-
da. Só quero que me diga por que, enquanto estou
correndo por toda Turim, como uma idiota, procu-
rando por você, você me traz esta maravilhosa surpre-
sa de ... (pp. 174-75)

Há exemplos até melhores como:

- Todos começaram a falar ao mesmo tempo.


- Extraordinário. É uma verdadeira ... (Picco)
- Absolum. fant. (P. Bono). - Depois de O elixir, o
melhor livrinho que jamais ... (o famoso D. P.). -
Melhor do que O elixir (P. Bono). - O senhor devia
ingressar nos DIGOS, professor. .. (Cuoco, Fiora). -
Não? Seria maravilhoso se o senhor estivesse com ...
(P. Bono). - Falando sério, professor, caso o senhor
resolva ... (Picco). - Talvez o senhor pudesse nos
ajudar com os topos ... (S. Maria). - Claro! Tenho
certeza de que ... (P. Bono). - Mas, professor Gaba-
rino... (Picco). - Parabéns, professor. Se nós ...
(Fiora, Guadagni, Rappa). - Não? .. (P. Bono). -
Mas professor Gabarino? O senhor já contou para ele
sobre o seu excepcional (Picco). - Que diabo tenho a
ver com isso? (Monguzzi). (pp. 247-48)

Do crime organizado
ao crime estatal
COM A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL e o pe-
ríodo entre guerras, o grande público passou a tomar co-
nhecimento de uma nova espécie de "crime", desta vez di-
rigido não contra a vida dos indivíduos e a propriedade,
mas contra o Estado. Os infratores não eram indivíduos
agindo em beneficio próprio, mas "agentes" de outros go-
vernos ou países. Este interesse crescente pelo crime estatal
- a espionagem acima de tudo - gerou um ramo do ro-
mance policial: o romance de espionagem. Mais uma vez, a
história do crime é a chave para a história dos romances
policiais.
É claro que a espionagem antecede a Primeira Guer-
ra Mundial e os ascendentes literários do romance de es-
pionagem têm seus primórdios no século XIX. Entretanto,
este gênero literário, relativamente jovem, atingiu sua
maioridade com bastante rapidez após 1944, cruzando a
fronteira entre a literatura "vulgar" e "trivial" de um la-
do, e a "verdadeira" literatura do outro. Um dos motivos
é que muitos representantes famosos da intelectualidade
foram recrutados pelos serviços secretos inglês e americano
durante as duas guerras mundiais. Somerset Maugham é
um exemplo, assim como mais tarde Graham Greene, en-
tre outros.
Julian Symons localiza a origem do romance de es-
pionagem no livro The spy (1821), de James Fenimore
Cooper, no qual significativamente o espião, e não seu
oponente, é o verdadeiro herói. (O paralelo com o "bom
bandido" é óbvio.) Symons cita em seguida William Le
Queux, também ex-agente secreto, autor de England's pe-
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ril (1899) e The Invasion of 1910 (1910); Erskine Childers sia juvenil no estilo James Bond de superespião e~ suas
(The riddle of the sands, 1903); Joseph Conrad (O agente peripécias fisicas, sexuais e tecnológicas, como tambem .ha-
secreto, 1907), escritor cujas qualidades literárias o situam via nos heróis clássicos: Sherlock Holmes, Rouletabille,
numa categoria diversa; John Buchan (39 degraus, 1915) e Arsêne Lupin. Entretanto, os heróis de Somerset Maug-
"Sapper" (Bulldog Drummond, 1920). ham, Graham Greene e Eric Ambler não possue~, de for-
O romance de espionagem atinge sua maioridade ma alguma, estas características. Os sup~r-herOls devem
com as histórias de Ashenden de Somerset Maugham galgar um nível mais alto c~m o desenvolvlment? geral da
(1928) e os romances de Eric Ambler anteriores à guerra (A sociedade burguesa: mecanização crescente, maior d~sen-
máscara de Dimitrios, 1938). Porém, foi especialmente volvimento tecnológico, inclusive das forças p~odutIvas,
após a Segunda Guerra Mundial que o gênero frutificou maior diversificação da produção de bens, nascimento da
com autores como: John Le Carré (O espião que veio do sociedade de consumo, maior alienação do indivíd~o e as
frio, 1963), Len Deighton (The Ipcress File, 1963), os ro- novas e imprevistas dimensões desta alienação. Obviamen-
mances mais pobremente construídos dos escritores fran- te um superespião não poderá vencer, armado apenas com
ceses Jean Bruce (OSS 117N'est Pas Mort, 1953) e Domi- u~ supercérebro analítico, o que aliá,s ~ão se espera dele
nique (Le Gorille Vous Salue Bien, 1955), e o alemão Jo- durante a Terceira Revolução Tecnológica. . . .
hannes Mario Simmel, cujas estórias estão permeadas de . No romance de espionag~m, ao contr~~o.do pol~cIaI,
bastante humor (Nem só de caviar vive o homem, 1960). o vilão é facilmente reconhecido bem no irncio do hvro,
Graham Greene, um caso à parte, será estudado mais tar- embora ocasionalmente esta identificação seja um dos ele-
de. mentos da trama: é um a~ent~ ~~ principal inimigo do Es-
Uma história detalhada do romance policial poderia tado. O problema não é ídentificá-lo e SIm des~a~~tar ~uas
perfeitamente começar com uma crônica sobre as vicissitu- maquinações. Mesmo assim, ? elemento. ~e místeno ainda
des da política externa norte-americana, através dos anos persiste para o leitor. Os ahad,os, aUXlI~a~es, formas de
da guerra fria e da détente, com as conseqüentes mudanças operação, as táticas em geral, ate os proPOSltO~ ~o ~ntag.?-
das identidades dos principais vilões: dos russos, aos chine- nista permanecem ocultos. A con~~iraçã<: do mimigo nao
ses, aos cubanos, aos terroristas, aos xeques árabes do pe- pode ser derrotada se estes propósitos nao for~m revela~
tróleo, aos anônimos bilionários loucos com seus exércitos dos demonstrando então que o romance de espionagem e
particulares, situados em pequenas ilhas (como Gabriel em mais semelhante ao romance policial do que possa parecer
um dos romances de Modesty Blaise), voltando para os à primeira vista. _ ,
russos, que atualmente financiam, na maior parte das ve- Entretanto , o crime estatal nao esta de
. forma alguma
zes, os terroristas internacionais. A trama do romance po- limitado à espionagem. Assim como a espionagem se espa-
licial é geralmente baseada numa conspiração do lha sobre uma intriga política mais geral, tamb~m o ro-
"inimigo" , que é impedida - sempre no último minuto - mance de espionagem, pura e simplesmente, ennqu~~e o
pela bem-sucedida contramanobra dos "nossos aliados" policial político. Tramas para resgatar ~u sal~ar POh~lC?S
contra o inimigo em seu próprio campo de batalha. Embo- opositores, vítimas de ~itaduras (n?s pal~es ditos S?Cla~lS-
ra as probabilidades estejam totalmente contra ele, o he- tas, assim como nas ditaduras ocidentais), co~splraço~s
rói-espião triunfa no final, através de uma combinação de para organizar golpes militares em países da Amenca Lati-
maior aptidão física, aparato tecnológico superior, melhor na, África e também na Grécia foram assunto para ro~an-
organização e inteligência mais arguta. ces de espionagem. Eric Ambler, Gra~am Gre:ne, Victor
O paralelo com o supercérebro do romance policial Canning e Morris West fizeram tentativas no .genero. (Na
clássico é óbvio. Existe, é claro, uma dose maciça de fanta- minha opinião, os romances de West Arlequim e A sala-
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mandra podem ser considerados como "verdadeira" lite- gem da cruel rivalidade entre fabricantes de bens indivi-
ratura, como, é claro, Mutmassungen über Jakob, de Uwe duais e gigantescas empresas}
Johnson, sobre um assassinato político na Alemanha Deve ser observado também que mais uma vez a
Oriental, e The day of lhe dolphin, de Robert Merle.) transformação do conteúdo traz uma modificação na for-
ma que, mais tarde, se adapta a ele. Assim que escritores
Na vida real, a intriga política e a espionagem se mes-
como Graham Greene e John Le Carré criaram o romance
clam de forma tão intrincada a ponto de obscurecer ou eli-
de espionagem sério, surgiu em cena o nouveau roman,
minar completamente o limite entre a "verdadeira" políti-
abrindo um novo capítulo na história do romance. Entre
ca e a atividade criminosa. O caso mais flagrante de intro-
os principais participantes deste novo gênero encontram-se
missão maciça de criminosos nos negócios do Estado (prá-
extraordinários romancistas como o russo VIadimir Nabo-
tica inaugurada pelos nazistas) foi o emprego da Máfia pe-
kov, o argentino Borges e o francês Alain Robbe-Grillet.
las autoridades militares americanas durante a Segunda
Guerra Mundial. Todos os três escreveram romances policiais magníficos,
diga-se de passagem, como Despair (Nabokov), O jardim
Talvez a manifestação mais radicalizada da ambigüi- de caminhos que se bifurcam (Borges) e La maison du
dade moral, totalmente perversa, do romance sobre espio- rendez-vous (Robbe-Grillet).
nagem possa ser encontrada no romance mais bem-sucedi- O que é surpreendente sobre essas obras é que elas
do dos últimos anos: Parque Gorky de Cruz Smith (1981). transcendem, ou até invertem, a "leitura" clássica das pis-
Com a ação passada em Moscou, oferece um retrato vi- tas. Tradicionalmente, esta leitura é unívoca: só uma so-
brante e convincente sobre os motivos, a ideologia, o estilo lução é possível para o mistério. Nos romances de Nabo-
de vida e a disseminada corrupção das camadas médias da kov, Borges e Robbe-Grillet, ao contrário, existem .di;e.r-
burocracia soviética. sas leituras plausíveis para as pistas e a solução do místerio
permanece variada e ambígua. Na verdade, a "solução"
Entretanto, o herói, na verdade a única pessoa ho- não existe. Isso levou alguns críticos literários a argumen-
nesta do livro, é o detetive-chefe da milícia de Moscou (em tar que o nouveau roman veio preencher o potencial implí-
o.utras palavras, a polícia municipal russa). Os principais cito jamais realizado pelo romance policial. O nouveau ro-
vilões são um comerciante nova-iorquino, um assassino man é o "romance policial" que por fim se tornou sério. A
que tenta abalar o monopólio russo de uma década no ambigüidade moral do romance de espionagem abre espa-
m~rcado ~~ndial de peles de zabelina e um promotor pú- ço para o cinismo; entretanto, existem diversas formas de
blico sovieuco que passa a conspirar com os americanos cinismo.
por cobiça. O americano é um informante tanto da KGB Temos os cínicos mistificadores como Ian Fleming
quanto do FBI, instituições que colaboram entre si espora- (sem citar William Buckley ou Gordon Liddy), que.quer~m
dicamente. A KGB é apresentada como universalmente te- nos fazer crer, em última análise, que o mundo ainda e a
~ida e. odiada na União Soviética, embora sua liderança arena de uma luta entre o Bem e o Mal. Quando confron-
aja no Interesse do Estado. O FBI, por outro lado, parece tado com os "anônimos chapéus de pele" do Kremlin ou
primordialmente motivado por interesses provincianos, as impiedosas organizações como a Spectre, o Bem é, às
corporativos, como um instrumento para acobertar crimi-
nosos, semelhante à KGB, embora por motivos diversos. O 1. Dois emigrantes soviéticos, Edward Topol e Frederikh Nez-
que aconteceu com o direito inalienável à vida, à liberdade nausky, escreveram um livro na mesma linha chamado Red Square,
(Londres, 1983), cheio de informações sobre o sistema soviético. Nez-
~ à busca da felicidade? Tudo extinto, infelizmente, pela nausky tinha sido um advogado criminalista na União Soviética durante
Implacável competição entre países, representada pela ima- vinte e cinco anos.
104
105

vezes, inevitavelmente compelido a recorrer aos meios do detetives clássicos têm em comum é a tripla busca de iden-
Mal.
tidade: quem cometeu o crime; sob que falsa identidade o
Também temos aqueles cínicos, mais do que cínicos, vilão está escondido; o que é o assassino - ou espião, ou
que tratam os espiões e os contra-espiões no mesmo pé de milionário louco, ou conspirador - como "pessoa" (não
igualdade. Estes autores existem em número sempre cres- como ser humano, uma vez que a psicologia do romance
cente: Trevanian, Cruz Smith e tantos outros. policial é geralmente unidimensional demais para permitir
Por fim, os cínicos lúcidos que sabem que a socieda- a emergência de seres humanos complexos e contraditó-
de burguesa e a produção de bens são responsáveis pelo rios).
status quo, mas que acreditam que nada possa ser feito pa- Atrás desta busca de identidade está uma das carac-
ra remediar a situação. Um exemplo é a opinião sobre o di- terísticas básicas da sociedade burguesa. O indivíduo nesta
nheiro como origem de todos os males: "O dinheiro é im- sociedade está dividido. Como extrator de mais-valia na
portante na ficção porque está na fonte da mais importan- fábrica, como vendedor e comprador no mercado, como
te ficção das nossas vidas", escreveu David S. Gross em competidor capitalista, o homem burguês ou da classe mé-
Money ta/ks. Resenhando o livro no New York Times dia alta precisa ser cruel, imoral, cheio de malícia e traição,
(13.06.1981), Anatole Broyard habilmente comenta sobre comportando-se como um "criminoso", mesmo enquanto
estas "ficções", segundo os autores de sucesso: "É agra- respeita "as regras do jogo"? Porém, como cidadãos, os
dável pensar que a maioria dos escritores contemporâneos indivíduos precisam respeitar a igualdade: cada pessoa um
discutidos em Money ta/ks receberam uma substancial voto, justiça igual para todos. Como donos da proprieda-
quantia em dinheiro por suas "ficções". Costumava-se de particular, devem assegurar que seus filhos herdarão seu
pensar que os escritores escreviam sobre dinheiro porque capital: daí, portanto, a santidade do matrimônio. Entre-
não o possuíam; entretanto, hoje, falam sobre ele com a tanto, como homens ou mulheres, donos de impulsos natu-
eloqüência de quem discute sobre um amigo pessoal". rais dos quais o desejo sexual é o mais importante, devem
Mais pertinentes ainda são as palavras de William procurar satisfação fora da família. A vida é baseada em
Goldman, que, através de um médico louco controlado pe- padrões duplos e a consciência fica dividida desde o princí-
la CIA, proclama o seguinte credo liberal-democrata: pio. Daí o drama individual baseado na contradição entre
as normas sociais e as necessidades pessoais. Em condições
E não me diga que ela era uma das boas criatu- normais, esta contradição é restrita e reprimida, especial-
ras de Deus, generosa e amiga dos pequenos animais mente quando as necessidades pessoais são frustradas. Os
- porque o humanismo foi sempre um conceito dú- romances policiais e de espionagem liberam estas inibições,
bio, que felizmente, dia a dia, está perecendo. E não
me diga que ela era uma pintora, porque até poucos 2. "A violência não é o fim principal do crime organizado, mas
séculos atrás os artistas eram tratados com um pouco um meio para se atingir a maximização do lucro." "O crime organizado
mais de consideração do que os leprosos, um enfoque é uma instituição social. Se é bom, mau, ou ambos, é uma questão de
julgamento moral. Porém, ética à parte, está na mesma categoria gené-
que não acho de forma alguma errôneo. O que im- rica que a religião, a política, os negócios, os sindicatos, os militares e a
porta hoje em dia, tudo que importa, aliás, é sobrevi- educação. Realiza-se da mesma forma que estas outras instituições co-
ver. E sobreviver significa armamento. Armamento mo a expressão natural de um grupo de pessoas engajadas no mesmo
em maior número. Ponto final. (Contrai, 1982, p. propósito." O autor desta interessante observação é Gus Tyler, impor-
262.) tante sindicalista americano. As citações foram tiradas de Francis A. J.
lanni e Elizabeth Reuss-Ianni, The crime society: Organized crime and
corruption in America, New American Library, Nova York, 1976, pp.
O que os romances de espionagem e os romances de 273 e 119.
106

frustrações e repressões e permitem que a contradição flo-


resça. Atrás da pergunta "Quem matou quem?" espreita,
semi-escondida, a pergunta básica da sociedade de classes:
"Quem é você na realidade? Você é bom ou mau? Moral
ou imoral? Criatura de Deus ou do Diabo?" O problema é
que nunca "sabemos" o que somos, e que a massa da hu-
manidade age conscientemente nesta sociedade, mas sem
consciência (ou autoconsciência). Na literatura séria, isso
se reflete e é refletido; mulheres e homens são tão bons
quanto maus; no romance policial e de espionagem, en-
quanto isso está também crescentemente implícito, a técni-
ca da própria história implica um maniqueísmo básico do
Bem e do Mal, não obstante todas as intenções em contrá-
rio.

Produção em massa
e consumo em massa
A VERDADEIRA MASSIFICAÇÃO do romance
policial ocorreu com a revolução do livro de capa mole
(brochura), iniciada com as coleções de baixo preço de
Penguin Books e, nos Estados Unidos, com o aparecimen-
to dos livros de bolso de Simon & Schuster (adaptando a
editoração a uma técnica própria de mercadologia em mas-
sa) e pela necessidade, durante a Segunda Guerra Mundial,
de publicar grandes quantidades de livros de baixo custo
para as forças armadas norte-americanas. Na Alemanha,
França e Inglaterra, o costume de produzir livros sérios em
edições baratas, geralmente brochuras, visando a um mer-
cado maior, já existia antes da Primeira Guerra Mundial, e
fez parte da expansão geral da editoração neste século. Po-
rém, dadas as dimensões do mercado e do aparato militar
norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial, foi a
produção em massa de brochuras e de livros de bolso para
esta clientela que alterou qualitativamente o campo, não só
da editoração como dos leitores. Praticamente da noite pa-
ra o dia, milhares de leitores se tornaram milhões, sendo
que, durante os últimos vinte anos, o movimento anual to-
tal de brochuras, em língua inglesa, excedeu regularmente
a 1 bilhão de exemplares. E embora a produção de livros
baratos não se limitasse unicamente à chamada literatura
"popular" - romances sérios, clássicos e até trabalhos
científicos e outras obras de não-ficção, desde seu início,
tiveram grande tiragem -, não resta dúvida de que os ro-
mances policiais foram responsáveis por uma proporção
bastante substancial desta crescente produção.
110
111

Embora seja impossível apresentar um número exa- tência desse valor de uso. Entretanto, exatamente, o que
to, entre um quarto e um terço do total da produção de quer dizer isso?
brochuras provavelmente poderia ser colocado na catego- Quando falamos de necessidade psicológica, precisa-
na de .um tipo ou outro de romances policiais. Não é exa- mos tomar cuidado em definir o termo mais precisamente
gero dizer que, desde 1945, pelo menos 10 bilhões de exem- se quisermos evitar hipóteses não-históricas e portanto er-
plares de romances policiais foram vendidos em todo o rôneas, uma vez que não é raro encontrarem-se referências
mundo, oc~pa~do a ~ín~u~ inglesa o primeiro lugar, segui- simplistas a algum impulso agressivo inconsciente, uma ins-
da, a considerável distância, pelo francês, espanhol, ale- tintiva sede de sangue ou desejo de morte que é encarado
m~o e Japonês: as vendas anuais francesas atigiram 30 mi- como suporte da popularidade do romance policial. Ago-
lhoes; as alemãs são calculadas em 20-25 milhões; as japo- ra parece dispensável explicar que tais impulsos inconscien-
nesas p~ssaram de 14 milhões no meio da década de 60 pa- tes, desejos, paixões inconfessáveis e apetites reprimidos,
ra 20 milhões nos meados da década de 70. Os autores mais legado dos nossos antepassados ferozes, tornam possíveis a
vendidos até hoje foram Agatha Christie, com uma média popularidade e o consumo em massa dos romances poli-
anual ~e 500 milhões de exemplares; Edgar Wallace, com ciais. Porém, o que é possível não é, de forma alguma, .
300 ~Ilhões; Georges Simenon, com 300 milhões; a série sempre factível. A dificuldade de se explicar o crescimento
alema de Je!ry_ Cotto~, c?m 300 milhões; Mickey Spillane, dos romances policiais produzidos em massa em termos de
C?I? 150 milhões; Alistair MacLean, com 150 milhões; a paixões humanas e impulsos é igual a todas as tentativas de
sene ~e James Bond, de Ian Fleming, com 100 milhões; justificar, através da psicologia individual, fenômenos que
F~ednc Forsyth, com 100 milhões; e San Antonio, com 100 são basicamente históricos: não é convincente explicar mu-
milhões. danças através de fatores permanentemente ativos; em ou-
A revolução do livro de capa mole veio como uma tras palavras, explicar mudanças através da ausência de
bênção para o romance policial no momento exato em que mudança, movimento através de estabilidade, descontinui-
o gen~ro estava encontrando um mercado estagnado, para dade através de contínuas forças operativas.
não dizer decadente. A maior parte dos autores de roman- Além do mais, os impulsos agressivos, a sede de san-
ces polícíaís vende,u apenas algu~s milhares de exemplares, gue e o desejo de morte certamente já existiam há dois mil
no ma,xI~o, na decada de 30, lidos por aqueles aficiona- e quinhentos anos ou mesmo há quinhentos anos. Na
dos, SOCIOSdos clubes de livros. (Philip van Doren Stern maioria das áreas geográfico-culturais, inúmeras destas
~m Howard Haycraft, op. cit., p. 531.) Só a revolução do manifestações podem ser encontradas na vida social - na
livro de capa mole criou um mercado que se estendeu a mi- guerra ou em outras-formas de violência, na religião e nos
lhões de novos leitores. cultos, na criação artística e literária -, embora não te-
·A pergunta é por quê? O que explica a extraordinária nham sido expressas na produção e no consumo em massa
atra~ã? pelo romance policial? Que necessidade psicológi- do romance policial. Portanto, explicar a maciça explosão
ca. básica, em dezenas de milhões de pessoas, era e é satis- deste gênero literário específico, principal ou unicamente,
feita pelo romance policial? Por que esta necessidade se por meio de fatores como psicologia individual é realmente
t<?rr~o~especialmente premente num determinado período não dizer coisa alguma sobre o que é específico no roman-
histórico - aproximadamente desde a década de 30 até a ce policial. Obviamente, estes fatores da psicologia indivi-
de ?O - e não cinqüenta anos antes ou então trinta anos dual devem ser integrados ou subordinados aos fenômenos
mais tarde? Sabemos que um produto não possui valor de mais gerais da evolução social. A verdadeira pergunta en-
merc~do se não possui valor de uso. O enorme sucesso co- tão se torna clara: que ambiente social, quais pressões so-
mercial do romance policial é uma grande prova da exis- ciais fazem homens e mulheres (consciente ou inconscien-
112 113

