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Brigitte Montfort recebe a visita de um estanho representante

de um fictício país caribenho. Segundo ele, um avançado


computador a escolheu para ser a nova rainha.

© 1969 – Lou Carrigan


Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 411017 – 411022
CAPÍTULO PRIMEIRO
Um veredicto eletrônico

A enorme máquina bege, luzidia, nova em folha, estava


no centro do grande salão. Em todos os seus lados havia
botões, mostradores, telas de osciloscópio e placas com
letreiros em inglês. Era um cérebro eletrônico IBM: não
podia falhar.
Em torno dela sentia-se uma atmosfera de exatidão que
chegava a dar medo. O prodigioso engenho admitia, em sua
memória, quase quinhentas mil informações, bastando
fornecer-lhe dados suficientes para se obter a resposta
adequada — infalivelmente.
Ao seu redor, nada menos de quinze homens, cada qual
desempenhando uma missão especifica para alimentar o
cérebro. Atuavam como programadores, reunindo todos os
dados num cartão, por meio de perfuração. Concluído esse
trabalho, bastaria introduzir o cartão numa ranhura e apertar
um botão. Segundos depois, dependendo da complexidade
da pergunta, a resposta sairia numa outra ranhura
— Bem... — disse um dos homens, com voz cansada. —
Acho que tudo está preparado...
— Estamos cometendo uma loucura disse outro.
— Esperemos que não... O aluguel deste cérebro
eletrônico nos custou uma enormidade. A máquina dará uma
resposta. Tem que dar...
— Estamos perdendo tempo e dinheiro — comentou
outro dos quinze programadores. Sabemos muito bem que a
máquina não dará a resposta que nos convém, aquela de que
necessitamos. E impossível!
— Meu caro — disse o que parecia mais confiante nos
resultados: — um cérebro eletrônico é uma coisa muito séria.
Nós reunimos todos os dados necessários para que esta
máquina dê a sua resposta. Terá de responder. É tolice
discutirmos esse ponto.
— Poderíamos ter economizado esse dinheiro que
tivemos — insistiu o mais pessimista do grupo. Afinal, o que
queremos...
— Temos de fazer as coisas direito — interrompeu-o o
homem que parecia ser o chefe da equipe. Não se esqueça de
que não se trata apenas do que queremos, mas também do
que decida a máquina. Quatro milhões de pessoas estão
esperando, ansiosamente, o veredicto dessa IBM.
— É absurdo...
— Absurdo ou não, essa é a melhor maneira de
conseguirmos que todos fiquem satisfeitos. E é precisamente
isso, o que desejamos, não?
— Está bem... — deu de ombros o pessimista. — Pelo
menos não se poderá por em dúvida a nossa honestidade. De
qualquer forma, o resultado será o mesmo...
— De fato. E isso é o que nos interessa. Que importam
alguns milhares de dólares, gastos com esta máquina, se todo
mundo vai ficar satisfeito e... nós teremos o que queremos?
— Vá lá... Vejamos que resposta nos dará este cérebro
terrível. Não percamos mais tempo.
— Nisso, estamos de acordo.
O homem que parecia chefiar o grupo tinha um cartão na
mão direita. Aproximou-o de uma ranhura e os demais
ficaram com a respiração suspensa, de olhar fixo naquele
pedaço de cartolina que teria de sair pouco depois por outra
ranhura devidamente perfurado em outros pontos.
— Não sairá nome algum asseverou o inconformado. —
Uma coisa dessas não pode acontecer.
Sem lhe dar ouvidos, o chefe introduziu o cartão na
ranhura e, com gesto muito lento, apertou um botão da
fabulosa criação do cérebro humano. Tudo começou a
funcionar com o que se poderia chamar rumor eletrônico, um
misto de “sopro” elétrico e estalidos mecânicos, e apenas
sete segundos depois o cartão saia por outra ranhura, caindo
em pequena bandeja.
Durante alguns segundos pareceu que ninguém iria
recolher o cartão, tal a ansiedade que se apoderou de todos,
porém o pessimista se adiantou. apanhando bruscamente o
pedaço de cartolina e comentando, com visível descaso:
— Acabemos de uma vez com a farsa... Bastará
colocarmos este pedaço de cartolina na matriz para nos
convencermos de que fracassamos. Nenhum nome pode estar
indicado nestas perfurações.
Aproximou-se de outra parte da grande máquina e enfiou
o cartão em outra ranhura. Segundos depois saia do engenho
uma fita de papel, tipo telex, com palavras escritas. O
inconformado soltou uma exclamação e segurou a tira de
papel pela extremidade solta, perplexo.
O chefe da equipe se aproximou, esperou que a máquina
parasse de funcionar e arrancou a fita de papel, declarando:
— Senhores, a máquina deu o seu veredicto: Expediente
USA - 1007.
— Esperemos que exista de fato tal expediente —
murmurou o pessimista, visivelmente pálido de espanto.
Outro deles correu para um fichário de ferro, abrindo uma
gaveta assinalada pela sigla USA. Não havia ali mil
expedientes, mas era fácil de se compreender que o 1007
correspondia ao 7, isto é, que a numeração dos expedientes
USA começava do 1001.
— Aqui está! — exclamou o homem, virando-se para os
demais com um portfolio de plástico nas mãos..
Parecera impossível,, quando os quinze homens iniciaram
seus trabalhos, porém a IBM, depois de receber os dados dos
quase vinte e cinco mil expedientes de todos os fichários,
assimilara todas as informações, separara a pergunta final e
dera a resposta. Ali estava o expediente diante dos olhos de
todos eles.
— Bem ... animou-se o chefe do grupo. — Diga-nos o
nome contido nesse expediente, se não lhe for muito
incomodo...
O encarregado do fichário abriu o portfolio de plástico e
seu olhar pousou primeiro numa fotografia de tamanho
postal; depois, num nome escrito nessa foto. Respirou fundo
e disse:
— O nome é Brigitte Montfort Bierrenbach.

CAPÍTULO SEGUNDO
A maior surpresa da vida de “Baby”

Sem dúvida há muitas mulheres bonitas no mundo, mas


quase todas têm um defeito qualquer a lhes prejudicar a
beleza: algumas são frias, outras são antipáticas, muitas
falam demais, quase todas são narcisistas a ponto de se
tornarem inacessíveis, há as que caminham oscilantes por
terem os pés demasiado pequenos e também as que sentam
com as pernas encolhidas porque... calçam quarenta e quatro.
Mas existe uma mulher bonita que, se imitasse a terrível
madrasta de Branca de Neve e perguntasse ao espelho qual a
mais bela criatura do mundo, só poderia receber esta
resposta: “Você. Brigitte Montfort, porque, além de bela, é
perfeita em tudo”. E, nesse caso, se poderia afirmar em sã
consciência que os espelhos não mentem...
A agente “Baby” estava trocando de roupa diante do
enorme espelho biseauté do armário quando sua criada loura
Peggy entrou no quarto, muito excitada.
— Estão á sua procura, miss Montfort
— Quem, Peggy?
— Quatro homens.
— Tudo isso... — brincou Brigitte. vestindo uma blusa
transparente. — Que desejam?
— Falar-lhe pessoalmente sobre um assunto que julgam
importante.
— Hmmm... São nossos conhecidos?
— Eu não os conheço, miss Montfort.
— Estão armados?
— Se estão, sabem ocultar suas armas tão bem quanto a
senhora... Eu seria capaz de jurar que não.
— Quantas vezes eu já lhe disse que tomasse muito
cuidado com os visitantes?
— Mas é que todos são... são muito educados... tão
corretos... tão sérios...
— Se você se dedicasse á espionagem não viveria mais
que vinte e quatro horas. Eu posso contar histórias
horripilantes de cavalheiros “muito honestos e muito
elegantes”...
— Estão vestidos a rigor.
— A rigor?! Boa recomendação... Você quer dizer que
estão de camisa de peito duro e casaca?
— Isso mesmo, miss Montfort.
— É formidável! Estarão por acaso falando russo? —
sorriu a espiã internacional.
— Não, miss Montfort!
— Ótimo. Vou atendê-los. Recolha uma ampola de gás
de minha maleta e vá pelo outro corredor. Não perca o
menor detalhe o que ocorrer no salão. Se as coisas não
andarem bem lance a ampola contra nós.
— Mas... a senhora também dormiria...
— Um sono até que me faria bem. Peggy. Além disso,
quando eu despertasse não estaria de pés e mãos amarrados,
com Johnny e tio Charlie dispostos a me passar uma
descompostura. Por outro lado, esses quatro cavalheiros
elegantes estariam em péssima situação. Se Frankie
telefonar, diga-lhe que me venha buscar para jantar. Isto é...