temente, em proporções ainda a serem determinadas) satis- assimilada civilização. É uma civilização imposta pela mão
fazerem certo impulsos - incluindo, se quiserem, os im- oculta das leis do mercado, pelas regras férreas da discipli-
pulsos agressivos, a sede de sangue e o desejo de morte - na fabril e pelo despotismo da família nu~lear, das esco}as
comprando e lendo romances policiais? autoritárias e da educação sexual repressiva (ou d~ ~us~n-
Comecemos apontando o óbvio, embora isso não te- cia dela), todos tendendo a impor, de cima, uma disciplina
nha sido visto por diversos críticos que estudaram o tirânica sobre os indivíduos. .
sucesso do romance policial. Ler sobre a violência é uma É uma civilização imposta por leis que são respeita-
forma (inocente) de testemunhar e gozar a violência - das, não por convicção, mas por m~~o do castigo. ,E uma
mesmo que seja, talvez, sob uma forma sobressaltada, en- civilização nascida de - e que se dirige para - mumeras
vergonhada e culposa. Implica a maturação simultânea de frustrações. A produção sempre renovada de bens, pa~a os
dois fenômenos: por um lado, a alfabetização em massa quais sempre novos apetites devem ser despertados, e um
com a expansão da escolaridade universal crescendo até a dos mecanismos que torna possível a sempre. cresce~te :e-
idade de 14 ou 15 anos; por outro, o abandono da verda- produção do capital. E é uma civilização I!asAcld~da violên-
deira prática da violência em favor da violência experimen- cia e que leva a uma sempre crescente violência nas mar-
tada vicariamente (no Oeste americano, até onde se pode gens da "vida civilizada": violência .co~tr~ os povos colo-
acreditar nisso, os cowboys não precisavam ler sobre tiro- niais, violência contra os pobres, violência contra os es-
teios: eles próprios os praticavam). trangeiros, contra os inconformados, cont~a as mulheres, e
Neste sentido, o consumo em massa dos romances ocasionalmente contra o próprio proletanado quando e~
policiais é um fenômeno da civilização em crescimento. É revolta. Seria estranho, nestas circunstâncias, que a subli-
melhor ler sobre crimes do que praticá-los. Além do mais, mação dos impulsos violentos assumisse a forma frustrada
o arcabouço cultural, dentro do qual esta forma específica de se voltar novamente para a violência vicária?
de sublimação se torna possível de imediato, nos permite Para compreender a expansão em massa do romance
localizar, com algum grau de precisão, o momento em que policial, que teve seu início nas décadas d~ 30 e 40, ?eve-
o romance policial se tornou massificado. Dada a dinâmica mos relacioná-Ia também a um outro fenomeno social: ~
histórica da alfabetização em massa - e as necessidades transformação da "velha" em "nova" classe média. A
econômicas de induzi-Ia -, isto não poderia ter acontecido medida que o número de fazendeiros independentes, arte-
muito mais cedo do que realmente ocorreu. Mesmo um fe- sãos e comerciantes declinava, o número de trabalhadores
nômeno tão simples quanto a linguagem referencial (o vo- técnicos, funcionários de escritório e empregados nas ~ha-
cabulário), comumente compreendida por milhões, é de madas indústrias de serviço crescia; o trabalho assalanado
origem bastante recente: durante a maior parte do século apareceu em escala maciça na~ profissões acima relaciona-
XIX as classes "baixas" e "altas" possuíam vocabulários das. Estas transformações SOCIaISimplicavam uma enorme
bastante diversificados. expansão na organização capitalista do trabalho, ao qual
Entretanto, se o consumo em massa dos romances milhões de pessoas passaram a se submeter. Era ent~e essas
policiais é prova de um certo grau de civilização (admita- pessoas (e apenas incidentalmente na~ camadas mais altas
mos, até de progresso), ele também expressa a natureza par- do proletariado industrial) que se podia encontrar o merc~-
cial, contraditória e negativa desta civilização. Afinal de do em massa para os romances policiais. Segund.o ~o~n
contas, existem formas mais altas, nobres e humanas de su- Watson (Crime writers), os leitores de Agatha C~ns~Ie sao
blimar os impulsos agressivos do que ler sobre assassina- cidadãos respeitáveis dos subúrbios, em s~a. maIOrIa. mu-
tos. A civilização burguesa é simultaneamente civilização e lheres: as bibliotecas particulares de empres~lI1~0 de hv.ros
rebelião contra a civilização; civilização e não-( ou meio-) eram fortalezas de devotadas leitoras de Christie. Os leito-
114 115

r~s de Alistair MacLean, segundo John Sutherland (Fie- lendo, nossa atenção se mantém presa em tal grau que es-
tion and the fiction industry, p. 97), são especialmente ho- quecemos tudo o mais - e Deus sabe o quanto queremos
mens ?a .baixa e média classe média ou um pouco acima, esquecer! Mesmo assim, como enfatiza Leo Kofler, é um
de meia-Idade ou um pouco mais. Segundo uma enquete ópio especial: enquanto a religião se propõe a oferecer uma
organizada por Dilys Winn (Murder ink, p. 440) - a não auto-realização humana, numa forma fantástica, as drogas
ser que seja uma mistificação -, os leitores dos romances tentam realizar a liberdade humana de uma forma pura-
policiais
. , . se encontram
. na faixa etária de 25 a 35 anos , uni- mente destrutiva (Soziologie des Ideologischen, p. 118).
versitarios e mais freqüentemente (em ordem decrescente) Devemos acrescentar que os romances policiais tentam rea-
advogados, redatores, professores, bibliotecários e mulhe- lizar a distração de uma forma puramente passiva, sem
res que trabalham em casa - pelo menos nos Estados Uni- qualquer esforço ou sacrificio, por parte do indivíduo da
dos. A necessidade deste tipo de leitura proporcionada pe- classe média. Não SÓ prendem ("suspendem") a atenção,
lo romance policial pode, portanto, remontar até a especí- como também excitam os nervos de uma forma especial e
ficos requisitos psicológicos coletivos destas camadas so- deliciosamente maliciosa.
ciais, sob o impacto da sua proletarização objetiva. Podemos agora estender a um público muito maior o
O declínioda agricultura e o enorme êxodo rural o que Marx disse sobre o criminoso, no sentido de que este
mo~str~o~o crescimento das conurbações metropolita~as quebra a monotonia e a segurança do cotidiano da vida
(mais rápido em meados do século XX do que no século burguesa. A crescente proletarização do trabalho intelec-
XIX), o aumento da distância entre a casa e o trabalho a tual e "de serviços" e o crescimento das "novas" classes
crescente poluição da atmosfera pela poeira e pelo baru- médias não significam apenas um aumento de tensão ner-
lho, a intensificação da tensão nervosa provocada pela li- vosa para milhões de pessoas. Significam, também, au-
nha de montagem: todos estes fenômenos criaram uma po- mento de monotonia, uniformidade e padronização de tra-
derosa necessidade de distração. Esta necessidade é satis- balho e de vida. Porém isto, por sua vez, produz uma ne-
feita por cigarros e álcool, filmes e, também, entre as ca- cessidade de, pelo menos, alguma fuga temporária. Para
madas alfabetizadas da população, pelo romance policial uma população alfabetizada, o romance policial torna-se
- como, numa etapa posterior, será gradualmente satis- um meio ideal para fugir da monotonia da vida cotidiana,
feita pela televisão, que terá uma função e um conteúdo através das aventuras experimentadas de maneira vicária.
análogos. A almejada segurança de uma existência protegida, o ideal
O romance policial torna-se o ópio das "novas" clas- material das classes médias, é contrabalançado por uma in-
ses médias no verdadeiro senso da fórmula original de segurança vicária. Os leitores realizam através da fantasia
Marx: como uma droga psicológica que nos distrai da into- o que secretamente desejam fazer, mas que nunca farão na
lerável monotonia da vida cotidiana} Enquanto estamos vida real: isto é, virar a mesa.
Uma explicação interessante e paralela foi sugerida
I. É bastante, c~lTiosonotar, que os pequenos funcionários que por um famoso psicanalista nova-iorquino, dr. Edrnund
exercem cargos de vigilantes estatais, p. ex., o Serviço Secreto inglês em Bergler:
Cheltenham, parecem sentir estas frustrações de uma forma particular-
mente aguda, ~ada a ambigüidade de suas funções. O jornal Sunday Ti- O que estes fatos provam, na verdade, é o enor-
mes (15 ,de abril de 1984) noticiou que George Franks, técnico de rádio me volume de passividade interna nas pessoas. Uma
do Serviço, fora encontrado morto em sua casa em Sussex sendo o
q,uarto hom~m em dois anos a morrer repentinamente. Estas ~ortes sus- vez que, vendo ou lendo um policial, esta passividade
~Itam uma Importante pergunta: estariam os escutadores clandestinos interna pode ser usufruída com dois álibis que salvam
ingleses trabalhando sob demasiada tensão? as aparências ("Eu sou agressivo" e "Tudo isso não
116
117

passa de um jogo' '), a atração torna-se irresistível pa- nente. O que essa pessoa fez então? Por trás dos
ra uns, especialmente por estar aliada ao megalômano acontecimentos que nos são narrados, suspeitamos de
pra~er. i~fantil, ress~scitado através do aparecimento outras ocorrências sobre as quais não fomos informa-
d~ msohto. Estes milhões de fãs do romance policial dos. Estas são as verdadeiras ocorrências. Somente se
nao representam o receptáculo dos "assassinos em soubéssemos, poderíamos entendê-Ias. Somente a
potencial", mas são, em termos criminais, inofensi- História pode nos informar sobre essas ocorrências
vos. Estas pessoas conseguem, de modo vicário, liber- verdadeiras - pelo menos até o ponto em que os ato-
tar-se temporariamente das suas tensões. res não conseguiram mantê-Ias em total segredo. A
História é escrita após as catástrofes. Esta situação
Finalmente, não há nada de espantoso no fato de as básica, na qual os intelectuais se sentem como objetos
I?e~s?as alfabetizadac serem obcecadas pelos romances po- e não sujeitos da História, molda o pensamento que
liciais. Afinal, como já observou certa vez Ernst B10ch to- eles podem formular ao apreciar o romance policial.
da a sociedade burguesa não age, de certa forma comd um A existência depende de fatores desconhecidos. "Al-
grande policial? Um homem pode trabalhar con~cienciosa- guma coisa deve ter acontecido", "alguma coisa está
mente na sua pequena loja, mas de repente os negócios co- sendo tramada", "surgiu uma situação" - é o que
meçam a dar errado, por razões misteriosas (os preços co- eles sentem e a mente fica alerta, porém o esclareci-
meçam a cair, as taxas de juros sobem, as vendas dimi- mento só vem, se vier, após a catástrofe. A morte
nuem)! embora ele não tenha culpa alguma. Um outro se ocorreu. O que estava sendo tramado antes? O que
escraviza no trabalho, obedecendo a todas as regras impos- aconteceu? Por que surgiu uma situação? Tudo isso
tas pelas máquinas e pelos contramestres, esforçando-se talvez possa ser agora deduzido.
a? máximo nest~ luta desigual, com o perigo de, ainda por
cima, ser despedido. E, o que é pior, qualquer um pode ser O romance policial é uma resposta às necessidades da
apanhado de surpresa por uma recessão, uma enorme de- intelectualidade alienada e dos trabalhadores na indústria e
pre~são ou até por uma guerra. Quem é responsável por tu- nos serviços, parcialmente consciente da sua alienação,
do ISSO?Você é que não, nem seus vizinhos ou conhecidos mas ainda não a ponto de compreender que uma explica-
Alguns misteriosos conspiradores, atrás das cortinas de~ ção científica dos mistérios da produção de bens e da socie-
vem ter alguma coisa a ver com isso. Se por acaso ao me- dade burguesa é possível, e que a emancipação coletiva é
~o.s alguns mistérios fossem esclarecido~, o home~ se sen- preferível ao escapismo individual. O romance policial é
tiria menos alienado. semi-emancipatório, semicivilizado e semi-sublimado. É
Bertolt Brecht enfatizou esta mesma idéia: burguês par excellence, um remédio burguês para os doen-
tes da classe média atacados pelos males da sociedade bur-
Obtemos nosso conhecimento sobre a vida de guesa.
uma forma cat~strófica .. É através da catástrofe que Além do mais, é tão coisificado quanto é burguês,
temos ~e deduz~r a maneira pela qual funciona nossa uma vez que as "causas sociais" dos problemas humanos
c?~umdade SOCIal.Por meio da reflexão, devemos de- são apresentadas bastante literalmente como "coisas".
c~dlr sobre "a verdadeira história" das crises, depres- Por exemplo, em The green ripper (1979), um dos roman-
s~es, revol~ções. e guerras. Sentimos até mesmo pela ces de uma longa série de livros reacionários de John D.
leitura dos jornais (como também pelas contas cartas MacDonald, Meyer, o representante dos intelectuais, se-
de demiss~o, avisos de recrutamento etc.) que ~lguém gundo o autor, explica a crescente ameaça da barbárie da
deve ter feito algo para a formação da catástrofe imi- seguinte maneira:
118

o mundo real está passando por um lento e ter-


rível processo de mudança. Existe, dentro dele, uma
agonia final de milhões, enquanto um milhão e um
quarto de novas almas chegam a cada semana. Tenta-
mos pensar sobre isso menos do que costumávamos
fazê-Io. Na verdade, nada disso faz o menor sentido.
Porém, seja lá o que existir em seu âmago, isso se mo-
ve neste mundo sob a forma de uma pequena esfera
de platina e iridio e veneno mortal. Agora temos que
pensar sobre isso, mas não podemos fazê-Ia de uma
forma personalizada. Tudo é uma coisa, um grande
lagarto blindado, de hálito podre, agachado no fundo
da caverna com infinita paciência. (pp. 112-3 - os
grifos são meus.)

Dois romances policiais recentes ilustram a obsessão


de autores, leitores e todo o clima intelectual com conspi-
rações como um substituto para qualquer tentativa cientí-
fica de explicar os mistérios - em outras palavras, as leis
do movimento - da sociedade. Em The Parsifal mosaic
(1982), Robert Ludlum tece um enredo inverossímil sobre
a infiltração recíproca entre os governos americano e sovié-
tico, ao ponto de, no final do livro, ninguém saber quem
está manipulando quem. A milhares de quilômetros de dis-
tância, o emigrante russo Vladimir Volkhov publicou uma
história semelhante, em francês, intitulada Le montage.
Sua obsessão com a infiltração é de tal monta que uma
grande parte da comunidade de russos dissidentes, no exí-
lio, é apresentada como sendo, ela própria, manipulada
pela KGB! Somente uma sociedade profundamente doente
pode ver o mundo como sendo dominado pela manipula-
ção, com quase ninguém capaz de determinar ou controlar
suas próprias convicções, para não dizer atos, e todos se
tornando títeres de "agências" misteriosas. Entretanto, na
realidade, não é assim que a humanidade alienada vê seu
destino social dentro da sociedade burguesa?

Diversificação externa
A PRODUÇÃO EM MASSA necessita de um merca-
do de massa, podendo criar um mercado de massa para
produtos até então não disponíveis, desde que exista uma
necessidade potencial latente. Como já disse, os romances
policiais, produzidos em massa, satisfazem, na realidade,
uma necessidade latente deste tipo entre as grandes massas
de leitores potenciais provenientes da classe média baixa e
das camadas mais alfabetizadas dos empregados em escri-
tórios.
Entretanto, a produção em massa do romance poli-
cial envolve duas etapas: escrever e publicar. A etapa de
publicação é essencialmente mecânica. Uma revolução re-
lativamente pequena na tecnologia industrial tornou possí-
vel a produção em massa de livros de capa mole. A verda-
deira revolução tecnológica na indústria editorial veio,
quase vinte anos mais tarde, com a chegada da fotocompo-
sição, enquanto o verdadeiro desafio tecnológico dos li-
vros de capa mole, produzidos em massa, está chegando
com os videocassetes.
Contudo, a difusão do mercado também conduz,
inevitavelmente, a um maior número de autores, com di-
versificação de gostos, sensibilidades e necessidades. Seria
impossível que milhões de leitores se divertissem exatamen-
te com as mesmas idiossincrasias dos mesmos detetives, ou
com os mistérios construídos de acordo com os mesmos
padrões. Nem todo mundo se diverte com o humor de
Lord Peter Wirnsey, as explicações monótonas de Charlie
Chan ou as excentricidades de Ellery Queen - mas cente-
122
123
nas de milhares de pessoas já os apreciaram e, em escala equivalente à do detetive/criminoso. Assim, as aventuras
decrescente, ainda hoje os apreciam. Nem todos conse- de Sherlock Holmes, na sua luta contra o crime e o mal,
guem ver o mundo concentrado na sala de visitas de uma foram reproduzidas trinta anos mais tarde em centenas de
casa de campo inglesa.
seriados em que Nick Carter era o herói.
. Portanto, a explosão do mercado significou uma ine-:
v.ltável explosão no número de autores, fornecendo mate- A tentativa da sociedade burguesa americana de ra-
nal para uma nova diversidade de gostos. Qualquer pessoa cionalizar e justificar seu pecado original- o genocídio da
com o mínimo de experiência no campo da detecção crimi- população indígena do continente - assentou um funda-
n.al poderia se sentir tentanda a escrever um romance poli- mento ideológico para a autojustificativa desta sociedade
cial, pOIS a recompensa seria realmente grande. À medida pelos seus pecados atuais: a defesa sistemática da proprie-
que a linha divisória entre os folhetins populares e o "ver- dade privada, sem tomar conhecimento do custo em misé-
.
dadeiro" romance policial se tornou mais e mais tênue , um ria humana ou das conseqüências para o destino da huma-
c!escente numero de autores tentou transpô-Ia. A trajetó- nidade, com a classificação de criminosos para todos os in-
na do grande Dashiell Hammett é, neste caso, ilustrativa: fratores daquela propriedade. Milhões de pessoas que,
depois de agente da Pinkerton, ele se tornou escritor de re- quando crianças, tinham sido condicionadas a ver deter-
vistas de mistério, antes de surgir como autor de romances minadas coisas em termos de vermelho ou branco, através
policiais clássicos.
das histórias de índios das revistas em série, quando adul-
. Uma história mais detalhada do romance policial, es- tas, facilmente aceitaram as polaridades negra ou branca
pecialmente nas décadas de 40 e 50, também envolveria a do romance policial. Foi necessário o impacto total da re-
história das revistas de mistério da década de 20 e até mes- volução colonial sobre a sociedade americana (especial-
mo de antes da Primeira Guerra. Paralelos interessantes mente quando essa revolução foi vista através dos prismas
surgiriam, abrindo toda uma nova perspectiva sobre as ori- da guerra do Vietnã e dos movimentos de direitos civis na
gens e a dinâmica de certas formas clássicas do romance década de 60) para que o relacionamento vaqueiro/índio
policial contemporâneo. As pulp magazines", escritas para - com seu reflexo polícia-ladrão no mercado de massa do
cnanças e semi-alfabetizados, geralmente retrabalhavam romance policial - fosse fundamentalmente revertido pa-
temas extraídos da literatura de melhor qualidade de duas ra milhões de pessoas, com os índios se tornando os verda-
ou três gerações anteriores. Fenimore Cooper e Hiawatha deiros heróis. (Isso, na verdade, foi expresso com mais su-
foram inspirações para inúmeras histórias sobre Buffalo cesso no cinema, em filmes como Soldier Blue e
Bill (na Alemanha, por cortesia de Karl Mayl ), Existe, é Cheyenne', embora tenha havido também algumas contri-
claro, um paralelo exato entre a dicotomia vaqueiro/índio buições literárias.)