— corrigiu, pensativa — se o telefone chamar, não atenda.
Limite-se a observar tudo o que acontecer no salão.
Entendeu bem?
— Entendi, miss Montfort.
— Apanhe a ampola de gás hipnótico. É a azul. Preste
bem atenção: é a azul. Se você jogar a ampola verde, eu
jamais despertarei. Cuidado!
— Não... não... não se preocupe... — gaguejou Peggy.
Brigitte saiu do quarto, percorreu o longo corredor
adornado com quadros que fariam inveja a qualquer
colecionador de obras raras e entrou no amplo salão que
tinha duas portas abrindo puni um grande terraço do qual se
podia ver todo o Central Park de Nova Iorque. As obras de
arte ali encontradas já levaram diversos diretores de museu a
atingir as raias da inconveniência, fazendo ofertas de
milhões.
Os quatro cavalheiros andavam de um lado para outro,
visivelmente impressionados com os quadros e estatuetas.
Estavam de fato vestidos a rigor. Todos pareciam ter, no
máximo, quarenta anos.
— Olá!
Cada um deles se virou sem sair do lugar cm que se
encontrava, olhando para a porta de onde viera a voz de
Brigitte. E os quatro ficaram boquiabertos ante os encantos
de “Baby”, que sorria como se fosse um autêntico anjo.
Um deles se adiantou, caminhando até o centro do salão e
parando perto do grande sofá onde o diminuto chihuahua
“Cícero” estava alerta, parecendo não aceitar de bom grado a
presença daqueles estranhos, apesar de trazidos até ali por
Peggy.
— Miss Brigitte Montfort Bierrenbach? — perguntou.
— Sim, sou Brigitte Montfort. Em que lhes posso servir?
— Eu sou Martin — inclinou-se numa reverencia, quase
a ponto de perder o equilíbrio e cair de bruços. — Eles são
Joseph, Zabulon e Isaac.
A medida que iam sendo apresentados, os outros também
se inclinavam com exagero.
— Muito prazer — sorriu Brigitte. — Queiram desculpar,
mas acho que jamais nos vimos. Ou estarei enganada, mister
Martin?
— Não... não... absolutamente — tartamudeou Martin,
com os olhos mergulhados na blusa muito transparente da
espiã. — Mas... espero que muito breve nos conheçamos
melhor. O que nos trouxe aqui é um assunto
importantíssimo, muito delicado. De transcendente
significação, miss Montfort. Posso sugerir que nos
sentemos?
Brigitte encarou um por um, sem pestanejar, e seus olhos
azuis lhes deram a sensação de estarem sendo furados ate o
cérebro, mas o sorriso de “Baby’ logo apagou essa
impressão, quando ela sentou no sofá ao lado de “Cícero”.
Os quatro cavalheiros afundaram em enormes poltronas e um
deles pigarreou, indeciso. Martin colocou sobre os joelhos
uma pasta que recolhera de cima da poltrona antes de sentar-
se, tamborilando nela ao dizer:
— Miss Montfort, nós já sabemos de tudo.
— De tudo? — murmurou “Baby”. — A que refere?
— A sua pessoa. Sabemos de tudo a seu respeito.
— Que chamam vocês... tudo?
— Bem... O certo é que durante seis meses, antes de
alugar o cérebro eletrônico da IBM, estivemos reunindo
dados sobre vinte e cinco mil mulheres do mundo inteiro.
Está claro que nós a incluímos entre essas mulheres, pois os
seus artigos são muito lidos em nosso país. Digamos que são
muito populares. Indubitavelmente, miss Montfort é persona
grata em nossa terra.
— Pretende fundar uma revista?
Os quatro homens sorriram, verdadeiramente divertidos.
Parecia que a tensão ia diminuindo aos poucos.
— Não se trata disso, miss Montfort — respondeu
Martin. — O certo é que as outras mulheres foram
eliminadas. Está claro que o cérebro eletrônico só poderia
dar uma única resposta com os dados que lhe fornecemos. Só
uma podia ser a escolhida.
— Escolhida? Para quê?
— Mmmm... Como eu já disse, sabemos tudo a seu
respeito, e durante a última semana, depois que o cérebro
eletrônico a escolheu, ampliamos as nossas informações.
Vinte detetives particulares de Nova Iorque e outros tantos
no país inteiro coligiram dados sobre a sua pessoa.
— Deve ser interessantíssimo o emprego que vocês
pretendem oferecer-me... Mas continuem. Que sabem,
exatamente, a meu respeito?
— Muitas coisas, mas diremos apenas as mais
importantes, pois não julgo necessário entrarmos em
detalhes. Vejamos: estudou na Universidade de Colúmbia e
logo depois aceitou um emprego como repórter volante do
“Morning News”, lugar que ainda ocupa...
— Sou muito fiel ... — interrompeu-o Brigitte, sorrindo.
— É muito generosa. Sabemos que, com donativos que
consegue de gente importante, mantém um maravilhoso asilo
para anciãos e colabora em grande escala num centro de
recuperação infantil. Afora a grande quantidade de favores
que lhe deve metade do país, segundo nos informaram os
detetives por nós contratados — sorriu o homem chamado
Martin. — Além disso, é pessoa de cultura acima do normal.
Viajou pelo mundo inteiro, domina perfeitamente meia dúzia
d e idiomas, é elegante, rafinée, inteligente, querida por
todos. Depreende-se, de seus artigos, que é anti-racista e tem
uma perspicácia impressionante, focalizando com admirável
propriedade todos os assuntos que preocupam o mundo
atual. Bem... já sei que vou dizer uma tolice — sorriu, como
se pretendesse com isso desculpar-se — mas... parece que
também entende de espionagem.
— Oh... Não vou negar que algumas vezes tenha
descoberto certas coisas sem importância. Pretendem
contratar-me como espiã’?
— Oh, não! — sobressaltou-se Martin. — De modo
algum! Não nos parece próprio fazer-lhe tal proposta.
— Claro — sorriu “Baby” Montfort. — Seria terrível
para mim. Escute, mister Martin: não se canse mais. Eu já sei
que têm um cérebro eletrônico, que lhe forneceram dados e
que, dentre vinte e cinco mil mulheres, esse cérebro me
escolheu. Indubitavelmente, isso indica que sou a pessoa
mais indicada para o que pretendem, caso possamos confiar
na eletrônica. Muito bem. Agora, eu pergunto: para que
necessitam de uma pessoa com tantas qualidades?
— Para ser rainha.
— Como?! — os olhos azuis de Brigitte se abriram
desmedidamente.
— Posso afiançar que não se trata de uma brincadeira!
apressou-se em declarar Martin, muito agitado. — O seu
povo, melhor dito, os seus súditos a estão esperando.
— Meus súditos?! Mister Martin. queira perdoar, mas...
mas... por acaso não terão fugido de algum manicômio? Ora,
vamos! EU não disponho de tempo para brincadeiras! De
modo que...
— Não são brincadeiras. Neste momento, quatro milhões
de ilhéus estão esperando a sua rainha.
— Quer dizer que quatro milhões de pessoas me
elegeram sua... rainha?!
— Aceitaram o veredicto do cérebro eletrônico. Assim
que ele nos indicou a escolhida. obtivemos grandes
fotografias que foram distribuídas por todo o país. O seu
rosto também foi exibido pela televisão nos quatro
quadrantes de nossa pátria. A reação foi surpreendente.
Muito surpreendente: quatro milhões de pessoas a aceitaram
por unanimidade. Durante uma semana inteira nem uma só
pessoa rejeitou a decisão do cérebro eletrônico. Mais ainda:
o nosso povo já a adora. Naturalmente, recebeu a mais ampla
informação sobre a futura rainha pelo jornal, pelo rádio e
pela televisão. Dentro em breve estaremos preparados para
cunhar moedas com a sua efígie. O papel-moeda também
terá o seu rosto. O país inteiro já está perdidamente
apaixonado por Brigitte Montfort Bierrenbach, declarando
que terá a rainha mais bela do mundo. E nós mesmos, como
políticos profissionais, estamos perplexos com a
instantaniedade de seu êxito. Porém insisto em que não foi
apenas a sua indiscutível beleza o que lhe valeu a vitória em
nosso país, mas também as suas qualidades pessoais, as
quais, naturalmente, são, neste momento, do domínio
público nas ilhas. Se me permitir um lugar-comum, eu lhe
direi que foi um amor á primeira vista entre a futura rainha e
seu povo. E estou certo de que, quando os seus súditos a
virem pessoalmente, o entusiasmo chegará ao delírio. Devo
dizer que o país no qual será coroada rainha dentro de uma
semana é o Atlantic Kingdom1, que, como sabe, é formado
por pequeno grupo de ilhas ao Norte das Bahamas. Nós...