.•. Revist~s edit~das em papel ordinário, barato, produzido com polpa À medida que os escritores de romances policiais se
de ma~elra. (daí a denomInação pulp magazines, revistas de mistério, multiplicaram, alguns dos mais bem-sucedidos criaram no-
sensaclOnahstas (N. do T.). vas variações de detetives-heróis. Agatha Christie criou a
1. Assim como Conan Doyle, Dorothy Sayers e outros autores de srta. Marple ao lado de Hercule Poirot; J. Dickson Carr
sucesso popular, Karl May viveu sua vida imaginária em seus livros. Era fez com que Sir Henry Merivale ocupasse o lugar de Gi-
um conhecido mitômano, abusava da boa-fé das pessoas e não conhecia
qualquer língua estrangeira, inclusive inglês, apesar do sucinto número
de palavras inglesas que empregava em seus romances passados no Oes- .•.Soldier Blue (Quando é preciso ser homem), dirigido por Ralph Nel-
te amencano. Ver sua biografia por Erich Loest, Swallon, mein schwar- son 1970 e Cheyenne Autumn (Crepúsculo de uma nação), de John
zer Mustang? , Fischer- Taschenbuch, 1982. Ford, 1964, são filmes que enfocam as perseguições, maus tratos e até
massacres praticados contra os índios cheyenne nos EUA (N. do T.).
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deon Fall; Erle Stanley Gardner substituiu Donald Lam Amsterdam, Estocolmo e Helsinque; para Berlim, Ham-
por Perry Mason, assim como mais tarde, Adam Hall, de burgo, Munique, Frankfurt e Bonn; para Roma, Veneza,
Quiller viria tomar, com sucesso, o lugar de Hugo Bishop. Florença e a zona rural toscana, com uma pitada da Sicília
Entretanto, os limites são evidentes. Se milhões de para causar mais impacto; para a Espanha, ~ortuga!, ~ré-
leitores queriam consumir romances policiais, a necessida- da e o Museu Topkapi em Istambul e no Onente Próximo;
de de mais detetives significaria uma proliferação de auto- para a Austrália e Nova Zelândia, o Brasil, as il~as do Ca-
res cujos super-heróis originais se espalharam como um le- ribe, Tanzãnia, Bombaim, Hong-Kong, Seul, Cmgapura e
que chinês. Além de todo tipo de policial possível, os ho- Tóquio; até Moscou e Pequim, sem mencionar a Alema-
mens que passaram então a perseguir os criminosos in- nha Oriental, Varsóvia, Praga, Budapeste e .Montenegro.
cluíam agora gênios absolutos (sentados em suas poltronas .Um sopro de exotismo e cor local não é mais o bastante,
enquanto a busca verdadeira era executada por sagazes pois o que os leitores estão obtendo, agora, são brochuras
acólitos), nobres, grã-finos, iatistas, banqueiros, senhoras turísticas para as férias do ano seguinte, com tudo a que
do campo, técnicos em barcos a motor, peritos em finan- têm direito· uma interminável viagem turística, abrangen-
ças aposentados, psiquiatras, sacerdotes, rabinos, profes- do todo o globo, e, em breve, quem sabe, a Lua?3
sores, conferencistas universitários, oficiais do exército (na Evelyn Waugh, certa vez, observou que os ~erdadei-
ativa e aposentados), mafiosos (ativos e aposentados), mé- ros livros de viagens tinham caído de moda depois da Se-
dicos, jóqueis, funcionários públicos, diplomatas, cientis- gunda Guerra Mundial. O verdadeir~ significado desta ~s-
tas de todos os campos, jornalistas, atores, pessoal de tele- nobe afirmação era que as viagens mtemacionars da ehte
visão, industriais, espiões e caçadores de espiões de todo ti- dos administradores imperiais, banqueiros, engenheiros de
po ou simplesmente abelhudos insuportáveis. O único tipo minas, diplomatas e ricos ociosos (com alg'!m ~c~s.ional
de detetive que ainda não encontramos são operários in- aventureiro, amante das artes, estudante universítano ou
dustriais ou agricultores, mas mesmo essa lacuna poderá bem-sucedido vendedor internacional) estavam sendo
brevemente ser preenchida? inundadas pelo turismo em massa da classe média baixa,
Os cenários de aventuras detetivescas também se tor- de forma que os livros para os viajantes tinham ~ue le~ar
naram mais diversificados. Como a sede do verdadeiro po- em conta este novo mercado em expansão. O guia de Via-
der temporal, o cenário do romance policial saiu da casa de gens Fodor substituiu o clássico Baedeker '. e os livros de
campo inglesa, do clube londrino ou da mansão em Paris. capa mole, produzidos em massa, pod~n~m preencher
Ocasionalmente este cenário volta, numa passageira nos- uma útil função auxiliar, fornecendo. a milhões de f~t~ros
talgia, mas como regra geral mudou-se decididamente dos (ou antigos) turistas um gosto antecipado (ou nostálgico)
velhos centros para todos os cantos do mundo: para Nova de terras a serem descobertas (uma vez visitadas).
York, Washington D. c., Califórnia, Flórida e Havaí; pa- Esta característica especial do romance policial mo-
ra a Cõte d' Azur, as províncias francesas, Bruxelas, Liêge,
derno é apenas uma expressão de um fenômeno mais gera~.
Com a expansão do mercado, a função inicial do gênero t~-
2. É claro que isso não é por acaso. Sem se aprofundar em motivos
ideológicos para o fenômeno, pode-se entender a base material desta nha que ser necessariamente ampliada. Não ba~tava mais
ausência. O ato de detectar toma tempo; portanto, os detetives ou são emocionar os leitores, atrai-los para o esquecimento ?u
profissionais pagos ou gente de bem que vive de rendas. Os assalariados ajudá-Ios a viver vidas vicárias que um trabalho e uma exis-
não se encaixam em qualquer uma dessas categorias; não têm tempo de
lazer para detectar crimes, uma vez que o tempo que possuem pertence a 3. Ao terminar o manuscrito deste livro, recebi a palpitante notícia
seus patrões. O patrão, por sua vez, prefere que seus empregados pro- de que Isaac Asimov, o escritor de ficção científica, criou um romance
duzam mais-valia e não que encontrem quem matou quem. policial onde um robô deverá ser assassinado no espaço sideral.
126
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tência massificantes nunca os permitiria viver na realidade. e disfarces; as condições de vida dos generais russos e dos
O romance foi gradativamente obrigado a fornecer servi- chefes da KGB; regulamentos permanentes nos encontros
ços adicionais. O crescimento do próprio mercado forne- do Comitê Central do Partido Comunista Espanhol - e
ceu o estímulo para uma função secundária do romance assim por diante, ad infinitum.
policial. O mercado de massa implica uma densa competi- Cenários históricos para romances policiais passa-
ção, mas, uma vez que isso era uma competição monopo- ram a entrar em moda. Depois da série sobre o juiz Dee, do
lista, com preços fixos rigidamente tabelados, e uma vez escritor holandês van Gulik, cuja a9io se desenrolava na
que os custos de produção continuavam iguais - e irredu- China clássica do sétimo século, o escritor alemão Heinz-
tíveis - através da indústria, a competição dos preços foi Dieter Stõvers (Mord auf der Via Appia, 1972) escreveu
excluída. A única maneira de se obter alguma vantagem uma série de romances policiais situados no final da Repú-
sobre os competidores seria dotar os bens de um valor de blica romana, intitulada CVT im Dienste der Cãsaren, Fre-
uso adicional para fornecer serviços adicionais. derick Nolan localizou seu livro No place to be a cop em
O serviço que o romance policial poderia oferecer, Nova York, no ano de 1878. E não devemos esquecer Um-
afora a pura diversão, seria o de fornecer um conhecimen- berto Eco, com O nome da rosa, um dos mais sofisticados
to condensado, padronizado e especializado em inúmeros romances policiais jamais escritos, ambientado num mo-
campos do potencial humano. Desde o final da década de nastério italiano no século XIV.
30 e início dos anos 40 (o auge de Rex Stout) até os anos 70 O acondicionamento do conhecimento técnico mui-
e início dos 80 (o período de Adam Hall), a lista vem cres- tas vezes representa meses de pesquisa, às vezes por equi-
cendo e os leitores recebendo um curso maciço de medicina pes inteiras de pesquisadores, semelhante a um programa
legal e procedimentos nas salas de tribunal (Erle Stanley de televisão. Os autores, pelo menos os mais conhecidos,
Gardner); plantio de orquídeas e haute cuisine (Rex Stout); raramente podem ser acusados dos erros mais triviais. (A
teatro e pintura (Ngaio Marsh); corretagem de terrenos e não ser em alguns casos específicos: Elleston Trevor, em
acúmulo de capital na Flórida, assim como informações The Peking target, fez seu personagem Adam Hall chamar
sobre barcos a motor (John D. MacDonald); corridas de o almirante espanhol Carrero Blanco de presidente, quan-
cavalo e fotografia (Dick Francis); o Talmude do, na verdade, era primeiro-ministro - mas será que isso
(Kemelman); leis de irrigação na Califórnia (Ross MacDo- tem realmente importância?) E mesmo se John Sutherland
nald); vigarices no Harlem (Chester Himes); usinas atômi- (Fiction and the fiction industry) acha que a apresentação
cas (John Gardner); bancos e envolvimentos com esporte do livro de Michael Crighton, O enigma de Andrômeda, é
profissional, negócios de antigüidades e outros assuntos uma impostura, apenas um bestialógico mistificador, será
(Emma_Lather); técnicas de seqüestro (Alistair MacLean); que as informações sobre a peste contidas no livro podem
operaçoes na Bolsa de Valores, opção de bens e especula- ser tão sumariamente descartadas?
ção financeira (Paul Erdman); negócios de petróleo (inú- Algumas técnicas demonstradas pelos romancistas
meros autores); eletrônica (Sanders); o mercado ilegal de policiais advêrn do conhecimento pessoal. Dick Francis foi
partes do corpo humano (Robin Cook); a relação umbili- jóquei, Ngaio Marsh lidou com teatro durante anos, Erle
cal dos políticos com o crime organizado nos Estados Uni- Stanley Gardner, na verdade, foi advogado, Somerset
dos (diversos autores, seguindo o rastro de Dashiell Ham- Maugham, Graham Greene, Ian Fleming, Pierre Nord e
mett); a instalação de sistemas de segurança' 'inexpugná- San Antonio já trabalharam no serviço de espionagem (co-
veis"; a detecção de instrumentos de vigilância miniaturi- mo também Johannes Mario Simmel - embora não te-
zados; balística de foguetes; tecnologia espacial; jogo (lan nhamos certeza). Oashiell Hammett e Raymond Chandler
Fleming e outros); trapaças em jogo de cartas; maquilagem receberam treinamento em agências de detetives; o autor
128 129

alemão Ky foi, na realidade, um criminólogo, assim como tardio, vivemos na era da terceira revolução tecnológica. O
o é P. D. James; Robin Cook e Michael Crighton estuda- interesse pela tecnologia vem recebendo um tremendo im-
ram medicina e Frances Lockridge foi dona-de-casa. Um- pulso através das escolas, dos mass media e da propagan-
berto Eco é um medievalista e, por incrível que pareça, Ro- da. Ao mesmo tempo, para as pessoas de meia-idade e pa-
ger Borniche (Le playboy, 1976) - que é na vida real um ra os pertencentes às gerações mais velhas, em especial, a
agente de polícia - escreve sobre um agente de polícia cha- tecnologia moderna (mesmo sob a forma mais elementar
mado Roger Borniche! Isso prova que todos estes autores dos inventos eletrônicos caseiros) é encarada como um uni-
sabiam sobre o que estavam falando. Em outros casos, o verso misterioso e assustador que escapa ao controle e à
conhecimento técnico é coletado com esforço, seja como compreensão humana. O fascínio com o espaço e os mitos
pano de fundo para uma série ou apenas para um livro, co- sobre OVNIs e seres extraterrenos se misturam com a an-
mo é o caso dos romances de Victor Canning ou Desmond siedade em relação à invasão da privacidade e do cotidiano
Bagley: a descrição sobre a formação de uma avalanche em através de aparelhos secretos, a serviço de um aparelho de
Snow tiger (1975) feita por Bagley poderia ter saído de um informação e vigilância do Estado cada vez mais sofistica-
manual científico. do e difuso.
Entretanto, esta perícia é uma novidade relativamen- Dessa forma, a diversificação externa do romance
te recente. Antigos escritores, entre estes diversos clássicos, policial está estreitamente ligada à terceira revolução tec-
mostravam-se sobejamente deficientes em certos assuntos nológica e às novas ansiedades que ajudou a reproduzir.
evocando assim severas críticas. The simple art of murder: Como John Sutherland tão bem colocou, falando sobre os
de Raymond
. Chandler, ocupa-se bastante deste particular , romances policiais dedicados à medicina e em especial so-
aSSImcomo The lawyer looks at detective fiction, de J. B. bre os livros de Robin Cook (Fiction and fiction industry,
Waite (da coletânea The art of lhe mistery story de Ho- pp. 213-14):
ward Haycraft), e em "Who cares who killed Roger Ack-
royd?", de Edmund Wilson, também da coletânea de Hay- No que poderia ser encarado em um nível super-
craft (o artigo apareceu pela primeira vez em 1945, na re- ficial, Coma se refere às ansiedades atuais sobre o tra-
vista The New Yorker+y. tamento médico que preocupam a América pensante.
Às vezes o conhecimento especializado, exposto des- Numa propaganda publicada no Publishers Weekly
ta forma, torna-se tão prolixo a ponto de embaraçar o en- (7 de fevereiro de 1977), dizia-se que o livro continha
redo e o próprio "suspense": os trabalhos auxiliares aca- "terríveis revelações sobre escândalos ocorridos, hoje
bam substituindo a função primordial do livro. Caso um em dia, nos hospitais" . "Alusões indiretas a" , em vez
número suficiente de leitores esteja preparado para aceitar de "revelações sobre" deveria ser a formulação corre-
esse fato, então temos um novo caso de autonomização: a ta; porém os encândalos ou ansiedades dos nossos
divisão do trabalho, seguindo a lógica implacável da pro- dias, no quadro de referências de Coma, são obvia-
dução de bens e da coisificação. mente: 1) o predomínio da iatrogenia, isto é, doenças
É claro que existem mais problemas nisto do que o induzidas por médicos; 2) a ética nas operações de
simples prazer de aprender brincando. Sob o capitalismo transplante; 3) a controvérsia sobre a "definição legal
de morte"; 4) os processos por imperícia médica e as
4. Edmund Wilson errou em relação a A caixa vermelha, de Rex grandes somas de dinheiro que gradativamente são
Stout. Ele não deve ter lido o livro inteiro, de forma que nunca chegou a
saber que existiam, na realidade, duas caixas vermelhas, uma, como ele
concedidas pelos tribunais americanos a pacientes que
mesmo disse, falsa, e a segunda, verdadeira, e realmente contendo a conseguiram provar terem sido vítimas de tratamento
prova para confundir o assassino. errado ou incompetente; 5) o absurdo custo do trata-
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mento médico nos Estados Unidos e a bem-sucedida dispensa todo o conhecimento especializado, assim como
resistência ao seguro de saúde, por parte da Associa- qualquer sutileza complicada da trama. O que resta é o te-
ção Médica Americana e pelos grupos de pressão inte- ma: polícia x ladrão, reduzido ao seu âmago caricatural.
ressados. Como resultado, o primeiro pensamento Geralmente a função ideológica de todo o enredo é revela-
consciente da maior parte dos pacientes pós-operados da por algum aparte incidental como o ódio patológico de
americanos não é, por exemplo, "Estarei curado?" e, Bulldog Drummond por tudo que não seja inglês, ou, qua-
sim, "Como vou conseguir pagar tudo isso?" se meio século mais tarde, por tudo que não seja burguês,
como no livro de George Shipway, The Chilean c/ub
É claro que a maior parte destes tópicos não constitui (1972), onde um quarteto de soldados veteranos se reúne
qualquer novidade. O medo de hospitais como lugares em St. J ames para liquidar os funcionários de um sindica-
apavorantes - o que na realidade sempre tem sido para os to, os líderes estudantis e o rebotalho trotskista que estão
pobres - esteve profundamente arraigado no público lei- acabando com "sua" (deles) Inglaterra.
tor norte-americano durante o século XIX. A ansiedade
sobre o custo do tratamento médico é tão antiga quanto a
medicina capitalista moderna (paga) e não é, de forma al-
guma, um produto das recentes mudanças tecnológicas e
econômicas. Na verdade, em muitos países da Europa Oci-
dental, esta ansiedade diminui com o crescimento da previ-
dência social e só vem reaparecendo como resultado dos
cortes nos gastos sociais que se seguiram no rastro da atual
depressão econômica e austeridade política. Ao mesmo
tempo, avanços tecnológicos recentes apresentaram clara-
mente uma dimensão totalmente nova, e mais comumente
o relacionamento parece bastante evidente entre o policial
"entulhado de informações" e as ansiedades sobre a tec-
nologia incitadas pelo capitalismo tardio.
Mesmo assim, a função social do romance policial
ainda permanece igual ao que sempre foi, isto é, distrair,
revitalizar e emocionar; tirar o leitor do limbo da tensão
nervosa induzida pelo trabalho padronizado e monótono e
pela existência cotidiana. Portanto, dificilmente o leitor
comum aceitará a troca de informação "pura" pela emo-
ção "pura", ao passo que o oposto está mais próximo da
verdade. Subjacente ao romance policial sofisticado e "sé-
rio" ainda se encontra o romance vulgar, infantil e sangui-
nolento. Embora hoje em dia apenas as crianças e os ado-
lescentes leiam os modelos antigos - Mick Carter, Edgar
Wallace, Sax Rohmer, Mickey Spillane -, a prole destes
autores, que reproduz os traços essenciais do gênero, é de-
vorada por milhões de adultos alfabetizados. Neste caso se
Diversificação interna
ALGUNS CRÍTICOS alegam que, a partir do mo-
mento em que o romance policial entrou na produção em
massa, começou a decair. O mecanismo construído minu-
ciosamente parou de funcionar; as ações e os motivos
dos suspeitos deixaram de ser submetidos a uma análise ri-
gorosa, uma vez que agora esses suspeitos eram simples-
mente espancados. Procedimentos rotineiros da polícia ou
informações sobre delatores passaram a ocupar o lugar do
intelecto sobre-humano para a solução de um mistério.
Existe um elemento de esnobismo, contudo, neste
julgamento errôneo. Do ponto de vista da habilidade inte-
lectual ou da dedução analítica, Nero Wolfe não é certa-
mente inferior a Sherlock Holmes; do ponto de vista das
regras gerais e da lógica interna do ofício, houve melhoria e
não declínio, se compararmos Gaston Leroux a Georges
Simenon, Earl Biggers ou Dorothy Sayers (excluindo-se,
porém, Anthony Berkeley) a Ross Macdonald ou John Le
Carré. E com todo o respeito devido à "rainha do romance
policial", Len Deighton e Adam Hall escrevem literaria-
mente melhor do que Agatha Christie. É verdade que Das-
hiell Hammett e Raymond Chandler possuem qualidades
que depois jamais foram igualadas, o mesmo acontecendo
com Georges Simenon. Porém, essas qualidades estão rela-
cionadas a uma específica linha divisória do desenvolvi-
mento do romance policial, isto é, sua maioridade, e não
ao começo de seu declínio. O que ocorreu foi maturidade e
não degeneração: outro conjunto de qualidades, outro ní-
vel de sofisticação, que não podia ser encontrado entre os
136 137

clássicos, e que foi induzido através de uma competição que continou durante as etapas sucessivas da Guerra Fria.
mais acirrada. As aventuras de Lord Peter Wimsey, inves- Contudo, existe uma qualidade mais fundamental nos
tigando um crime, ainda divertem, porém é difícil negar romances de aventura e de espionagem que justifica tratá-
que, em matéria de suspense, Maratona da morte, Coma los como diferentes subespécies dos primeiros romances
ou mesmo O enigma de Andrômeda são obras-primas ini- policiais, apesar de tudo o que eles possuem em comum. O
gualadas por quaisquer policiais clássicos das décadas de detetive supera o criminoso essencialmente através da ha-
20 ou 30. bilidade lógica. A parafernália do negócio - a lente de au-
Será que este raciocínio levanta um problema de de- mento ou as retortas químicas de Sherlock Holmes - é
finição? Deveria a categoria de "romance policial" perma- apenas instrumento secundário inteiramente subordinado
necer dentro do âmbito do romance de mistério "puro e à Lógica. O criminoso também é inteligente e geralmente
simples", enquanto as aventuras de espionagem e os ro- burla a polícia, embora não consiga lograr o supercérebro
mances de "suspense" devem ser encarados como gêneros do grande detetive.
diversos? Não concordamos com isso. O "mistério" de um
Aqui temos a mais pura, a mais elementar expressão
romance policial poderá residir em um ou vários desses ele-
da sociedade burguesa: a produção e a circulação de bens sob
mentos básicos ou em todos eles: "quem", "a quem",
condições de perfeita competição. Tudo é racional, to-
"onde", "quando", "por quê", "através de que meios" e
talmente engrenado para a maximização da renda (lucros)
"como" (a oportunidade). Não há razão pela qual deveria
através de cortes contínuos nos custos de produção e cus-
se referir apenas a "quem". (Na verdade, mesmo no ro-
tos de vendas (incluindo a margem de lucros). "Tudo está
mance policial clássico não é sempre assim, como podemos
bem quando termina bem." No fim, o racional comporta-
ver em Trial and errar, de Anthony Berkeley.) Isto posto,
mento econômico individual de todos trará o máximo de
o romance de aventuras - onde o "quem" ou é revelado
logo no início, ou é irrelevante ou secundário para algum bem-estar (inclusive a satisfação do consumidor) para um
número máximo de indivíduos. Que o melhor vença (Sher-
outro propósito do livro - pode ser considerado como fi-
lho legítimo do romance policial, uma vez observadas as lock Holmes, não o criminoso) e isso será bom para todos,
regras. inclusive para o criminoso (se perder o corpo, pelo menos
Mesmo assim, permanecem certas dúvidas. Por que conseguirá salvar sua alma imortal).
as histórias de espionagem e os romances de aventuras, ge- Com a transição do capitalismo competitivo para o
ralmente bastante relacionados entre si (Fleming, Le Car- monopolista, esse mundo ideal mítico - que, de qualquer
ré, Deighton, Hall, alguns livros de Canning, a maior parte maneira, nunca teve mais do que uma limitada semelhança
dos romances de Macdonald), divergem do primitivo com o verdadeiro funcionamento da economia - perdeu
"quem matou quem?". E por que, em determinado mo- toda a relevância para explicar como funciona verdadeira-
mento do tempo? Qual é a lógica interna desta diversifica- mente a sociedade. Pois, na realidade, a meritocracia é
ção? Como já salientamos, a aventura de espionagem é um uma mistificação. O melhor dificilmente vence. Para al-
produto da hipertrofia do sistema de espionagem, dos ser- guém sair vitorioso nesta luta desigual, não é necessário
viços de inteligência das grandes potências e de seu aparato ser o mais inteligente, o mais forte ou dono de uma maior
militar; portanto, um produto do crescimento dos exérci- força de vontade ou determinação. O que é preciso é pos-
tos, da corrida armamentista e da guerra. Foi inicialmente suir mais capital, e quanto mais, melhor. O dono deste pa-
um produto direto da Primeira Guerra Mundial e passou trimônio pode contratar o mais inteligente, reunir a deter-
por um enorme desenvolvimento às vésperas, durante e minação e a energia de dezenas dos maiores especialistas,
após a Segunda Guerra Mundial - um desenvolvimento criar uma vontade coletiva ("a organização") que poderá
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dominar os egos mais fortes ou até quebrá-los caso não se provar que conformismo, trabalho mecanizado, bens de
conformem com as normas. consumo produzidos em massa, lazer padronizado, soli-
O romance de aventuras (ou de espionagem) é para o dão e alienação nas grandes cidades, monotonia e aliena-
romance policial o que o capitalismo monopolista é para o ção nas pequenas cidades, uma vida cotidiana desprovida
capitalismo da livre competição. Entrar em seus enredos de luz, calor ou mesmo esperança de aventura dominaram
característicos, armado somente de inteligência (mesmo por fim a classe média baixa, burocratas e os operários
que seja um cérebro privilegiado como o de Nero Wolfe), é mais bem pagos, com o advento do moderno capitalismo,
como desafiar uma companhia multinacional com apenas em meados da década de 40, nos Estados Unidos e no final
cinco mil libras na conta bancária. Dons como inteligên- dessa década e começo dos anos 50 na Europa Ocidental e
cia, energia e força de vontade se tornaram secundários e no Japão. Nestas circunstâncias, o romance de aventuras e
até desnecessários como instrumentos. O herói - seja ele o de espionagem adquiriram um maior apelo popular; um
um superespião, superdetetive, superaventureiro ou super- apelo maior que o apresentado pelo romance policial "pu-
resgatador (como Travis McGee) - só sairia vencedor ro", clássico ou pós-clássico. Sob este ponto de vista, os
através de uma combinação de maiores recursos técnicos romances policiais violentos e realistas da escola
(incluindo freqüentemente grandes fortunas adquiridas Hammett/ Chandler / Simenon/ Ross Macdonald foram
através de métodos especiais), maior aptidão física, maior apenas uma forma transicional entre o mistério passado na
capacidade de organização e (geralmente, em último lugar) sala de visitas e a aventura pelo mundo afora; Mike Ham-
maior inteligência. O relativo declínio do intelecto puro, a mer foi uma ponte entre Holmes e Poirot de um lado e
pura ratio, no romance policial, é um reflexo marcante Bond e Quiller do outro, assim como a V. S. Steel Corpo-
do relativo declínio do racionalismo na ideologia burguesa, ration ou a Krupp foram uma ponte entre as firmas indus-
e do comportamento racional (ou supostamente racional) triais de livre iniciativa do decênio de 1850 e as verdadeiras
do homo oeconomicus sob o capitalismo maduro e tardio. empresas multinacionais da década de 1950.
O problema aqui não é na verdade cronológico. É A chave para a transformação interna do gênero resi-
certo que o capitalismo monopolista fez sua aparição por de na evolução do pensamento para a ação. Os detetives
volta de 1885 ou 1890, bem antes da virada do século. Po- clássicos não agem, pensam. Em casos extremos, como o
rém, as estruturas mentais que determinam a ideologia bá- de Nero Wolfe, ele só se move pelo andar térreo da sua ca-
sica geralmente vêm atrás da realidade objetiva, pelo me- sa em Manhattan, indo aos andares superiores de elevador,
nos durante duas gerações - como a literatura popular em além de ser um cérebro privilegiado na sua mais pura es-
relação à literatura de vanguarda. Assim, devíamos sência. Atualmente, contudo, a especialização intelectual
esperar que o romance de aventuras e o de espionagem sur- deste tipo, a preguiça física e a ilimitada glutonaria não fa-
gissem como gêneros diversos derivados do antigo roman- zem mais parte da fantasia dos leitores, mesmo em sonhos
ce policial, com um maior mercado popular, no fim da dé- culposos - hoje em dia é mais possível que eles sintam pe-
cada de 30. E foi na verdade o que ocorreu. Com 39 de- na do pobre comilão, em vez de inveja.
graus como seu primeiro precursor real, esse gênero, com James Bond e seus produtos fazem parte de outro as-
suas características, entrou em cena na década de 30 com a sunto. Só pensam em ação. E a ação conta muito mais do
série Mr. Moto, de John P. Marquand (na qual, por acaso, que qualquer outro poder de raciocínio. Principalmente o
o espião japonês ainda era o herói e os chineses, os vilões!) tipo de ação com a qual as massas podem rapidamente se
Estruturas mentais dominantes são uma coisa; moti- identificar, que envolve velocidade, viagens a lugares dis-
vos verdadeiramente experimentados, necessidades e frus- tantes, potência sexual, vida luxuosa, perigo, aptidão físi-
trações são outras inteiramente diversas. Não seria difícil ca, acesso à última palavra em dispositivos e segredos de
140 141