Bem, eu não pretendo enganá-la a esse respeito: não somos
um país muito rico, o clima é agradável e a população é
pacifista e feliz na medida do possível. Muita gente
considera o Atlantic Kingdom uma espécie de paraíso
terrestre. Tem a superfície de seis mil milhas quadradas e
produz tudo o que é comum num país tropical. Está situado a
vinte e cinco graus e trinta minutos de latitude Norte e...
— Mister Martin — interrompeu-o Brigitte, mansamente
— eu sei muito bem onde fica o país chamado Atlantic
Kingdom.

1
“Reino Atlântico”, país fictício
— Claro ... claro... com esse seu cérebro privilegiado, não
podia...
— E devo dizer... — interrompeu-o de novo que parece
um país... esquecido. Nunca se fala nele por motivo algum.
Não faz parte da OEA, da ONU ou de qualquer outro
organismo internacional. É um país bastante
subdesenvolvido e pouco menos que abandonado á sua
própria sorte, porque, segundo imagino, jamais admitiu a
ingerência de outras nações.
— Descreveu maravilhosamente o Atlantic Kingdom,
miss Montfort — respondeu Martin, para surpresa de
“Baby”.
— É muito amável, mas diga-me, mister Martin: essa
história de me escolher para rainha não passa de uma
brincadeira, não é verdade? Que desejam realmente de mim?
— Que seja a nossa rainha.
— Oh, vamos, mister Martin! Não insista nessa tolice!
Não lhe quero parecer convencida, mas sou uma garota
inteligente. Diga a verdade e compreenderei perfeitamente.
Que querem exatamente de mim’?
— Que seja a nossa rainha. A coroação terá lugar dentro
de uma semana.
— Então, insiste na brincadeira, hem? Está bem: eu
também tenho senso de humor e vou levar a coisa na troça.
Mas, naturalmente, rejeito sua proposta. Eu lhe fico
imensamente grata, mas declino de ser rainha. Boa-noite,
cavalheiros — despediu-os frontalmente, levantando-se.
Martin, Zabulon, Isaac e Joseph imitaram-na
automaticamente, parecendo consternados.
— A sua atitude nos leva ao desespero, miss Montfort —
murmurou Zabulon. — Sinceramente, quando a vimos
ficamos absolutamente convencidos de que é a rainha de que
o nosso país está necessitando.
— Vocês já estão ultrapassando o limite — disse a mais
astuta espiã do mundo, franzindo a testa.
— A brincadeira terminou, senhores! Quem teve a triste
idéia?
— Que idéia? — surpreendeu-se Martin.
— A de enviá-los tão elegantemente vestidos para uma
brincadeira tão deselegante. São excelentes atores. Em que
teatro trabalham? Quero vê-los em cena qualquer dia
destes...
— Miss Montfort, por favor! Que está dizendo?!
— Fui muito clara: vocês são atores e alguém os
contratou para uma brincadeira. Porém já terminou, embora
com êxito. Frankie! Sim, deve ter sido aquele maluco!
Brigitte Montfort desatou em deliciosa gargalhada e os
quatro homens se entreolharam, aparvalhados.
— Queira desculpar... — murmurou Isaac. — Quem é
Frankie?
— Frank Minello. Tínhamos combinado juntar juntos
depois de assistir a um luta de boxe. Quanto lhes pagou o
maluco?
— Miss Montfort! — exclamou Martin, enrubescendo até
às orelhas.
Brigitte estava prestes a tecer outro comentário sobre
Frank Minello quando bateram á porta de entrada do
luxuosíssimo apartamento do “Chrystal Building”, situado
em plena Quinta Avenida. Olhou para uma das portas que
davam para o salão.
— Vá ver quem é, Peggy.
A empregada apareceu sorrateiramente no corredor,
segurando firmemente uma ampola de vidro na mão
esquerda, perguntando a Brigitte:
— Que... que... faço com isto? ...
— Deixe-a comigo e vá atender. Deve ser Frankie, que
veio ver o resultado de sua brincadeira. Não fique olhando
para mim desse jeito, mulher! Tudo não passa de uma das
loucuras de Frankie! Será que não consegue entender?
Tomou cuidadosamente a ampola da mão de Peggy,
guardando-a numa gaveta da biblioteca. Os quatro
emissários do Atlantic Kingdom olhavam-na perplexos.
silenciosos, ofendidos.
— Querem tomar algo! — sorriu Brigitte. — Seu
excelente desempenho merece um brinde.
Nenhum dos quatro respondeu. Já se ouviam no corredor
os passos de alguém muito pesado e pouco depois o
gigantesco e atlético Frank Minello, chefe da Seção de
Esportes do “Morning News”, entrava no salão com passos
descomunais.
— Puxa! — exclamou. — Você ainda não está vestida?!
Falta pouco para começar a luta! Quem são esses
indivíduos? Parecem pingüins gigantes ...
Os quatro representantes do Atlantic Kingdom
enrubesceram muito, enquanto Frank Minello, com os braços
encolhidos, imitava maravilhosamente o andar e o grasnar
dos pingüins.
— Não deve ser tão grosseiro, Frankie. Afinal,
desempenharam muito bem o seu papel.
— Que papel?!
— O de emissários do Atlantic Kingdom, convidando-me
para ser rainha. A coroação seria dentro de uma semana.
Minello ficou de boca aberta, deixando-se cair
pesadamente numa das poltronas antes de comentar:
— Tinha que ser! Eu já sabia que mais cedo ou mais
tarde isso aconteceria!
— Pois já aconteceu. Frankie. Agora, pague homens para
que eles possam voltar para o seu teatro e nós possamos
assistir á luta. Vamos, homem! Enquanto isso, irei vestir-me.
Adeus, cavalheiros. Foi um prazer conhecê-los.
Encaminhou-se para a porta que levaria ao seu quarto,
porém Frank Minello saltou da poltrona como um canguru.
— Um momento! gritou. — Que história é essa de pagar
a esses pingüins. Brigitte?!
Ficou de pé com as pernas abertas e as mãos nos quadris,
de testa franzida. visivelmente irritado. Brigitte também
contraiu as sobrancelhas, olhando para os quatro homens. Já
estava convencida de que tudo aquilo não fora idéia do
menino grande Frankie.
— Bem ... Acho que me enganei, senhores... — disse
“Baby”, pausadamente. — Quem os enviou?
Martin tornou a abrir a pasta, retirou quatro folhetos de
capa verde-claro e os entregou a Brigitte, que os recebeu um
pouco hesitante.
— São os nossos passaportes turísticos — disse Martin.
— Como sabe, o nosso país não mantém relações
diplomáticas com terra alguma. Como somos vizinhos dos
Estados Unidos, gostaríamos de ter pelo menos relações
amistosas com este país, o que não acontece. Não obstante,
não encontramos dificuldade alguma em ingressar como
turistas. Pode comprovar a autenticidade dos vistos
consulares e certificar-se de que viemos realmente de
Atlantic Kingdom.
A espiã examinou os passaportes. Ela dificilmente se
enganaria em tais assuntos, como profunda conhecedora dos
processos de falsificar documentos. Além disso, ninguém se
daria ao trabalho de forjar quatro passaportes simplesmente
para fazer uma brincadeira momentânea.
Quando ergueu os olhos, Martin lhe entregou alguns
jornais e várias fotografias. As fotos eram suas, copiadas de
algumas que vez por outra apareciam no “Morning News” .
E nos jornais, todos de Atlantic Kingdom, as suas fotografias
ocupavam toda a primeira página e tinham legendas
indicando que ela seria a rainha. As páginas internas estavam
cheias de artigos e resultados de votações, pelos quais se
podia ver claramente que Brigitte Montfort Bierrenbach
tinha sido acolhida com muita alegria e carinho. Em alguns
jornais havia artigos de página inteira elogiando os olhos
azuis de Brigitte e chamando-a “Rainha dos Olhos Azuis”.
— Mas... isso é inaudito!
— Mas é verídico, miss Montfort.
— Devo estar sonhando... Eu lhes peço que me
desculpem por minha atitude quase agressiva, mas...
— Nós compreendemos, pois não é comum procurar-se
uma rainha fora do país.
— Mister Martin, isso não faz sentido.
— Para nós faz muito sentido. Talvez lhe cause
estranheza o fato de nenhuma noticia sobre o assunto ter sido
publicada no exterior, mas estabelecemos um serviço de
censura rigoroso que vigiou inclusive a correspondência
epistolar e os telegramas pessoais até o momento de sairmos
do país na manhã de hoje. Mas acho que não demorará muito
para que a imprensa do mundo inteiro procure entrevistá-la.