Estado e manipulação dos acontecimentos nos bastidores. tima porque procura em vão pela verdade e porque a
Devaneios infantis? Sem dúvida. Mesmo assim, é com isso verdade que ela obtém não é o artigo genuíno e assim
que milhões de leitores desejam se identificar e com o que por diante, e porque.quanto mais a pessoa pensa ra-
se divertem vicariamente, sabendo que nunca viverão esta cionalmente, mais se desvia da rota. O romance poli-
realidade. cial, em vez de assinalar o triunfo da lógica, tem que
A aptidão física passou a desempenhar um papel gra- consagrar o fracasso do pensamento racional: é preci-
dativamente importante em tudo isso, um fato que está ob- samente por esta razão que o herói é uma vítima. (p.
viamente ligado às diferentes prioridades consumistas da 178)
classe dominante, se estendendo vagarosamente até a clas-
se média. No Terceiro Mundo a fome ainda predomina. Eis portanto outra confirmação do declínio da racio-
Nas baixas camadas do proletariado também o medo da nalidade na ideologia e na sociedade burguesa, sob o im-
fome ainda é real: a dieta forçada é ainda o destino do as- pacto da crise estrutural, do fascismo, do Estado autoritá-
salariado sempre que ocorre uma queda repentina de ren- rio e do capitalismo monopolista. Porém, esta primeira
da. Porém, durante diversas gerações, a classe média se mostra do futuro tem pouca duração, especialmente por
libertou de todos os medos nesse campo. Não se preocu- causa do impulso econômico que se seguiu à Segunda
pa mais com a falta do que comer e sim com a comida em Guerra Mundial no Ocidente. Boileau e Narcejac salien-
demasia e, de forma geral, com a saúde do corpo. O ideal tam que a moda do romance de "suspense" puro durou
de aptidão física acarreta uma preocupação com o corpo apenas quatro anos. Outras crises tiveram que ocorrer para
humano inteiramente ausente na literatura do século XIX e que a irracionalidade outra vez tomasse conta do romance
isso irrompe da forma mais extrema nos romances de aven- policial, desta vez para valer.
tura, nos quais cenas de combates sem arma são analisadas Muitos escritores de romances de aventura jamais
em segundos e décimos de segundo. conseguiram fazer obras de peso depois de escreverem uma
Um interessante ângulo entre o romance policial e o obra-prima inicial. Um exemplo notável é Lawrence San-
romance de aventura é o relato de puro "suspense", no ders, antigo editor de jornais especializado em tecnologia,
qual o assassino, ou a vítima, mas nunca o detetive, é o que em Anderson tapes (1970) construiu uma impressio-
verdadeiro herói. Patricia Highsmith (Strangers on the nante trama de "suspense" em torno de um grande roubo
train, 1949; The talented Mr. Ripley, 1955) é a melhor re- frustrado pelas novas técnicas eletrônicas de escuta. As ati-
presentante dessa primeira categoria: William Irish (The vidades e a vida particular de Duke Anderson são gram-
phantom lady, 1942; The black angel, 1943) e Boileau e peadas a todo momento por uma bateria de agências de es-
Narcejac (D'Entre les morts, 1956; A coeur perdu, 1959; cuta: o Departamento de Polícia de Nova York, a Divisão
Les victimes, 1964) são típicos representantes da segunda de Entorpecentes, a Receita Federal, o Departamento de
categoria. Boileau e Narcejac tentaram teorizar seus esfor- Imposto de Renda de Nova York, a Paz de Espírito S.A.
ços escrevendo: - ao todo uma dezena delas! Os romances posteriores de
Sanders, contudo, se revelaram prosaicos e mal-feitos. O
Não se é vítima porque se é caçado e diretamen- mesmo pode ser dito de Trevanian, que nunca conseguiu
te ameaçado. A pessoa se torna vítima logo que esteja ultrapassar o sucesso de Shibumi e de Stephen King, que
presente aos acontecimentos cujo significado definiti- após Zona Morta (1979) escreveu apenas tolas aventuras
vo não é capaz de decifrar, logo que a realidade se de horror.
torne uma armadilha, logo que a vida cotidiana seja Porém, este não é o caso dos escritores que devemos
virada de cabeça para baixo. Uma pessoa torna-se ví- colocar no alto da lista: Graham Greene, Eric Ambler,
142 143

John Le Carré, Morris West. Nem tampouco de Dick o homicídio. O assassinato por bomba, granada, raio Iaser
Francis e a série Quiller de Adam Hall, na qual cada ro- ou bombardeio aéreo; assassinato por arma branca, espin-
mance sucessivo é mais bem escrito e cheio de "suspense" garda de caça, rifle, metralhadora ou bazuca; por venenos
do que o anterior. William Goldman também está neste ca- ou drogas; por estrangulamento, garrote ou apedrejamen-
so, por escrever logo após o fantástico Maratona da morte to; por atropelamento, por avalanche ou por eletrocussão;
(l:n~) o ainda melhor Control (1982), que trata de clarivi- crimes por afogamento ou arremesso de um abismo; cri-
dência ambulante ou como entrar no cérebro dos outros. O mes com uma vara, pedra, sapato, lenço, corda ou cassete-
truque literário empregado neste caso é sugerir uma simul- te; crimes com cordas de piano ou sinos de igreja; com os
taneidade de acontecimentos na realidade intercalados no punhos, golpes de mão e todas as técnicas conhecidas de
espaço de sessenta anos, para em seguida dessincronizá-Ios artes marciais da Ásia; crimes por inanição, falta de ar ou
enquanto mantém a credibilidade. Na verdade, Control é luz, hipnose ou terror que conduz ao ataque cardíaco; cri-
um roman,ce de aventura mediúnico da mesma forma que mes por procuração ou suicídio induzido; crimes através
Coma e Cerebro, de Cook, com uma boa dose de competi- de máquinas, robôs, agentes animais (cães, crocodilos,
ção ?e guerra fria em parapsicologia. Sua acusação de per- aranhas mortais; ou, num livro bem recente, por uma ji-
versidade ao governo americano e o retrato realista das ca- bóia amestrada!).
madas da sociedade de Nova York dão ao livro uma pro- Só nos resta sacudir a cabeça, suspirar e nos pergun-
fundidade raramente encontrada num romance de aventu- tar como dezenas de milhões de fãs podem, calmamente e
ras. sem crítica, se divertir lendo, dez, vinte, trinta episódios de
Manter a atenção, criar tensão, sustentar o "suspen- horripilantes matanças, com uma média de quinhentos a
se" é um exercício técnico que impõe suas próprias regras e mil assassinatos imaginários durante a vida. Que terrível
que diferencia os autores de sucesso dos romances poli- sociedade deve ser a nossa, que terríveis frustrações deve
ciais, de espionagem e de aventuras dos autores não tão engendrar para que a descrição de tais atos seja o modo es-
bem-sucedidos. Um dos truques do ofício, além do estilo colhido para o relaxamento e prazer literário de tantos de
adequado e outros requisitos puramente literários é uma seus membros! Mesmo se assumíssemos que o crime de-
sutil combinação entre o crível e o incrível, o sério e o des- sempenha um papel relativamente sem importância na
preocupado. Um mínimo desvio, e o equilíbrio é quebra- fruição dos romances policiais, esta seria apenas uma pre-
do, a credibilidade perdida e o "suspense" estragado. Sa- condição convencional que deveria ser preenchida antes do
bemos que nenhum detetive particular, na vida real se verdadeiro início da história (segundo alega Ernst Bloch).
atr~veria a induzir um assassino a cometer suicídio, qu;nto Que terrível sociedade deve ser esta para alienar da reali-
~aIs fornecer os recursos para que isso acontecesse. Po- dade milhões de leitores de romances policiais, fazendo
rem, se um autor sabe como construir este desenlace com com que as pessoas esqueçam ou não se dêem conta de que
cada passo seguindo logicamente o anterior, de forma a estão lendo e se deleitando com a mais censurável das
tor~ar toda a trama verossímil, se a atmosfera criada é ações humanas: a eliminação violenta da vida humana. "A
aceita como real, então a credibilidade da solução é aceita morte parece fornecer às mentes da raça anglo-saxônica
a trama não é questionada como absurda e o louco rnilio- um manancial maior de inocente deleite do que qualquer
nário fascista parece ter saído das páginas de um jornal e outro assunto", escreveu Dorothy Sayers (em Aristote/es
não dos devaneiosoníricos de um adolescente. on detective fictiorú, que sabia do que estava falando. Em
Entretanto, no fim das contas, o romance de "sus- resumo - um inocente prazer com o assassinato.
pense", a novela de espionagem e o romance de aventura
como o romance policial, se ocupam de um único assunto;
Violência:
explosão e implosão
AS DÉCADAS DE 40 E DE 50 assistiram a um se-
gundo divisor de águas na história da criminalidade, nos
Estados Unidos, comparável à década de 20: a grande ex-
pansão do vício das drogas e o conseqüente "crime nas
ruas". Calcula-se que entre 10 a 20 milhões de americanos,
a maioria de jovens, estiveram envolvidos, de alguma for-
ma, com o crime nos meados da década de 70. Com um
certo atraso, e ainda em menor grau, este fenômeno se es-
palhou pela Europa Ocidental (especialmente Inglaterra,
Itália e França) e pelo Japão.
As raízes desse novo fenômeno provêm do final da
Lei Seca. Quando o crime organizado perdeu o lucro obti-
do com a venda ilegal de bebidas, não bastava acelerar as
operações de jogo, prostituição e agiotagem, pois o que era
necessário, além do álcool, era um outro bem de consumo
cuja distribuição, ilegal por definição, pudesse ser mono-
polizada. As drogas, cuja venda até para os viciados era
proibida por lei, passaram a ser o candidato natural. Em
1938, segundo Coffee, deputado americano, o lucro com a
venda de tóxicos nos Estados Unidos havia ultrapassado 1
bilhão de dólares anuais, equivalentes em termos atuais a 6
ou 7 bilhões de dólares. Daí por diante, uma série de fato-
res sociais deveriam contribuir para uma expansão maior
do fenômeno, após a Segunda Guerra Mundial.
O grande número de operações no mercado negro
feitas por soldados americanos na Alemanha ocupada e no
Japão e a dificuldade de muitos soldados desmobilizados
em se adaptar à vida civil fizeram com que as cidades ameri-
148 149

canas, nos anos imediatamente após a guerra, ficassem acusa a esquerda de permissiva e "leniente em relação à
apinhadas de milhares de traficantes em potencial e deze- violência" .
nas ou milhares de corrompidos, viciados em potencial. Na realidade , como Jean-Claude Chesnais (Histoire ,
Além disso, houve o grande surto imigratório das famílias de Ia violence 1981) demonstrou convincentemente, o nu-
negras e porto-riquenhas nas cidades americanas, durante mero de assassinatos e crimes capitais decaiu, e não au-
a guerra; a discriminação racial; um sistema escolar orga- mentou, em comparação com o final do século XIX ,e o c~-
nizado para produzir desistentes em grande escala, dentro meço do século XX ou mesmo a déc~da de 30. Isto ~ part~-
da classe operária; e um sistema econômico projetado para cularmente verdadeiro na Europa OCIdental, graças a previ-
manter uma reserva permanente do contingente de traba- dência estatal e à segurança social; esta tendência, surpreen-
lho (após as recessões de 1949 e 1953, o desemprego juvenil dentemente não é fraca nos Estados Unidos, onde a segu-
se encontrava em 15 a 200/0, se elevando até 30% ou mais, rança social é muito menor. Na década de 70, o número d.e
nos guetos negros e de língua espanhola). Criou-se, assim, homicídios por 100 mil habitantes era 9,3 nos Estados Um-
um ajuntamento maciço de jovens que não podiam sobre- dos contra 3 na Finlândia, 1,4 na Itália, 1,2 na Alemanha
viver a não ser através de pequenos crimes. Frank Brow- Oriental, 1,1 na Suécia, 1 na França, 0,8 na Grécia, 0,8 na
ning e John Gerassi argumentam que esta pequena crimi- Suíça e 0,5 na Espanha. .
nalidade - que envolve roubo de carros, arrombamento A verdade é que a tendência para os grandes cnmes de
de domicílio e tráfico de drogas - é parte integrante da violência é o reverso daquela para pequeno crime. Isso mos-
economia "subterrânea" que se tornou uma característica tra claramente a função ideológica do grande pânico do cri-
permanente da economia capitalista global, à medida que me incentivado pelos lobbies da lei e da ordem mantid?s pe-
os empresários tentam fugir dos altos impostos, das contri- la direita: difamando sistematicamente os setores mais po-
buições da previdência social e da regulamentação do Esta- bres da sociedade e as camadas mais exploradas da classe
do em geral. trabalhadora como "classes criminosas", propensas a ações
Do lado do consumidor, os mesmos estímulos psico- violentas e ao assassinato, justificando desta forma um re-
lógicos para esta grande expansão da atividade criminal ex- forço sistemático do aparelho repressivo do Est~d? Ao
plicam a explosão em massa do mercado para os romances mesmo tempo, o aumento maciço do numer? de cnmll:lOsos
policiais e de mistério: a crescente frustração e tensão na primários transformou o submundo do cnme .orgamzado
vida diária, aliadas, no caso da juventude proletária ou numa hierarquia que, ironicamente, reflete mais fielmente
subproletária, ao crescente desespero individual, à falta de do que nunca a estrutura do mundo burguês, tendo, no fun-
qualquer perspectiva coletiva e a uma busca de tudo que do, uma grande massa de pobres marginais sempr~ entra?-
possa distrai-los da monotonia desoladora do trabalho pa- do ou saindo da prisão e um punhado de monopolistas VIr-
dronizado, do consumo e do bem-estar social. Entretanto, tualmente seguros em sua imunidade no topo da pIram~de.
enquanto a preocupação com o crime e a violência conti- É contudo inegável que uma enorme explosao de
nua - na verdade, puramente platônica e vicária para a violênci~ ocorreu ~os Estados Unidos, no final da década de
maioria dos leitores de romances policiais -, a multiplica- 50 recrudescendo na década de 60 e 70, com tendências a se
ção por dez dos pequenos infratores do capitalismo tardio espalhar, em diversos graus, pela maior parte dos país:s. ca-
nas grandes cidades levou a tentativas, por parte da bur- pitalistas, e que esta violência contemporânea se equilibra
guesia de diversos paises, através dos meios de comunica- com o clima geral de violência difusa que crescen.t~m~nte
ção e das iniciativas políticas diretas, de utilizar o conheci- banha a atual sociedade capitalista. A crescente mIhtanza-
do "medo da violência" para levar avante uma legislação ção, por um lado, e as crianças gritando para as mães e ,?S
repressiva e antidemocrática, ao mesmo tempo em que professores "Vou lhe enfiar uma faca!", por outro, sao
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151
apenas duas expressões, em pólos opostos, da mesma ten- Cheyney não fossem propriamente tão imbuídos de violência
dência histórica.
como aqueles da verdadeira série noire. Mickey Spillane e seu
Um resultado abominável da difusão da violência foi herói Mike Hammer, entretanto, eram cem por cento ameri-
o aumento do número de crimes anônimos, gratuitos e em canos.)
massa. Enquanto na década de 30, 750/0 de todos os crimes
A brutalidade e o sadismo da série noire coincidiram
e~ Nova ~ ~rk foraf!1 com~tidos por pessoas que conhe-
eram suas VItimas, hoje em dia, 75% dos homicídios são co- com um verdadeiro declínio literário: isso pode ser atribuí-
do à nova etapa atingida pela produção em massa no cam-
metidos por pessoas absolutamente desconhecidas. Assas-
po da autoria literária, no desenvolvimento de técnicas pa-
sinatos aleatórios em massa - praticados pelo Franco Ati-
rador do Texas, pelo Estrangulador de Boston, pelo Filho dronizadas, geralmente por autores anônimos. Dizem que
Chase escreveu No orchids em apenas seis semanas. Dizem
de Sam ou o Estripador de Yorkshire - são mais freqüen-
também que diversos livros da série Jerry Cotton foram es-
tes do que nunca. O trágico suicídio-assassinato na Guiana
critos por estudantes pelo módico preço de 300 dólares, ca-
de 910 membros da seita do Templo do Povo, de Jim Jo-
nibalizando livros anteriores da série e reconstituindo in-
~es, ~m novembro de 1978, sob a influência da paranóia
gredientes selecionados em torno de uma nova idéia central
induzida, representa, sem dúvida, a mais extrema e con-
fornecida pela editora.
centrada expressão contemporânea desta tendência à vio-
lência cega. Essa regressão na técnica abriu caminho para mu-
Todas estas propensões possuem uma expressão cor- danças mais profundas. A nova crueza e truculência de lin-
respon?e.nte na e,volução do romance policial, no qual uma guagem tornou possível uma mudança na natureza do pró-
subespécie, n~ decada de 40 e de 50, se desviou para a vio- prio meio. Assim como o violento "romance de ação"
lência e o sadismo depurado: na França foi chamado de sé- evoluíra a partir das revistas de detetive tipo Nick Carter ou
rie noire ou (série negra); seus representantes típicos foram B1ack Mask, assim também a trama violenta da série noire se
~ickey Spillane e James Hadley Chase, tendo William voltou para o universos das histórias em quadrinhos, caracte-
Irish como precursor e diversos seguidores franceses e ale- rizado por um maniqueísmo sádico e simplista. E daí, é ób-
~ães (a série Jerry Cotton). O que caracteriza este novo vio, passar desse universo para a atual história em quadri-
impulso do ro~~ce. policial tradicional é que ele se preocupa nhos (da qual a série Dick Tracy representou um protótipo
mais com a violência do que com encontrar a solução de ainda relativamente honroso) foi um pequeno passo. A litera-
qualquer mistério: o mistério, na maior parte das vezes, se tura detetivesca levou a uma crescente absorção de todo o
t?rn~ou. um mero pretexto ou desapareceu por completo. A subgênero para as revistas em quadrinhos.
vlolencIa,. a brutalidade, a crueldade, o sadismo, a mutilação No entanto, devemos estar preparados para uma sur-
e ? ~s~smato apenas como exercício se tornaram os tópicos presa ocasional. No México, deparei-me com uma série de
pnncipais do genero, como exemplificado de forma mais histórias em quadrinhos sobre o personagem Fantomas, num
marcante em No orchidsfor Miss Blandish, de Chase. O fato novo conjunto de aventuras contemporâneas: uma delas en-
de esses romances terem alcançado enorme sucesso de públi- volvia uma incursão bastante emocionante e politizada, pas-
co confirma claramente seu status como reflexo de uma so- sada na Polônia de Lech Walesa, mobilizando os trabalhado-
cie~ade doente: tais obras eram fenômenos de decomposição res nas fábricas e nas ruas sob a bandeira do Solidariedade!
social. (Ao contrário do que muitos pensam, Chase era na Isto, é claro, é uma exceção! Como regra geral, a eli-
verdade, inglês e não americano: como Benvenuti e Rizzoni minação da lógica, das sutilezas da trama e geralmente de
observaram, seu precursor foi Peter Cheyney, criador do fa- qualquer dado de mistério em favor da ação violenta pu-
moso personagem Lemmy Caution, embora os romances de ra e simples significa que os herdeiros das histórias em qua-
153
152
mitivo, agindo regressivamente sobre o conteúdo da. pró-
drinhos da série noire são explícita e furiosamente reacio-
pria comunicação. (Assim, a ínforrnação de .que existem
nários. Não é exagero falar-se em uma ideologia pré-fascis-
atualmente mais lojas de vídeos do que livrarias na Ingla-
ta ou semifascista que geralmente se funde com diversas
terra é perturbadora: Sunday Times, 8/8/1982.) As pró-
formas de misticismo, ocultismo, cultos demoníacos etc.
prias estruturas mentais se envolveram ~om ~ mudança. O
Que este tenha sido o destino final da série noire não foi
pensamento histórico, o pensamento .mdutIv.0' causal e
contudo, puro acidente. A voz da desumanidade já se fazia
científico: estão todos estruturalmente lIgados a palavra es-
OUVIr,com clareza, nos romances de Mickey Spillane: "Vá
crita. Uma volta à linguagem não-escrita, ao que são essen-
atrás dos chefões. Nada de metê-los na cadeia nada dos
cialmente formas de comunicação mais primitivas, deve esti-
privilégios do processo democrático com tribunais e leis ...
mular a pré-Iógica, a não-história e até a anti-história, assim
faça com eles o que fariam com você! Dê para eles aquele
como formas de pensamento cada vez mais primitivas. A
gosto sem glória da morte repentina ... mate a esmo e mos-
regressão representada pela série noire e as histórias em qua-
tre a eles que afinal não somos uns moleirões! Mate, ma-
drinhos que herdaram seu estilo - todas permeadas po~ um
te, mate, mate!" (Citado por Pete Hamill: "Mike e Mie-
sadismo desumano e preocupadas com os aspectos mais re-
key" em Murder ink, de Dilys Winn, p. 132.) pugnantes do comportamento humano - surpreendentemen-
Deve ser enfatizado que o declínio da lógica e da ra-
te confirma a validade desta hipótese.
cion~l.idad~, nas _histórias em quadrinhos disseminadas pe-
la serte noire, nao era apenas uma questão de conteúdo'
era também uma questão de forma. A substituição gradual
de uma cultura escrita por uma subcultura de tecno-imagi-
nação e crescente analfabetismo sem dúvida constitui uma
expressão formal do declínio cultural, correspondendo à
,. .
sua propna maneira, ao declínio da sociedade burguesa e à
'
a~eaça de um declínio da própria civilização. Enquanto
paises do Terceiro Mundo estão lutando para acabar com
o analfabetismo, no Ocidente existe uma contínua embora
ai~da marginal, perda de conhecimento da lingu~gem es-
cnta, comprovada através de uma série de estudos empíri-
cos como aqueles realizados com os soldados americanos
ingleses e franceses. '
Mesmo se uma excessiva simplificação e padroniza-
ção dos métodos de ensino de linguagem (a substituição do
desenvolvimento sistemático de uma compreensão do con-
texto - sintaxe, gramática, análise de estrutura de lingua-
gem - por perguntas e respostas mecânicas) contribuiu
p~r~ e.sse declínio, ~inda assim a substituição dos livros por
histórias em quadrmhos e pela televisão é um fator crucial.
Especialistas na ciência das comunicações vêm argumen-
tando cada vez mais que a substituição dos textos escritos
por imagens, da linearidade transparente por espaço opa-
co, quase inevitavelmente conduz a um conteúdo mais pri-
Do crime aos negócios
o CRESCIMENTO DO CRIME ORGANIZADO
acarretou o problema de se encontrar escoamento para os
lucros acumulados. Numa sociedade capitalista, qualquer
quantia razoável, não despendida em consumo corrente,
tenderá a se transformar em capital, a render juros e a partici-
par na distribuição geral da mais-valia social. Os grandes
gângsteres sempre foram grandes perdulários; entretanto, du-
rante as décadas de 20 e 30, a renda desses homens aumen-
tou muito mais rapidamente do que seus gastos, criando,
dessa forma, um crescente problema de investimento. Este
problema se tornou verdadeiramente explosivo nos anos 40
e 50, quando o crime organizado concentrou-se no tráfico
de drogas, aumentando consideravelmente seus lucros. Em
1978, o retorno anual do sindicato do crime nos Estados
Unidos foi avaliado em torno de 62 bilhões de dólares
(Charlier e Marcilly, p. 10), sendo que os lucros do crime
são regularmente estimados pela revista Business Week co-
mo parte da economia clandestina.
O capital acumulado através do crime se dirigiu pri-
meiramente para a indústria de roupas de Nova York antes de
procurar outras áreas. Os alvos iniciais foram o mundo dos
espetáculos, do jogo, do turismo e dos hotéis de luxo -
não só em Las Vegas ou Atlantic City, como também, por
exemplo, na Havana de Batista. A linha divisória ainda era
difusa, oscilando entre o verdadeiro crime (a prostituição,
o jogo ilegal, o protecionismo) e os negócios legítimos. Po-
rém, quanto maiores se tornaram os lucros, mais se avolu-
mava o problema de reinvesti-los com segurança, além de
158 159