— Vamos esclarecer tudo isso! — rugiu Minello. — De
que estão falando’?!
— Esses cavalheiros querem que eu seja a rainha do seu
país, Frankie. Eu já lhe disse isso. Mas estão levando a coisa
a sério, embora eu a considere fantástica. Está claro que não
é possível! Se não foi você o autor da brincadeira, deve ter
sido outro.
— Não se trata de uma brincadeira, miss Montfort! —
protestou novamente Martin.
— Mas o senhor deve compreender que...
— Compreendemos perfeitamente sua surpresa é muito
natural que não compreenda inicialmente, mas pode estar
certíssima de que Atlantic Kingdom necessita de sua direção.
— Mister Martin... eu... jamais pensei em renunciar à
minha cidadania norte-americana, nem mesmo em troca de
um trono.
— Não perderá sua nacionalidade ao se tornar a rainha do
meu país.
— Mas... não, eu não compreendo! Não pode deixar de
ser uma brincadeira cuja graça ainda não consegui alcançar.
Além disso, deve haver em sua pátria uma mulher capaz de
reinar sobre o seu povo, mister Martin.
— Nossa primeira iniciativa foi fazer uma triagem entre
as mulheres de nossa terra e escolher as melhores, porém as
escolhidas não satisfizeram as exigências; depois, repetimos
a operação em âmbito mundial e, para podermos chegar a
uma conclusão que não permitisse dúvidas nem criticas,
tivemos de recorrer a um cérebro eletrônico. Fizemos a
programação com vinte e cinco mil mulheres de
praticamente todas as nacionalidades e a IBM nos deu uma
resposta definitiva:
— Expediente USA 1007. Era o expediente de Brigitte
Montfort Bierrenbach.
— Eu sabia! — gemeu Frank Minello. — Eu sabia que
isso teria de acontecer algum dia! Mas esperava que pelo
menos não fosse escolhida para rainha! Vocês não levarão
Brigitte daqui, seus raptores! Se acham que...
— Quer servir-nos um uísque, Frankie? — interrompeu-o
mansa e irresistivelmente Brigitte. — Por favor, conserve
essa bocarra fechada enquanto eu discutir o assunto com
esses cavalheiros educados.
— Se esses pingüins pretendem levar você daqui, terão
de passar por cima do meu cadáver — bramiu o gigante.
— Eu não disse que aceito a proposta — sorriu “Baby”,
ainda incrédula. — Continuo achando que não passa de uma
brincadeira complicadíssima. Possivelmente um programa de
televisão, hem, mister Martin?
Martin movia negativamente a cabeça, sorrindo. Frank
Minello serviu o uísque enquanto Brigitte folheava os
jornais, pensativa. De repente, olhou para Martin.
— Quem é a rainha atual?
— Morreu há três anos, miss Montfort. Passamos todo
esse tempo sem rainha, resolvendo desajeitadamente os
assuntos oficiais. Existe uma Câmara dos Comuns formada
por vinte membros. A governança está a cargo de um
Conselho dos Quatro.
— Conselho dos Quatro... São os senhores?
— Exatamente. Somos os mais altos dignitários de
Atlantic Kingdom.
Brigitte passou a mão pela testa.
— Aceitarei como verdadeiras as suas palavras coisas
publicadas nestes jornais, para não ficarmos discutindo à toa,
mas rejeitarei inflexivelmente a proposta. Sinto muito.
— Nós lhe suplicamos...
— Lamento sinceramente, mister Martin. Poderei ajudá-
los de qualquer outro modo a resolver qualquer problema,
porém...
— O de uma guerra, por exemplo? — sorriu
amargamente, Martin.
— Como?!
— Uma guerra. miss Montfort. O nosso povo quer uma
rainha e jamais aceitaria ser governado por um rei. Não
impedimos que a rainha se case, mas o seu marido será
apenas um príncipe consorte, sem qualquer ingerência na
direção do país.
— Mas por que haverá uma guerra se o seu país não tiver
uma rainha?
— A verdade é que... as coisas não vão muito bem. Os
desastres políticos, econômicos e sociais se sucedem em
Atlantic Kingdom e o povo está absolutamente convencido
de que tudo isso decorre de estarmos há três anos sem uma
rainha. Pior ainda, acha que a Câmara dos Comuns e o
Conselho dos Quatro, apoiados pelo Exército, são os
responsáveis e exploram a nação em benefício próprio.