manter fluxos de caixa regulares. A lógica interna da acu- Lucky Luciano), era o oitavo da lista, com uma fortuna
mulação do dinheiro-capital assumiu a lógica das ativida- avaliada em 1,5 bilhão de dólares, precedido apenas pelas
des criminais monopolistas. Uma obsessão dupla tomou famílias Ludwig, Getty, Dupont, Rockfeller, Hunt, An-
conta dos grandes gângsteres, se dirigindo para esta nova nenberg e Hewlett, antecedendo renomados monopolistas
di~~nsão: como "lavar" os lucros "sujos" como pré-re- como os Morgan, os Watson (lBM), os Loeb, os Mellon e
quisíto para sua apresentação no circuito "normal" de os Deer. A família de Morris Dalitz, também pertencente
acumulação de capital; e como eles próprios entrariam nas ao Sindicato, segundo a revista Forbes, figurava entre as
ramificações das atividades econômicas "normais" (pro- quatrocentas famílias, junto com seu colega Robert Vesco.
dução, transporte, distribuição, finanças), onde somente é O relacionamento de Joseph Kennedy com o crime organi-
~o~sIvel,o aumento contínuo da reprodução de capital. A zado durante a Lei Seca é também de conhecimento geral.
umca salda, portanto, era legalizar os negócios. Uma década após a entrada do Sindicato nos negó-
A mudança para a legalização dos negócios estava cios legais nos Estados Unidos, um desenvolvimento seme-
geralmente ligada às atividades já invadidas pelo Sindicato lhante ocorreu na Itália. No período imediatamente pós-
com propósitos criminosos: obras públicas e a indústria de guerra, a Máfia ainda se concentrava em torno dos pode-
construção; transportes; negócios imobiliários; ramos da rosos latifundiários, uma vez que suas ligações políticas
indústria têxtil; boates; cervejarias e destilarias; importa- com os chefes locais e regionais da Democracia Cristã ha-
ção e exportação; distribuição; esportes profissionais; na- viam servido inicialmente para suprimir ou enfraquecer a
vegação; carros de segunda mão; operação de máquinas sindicalização dos trabalhadores agrícolas e impedir a or-
caça-níqueis; e talvez manufaturas. Entretanto estes seto- ganização dos pequenos proprietários de terra. Porém, a
r~s ainda ~ram marginais e não envolviam gr~ndes negó- partir dos anos 60, ocorreram importantes mudanças eco-
CIOS.As COIsasrealmente mudaram quando o Sindicato co- nômicas. Investimentos estatais em larga escala fluíram pa-
meçou a assumir a direção dos bancos locais, passou a se ra o sul da Itália e para a Sicília. O peso relativo da agricul-
ocupar com negócios de fundos de investimento (quando tura decresceu na medida em que o impacto industrial se
Vesco comprou o IOS, por exemplo), começou a especular elevou; a fim de usufruir da repentina prosperidade, a Má-
com moeda corrente e com a movimentação do ouro e da fia siciliana transferiu o grosso das suas operações do cam-
prata, entrou em diversos ramos novos, como os negócios po para a cidade.
no mercado financeiro e na agricultura e, de maneira geral, Em seguida, a Máfia passou a ocupar os setores-cha-
tentou conduzir a grande onda de especulação desenfreada ve das indústrias de construção civil e construção de estra-
pela quebra do sistema monetário internacional de Bretton das, e como subempreiteira nas indústrias automobilís-
Woods, no início dos anos 70. ticas e de aço. Atua também na fabricação e distribuição
, ~ sucesso dos grandes gângsteres na legalização dos de peças de reposição, no Porto de Palermo e em todos
negocies pode .ser.avaliado pela sua acumulação de capital os ramos da distribuição de alimentos da cidade. Tudo isso
pessoal, que atingiu proporções astronômicas. A revista fi- foi conquistado através do exercício "normal" dos negó-
nanceira quinzenal americana Forbes passou a publicar cios monopolistas (a pressão do acúmulo de capital em lar-
regularmente, uma lista das quatrocentas famílias mais ri- ga escala), pressão política (clientelismo, suborno) e ativi-
cas do país. As três primeiras listagens (13 de setembro de dades criminais explícitas (extorsão, mercado negro, toma-
1982~incluíam pelo menos três famílias de gângsteres co- da de controle através de intimidação ou assassinato). A
nhecidos entre as maiores fortunas dos Estados Unidos. Máfia montou uma estrutura regional de poder em larga
Meyer Lansky, um dos primeiros criadores do Sindicato escala, controlando-a com mão firme e, para conquistar
(onde ocupava provavelmente o segundo lugar abaixo de esse domínio, levou a cabo, pelo menos, trinta sensacionais
160
161

assassinatos de inimigos políticos, desde os promotores de Hougan, p. 210) forneceram um volume de 50 bilh?es de
Palermo, Scaglione (1971) e Costa, passando pelo secretá- dólares para o total de ações e cotas roubadas em .cIrcula-
rio federal do Partido Comunista em Palermo, Pio La ção nos Estados Unidos. Contudo, os empreendimentos
Torre, até o general Della Chiesa (1982), chefe dos Carabi- bancários continuam na liderança. Bancos c?mpl~tos fo-
nieri e recém-nomeado prefeito de Palermo, a quem havia ram montados para servir aos interesses de financistas do
sido confiada, pelo governo de Roma, a tarefa de coman- Sindicato, como Lansky. Na verdade, segundo Hougan
dar a luta contra a Máfia siciliana.
(que cita diversas fontes), até o banco m~Is poderoso do
Avaliações sobre os rendimentos anuais da Máfia va- Oriente Médio antes da arrancada do petroleo, de 1973, o
riam nacionalmente. Uma grande parte, é claro, é prove- Intra Bank do Líbano, que faliu em 1967, diziam estar for-
niente das drogas, uma vez que após o desbaratamento da temente envolvido na "lavagem" de dinheiro; esse banco
"Conexão Francesa" , a Itália novamente se tornou o prin- também controlava o Casino du Líban, cujo gerente Mar~
cipal entrepôt do tráfico de drogas entre a Ásia e o Oriente cel-Paul Francisi (da famosa Conexão Corsa/Francesa) e
Médio e a Inglaterra e os Estados Unidos. /1 Mondo e Der apontado como um dos chefes do tráfico de drogas no
Spiegel (13 de setembro de 1982) avaliaram o rendimento Oriente Médio. .
total anual do crime organizado na Itália em 12 bilhões de A infiltração do crime organizado nos grandes neg5>-
dólares, com quase a metade desta renda proveniente dos cios "legais" - ou sua mútua interpenetração - exerce, nao
narcóticos. Cerca de 800/0 dos 200.000 empregados da in- surpreendentemente, um poderoso fascínio sobre o g~ande
dústria de construção siciliana, segundo consta, se encon- público, fornecendo um grande estímulo para os escntores
tram na folha de pagamento da Máfia. a apresentarem como um tema em torno do qual se cons-
O maior problema da Máfia, como ocorreu na década troem enredos. O que é estranho, porém, é que, embora te-
anterior com o Sindicato americano, foi a "lavagem" do di- nha havido uma proliferação de filmes sobre gângsteres,
nheiro ilegal. O grupo Sindona, que faliu durante a recessão tentando legalizar seus negócios, as últi~as déc~da~ .da
de 1970-75, e mais tarde o Banco Ambrosiano, que teve a evolução do Sindicato deixaram menos registros hteranos
mesma sorte durante a crise de 1980-82, aparentemente for- romantizados do que nas décadas antenores. Alg~~s ro-
neceram as principais saídas para este dinheiro. Portanto, po- mances nos ocorrem - A Mafia kiss (1969) de Philip Lo-
demos ver como os lucros do crime organizado, uma vez ten- raine ou The busy body (1966) e Cops and robbers (1972),
do que se infiltrar nos grandes negócios, se tornaram vulnerá- de Donald Westlake. Uma descrição bem razoável das ope-
veis às crises capitalistas, da mesma maneira que qualquer ne- rações de nível médio da Máfia pode ser encontra~a e~
gócio "legal". Em todo caso, não há dúvida de que, para a The scarlet ruse, de John D. MacDonald. Como veem, e
Máfia se legitimar, isso significou, entre outras coisas, entrar muito pouco. .
no negócio bancário. Nos últimos vinte anos, o número de Entretanto, tem havido um florescimento de. n?~os
agências bancárias espalhadas pela Itália aumentou em 83%; romances antimáfia, escritos no gênero das c~uas histórias
na Sicilia, entretanto, aumentou 586% (Le Matin, 7 de se- das revistas policiais. O primeiro deles fOI talv~z. f!'ar
tembro de 1982). Atualmente, dos 383 municípios sicilianos, against the Mafia, de Don Pendleton, livro que deu I~IClOa
apenas 66 não possuem pelo menos uma agência bancária. uma nova variedade de série noire, os romances de vmgan-
ça sádica. (Em The penetrator, o herói, como era de se pre-
Afora o negócio bancário, um dos meios mais impor-
ver, passa a fazer parte da Máfia.) Os .melhores ~~ menos
tantes pelos quais o crime organizado de todos os países
maus desta escola antimáfia foram os livros das senes Exe-
"lava" o dinheiro ilegal é através do tráfico de ações e co-
cutioner e Matt Helm e The violent world of Parker (Wes-
tas roubadas ou falsificadas: fontes oficiais (citadas por
tlake). Uma paródia cômica também deve ser citada: The
162
163

gang that couldn't shoot straight (1970), de Jimmy Breslin. ção consciente (que demonstra que não perdera inteira-
A principal tentativa de tirar proveito desta onda de mente a consciência social ou pelo menos sua sensação de
interesse público, contudo, se concentrou em simuladas culpa em relação à traição): "Eu estava com quarenta e
"revelações" da vida real e não em romances de aventuras cinco anos e cansado de ser um artista ... tinha chegado a
ficcionais. Entre eles, podemos destacar The Valachi pa- hora de me tornar adulto e vender". (Puzo, p. 34.) A iro-
pers (1969) e Serpico (1973), de Peter Maas; The last testa- nia swiftiana não é um elemento que vende livros atual-
ment of Lucky Luciano, de Martin e Hammel Gosch; Me- mente; a ironia de O poderoso chefão se tornou tão sutil
moirs, de Vito Genovese; e O poderoso chejão, de Mario que 99070 dos seus milhões de leitores não tomaram conhe-
Puzo (1969). (A estes se seguiu uma crescente lista de tra- cimento dela. Por um desvio dialético (List der Geschichte
balhos históricos sobre a Máfia; para citar apenas alguns: de Hegel) , a verdadeira ironia (ou lógica interna da
Rapporto sulla Mafia, de Mario Farinella e Felice Chilanti trama") residia no fato de que o livro acabava formulando
(196~); A Máfia por dentro, de Norman Lewis (1964); La uma verdadeira apologia à Mafia. O capo dei tutti capi é
Mafia e 10 Stato, de Emanuele Macaluso (1971); Histoire um pai de família exemplar, que protege seus amigos, faz a
de Ia Mafia, de Gaetano Falzone (1973); e Mafioso: a his- felicidade de outros, é maravilhoso em relação à caridade e
tory of the Mafia from its origins to the present day, de à filantropia, manifesta todas as genuínas virtudes e é um
Gaia Servadio (1976). cidadão-modelo. Se manda matar alguns inimigos, este nú-
O poderoso chefão, de Mario Puzo, é na verdade um mero é insignificante, comparado com aquelas pessoas eli-
livro excepcional. O autor já havia anteriormente demons- minadas pelo presidente dos Estados Unidos, pelo Judiciá-
trado uma consciência crítica social em seus esforços em rio, os Chefes do Estado-Maior das Forças Armadas ou as
estigmatizar - de uma maneira quase swiftiana - as se- grandes empresas. Portanto, por que fazer deste pobre ho-
melhanças entre a sociedade burguesa e a entidade crimi- mem o bode expiatório? Não é ele mais uma vítima do pre-
nosa nos Estados Unidos. Um dos seus primeiros ensaios conceito racial contra os ítalo-americanos?
se intitulava: "Como o crime mantém a América saudável Talvez, em última análise, a decrescente importância
rica, mais limpa e mais bela". Em outro artigo escreveu: ' dos gângsteres e do problema dos bandidos, tentando se le-
gitimar na evolução do romance policial, possa ser explica-
"Como podemos nos ajustar a uma sociedade da pelo fato de que o crime organizado - especialmente
que recruta seres humanos para lutar na guerra e, ao depois da sua transformação em outra forma de grande ne-
mesmo tempo, permite aos comerciantes lucrar com o gócio - deixou de exercer seu fascínio enquanto mistério.
derramamento de sangue? .. à medida que a socieda- Seus crimes não são mais encobertos totalmente; os assas-
de se torna mais e mais assassina, o cidadão bem ajus- sinatos, nos Estados Unidos, são cometidos abertamente,
tado, por definição, deve se tornar mais e mais crimi- assim como na Sicília, como se não tivessem nada a escon-
noso. Portanto, devemos nos atrever a dar o passo der e como se sua responsabilidade fosse de domínio públi-
definitivo." (Puzo, p. 79.) co. Desta forma, o problema deixa de ser criminológico,
no sentido de investigar um crime e identificar um assassi-
o passo definitivo seria apresentar o maior crimino- no; em vez disso, se torna um problema político-econômi-
so americano como o cidadão americano mais bem ajusta- co de como prender e desbaratar uma poderosa organiza-
do. ção. O que é necessário não é um estudo de pistas, mas
, .Contudo, como John Sutherland nos lembrou , o uma destruição dos vínculos bem estabelecidos entre o Sin-
propno Puzo contou que escreveu O poderoso chefão ape- dicato e a estrutura de poder capitalista local, regional e
nas para ganhar dinheiro. Para ele, isso significou uma trai- nacional. Não devemos esquecer que mesmo AI Capone só
164 165

foi condenado por não ter pago os impostos e não por as- sinar como uma simples fonte de lucro, ao - digamos -
sassinato. Quando as regras do acúmulo de capital passam assassinato desincorporado, ao assassino duplamente alie-
a guiar o comportamento do crime organizado, não é de nado, o criminoso sem envolvimento pessoal ou paixão,
surpreender que venham gradativamente a compartilhar de que age apenas pelo lucro. O assassino contratado pela
uma escala comum de valores com toda a sociedade. Como Máfia ocupa o lugar do amante ciumento, do devedor ar-
um chefe da Máfia disse para uma ex-companheira numa diloso ou do médico chantageado. O assassino é um profis-
famosa história: "Glória, por que você fez isso? Não sabe sional, um técnico do crime da mesma categoria que um es-
que atrapalhou os negócios?" pecialista em tecnologia espacial, rotinas de produção, ad-
Quanto mais altamente organizado se torna o crime, ministração financeira ou campanha eleitoral. O assassina-
mais o assassinato muda em sua própria essência. Conse- to perde, desta forma, sua qualidade de mistério, seu sabor
qüentemente, não pode permanecer o único ou mesmo o exótico; não mais espreita nas sombras, uma vez que a luz
principal assunto do romance policial. Só pode passar por do dia não constitui mais uma ameaça. Todos agora sabem
uma transformação no raciocínio literário semelhante ao "quem matou quem", ou melhor, sabendo "quem man-
que ocorre na vida real. O assassinato, como produto do dou matar alguém" deixaram de se incomodar com o ho-
amor, do ódio, da inveja, do crime, da má-fé, da cobiça ou mem que apertou o gatilho. A única pergunta em aberto é
da chantagem, desaparece ou descamba para a periferia da saber se o "contrato" será cumprido. Neste caso, nova-
atividade criminosa. Os membros do Sindicato não têm di- mente a linguagem é reveladora: com o conceito de "con-
reito de ameaçar o interesse corporativo por razões de pai- trato" , o assassinato proclama alto e em bom som sua base
xão individual. O criminoso individual tem tanto lugar no comum com as práticas comerciais, motivadas pela procu-
universo do Sindicato quanto o operário independente nu- ra do lucro.
ma empresa multinacional. Só a organização tem direito
de se vingar - em interesse próprio, no interesse da sua
própria segurança e para seu maior engrandecimento. No
mundo do crime corporativo, só o assassinato em prol da
Organização possui direitos de cidadania. Porém, isto sig-
nifica que apenas um dos motivos fundamentais sobrevive
ao crime: a cobiça ou a procura dos interesses materiais e
de segurança do Sindicato. O assassinato se torna anôni-
mo, no sentido mais estrito, por ser um negócio anônimo:
Crime S.A.
Desta forma, o crime corporativo reduz o assassinato
a um mero instrumento de lucro, o que não é de surpreen-
der, uma vez que o lucro é o elo comum entre o capitalismo
como um sistema, a atividade comercial e o crime organi-
zado. O preço do pecado pode ser a morte, mas o preço do
crime organizado é o acúmulo de capital. O crime organi-
zado é o capitalismo liberto das amarras da lei penal, em-
bora acatando a maior parte do código civil e, obviamente,
do código comercial. Sua forma específica de alienação
conduz ao assassinato como negócio, ao negócio de assas-
Dos negócios ao crime
o CAPITALISMO TARDIO caracteriza-se por uma
grande expansão da intervenção estatal no campo da eco-
nomia e por uma concomitante hipertrofia do Estado e do
aparato paraestatal. Isso acarreta uma não menos impres-
sionante expansão da bateria de leis, decretos, códigos e re-
gulamentos que embaraçam o empresário individual ou
uma grande empresa. Esta montanha de leis é cada vez me-
nos respeitada na vida cotidiana.
Em primeiro lugar, por razões objetivas. Tornou-se
praticamente impossível observar ou respeitar tal volume
de disposições legais e, às vezes, até tomar conhecimento
delas. Algumas normas contrariam outras. A opção para
os negociantes e para as companhias é então saber qual das
leis burlar ou violar, em vez de decidir se deve violar ou res-
peitar a lei.
Em segundo lugar, a hipertrofia do Estado implica
uma hipertrofia de tributação. Embora uma crescente pro-
porção de impostos - sua maior parte, tanto direta quan-
to indiretamente, na maioria dos países ocidentais - seja
paga por assalariados e funcionários e não por capitalistas,
isso não impede que o empresário, individual, a compa-
nhia e o rentier considerem intoleráveis os aumentos de im-
postos. Uma marcante contradição, significativa para todo
o período de domínio burguês, agora se aguça rapidamen-
te: entre os interesses de uma única empresa como célula
básica do modo de produção capitalista e os interesses do
modo de produção em sua totalidade. Os capitalistas se
vêem como contribuintes do fisco e desejam reduzir ao mi-
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171

nimo seus impostos. O modo capitalista de produção como gar o suborno, a corrupção e a chantagem financeira, nu-
~m todo, entretanto, necessita da expansão dos impostos a ma escala sempre crescente, se tornou virtualmente irresis-
fim de funcionar mais eficientemente durante um período tível. As diferenças em pauta existiam, não apenas entre
de crescente tensão econômica, social, militar e política. A países imperialistas e o Terceiro Mundo, mas também en-
conseqüência é que a evasão de impostos e a fraude se tor- tre os países imperialistas mais ricos e mais pobres, tendo
naram uma preocupação primordial da classe burguesa. como exemplo o mais conhecido caso de corrupção multi-
Surge uma profissão inteiramente nova, os consultores fis- nacional, o escândalo Lockheed.
cais, c~ja função é assegurar, por bem ou por mal, que Toda esta problemática se tornou tão importante nos
seus clientes paguem menos impostos do que devem - e Estados Unidos que foi realizada uma investigação no
se possível, nenhum. Brechas na lei são encontradas, assim Congresso, resultando na adoção da Lei sobre Práticas
como proliferam refúgios para escapar dos impostos: luga- Corruptas, de 1977. O assunto também resultou em diver-
res como a ilha de Man ou as ilhas Channel e até países co- sos livros. Um deles, com o eloqüente título Bribery and
m~ Luxemburgo, Liechtenstein, Andorra, Mônaco, as extorsion in world business~ de Neil H. Jacoby, Peter Ne-
Caimãs e as Bahamas, com significativas porções de suas hemkis e Richard Eels, faz a seguinte exposição sucinta so-
rendas globais provenientes destas funções. bre as formas ilegais utilizadas pelos círculos comerciais
Em terceiro lugar, associações de empregados, asso- con temporâneos:
ciações comerciais, câmaras de comércio e, acima de tudo,
enormes empresas usam lobbies para manipular o enqua- As revelações de que várias centenas de grandes
dramento e a aplicação prática de leis que pretendem re- empresas comerciais norte-americanas deram propi-
gulamentar atividades comerciais em campos específicos nas a figuras políticas estrangeiras e funcionários de
ou ramos da indústria, de forma a favorecer e não restrin- governos, a fim de obter influência política e favo-
gir a liberdade das grandes empresas para espoliar os con- res especiais, não constituem novidade para os mais
sumidores, negar aos cidadãos uma verdadeira escolha ou bem-informados membros dos negócios, política e
impedir os concorrentes de ameaçarem seus lucros. A ativi- meios de comunicação e, devemos imaginar, nem
dade destes lobbies requer a corrupção sistemática de legis- mesmo para a Comissão de Títulos e Valores. Na ver-
ladores e funcionários estatais como foi flagrantemente dade, nos Estados Unidos a corrupção nas relações
confirmada pela operação Abscam, montada pelo FBI. empresas-governo tem sido bastante comum há bas-
Em quarto lugar, as exportações de capital dos Esta- tante tempo. (p. 172 ) ... Propinas políticas são fatos
dos Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, passaram' institucionalizados no comércio internacional. Em
por um crescimento qualitativo e, em seguida, o mesmo se quase todos os países em que se aventuraram, seja co-
deu nas operações estrangeiras das multinacionais da Ale- mo investidores ou comerciantes, os homens de negó-
manha Ocidental, Japão e Itália (os capitalistas ingleses, cio norte-americanos encontraram o fenômeno da
franceses, holandeses, belgas, suíços e portugueses já ti- propina - o hábito de subornar os funcionários do
nham experiência neste ramo desde o período que antece- governo como condição para se fechar um negócio, a
deu a guerra). Estas operações estrangeiras puseram as extorsão de dinheiro por parte dos funcionários go-
multinacionais em contato com sociedades nas quais os vernamentais que esperam (na verdade, exigem) "bo-
rendimentos médios, em todos os níveis, e os recursos dis- las" nos contratos, em troca do desempenho do seu
poníveis às companhias locais, aos políticos e altos funcio- poder discricionário; políticos extraindo contribui-
nários estatais, eram de tal modo inferiores aos predomi-
nantes nos seus países de origem que a tentação de empre- * "Suborno e extorsão no mundo dos negócios".
173
172
Na verdade, estas práticas se tornaram tão comuns
ções para a campanha e para o partido, freqüente-
que um novo conceito foi criado para descrevê-Ias (parece
mente sob coerção ou ameaçando a segurança dos in-
que pelo criminologista Edwin Sutherland: crimes de cola-
vestimentos. (p. 4) ... Políticos corruptos geralmente
rinho branco, cujo equivalente alemão é Wirtschajtsver-
designam uma conta numerada num banco suíço para
depósito de pagamento, embora os políticos japone-
brechen). Um estudo publicado em 1977, pela American
ses pareçam preferir remuneração em ienes, receben- Managernent Association, "Crimes contra os Negóci?s",
avaliou os frutos anuais da delinqüência do colarinho
do essas quantias diretamente. Ao fazer um pagamen-
branco em 30 a 40 bilhões de dólares. Segundo o grupo de
to ao antigo presidente-general de Honduras, Oswal-
pesquisa de Ralph Nader, nos Estados Unidos, no início da
do Lopes Arellano, a United Brands depositou 1,25
década de 70, o custo anual de práticas monopolistas ile-
milhão de dólares numa conta bancária numerada da
gais para o povo americano esteve entre 48 e 60 bilhões de dó-
Suíça. (p. 6)
lares: este número foi maior ainda do que o total dos lucros
Ao todo, quatrocentas empresas norte-americanas, anuais do crime organizado nos Estados Unidos.
incluindo um terço das quinhentas maiores, confessaram O resultado de todas as mudanças citadas implica
terem pago 750 milhões de dólares em suborno durante o uma mudança radical no comportamento do burguês e da
período 1973-78. empresa em relação ao seu próprio Estado e legislação. A
Em quinto lugar, o acentuado papel do setor estatal queixa do político francês burguês Odilon Barrot sob a
na economia, através da crescente compra de bens e servi- Monarquia de Julho, às vesperas da revolução de 1848 -
ços por organismos estatais - acima de tudo as forças ar- " A legalidade está nos sufocando!" - está gradativamen-
madas, mas também as empresas públicas em setores como te se tornando a tônica dos negócios contemporâneos. A
telecomunicações, transporte de massas, energia etc. -, empresa tende a respeitar a lei cada vez menos e se torn~
aumenta da mesma forma a tentação das grandes compa- cada vez mais obcecada pela necessidade de infringir esta lei
nhias e dos empresários ricos de empregarem seus imensos na prática diária. A ilegalidade substitui a legalidade como es-
recursos financeiros para melhorar as oportunidades de trutura normal do comportamento comercial, industrial e fi-
obter pedidos ou elevar as cotas no mercado do setor pú- nanceiro.
blico. O resultado é um uso sistemático da corrupção e da Um subproduto desta mudança foi uma constante
chantagem, num grau até então desconhecido. expansão dos profissionais de Direito que foram crescente-
Por fim, no curso da própria competição capitalista, mente se organizando, estabelecendo-se como empresas
a concentração e centralização do capital atingiram tal comerciais. Grandes empresas empregam dezenas de advo-
grau na era do capital monopolista que deu margem ao gados, cuja função primordial é negociar com funcioná-
~mprego ilegítimo de altos recursos: cartéis secretos, arran- rios estatais, competidores, clientes, fornecedores e colegas
JOS fraudulentos projetados para impor um aumento de adversários. Persuadindo-os a desistir de processos ou
preços (o caso mais famoso e recente foi dos monopólios ameaçando levá-los à justiça (o que é inevitavelmente de-
americanos de equipamento elétrico, que culminou num morado e custoso) - na verdade exercendo uma forma de
famoso julgamento em 1960-61); operações fraudulentas chantagem -, esses profissionais conseguem aumentar .os
tais como a tentativa, em 1973-74, das companhias de pe- lucros da empresa ou diminuir suas perdas. Estas negocia-
t~óleo de declarar ações antigas como papéis válidos; es- ções se estendem à própria esfera do Judiciário, onde .um.a
pionagern industrial; diminuição da qualidade dos produ- porcentagem ainda maior de casos é resolvida e?,~r~JudI:
tos vendidos ao público, sem qualquer corte corresponden- cialmente, uma vez que o número crescente de litígios so
te no preço; e assim por diante. pode conduzir a esta mesma vertente. Segundo o Le Mon-
174 175

de (31/10/82), o número de processos civis levados aos tri- tuições financeiras aparecem como principais vilões em di-
bunais de justiça da França se elevou de 439.677 em 1970 versos romances de aventuras.
para 733.879 em 1980, enquanto o número de denúncias Contudo, todos esses livros compartilham de uma
tprocês-verootcà enviadas ao promotor público cresceu no deficiência comum, que os mantém dentro da estrutura da
mesmo período de 9.878.403 para 15.368.661 anualmente ideologia burguesa. Enquanto gigantescas companhias -
(15 milhões per annum em uma população de menos de 55 individualmente ou, por implicação, denunciadas, às vezes
milhões!). em termos mais contundentes do que muitos marxistas em-
Todas estas enormes transformações no nível da prá- pregariam, o mesmo não acontece com o sistema em si.
tica não poderiam deixar de exercer uma profunda influên- Entretanto, foi o sistema capitalista que gerou estas com-
cia na ideologia burguesa predominante, cuja expressão panhias e que as reproduzirá mais e mais, mesmo que se-
privilegiada, no campo da literatura, é o romance policial. jam ocasionalmente processadas por delitos cometidos, ou
Tem havido um número crescente de romances de aventu- mesmo, raras vezes, levadas à falência. A verdade é que
ras nos quais o emprego de métodos ilegais em grandes ne- juntas formam o sistema. Assim, como se pode condenar
gócios é descrito em pormenores (na maior parte, embora todas as partes e ao mesmo tempo defender o todo? Será
não invariavelmente, com conotações negativas). Em uma questão de cegueira, ingenuidade, cinismo ou total in-
1959, William Haggard já delineava, de forma impressio- teresse material? Os escritores de romances policiais de su-
nante, em The teleman touch, as escusas, na verdade aber- cesso são, afinal de contas, uma parte da burguesia, embo-
tamente criminosas, atividades das companhias petrolífe- ra não pertençam ao nível glorioso das companhias multi-
ras. Essas mesmas companhias figuravam como vilãs em nacionais e seus dirigentes.
um número razoável de outros romances policiais, entre
eles: Sea witch (1977). Em Shall we tell the President?,
(1977) de Jeffrey Archer, a indústria americana de peque-
nas armas planeja o assassinato do presidente com a coni-
vência de um senador chantageado, a fim de impedir a
aprovação de uma lei restringindo a venda particular de ar-
mas de fogo. Os negócios escusos de uma companhia far-
macêutica na Africa é o tema de A loss of heart (1982), de
Robert McCrum. Depois da morte de Ian Fleming, John
Gardner escreveu uma continuação da série Bond, License
renewed (1981), que retratava um milionário venal com
grandes ligações no ramo da eletrônica, aviação e energia
nuclear. A poluição ilegal de um cartel da área química é
denunciada em Fever (1982), de Robin Cook. Em Basikan-
singo (1982), John Mathews retrata o próprio cartel de dia-
mantes, mostrando um juiz do Supremo (não existe lei al-
guma contra a calúnia?) metido em atividades ilegais para
assegurar seu emprego. Milionários rivais usam métodos
ainda mais criminosos (inclusive roubo em alta escala e
múltiplos assassinatos) nas suas tentativas de tomar o lugar
do chefe do cartel. Da mesma forma, bancos e outras insti-
Estado, negócios e crime
A DIFUSÃO MACIÇA DO CRIME nos países capi-
talistas desenvolvidos criou problemas específicos para a
execução da lei, primeiro (nos Estados Unidos) como con-
seqüência da Lei Seca e, mais tarde, graças à expansão
mundial do tráfico de drogas e dos sindicatos do crime or-
ganizado. A linha divisória entre a execução da lei e a pre-
venção do crime se tornou gradativamente confusa, à medi-
da que a coleta de informações foi canalizada para o cen-
tro das operações policiais. A própria natureza do crime
em massa e da violência cega e anônima assegurou que a
delação se tornaria um importante aspecto para a desco-
berta dos culpados. A polícia não poderia mais operar sem
recorrer constantemente aos delatores e informantes. Se-
riados populares da televisão americana como Kojak e
Starsky e Hutch tiveram o mérito de oferecer provas vi-
suais, por assim dizer, desta nova estrutura: o delator orga-
nicamente integrado na equipe dos honestos defensores da
lei e da ordem.
Porém, a mudança não foi só esta. Os delatores não
podem exercer suas funções sem participar de um delicado
jogo de do ut des. As informações fluem dos dois lados: do
ambiente criminoso para a polícia e das autoridades para o
submundo. Alguns crimes são solucionados ou evitados
apenas porque outros não o são ou porque permanecem
encobertos. Assim, surge uma simbiose entre os dois lados
da lei, e esta cria uma ambigüidade moral e uma corrupção
material. E não é só informação que flui dos dois lados,
mas o dinheiro também. Os delatores enriquecem, traindo
180 181

os antigos companheiros; a polícia enriquece, deixando em embora não unicamente - em áreas isentas de impostos.
liberdade certos gângsteres, ao mesmo tempo em que pren- Porém o equivalente legal ao dinheiro "quente" - i.e.,
de outros. capital excedente - tende da mesma forma a ser deposita-
Nos últimos anos, este fenômeno adquiriu dimensões do nos mesmos bancos, nas mesmas áreas isentas de im-
espantosas, como foi demonstrado pelos casos Valachi e postos. O dinheiro sujo e o limpo se confund~m na.s folhas
Serpico. Pondo de lado o complexo problema do grau de de balancetes, como também na busca da mais-valia, atra-
corrupção individual da polícia, vamos nos ater então ao vés de qualquer meio possível.
aspecto social da questão: tem-se tornado cada vez mais A fronteira que separa os especuladores inescrupulo-
impossível combater o crime organizado sem tolerá-Io e, sos, os vigaristas que operam em grande escala no campo
na verdade, favorecê-Io, tanto pelos métodos empregados dos negócios legais e os bandidos inequívoc?s est~ se tor-
quanto pelos resultados obtidos. Um excelente exemplo nando cada vez mais tênue. A empresa de investímentos
disso é dado pelo tráfico de drogas. Investors Overseas Services (IOS) é um exemplo. Barny
Os motivos são óbvios. O crime organizado, em vez Cornfield deu início ao seu gigantesco conto-do-vigário,
de ser periférico à sociedade burguesa, emana crescente- não como um trapaceiro vulgar, mas como um especula-
mente das mesmas forças propulsoras socio-econômicas dor aventureiro, extrapolando imprudentemente as ten-
que governam a acumulação de capital em sua totalidade: dências crescentes do pós-guerra em um futuro ilimitado.
propriedade privada, competição e produção generalizada Este erro de cálculo custou a seus incautos colaboradores e
de bens (economia monetária generalizada). O grupo pop investidores milhões de dólares provenientes de quase dois
sueco Abba resumiu a situação de forma eloqüente: "Di- bilhões de dólares em depósitos que ele havia coletado;
nheiro, dinheiro, dinheiro - o mundo é dos ricos". (O mas isso não foi tudo, pois um vigarista contumaz, Robe~t
destino deste grupo é uma vívida ilustração desta lei: com o Vesco assumiu a direção e simplesmente roubou 224 rm-
enorme lucro obtido pelos discos, o grupo logo criou um lhões de dólares, que incorporou a seu patrimônio com a
fundo de investimentos e contribuiu em grande escala para cumplicidade das maiores autoridades ~e diversos países,
os cofres eleitorais da coalizão do partido burguês.) Po- começando com as Bahamas e a Costa RIca.
rém, um mundo de ricos é também um mundo de gângste- Outros salafrários foram capazes de operar somente
res, especialmente porque os principais gângsteres se tor- com a cobertura dada pelas maiores autoridades dos Esta-
naram cada vez mais ricos em termos relativos e são com dos Unidos. Na década de 60, um empresário texano con-
certeza qualitativamente mais ricos do que o policial mais seguiu acumular 20 milhões de dólares através de negocia-
rico ou a massa esmagadora de políticos. (O próprio Nixon tas com falsas ações de fertilizantes, explorando com maes-
tinha consciência desta disparidade.) tria a cobiça de capitalistas particulares e os meandros da
O problema econômico chave para o crime organiza- legislação estatal burguesa. Pouco depois, um grupo de
do, como vimos, era encontrar saídas legítimas para o ca- brilhantes financistas montou a Equity Funding Inc., cujos
pital ilegalmente acumulado. Sob o capitalismo tardio, isso balanços anuais atestavam que a firma investira 20 milh.ões
é apenas um reflexo específico - talvez paradoxal e até de dólares em ações num banco do centro-oeste amenca-
grotesco - de um problema mais geral: o encontro de no além de milhões de dólares em fundos mútuos (entida-
áreas de investimentos adequados para massas de capital de~ fideicomissas): a verdade é que a Equity Funding nu~-
excedente. Entretanto, os dois fenômenos não se encaixam ca possuíra quaisquer ações ou empresta~a qualquer di-
simplesmente, mas na verdade tendem a fluir um dentro do nheiro aos fundos mútuos (Rayrnond Dirks e Leonard
outro, se interpenetrando. O dinheiro ilegal é "lavado" Gross: The great Wall Street scandal). . .
através de depósitos bancários localizados - geralmente, No que concerne a determinadas e importantes ativi-
182 183

dades estatais, as coisas não funcionam fundamentalmente namente revelada por algum incidente específico como a
de maneira ?iversa, Ao desempenhar seu papel de prote- fracassada operação da Baía dos Porcos, encetada contra a
ger, expandir e sustentar as operações estrangeiras das Revolução Cubana, na qual a CIA, o governo americano
companhias norte-americanas e os interesses mundiais do (tanto a administração Eisenhower, quanto a administra-
capitalismo aAme~icano, o Estado americano teve que criar ção Kennedy) e a Máfia estavam envolvidos. (Há rumores
su~ess.Ivas agencias de ação secreta em nível internacional: persistentes relacionados à possível conexão entre estes
~n~e,Iro ,a OSS, em seguida a CIA (cujo primeiro diretor acontecimentos e o assassinato do presidente Kennedy.)
significativamenjj- foi um banqueiro e irmão do secretário Uma idêntica simbiose é ilustrada no famoso caso do
de Estado), Toda uma biblioteca foi publicada sobre as SAC na França, originalmente uma polícia particular utili-
operações ilegais, ou realmente criminosas, montadas no zada pelos gaulistas durante a luta contra a OAS, nos últi-
e~tenor por estas agências, com diversas das mais impres- mos estágios e imediatamente após a guerra contra a Argé-
sionantes revelações vindas dos próprios ex-mernbros da lia. Mais tarde, o SAC se tornou o exército secreto dos
C: IA. _A infiltração de informantes nas mais diversas orga- gaulistas, sendo usado contra todos os tipos de inimigos
m~açoes - _desde a~sociações culturais e grupos estudantis políticos. Por fim, degenerou numa quadrilha de malfeito-
at~ federações de sindicatos e agências de espionagens ri- res que instituíram um enorme e sangrento registro de vio-
vars - anda J~nto, por um lado, com o sistemático empre- lência, tortura e assassinatos; depois que Mitterrand subiu
?o d~ corrupçao e, por outro, com o apelo direto ao crime, ao poder e seguindo-se um devastador inquérito parlamen-
mclUl~?O o assassinato. Torturadores são treinados, gol- tar em conseqüência da execução de um líder local do SAC
pes ml~Itare~ preparados e organizados e governos conside- e sua família (ao todo sete pessoas) no sul da França, o ór-
rados insuficientemente amigos do capital americano ou gão foi, por fim, oficialmente dissolvido.
que têm, a audácia de nacionalizar empresas de propri~da- Entretanto, até hoje, o exemplo mais revelador desta
d~ amencana são sistematicamente derrubados. Às vezes, crescente simbiose entre o crime organizado, grandes negó-
tais operações são planejadas e executadas em conjunto cios e o Estado foi o ocorrido entre o Banco Ambrosiano,
com as empresas envolvidas, como no caso da conspiração a Máfia e os Estados do Vaticano e da Itália. Quando o
da ITT com o auxílio da CIA e do Pentágono contra o go- Banco Ambrosiano faliu, deixando um rombo de 1,7 bi-
verno legítimo de Salvador Allende. lhão de dólares, foi revelado que seu principal diretor, Ro-
Dentro dos Estados Unidos e outros países ociden- berto Calvi, mantinha estreitas ligações com o desonesto
tais, agências de polícia política como o FBI também estão banqueiro Sindona, cujos bancos haviam falido, tanto na
Igualmente comprometidas na infiltração em grande escala Europa quanto nos Estados Unidos, em 1975. Além disso,
de organizações tidas como hostis à sociedade burguesa, Sindona estava ligado aos principais círculos financeiros
geralmente sem qualquer autorização legal ou justificativa italianos, (com cujos membros colaborava para burlar o
O difundido emprego de delatores, telefones grampeados' fisco e para a exportação ilegal de capital), assim como à
su?ornos, perjúrio e atividades igualmente escusas e ile~ Máfia. Tanto Sindona quanto Calvi mantinham estreitas re-
gais; a concessão de perdões oficiais para crimes confesses: lações com diversos segmentos do Vaticano e com políticos
a indulgência em relação ao terrorismo de direita e à vio~ do Partido Democrata Cristão. Na realidade, o principal
lência con~ra os sindicatos a ponto de acobertar os culpa- banco do Vaticano, o Instituto per le Opere di Religione
dos: tudo ISSOfaz parte do arsenal à disposição do apare- (lOR), havia dado garantias provisórias para determinadas
lho estatal contemporâneo. operações do Banco Ambrosiano na América Central, envol-
, As vezes acontece que a simbiose entre os órgãos es- vendo companhias controladas pelo 10R no Panamá, opera-
tataís, os grandes negócios e o crime organizado é repenti- ções estas que encobriram talvez enormes transferências ile-
185
184

gais de capital e atividades especulativas. A surpresa da opi- drogas entram em choque com estes importantes bandidos,
nião pública chegou ao máximo quando soube que o arcebis- uma avalanche de retórica patriótica é desencadeada, pre-
po Marcinkus, diretor do IOR, havia sido longamente inter- textando a necessidade de defender "os recursos naturais"
rogado pelo FBI, em 1977, por supostas ligações com a Má- contra o imperialismo ianque!
fia, que possivelmente queria usar as facilidades extraterrito- É importante notar que o segredo desta crescente
rias do banco do Vaticano, na Itália, para "lavar" o dinheiro simbiose não se situa em qualquer conspiração obscura e
ilícito, da mesma forma que diversas famílias italianas, mais satânica ou numa natureza humana congenitamente per-
ricas, utilizavam estas mesmas facilidades para fugir dos im- versa. Na verdade, localiza-se no multidifuso poder do di-
postos e exportar capital. 1 nheiro, sua magnética capacidade, sob a produção gene~a-
Este episódio foi apenas o mais recente e o mais dra- lizada de bens, em atrair mais dinheiro e mais poder (mais-
mático de toda uma série que refletiu as ligações entre a vi- valia e uma crescente penhora com relação ao Estado). Se
da política e econômica italiana e o crime organizado. O as instituições de economia de mercado forem extintas, es-
papel desempenhado pelo tráfico de armas ilegais, no ta simbiose desaparecerá; entretanto, se as suprimirmos, o
montante de 1 bilhão de dólares, na concretização das rela- crime, a corrupção, a cobiça e o poder do dinheiro parcial-
ções entre as facções locais do Partido Democrata Cristão mente desaparecerão e parcialmente sobreviverão entre os
e a Máfia siciliana é bastante conhecido. No sul da Itália, burocratas. Isto foi precisamente o que ocorreu na União
atualmente, as Brigadas Vermelhas parecem ter-se juntado Soviética, China, Europa Ocidental (onde o romance poli-
a esta aliança espúria entre os chefes locais da Democracia cial também desapareceu parcialmente e parcialmente so-
Cristã e os bandidos da Camorra, protestando, numa fór- breviveu; mas isso já é uma outra história). 2
mula pseudomarxista, que os movimentos sociais mobili- Talvez a melhor ilustração da distância que esta sim-
zados por estas forças representam uma "luta justa do su- biose do Estado, grandes negócios e crime alcançou seja
perexplorado subproletariado", embora nos pareça bas- ilustrada pelo fenômeno dos "fantasmas", isto é, antigos
tante forçado considerar os bandidos milionários da Ca- agentes de segurança do governo ou do exérci~o que mon-
morra como subproletários! taram agências de segurança para defender os interesses de
Por fim, o que dizer dos insistentes e abalizados rela- organizações particulares ou de milionários (inclusive
tórios, segundo os quais as principais fontes do forneci- gângsteres) geralmente por meios ilegais ou abertamente
mento mundial de heroína - o chamado Triângulo Dou- criminosos. Uma vez que são, na maioria das vezes, usados
rado, nas fronteiras da Birmânia, Tailândia, Laos e China para "negócios escusos" pelas agências oficiais de segurança
- eram parcialmente controladas pela CIA (junto com como o FBI ou a CIA, SAS ou M15, a linha divisória entre os
uma rede de transporte que levava a droga para o Oriente "fantasmas" e as verdadeiras agências governamentais nunca
Médio, Europa e Estados Unidos)? Do outro lado do mun- é claramente demarcada, conforme ficou demonstrado no es-
do também, em países como Bolívia, Peru e Colômbia, as cândalo Watergate.
drogas superam o conjunto de exportações. Los narcotra- A formidável expansão da "comunidade" de segu-
ficantes controlam os membros principais do exército e da rança dos Estados Unidos durante e após a Segunda Guer-
política, incluindo até recentemente, na Bolívia, o presi- ra Mundial foi o resultado mais imediato deste fenômeno.
dente da República, general García Meza. Porém, quando A comunidade possivelmente esteve envolvida com cerca
funcionários da agência norte-americana de combate às 2. Foi recentemente publicado em Cuba um livro tratando c?m
simpatia o romance policial. Um membro do Comitê Central do Part.ldo
1. Ver God's banker, de Rupert Cornwall, Londres, Gollancz,
Comunista da Bulgária é o autor de romances policiais de grande difu-
1983. Ainda mais controverso é The Vatican connection, de Richard
Hammer, 1982. são na Europa Oriental.
186 187

de meio milhão de agentes ou colaboradores, o que signifi- The era of Trujillo). O "fantasma" Mitch Werbel organi-
ca que é enorme o número de antigos membros da seguran- zou as cenas de fundo de uma invasão para um filme da
ça liberados pela natural renovação de pessoal e pelos ex- CBS - cenas que serviram como camuflagem para uma
purgos periódicos conjunturais (como o ocorrido após o verdadeira invasão planejada contra o Haiti, a fim de mon-
Watergate). Uma vez que só é possível sobreviver na socieda- tar na ilha uma central de operações mais eficiente do que
de capitalista pela venda da força de trabalho (a não ser que o a d~ Miam{ para ser utilizada contra a Revolução Cubana.
indivíduo seja rico), uma vez que a força de trabalho é deter- O coronel Àllen Bell, dono da Dektor Counter-Intellige~ce
minada parcialmente pela habilidade e uma vez que a única Inc., possui uma enorme lista de gigantescas ~~mpa~hl~s
habilidade que os agentes secretos geralmente possuem é o americanas entre seus clientes. Os "fantasmas da Fideli-
que pode ser eufemisticamente denominado "serviços de se- facts tentaram juntar material incriminatório para ser usa-
gurança", foi absolutamente inevitável que uma enorme rede do contra Ralph Nader, a favor da General Motors, além
particular de segurança fosse gerada pelo vasto aparelho poli- de assumir a proteção do banco de dados da IBM.
cial do Estado.
Entretanto, a demanda se desenvolveu na mesma Talvez a mais audaciosa de todas as operações co-
proporção que a oferta. As operações mundiais das multi- merciais executadas pelos "fantasmas" tenha sido aquela
nacionais as colocavam face a face com governos, funcio- montada, em meados da década de 50, por Robert Maheu,
nários públicos e agências estatais em choque ou conluio. antigo homem de confiança do bilionário H?ward .Hug-
Os grandes interesses da competição monopolista aumen- hes contra o magnata grego Aristóteles Onassis, Forjando
taram com a riqueza e o poder das grandes companhias, do~umentos, manipulando tribunais americanos e usando
enquanto a explosão do know-how eletrônico criou um aparelhos de escuta eletrônicos em grande escala, Maheu
verdadeiro arsenal para o crime industrial e financeiro. tentou levar Onassis à falência, ou pelo menos sabotar a
Desse modo, não é de se surpreender que crescesse uma de- negociação que lhe daria o monopólio no transporte d~ pe-
manda ilimitada por trabalhos de inspeção, gravação, tróleo da Arábia Saudita. Em favor de quem estava agmdo
gramp mento telefônico, espionagem e roubo industrial, Maheu? Do cartel de petróleo? Alguma facção da CIA?
interceptação de dados eletrônicos (e às vezes dos fundos Um competidor? Todos esses interesses em colaboração?
controlados por eles) e até assassinatos. Provavelmente nunca saberemos.
Os Fantasmas, de Jim Hougan (1978) descreve um Estas sensacionais atividades não poderiam deix~r ?e
número de escândalos internacionais, conhecidos e obscu- inspirar um novo subgênero, ,o roma~ce _ policial
ros, que ilustram as diferentes dimensões deste novo fenô- "verdade", no qual o tema central e a conspiraçao, geral-
meno. A maior parte das pessoas já terá ouvido falar das mente acompanhada de picantes "~evelações", ~?strando
tentativas de assassinar Fidel Castro por parte de antigos o que realmente acontece nos bastidores da POhtIC~ m~n-
agentes, em conluio com a CIA (ou facções dentro dela), e dial. Especialmente a partir de Watergate, as conspiraçoes
com gângsteres de Miami. Não tão conhecido é o fato de descritas , em sua maior parte, envolvem hipotéticos presiden-
. .,
que o "fantasma" Walt Mackem planejou uma invasão na tes dos Estados Unidos, criações mal disfarçadas ou ll1~agma:
pequena ilha de Ábaco com o propósito de estabelecê-Ia rias. Também deparamos com reencarnações do falecido Xa
como uma entidade independente, separada das Bahamas. do Irã; políticos da Arábia Saudita, xeques do petróleo e seus
Foram os "fantasmas", a serviço de dois ditadores assassi- intermediários libaneses, ministros de Israel, generais ou che-
nos, os responsáveis pelos assassinatos do antigo embaixa- fes do Mossad, terroristas internacionais; gananciosos ban-
dor do Chile em Washington, Letellier, e de um famoso queiros suíços, políticos alemães planejando um quarto
basco especializado em República Dominicana (autor de Reich, milionários italianos maquinando golpes militares,
188

com ou sem a ajuda da Máfia, inúmeros agentes da KGB ou


do Serviço Secreto chinês; e assim por diante.
Exemplos deste novo gênero incluem O dossiê Odes-
sa (1972), de Frederick Forsyth; The Holcrojt Covenant
(1978), de Robert Ludlum, os excelentes livros de Morris
West, A salamandra (1977), Arlequim (1974) e Proteus
(1979); Side ejject, de Robert Hawkey (1979); e Presiden-
tial emergency (1978), de Walter Stovall, onde um hipotéti-
co presidente dos Estados Unidos abandona realmente o
país, partindo para a República Popular da China! Ro-
mances deste tipo adquirem uma certa dimensão "fantas-
magórica" quando escritos por antigos altos oficiais dos
governos ou titulares destes cargos: como exemplos pode-
mos citar o livro do ex-vice presidente Spiro T. Agnew,
The canfield decision (1976), e um mal disfarçado roman à
c/ej, The Company (1976) de John Ehrlichmann, antigo
assessor principal de Nixon na Casa Branca.

De uma função integrativa a


uma função desintegrativa
do romance policial
A FUNÇÃO IDEOLÓGICA do romance policial não
é simplesmente objetiva, oriunda da influência que ele exerce
sobre a maioria dos leitores ou do tipo de idéias que ajuda a
difundir ou, ainda, da forma pela qual essas idéias legitimam
a sociedade burguesa e seus valores. Pelo menos durante todo
um período histórico, essa função foi também o resultado de
uma escolha consciente dos próprios autores.
É revelador o estudo das biografias de alguns dos
mais famosos autores dos romances policiais, demonstran-
do até que ponto alguns deles, como Sir Arthur Conan
Doyle, Dorothy Sayers ou G. K. Chesterton, eram ultra-
conservadores e protetores da ordem estabeleci da (sem fa-
lar de escritores menores como E. Philip Oppenheimer,
grotescamente vituperando contra "conspiradores bolche-
vistas" na Inglaterra da década de 20, ou Edgar Wallace,
que declarava odiar os trabalhadores ingleses).1
Autores neoclássicos como Dashiell Hammett, Geor-
ges Simenon, Claude Aveline e Rex Stout representavam
um fenômeno tipicamente transicional. Hammett traba-
lhou durante oito anos na agência Pinkerton, formando gru-
pos contra grevistas e organizações esquerdistas. Em seguida,
transferiu-se para uma agência de detetives particulares sem
ter qualquer envolvimento com a luta de classes, passando a
escrever, mais tarde, para as revistas policiais e, por fim, os
romances policiais propriamente ditos. Esse processo evoluti-

I. Declaração semelhante foi feita pela romancista de elite Vita


Sackville- West.
192 193

vo foi consciente: Hammett sentia-se mal em ajudar os pa- rante o surto desenvolvimentista da década de 20, mas per-
trões a combater os trabalhadores grevistas e deliberadamen- deu todo o dinheiro durante a Depressão. Depois alcançou
te preferiu mudar de emprego. (Dizem que certa ocasião re- fama e fortuna outra vez, dez anos mais tarde, como escritor
jeitou uma oferta da Anaconda Copper para assassinar o lí- de Hollywood. Embora descrevesse seu herói, Philip Marlo-
der operário Frank Little.) O próprio Hammett escreveu so- we, como um rebelde contra uma sociedade corrupta, o pró-
bre esta escolha. Em seguida, foi cada vez mais atraído para prio Chandler acabou por adaptar-se à corrupção, não só
o meio literário de esquerda, tornando-se amante da escritora material, como também moral, ao apoiar o macarthismo.
comunista Lillian Hellman. Isso, no entanto, não significou Em contraposição, Claude Aveline foi membro do
que os romances por ele escritos após esta mudança na sua vi- Partido Comunista Francês (ou pelo menos simpatizante),
da se opusessem explicitamente aos valores burgueses: nada na época em que escreveu diversos romances policiais.
fizeram neste sentido, como já tentei demonstrar num capítu- Essa mudança, na qual esses romances representam
lo anterior, embora deixassem de tratar os que se opunham à uma transição, se tornaria mais evidente com O advento do
lei, à ordem, à propriedade ou aos bons costumes como cri- romance policial de espionagem. A própria natureza do es-
minosos óbvios. pião como agente de um poder estatal (embora hostil e es-
Rex Stout seguiu uma trajetória bastante diferente. trangeiro) significou que o serviço ao Estado, e portanto a
Dizem que começou sua carreira literária como um radical natureza do Estado e a própria natureza da lei e da ordem,
confesso, talvez até como simpatizante do Partido Comu- deixou de ser identificado com o Bem absoluto, contra o
nista. Mais tarde se posicionou politicamente à direita, co- qual somente o Mal poderia protestar. O caráter relativo e
mo demonstrou nas óbvias concessões feitas ao macarthis- ambíguo da lei e da ordem entrou então no romance policial
mo, em alguns dos seus romances. Embora nem mesmo em grande escala. Algumas leis são boas, algumas, más; um
seus primeiros trabalhos (alguns de seus melhores livros co- sistema deve ser mantido, outro combatido. Isso tudo não é
mo Fer de lance ou Too many cooks) constituam qualquer mais ideologia burguesa na sua forma essencial.
tipo de rompimento com a ideologia burguesa, apresentam
A ruptura na função integrativa do romance policial,
um retrato bastante mais ambíguo da classe dominante do
que histórias, digamos, de uma Agatha Christie. em relação à sociedade burguesa, foi consideravelmente am-
pliada com a explosão da violência (na maíor parte das vezes
Georges Simenon, numa discussão com J. A1twegg cega) na década de 50; com o difundido emprego de delatores
(Die Zeit, 2 de abril de 1976), declarou categoricamente: pela polícia e o conseqüente aumento de interpenetração de
polícia, delatores e criminosos; com a penetração em grande
Noventa por cento da população ... são escra- escala no comércio legal por parte do crime organizado, en-
vos ... incluindo os mais altos e mesmo os mais eleva- quanto o primeiro cada vez mais passou a utilizar os métodos
dos assalariados, escravos que não se dão conta de ilegais ou efetivamente criminosos; com a crescente simbiose
que são explorados por uma ínfima minoria. E esta entre o crime, os grandes negócios e o Estado fortalecido.
minoria não representa sequer os outros 100/0 da po- Como vimos, estas evoluções tiveram seu reflexo nos roman-
pulação. Mesmo nossos políticos, quer saibam ou ces policiais e de aventuras.
não, estão real e verdadeiramente sob a influência de Por necessidade, este reflexo afastou-se de qualquer
algumas companhias que dominam tudo e todos. representação maniqueísta da sociedade. Embora o crimi-
noso não fosse encarado, de uma forma geral, com maior
Raymond Chandler é a exceção neste grupo de escri- simpatia do que antes, a ordem estabelecida se tornou gra-
tores. Participou das grandes negociatas petrolíferas du- dualmente mais e mais ambígua, mais e mais proximamen-
194 195

te identificada com os métodos suspeitos, a corrupção, as na França pelo governo "socialista" de Mitterrand e Mau-
transigências quanto aos valores básicos. O que era antiga- roy.
mente válido em relação aos Estados estrangeiros hostis, no O conteúdo ideológico alterado do romance policial
romance de espionagem, atualmente passou a ser mais válido e de espionagem e o novo papel trágico do herói são mais
em relação ao próprio país do escritor. A lei e a ordem deixa- bem ilustrados por toda uma série de livros que surgiram
ram de ser o Bem absoluto, para se tornarem algo relativo, na década de 60: os mais notáveis foram O espião que veio
ambíguo e duvidoso. O combatente individual contra o crime do frio (1963) e os subseqüentes romances de John Le Car-
- seja detetive particular ou "tira" honesto - deixou de ser ré, além de The billion doI/ar brain de Len Deighton.
um autoconfiante herói "positivo", sob o ponto de vista bur- Atualmente "nosso" sistema é descrito como sendo (qua-
guês, para se tornar uma figura quase trágica, operando den- se) tão mau quanto o "deles". O que é pior, à medida que
tro de um limite e a serviço de um Sistema no qual acredita o herói combate o inimigo, ele não só tem plena consciên-
cada vez menos e que até começa a odiar e desprezar. cia de estar defendendo uma causa dúbia, como também
A biografia de Graham Greene oferece uma marcan- espera ser gradativamente traído e apunhalado pelas costas
te imagem desta evolução, como se pode atestar através de pelos próprios chefes. Muito gradualmente o herói volta,
seus romances. Greene começou a vida como um agente mais uma vez, para o papel de "rebelde" e não de um de-
conservador do Serviço de Inteligência inglês, apoiando fensor da lei e da ordem. Outros famosos romances de
causas reacionárias como a luta da Igreja Católica contra a aventura recentes ilustram a mesma tendência, inclusive
revolução mexicana (O poder e a glória, 1940) e discutindo Parque Gorky (1981) e Maratona da morte (1974). Neste
sobre a necessária função misericordiosa da religião em um último, a diferença entre os "bons" espiões (nosso lado) e
contexto de miséria humana (Brighton Rock, 1938; O co- os "maus" (o outro lado) é virtualmente inexistente: os
ração da matéria, 1948). Contudo, quanto mais tomou executantes se tornaram agentes anônimos de nacionalida-
conhecimento das realidades sociopolíticas do Terceiro de desconhecida que vendem seus serviços indiferentemen-
Mundo onde operava e quanto mais diretamente se defron- te para uma série de governos (e ex-governos sob a forma
tou com a crescente maré revolucionária nesses países, de um importante criminoso de guerra nazista). Todos es-
mais aumentaram suas dúvidas sobre a causa imperialista e ses homens são, por acaso, exímios peritos na nobre arte
mais seus romances se afastaram de qualquer identificação de matar. O verdadeiro herói do livro não é mais um ho-
com esta filosofia. Em Nosso homem em Havana (1958), mem que procura um criminoso, mas um rapaz inocente,
ele apenas se limita a caçoar do sistema de espionagem im- lutando pela vida contra agentes que conspiram em nome
perialista. Entretanto, embora Greene tenha sido extrema- de desígnios absolutamente misteriosos. Por uma lógica in-
mente hostil aos guerrilheiros da Malásia e do Quênia, sua terna própria, o romance policial se aproximou bastante
atitude começou a mudar em relação ao Vietnã (O ameri- do universo de Kafka, associando-se K. com o rapaz ino-
cano tranqüilo, 1955) e, como descreveu em sua autobio- cente. A linha divisória entre o crime e a ordem estabeleci-
grafia (Ways of escape, 1980), fortaleceu-se ainda mais nu- da, o crime e o castigo, desapareceu.
ma direção antiimperialista no Zaire (A burnt-out case, Esta evolução do romance policial, é claro, significa
1961), no Haiti (Os comediantes, 1964), no Paraguai (O que ele não pode mais funcionar como um gênero literário
cônsul honorário, 1973) e na África do Sul (O fator huma- que auxilie a persuadir os leitores a aceitar a legitimidade
no, 1978). Esta evolução culminou com uma eloqüente de- da sociedade burguesa. Sua função integrativa declinou e
núncia da verdadeira interpenetração entre o banditismo e se tornou na verdade desintegrativa em relação a esta so-
as autoridades públicas (inclusive o Judiciário) em Nice, ciedade. Objetivamente, já começou a contribuir para um
no sul da França, no seu último livro J'Accuse - proibido questionamento de milhões de pessoas sobre os valores
196
197
burgueses básicos. Contudo, uma coisa é questionar ou
objetivamente minar a ideologia burguesa, e outra, bem que o herói dos romances de aventuras sofisticados tem
diversa, é rejeitá-Ia consciente e inteiramente. Isso só se que ser uma figura trágica, um pequeno-burguês (sem
torna possível quando se pode contrapor em seu lugar um qualquer sentido pejorativo), e não um protagonista revo-
novo conjunto de idéias e valores. Nada disso entretanto lucionário do proletariado. É por isso que o máximo que
ocorreu, mesmo nas mais sofisticadas variantes do roman- um romance policial sofisticado consegue atingir no nível
ce de aventuras contemporâneo.ê ideológico é revelar e intensificar a crise geral da ideologia
Em primeiro lugar, a estrutura fundamental do ro- burguesa que caracteriza o capitalismo tardio. Não pode
~a?~e policial permanece idêntica à medida que um herói atingir o ponto de romper totalmente com esta ideologia
individual se opõe a um grande criminoso, uma personifi- ou mesmo transcendê-Ia.
cação do mal, ou alguma máquina anônima. Este confron- Esta contradição básica que afeta até o resultado fi-
nal mais progressista na evolução do romance policial é
to baseado num indivíduo é coerente com o sistema bur-
guês: é simplesmente a máxima racionalização da rivalida- claramente ilustrada por dois precursores da escola crítica
de entre os detentores de bens no mercado. social: Le Breton e Friedrich Dürrenmatt. (Alguns críticos
Em segundo lugar, a revolta individual contra os va- colocam G. K. Chersterton nesta mesma categoria, mas
lores burgueses dominantes, corruptos e corruptores (sem não concordo: embora o Padre Brown de Chesterton não
falar na revolta individual contra a ordem burguesa exis- goste dos ricos ou aprove o acúmulo de capital, ele possui
tente) é, a longo prazo, ineficiente e fadada ao fracasso. É uma concepção dogmática do Bem e do Mal que é inteira-
um ~r~balho de Sísifo: elimine-se um policial corrupto e mente compatível com a defesa da estabilidade da socieda-
surgirao dez em seu lugar; suprima-se um especulador imo- de burguesa. O caso de Le Breton e Dürrenmatt é bastante
biliário inescrupuloso e brotarão imediatamente uma nova diverso.)
dúzia; combata-se um tubarão tirânico e cinco companhias Le Breton, geralmente considerado o anarquista en-
se fundirão em seguida, fazendo nascer um monopólio ain- tre os autores de romances policiais, deliberadamente
da mais ditatorial. A revolta individual inevitavelmente constrói suas tramas, não em torno de algum conflito entre
conduz a um beco sem saída: "Contra a força não há argu- os criminosos de um lado e os executantes, oficiais ou ama-
mento". Somente uma revolta coletiva, organizada, enrai- dores, da lei e da ordem do outro, mas em torno dos con-
zada nas forças sociais com um objetivo potencial e uma flitos entre os próprios criminosos. Os "bons" criminosos
vontade subjetiva de transcender à sociedade burguesa - são rebeldes individualistas, contra uma sociedade podre e
enraizada na classe trabalhadora - oferece qualquer esca- corrupta, que respeitam algumas regras, não colaboram
patória. Porém, uma revolta coletiva raramente tem qual- com os "tiras", seguem um código de honra, não traem
quer relacionamento com o conteúdo dos romances de seus cúmplices, dividem igualitariamente os lucros com os
aventuras. membros da quadrilha. Os criminosos "maus" se traem li-
É por esta razão que, mesmo nos melhores casos , é vremente, roubam os companheiros, se matam para usu-
fruir uma parcela maior da pilhagem, não hesitam em se
2. O ~ai~ bem-sucedido escritor alemão de romances policiais do pós- vender para os "tiras" a fim de salvar a própria pele, em-
guerr.a, Fnednck Werremeier, não se acanha ao declarar o interesse co- pregam as formas mais baixas de chantagem para eliminar a
mercial em manter a crítica social dentro de alguns limites: "Alguns es- competição, além de impor sua atenção sobre as mulheres.
~uda~tes me perguntaram, recentemente, que quantidade se consegue Neste sombrio e desesperado universo, a honra individual
ms~nr,. num romance policial de tamanho médio, de crítica social sem surge como o único indicador da integridade. A natureza
prejudicar a trama. Eu respondi com certa hesitação: "Por volta de
40070". (Manuscrito de Hans-Jürgen Bartelheimer, p. 44.) pequeno-burguesa ou pré-burguesa da revolta anarquista
contra a sociedade burguesa é patente.
198 199

A mesma conclusão pode ser tirada dos clássicos ro- no Comitê Central, (em inglês, 1984), por exemplo, ainda é
mances policiais de Dürrenmatt, The judge and his hang- um clássico confronto entre indivíduos bons e maus, em-
man (1950) e Suspicion (1951). O comissário de polícia bora submersos numa atmosfera nebulosa de ambigüida-
Bãrlach vê através da hipocrisia e da corrupção da socieda- de. O assassino é um agente da CIA, recrutado através da
de burguesa: necessidade vulgar e urgente de ganhar dinheiro. O herói-
detetive é um antigo comunista e também ex-agente da
"O sistema burguês não é o mais justo. Sei co- CIA, politicamente cético, preocupado apenas com aven-
mo funciona ... os grandes ladrões escapam, enquanto turas particulares, eróticas e gastronômicas. Em outras pa-
os pequenos filhotes são capturados ... um simpático lavras, a visão de mundo deste romance é tipicamente pe-
negociante geralmente comete um crime entre um queno-burguesa, com uma pitada de stalinismo na ubiqüi-
martini e o almoço, simplesmente tramando algum dade dos "agentes". De forma geral, todos os romances de
brilhante pacto financeiro: um crime que ninguém Montalban estão encharcados de uma atmosfera de melan-
suspeita seja um crime, muito menos o próprio execu- colia, ceticismo e um tédio fin-de-siêcie, bastante significa-
tante" . (p.136) tivo por ser o pano de fundo de toda uma camada de inte-
lectuais eurocomunistas. É uma cisão com o dogmatismo
Entretanto, Bãrlach reage contra este sistema social stalinista e com a hipocrisia, mas não chega a ser um passo
injusto de uma maneira puramente individualista. Pode-se em direção à maior lucidez sobre o que acontece nesta so-
até dizer que o chefe de polícia se torna um militante anar- ciedade e neste mundo.
quista antes de morrer. Ele não chega a atirar bombas, mas
monta armadilhas para os criminosos burgueses e os faz Neste contexto, devemos talvez fazer alguma menção
assassinar por terceiros. Agindo desta forma, Bãrlach se a um livro que joga Sherlock Holmes contra um assassino
coloca como um juiz do Bem e do Mal fora da lei - e às em potencial de Karl Marx, em Londres: Marx et Sherlock
vezes contra ela. Ele e só ele decide quem merece morrer e Holmes (1980), de Alexis Lecage. Embora quase beirando
como isto deve ser executado; atribuindo a um chefe de po- a paródia rasgada, este trabalho realmente faz parte de
lícia esta função e apresentando-o como um herói social- uma crescente série de tentativas de estender as aventuras
mente crítico e mesmo antiburguês, Dürrenmatt certamen- do Grande Detetive, após a morte do seu criador. (Outro
te proporciona uma guinada audaciosa e paradoxal ao ro- exemplo é Prisioner 01 the Devi! (1981), de Michael Hard-
mance policial. Entretanto, a inovação permanece dentro wick, onde o cliente de Holmes é Alfred Dreyfus, preso na
da estrutura do contraste moral entre o Bem e o Mal; da es- Ilha do Diabo!) Um candidato mais sério a ser considerado
trutura da competição individual entre herói e vilão (mesmo em oposição à ideologia burguesa é A very British coup, de
que o último, neste caso, seja um honrado membro da so- Chris Mullin (1982), no qual o editor do Tribune retrata a
ciedade). As fronteiras da ideologia burguesa, afinal, per- derrubada de um governo trabalhista de esquerda, em
manecem invioladas e as mesmas pressuposições ideológicas 1989, por uma conspiração que envolve as altas finanças e
vulgares são emitidas como aquelas resumidas por Simenon o crime organizado.
na fórmula: "O homem não muda". O melhor, mas em certo sentido o mais trágico,
Podemos ser perdoados quando esperamos que a sé- exemplo de um romance policial "desintegrativo" é The
rie de romances policiais de Manuel Vázquez Montálban, spook who sat by the door (1969) de Sam Greenlee. (A re-
ele próprio membro do Comitê Central do Partido Comu- ferência a Le Carré no título é obviamente proposital.)
nista Catalão, sejam uma exceção à norma dos trabalhos Greenlee narra a saga de um nacionalista negro nos Esta-
citados antes. Infelizmente isso não é verdade. Assassinato dos Unidos, que após se infiltrar na CIA e nas organiza-
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ções dos "trabalhadores sociais", monta uma rede de qua- melhor produto, o romance policial de consciência social
drilhas de rua juvenis com o fito de esfacelar a estrutura do surpreendentemente confirma as inerentes limitações do
poder branco, travando uma guerrilha urbana nas cidades gênero - a confrontação individual entre o herói e o vilão,
do norte do país. neste caso um herói individual face a um vilão coletivo -
O livro é evidentemente um produto da revolta dos gue- só conseguindo atingir uma consciência social parcial.
tos negros em meados dos anos 60. Contudo, o autor dei-
xou de compreender o que foi demonstrado pela experiên-
cia subseqüente. As quadrilhas de rua do tipo descrito pelo
autor não podem precipitar revoltas em massa do proleta-
riado negro e do subproletariado, ou se relacionar com a
maioria explorada da classe trabalhadora da população
branca, uma vez que defendem um ponto de vista essen-
cialmente substitucionista. Na melhor das hipóteses, estas
quadrilhas querem angariar a simpatia das massas, mas
não ajudam essas massas a se organizarem para sua auto-e-
mancipação - algo que é rejeitado como utópico. Na rea-
lidade, entretanto, a idéia de se confrontar o aparelho re-
pressivo mais poderoso do mundo com uma pequena e de-
dicada minoria, sem qualquer organização, é em si mesma
abertamente utópica - e, na verdade, obviamente suicida.
O ponto verdadeiramente trágico deste livro é que
Greenlee prova ser mais cônscio do que qualquer outro es-
critor policial, não só de como o sistema dos brancos trata
a população negra e latina nos Estados Unidos, como tam-
bém da opressiva, exploradora e desumana natureza da so-
ciedade burguesa em geral. O autor sente legítimo desprezo
por todos os liberais e reformistas (sejam eles brancos ou
negros) que estão prontos para aceitar a opressão e a ex-
ploração em troca de algumas concessões simbólicas.
Entretanto, a própria alternativa do autor é, por si mes-
ma, alienada e alienadora: uma organização secreta de elite
apenas para fins destrutivos; rejeição de qualquer organi-
zação de massa ou de auto-ajuda; falta de compreensão da
verdade fundamental de que os próprios educadores preci-
sam ser educados; de que não existe qualquer elite que pos-
sua toda a verdade desde sua base; de que apenas uma
constante interação dialética entre uma organização de
vanguarda e a espontaneidade da massa é verdadeiramente
emancipatória no sentido de poder conduzir a uma auto-
emancipação das massas. Assim, mesmo através do seu
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ções dos "trabalhadores sociais", monta uma rede de qua- melhor produto, o romance policial de consciência social
drilhas de rua juvenis com o fito de esfacelar a estrutura do surpreendentemente confirma as inerentes limitações do
poder branco, travando uma guerrilha urbana nas cidades gênero - a confrontação individual entre o herói e o vilão,
do norte do país. neste caso um herói individual face a um vilão coletivo -
O livro é evidentemente um produto da revolta dos gue- só conseguindo atingir uma consciência social parcial.
tos negros em meados dos anos 60. Contudo, o autor dei-
xou de compreender o que foi demonstrado pela experiên-
cia subseqüente. As quadrilhas de rua do tipo descrito pelo
autor não podem precipitar revoltas em massa do proleta-
riado negro e do subproletariado, ou se relacionar com a
maioria explorada da classe trabalhadora da população
branca, uma vez que defendem um ponto de vista essen-
cialmente substitucionista. Na melhor das hipóteses, estas
quadrilhas querem angariar a simpatia das massas, mas
não ajudam essas massas a se organizarem para sua auto-e-
mancipação - algo que é rejeitado como utópico. Na rea-
lidade, entretanto, a idéia de se confrontar o aparelho re-
pressivo mais poderoso do mundo com uma pequena e de-
dicada minoria, sem qualquer organização, é em si mesma
abertamente utópica - e, na verdade, obviamente suicida.
O ponto verdadeiramente trágico deste livro é que
Greenlee prova ser mais cônscio do que qualquer outro es-
critor policial, não só de como o sistema dos brancos trata
a população negra e latina nos Estados Unidos, como tam-
bém da opressiva, exploradora e desumana natureza da so-
ciedade burguesa em geral. O autor sente legítimo desprezo
por todos os liberais e reformistas (sejam eles brancos ou
negros) que estão prontos para aceitar a opressão e a ex-
ploração em troca de algumas concessões simbólicas.
Entretanto, a própria alternativa do autor é, por si mes-
ma, alienada e alienadora: uma organização secreta de elite
apenas para fins destrutivos; rejeição de qualquer organi-
zação de massa ou de auto-ajuda; falta de compreensão da
verdade fundamental de que os próprios educadores preci-
sam ser educados; de que não existe qualquer elite que pos-
sua toda a verdade desde sua base; de que apenas uma
constante interação dialética entre uma organização de
vanguarda e a espontaneidade da massa é verdadeiramente
emancipatória no sentido de poder conduzir a uma auto-
emancipação das massas. Assim, mesmo através do seu
Fechando o círculo?
ROBERT LUDLUM, em A estrada para Gandolfo
(1976), quebra uma regra essencial: o crime realmente
compensa. O crime em questão é nada menos que um se-
qüestro (embora consentido) de um papa, financiado por
um chefe da Máfia, um milionário inglês e um xeque árabe
"comprador"! Neste romance, a linha divisória entre a le-
galidade e a ilegalidade, a alta sociedade e o submundo, o
aparelho do Estado e o crime organizado, a diplomacia e a
traição, desaparece inteiramente. O herói é um general do
exército norte-americano, que em certo ponto da narrati-
va, exclama:
"Com os infernos, rapaz, passei uns trinta a-
nos neste exército de merda. Quando tiro o unifor-
me ... me vejo nu como um pato depenado. Só conhe-
ço o exército; não conheço outra coisa e não fui trei-
nado para mais nada ... a única coisa para a qual fui
treinado foi talvez para ser um bandido ... e provavel-
mente eu ia acabar me fodendo todo porque não mor-
ro de amores por dinheiro."

Seria difícil resumir melhor a crescente simbiose en-


tre o Estado e o crime sob o estímulo do dinheiro! Teria a
linha refeito toda a sua trajetória? Teriam o recurso siste-
mático dos monopolistas aos métodos ilegais, sua corrup-
ção e o aparelho do Estado que defende seus interesses
atingido um ponto onde o universo do romance policial foi
virado de cabeça para baixo e os criminosos outra vez, co-
mo na época de suas origens, se tornado objeto de simpa-
tia?
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A tendência certamente parece apontar para esta di- tal. Deve se infiltrar no esconderijo do Doutor e aba-
reção. Mesmo o falecido John Creasey em Gideon's law ter sua presa com uma única bala certeira. O Doutor é
(1971) retrata uma polícia acusada da ilegalidade brutal pa- o mais demoníaco mestre torturador surgido após os
ra com pobres vítimas de perseguição, salvos na hora "H" nazistas, o homem que ensinou requintes selvagens da
da completa catástrofe pela probidade de seu comandante sua arte aos generais chilenos, aos coronéis gregos e à
e pelos artifícios de seus auxiliares. Tem havido uma inegá- Savak do Xá do Irã. Atualmente vive nos recessos da
vel tend~ncia, nos últimos anos, para justificar, não ape- floresta guatemalteca, protegido pela CIA.
nas o cnme, mas o deslavado assassinato - até mesmo o
assassinato em massa. Em The Damocles sword (1981), de Achar possível combater a tortura através do assassi-
Adam Hall, o herói é um espião inglês, membro da classe nato de um único torturador é pura utopia, e fazê-lo por di-
alta, que se infiltra na engrenagem nazista sob o disfarce nheiro é, no mínimo, pouco ético. Desta forma, quaisquer
de um coronel da SS, para resgatar alguns cientistas do simpatias que possamos ter em relação às preferências polí-
Terceiro Reich capazes de trabalhar na bomba atômica. ticas de Holland, e seja lá a maneira pela qual possamos
Durante esta missão, mata 28 homens com as próprias odiar a profissão do Doutor e os regimes a que ele serve,
mão~, ~mpelid9 mais pela fúria homicida do que pelo dever Holland ainda assim continua sendo um assassino. Esta
profissional. E verdade que algumas de suas vítimas são transformação do assassino em herói marca uma significa-
criminosos hediondos e sádicos, embora outros sejam figu- tiva volta da forma de encarar os "bons rebeldes" no ro-
ras sem importância, como choferes de táxi ou policiais co- mance picaresco, de onde se originou o romance policial.
muns. Mesmo assim, este assassino genocida é retratado
como sendo tão justo quanto um cavaleiro em sua brilhan- Para darmos mais um exemplo, em Shibumi (1980), o
t: armadura ao final da terrível trama, como fora no ini- autor Trevanian apresenta como herói um tal Nicholai
CIO, antes de se tornar um assassino maníaco.
HeI, que se opõe à Mother Company, "um consórcio das
The Ninja (1979) de Eric Van Lustbader é outro re- principais companhias de petróleo, comunicações e trans-
cen~e romance de aventuras bem pesquisado, bem escrito e porte internacionais", que também controla a CIA e uma
cheio de "suspense", cujo personagem central é um assas- agência executiva do governo americano, e que está em
sino. Desta vez o herói mata para proteger um inescrupulo- conluio com os xeques do petróleo árabe e a OLP. O poder
so e sanguinário milionário americano, cuja vida é ameaça- da Mother Company deriva parcialmente do seu super-
da por um igualmente truculento milionário japonês (ou computador (inevitável!), que contém tantos dados que
será para se vingar, uma vez que o milionário japonês rou- "fazer as perguntas certas, da forma certa" para a máqui-
bou sua garota?) A simpatia do autor está claramente com na se tornou uma arte verdadeiramente difícil. Hei odeia
o assassino; embora um dos policiais seja apresentado tam- os "comerciantes" e os aviões bombardeiros americanos
bém de maneira simpática, os outros decididamente não após traumáticas experiências em Xangai, em 1937, e no
gozam da mesma sorte. Além do mais, o autor fecha o li- Japão, durante a guerra, onde foi aluno de um general ja-
vro, insinuando incisivamente que o assassino também ma- ponês e de um professor de Gô. Hei é, portanto, segundo
tará o milionário americano, com sua total aprovação. as palavras do autor, "o assassino mais sanguinário do
Lance Hill em The evil that men do (1978) descreve mundo", responsável pela morte de inúmeras pessoas, seja
segundo se lê na capa: ' por dinheiro ou a serviço do contraterrorismo "idealista".
Entretanto, é obviamente o verdadeiro herói do romance,
"Um assassino internacional [Holland] que, enquanto, no mesmo livro, o Serviço Secreto Britânico,
por um preço e uma causa justa, vende sua perícia le- durante uma ação combinada de rotina para encobrir seus
208 209

rastros vis-à-vis aos seus mentores árabes (sic), mata 150 policiais tiveram que se adaptar a este conceito generaliza-
dos seus próprios agentes! do , e se Simenon, Dürrenmatt, Greene. e Le Carré
. o fize-
.
Ludlum, Van Lustbader, Hill e Trevanian não são de ram em suas diversas formas pessoais, os escntores que CI-
forma alguma exceções, pois outros nomes podiam ser tei o fizeram de forma radical. Os heróis destes livros não
acrescentados a esta lista. Em Zona morta (1979) de Ste- são mais espiões ou policiais desiludidos e, sim, mais uma
phen King, um bom livro beirando o romance de "suspen- vez, criminosos.
se" e a literatura séria, o personagem principal, Johnny Não há surpresa alguma no fato de que o capitalismo
Smith, tenta assassinar um detestável demagogo que está decadente, expresso desta forma na decadência dos valores
prestes a conseguir a presidência dos Estados Unidos e pro- burgueses, devesse dar margem a padrões formais no rela-
vocar a Terceira Guerra Mundial. Tão simpáticos são herói cionamento entre criminosos e a lei, semelhantes àqueles
e sua causa que o leitor acaba ficando frustrado por ver que caracterizaram o emergente capitalismo de dois sécu-
fracassar, no fim, o planejado assassinato. Também no li- los atrás , embora a semelhança seja precisamente. apenas
vro de Robert Rosenblum The good thief, um detetive par- formal. Os "bandidos nobres" dos romances picarescos
ticular, para se vingar da morte da namorada por uma que deram margem aos romances policiais eram rebeldes
overdose , assassina dois traficantes de droga desarmados. em luta por uma causa. Como os burgueses revolucioná-
Exemplos semelhantes de vingança pessoal, como motivo rios não só sabiam o que estavam enfrentando - injusti-
para uma guerra contra o crime, já deram, nos últimos ça, tortura, intolerância, opressão, poder absolutista, cor-
anos, ensejo para inúmeros romances, histórias em quadri- rupção judiciária etc. - como também tinham total cons-
nhos, filmes e séries de televisão. Tudo isso teve seu início ciência do porquê da sua luta: a liberdade pessoal e a igual-
no seriado de Peter O'Donnell, Modesty Blaise, que fez dade formal de direitos; a justiça baseada num código de
suas primeiras aparições na década de 60. Blaise é uma re- leis escritas; a generosidade e a simpatia em relação aos
fugiada de guerra que, após uma odisséia pela Europa oprimidos e aos pobres em geral.
Oriental e pelo Oriente Médio, consegue montar uma rede de Os "bandidos nobres" dos nossos dias, contudo, são
ladrões e contrabandistas em Tânger. Modesty e Willie rebeldes sem causa, desiludidos e cínicos. Mesmo quando
Garvin, seu amigo, bastante enriquecidos através dos lu- sabem o que estão combatendo - os torturadore~ da SS,
cros do "crime seletivo" (excluindo o assassinato), acei- por exemplo, os milionários reacionários, os assassmos pa-
tam "causas justas" , exatamente como os bandidos de ou- tológicos ou traficantes de droga e seus chefõe~ -:-' não
tros tempos. Uma vez larápios, mas agora coiteiros, defen- têm noção do que estão combatendo, ou, o que e pior, sa-
dem os inocentes, os pobres e os oprimidos contra os bem que estão lutando por nada. Não acreditam mais em
"maus" bandidos de toda espécie. coisa alguma, exceto talvez na possibilidade de encontra-
A explicação para esta volta do romance policial ao rem um determinado nicho de felicidade pessoal a curto
antigo padrão do herói fora-da-Iei reside, acima de tudo, prazo. A rebelião que sentem vem da amargura e não da
no próprio clima que já citei sobre o crescente ceticismo em esperança; não do amor pelo oprimido, mas do ódi,o pela
relação à lei, à ordem e ao Estado. Um número cada vez opressão; de uma rejeição da sociedad.e .c?mo ela e, m~s
maior dos leitores de romances policiais ou de aventuras tem não de qualquer conceito sobre a possibilidade de substi-
uma atitude cínica em relação à polícia e aos mecanismos tuí-Ia por uma melhor.
legais. Os métodos policiais são vistos como não sendo de O "bandido nobre" de ontem era um pequeno-bur-
forma alguma moralmente superiores aos empregados pe- guês precursor da vindoura revolução ?urguesa; o de hoje,
los criminosos. A sociedade é considerada uma entidade um pequeno-burguês rebelde em oposição a um decadente
totalmente podre. Portanto, os escritores dos romances presente burguês, e a sensibilidade individual ou mesmo o
210 211

heroísmo não conseguem esconder a incapacidade social manismo, de qualquer reconhecimento da santidade básica
da sua própria classe. São rebeldes sem causa porque sua da vida humana e da dignidade básica de todos os seres hu-
classe não possui perspectiva social em oposição à socieda- manos.
de burguesa por não ter um futuro independente. Eles cer- A difusão dos jogos de vídeo e a feroz competição
tamente não serão os arautos de uma revolução socialista. daí resultante desencadearam uma procura frenética de ne-
Assim, o balanço desta nova revolta, este retorno sur- cessidades especiais de prestar serviços, a fim de expandir
preendente do criminoso como herói é, no mínimo, uma arn- as ações do mercado dos fabricantes. Num jogo recente,
bigüidade. É evidente que a rejeição dos valores sociais do- "Streetlife", o jogador tem de assumir o papel de um
minantes, na mais recente fase do romance policial, é um proxeneta. Sua vida, porém, não é fácil, pois possui inú-
fator desestabilizador para a sociedade burguesa. Entre- meras preocupações: deverá investir num Chrysler Baron
tanto, ao mesmo tempo, a idealização de uma vingança ou num Cadillac Eldorado? Quanto deverá pagar às suas
particular, da violência particular voltada contra os crimi- prostitutas, seus capangas, seus advogados e à polícia? Se-
nosos, é extremamente nefasta. Na verdade, estes produtos gundo as palavras do inventor do jogo, Arthur Wood (um
da imaginação correspondem a uma aterrorizante difusão, repórter de televisão, numa emissora local de Houston, Te-
na vida real, da violência vigilante, ou de "autodefesa"; xas): "Os jogadores mergulham completamente neste pa-
ajudam, portanto, a fomentar e justificar tal violência, que tético universo e só podem resolver o problema adotando
por sua vez assume crescentemente um conteúdo pré ou os valores (sic) do mais ignóbil dos cafetões". É óbvio que
protofascista, com um impulso central claramente xenófo- Woods não vê qualquer problema moral em fazer dinheiro
bo e racista - que conduz a investidas semelhantes aos através da disseminação dos "valores ignóbeis dos cafe-
progroms nas comunidades norte-africanas da França, tões": mais uma vez, non o/et. A próxima criação deste in-
asiáticas e antilhanas na Inglaterra, turcas na Alemanha, ventor dizem que é uma simulação de diferentes atos se-
negras ou hispânicas nos Estados Unidos etc. Em conse- xuais através de um computador! (Para maiores detalhes,
qüência, por uma marcante deformação ideológica, cons- ver Libération, 2 de setembro de 1982.)
tatamos que enquanto "o bom bandido" de séculos atrás, Desta forma, a evolução do romance policial reflete,
com pequenas exceções, lutava pela igualdade e contra a na verdade, a evolução da ideologia burguesa, das relações
discriminação e a intolerância, sua contra partida no final sociais na sociedade burguesa, talvez até o próprio modo
do século XX luta, de forma típica, pela desigualdade, sen- capitalista de produção. Notavelmente, um ideólogo con-
do étnica e racialmente discriminadora. servador alemão, Johannes Gross, observou a mesma cor-
Além do mais, a desvalorização da lei e da ordem respondência entre o romance policial e a sociedade bur-
dentro do romance de aventuras contemporâneo, embora guesa, tentando situá-Ia historicamente:
em si não seja censurável, pode ter efeitos que ultrapas-
sam, em muito, o simples reaparecimento do "bom bandi- Nos tempos feudais, não se poderia ter escrito
do" como herói. Qualquer espécie de crime, mesmo o mais um romance policial, mesmo porque este requer um
degradante à dignidade humana, pode ser considerado sistema legal racionaL .. O detetive do romance poli-
banal ou intrépido. Isto sublinha um ponto que já enfa- cial clássico é uma expressão de uma sociedade capaz
tizei anteriormente: que a decadência dos valores burgue- de coordenar seus próprios negócios, livre de interfe-
ses não traz automaticamente resultados positivos; pode rências externas; em nenhum dos livros, hoje tidos co-
até andar ao lado da emergência de valores sociais mais al- mo clássicos, o detetive pertence a um grupo social di-
tos, mas pode, ao mesmo tempo, se dirigir a um declínio ferente daquele no qual ocorre o crime - em outras
geral de todos os valores humanos, de qualquer tipo de hu- palavras, nas camadas mais altas da sociedade ...
212

Atualmente, o domínio do sistema burguês está acaba-


do [uma afirmação um tanto prematura! E. M.], as-
sim como acabaram as grandes ideologias do século
XIX ... e todo relato sobre a desintegração ou aban-
dono das instituições burguesas é simultaneamente
um pós-escrito ao romance policial. (Ver: "Nachwort
zum Kriminalroman", em Lauter Nachworte: Innen-
politik nach Adenauer.)

A história do romance policial é uma história social,


pois aparece entrelaçada com a própria história da socieda-
de. Se formularem a pergunta: "por que a história social
deveria estar refletida na história de um gênero literário es-
pecífico?", a resposta será: porque a história da sociedade
burguesa é também a história da propriedade e da negação
dessa propriedade - ou, em outras palavras, o crime; por-
que a história da sociedade burguesa é também a crescente
e explosiva contradição entre as necessidades ou paixões
individuais e padrões mecanicamente impostos de confor-
mismo social; porque a sociedade burguesa, e por si mes-
ma, gera o crime, tem origem no crime e conduz a ele; ou
talvez porque a sociedade burguesa seja, em resumo, uma
sociedade criminosa?

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