— E não será verdade, mister Martin? — sorriu “Baby”,
maliciosamente. — Não estarão abusando dos privilégios e
explorando quatro milhões de pessoas indefesas?
— Absolutamente, miss Montfort! Mas o povo acha que
sim e, se não tiver prontamente a quem admirar, respeitar,
confiar e adorar, haverá uma guerra intestina, uma revolução
de conseqüências lamentáveis. Nós poderíamos ter escolhido
para rainha qualquer das mulheres que vivem no Palácio
Real, mas não o fizemos precisamente por honradez. Que
nos custava colocar qualquer delas no trono e tapar a boca do
povo? No entanto, fizemos justamente o contrário: reunimos
dados sobre vinte e cinco mil mulheres, sugeridas pelo
próprio povo e, finalmente, alugamos na IBM um cérebro
eletrônico que foi desembarcado no porto de nossa Capital, a
adorável e aprazível Queen City, diante de milhares de
concidadãos. Todos sabem de que material “alimentamos” o
IBM, estão cientes de tudo. Trabalhamos durante seis meses
sem parar, quase chegando à estafa, e gastamos milhões de
dólares. Tudo isso seria evitado se os nossos propósitos não
fossem honestos. Mas agimos com correção e quatro milhões
estão á espera de sua rainha ou... de uma revolução!
— Quando partiríamos? — foi a pergunta incisiva de
Brigitte, que fez Frank Minello abrir os olhos e a boca como
se tivesse esbarrado com um fantasma.
— Amanhã. Bem... Amanhã sairíamos dos Estados
Unidos, mas esta noite partiríamos de avião para Miami a
fim de evitar a avalancha de jornalistas internacionais.
Sairíamos de Miami às nove da manhã, também de avião,
chegando ao Aeroporto Internacional de Queen City ás onze.
Durante a noite e na viagem nós atualizaríamos sobre
tudo o que precisa saber para entrar triunfalmente em
Atlantic Kingdom. Depois, seria aos poucos familiarizada
com a pátria. Mas a coroação teria de ser urgente, para
evitarmos derramamento de sangue, a morte de milhares,
talvez milhões de inocentes.
Martin não sabia que, com essas palavras, ferira fundo a
fina sensibilidade da agente “Baby” da CIA.
— Aceito, mister Martin.
Os quatro ficaram ofegantes de emoção, contendo a custo
uma explosão de alegria para não perder a linha própria à
condição de membros do Conselho dos Quatro de Atlantic
Kingdom. Mas logo receberam uma ducha fria, quando
Frank Minello também declarou, furioso:
— Eu também aceito!
— Que... que... que... disse, mister. — balbuciou Martin,
com os lábios trêmulos.
— Eu disse que também irei para lá, rapazes. Talvez, com
um pouco de sorte, eu me torne o seu príncipe consorte. Que
vidão! Brigitte minha esposa e eu na maior vadiagem! Com
mil demônios! Tenho que ir para esse reino encantado.
— Bem ... Na realidade, mister, não consideramos a sua
presença.
— Qual seria o inconveniente? — indagou Brigitte,
sorrindo.
— Haverá apenas os inconvenientes que decida Sua
Majestade! — inclinou-se Martin. rapidamente imitado pelos
outros três.
— Pois não vejo inconveniente algum declarou a
internacional “Baby”, acariciando “Cícero”. — Frankie é um
homem amigo e ficarei mais tranqüila tendo-o ao meu lado
nos primeiros dias de reinado. Além disso, eu gostaria que
ele assistisse à minha coroação.
— Se Vossa Majestade me permite sugerir — murmurou
Martin — seria melhor partirmos imediatamente.
— Mas... e a minha bagagem?
— Vossa Majestade já dispõe de completo vestuário no
Palácio Real. Podemos sair imediatamente, jantar no avião,
passar a noite em Miami e chegar a Atlantic Kingdom antes
do meio-dia para que o povo possa vê-la á satisfação. Vossa
Majestade terá apenas que vestir-se... e partir.
— Levarei também “Cícero” e Peggy, mister Martin.
Haverá algum inconveniente?
— Em absoluto, Majestade.
— Será uma bomba! — gritou Frank Minello,
entusiasmadíssimo. — Serei o favorito de uma rainha! Santo
Deus, que vidão! Viva a Rainha!
“Cícero” dava saltos enormes. Bem... Enormes, para o
seu tamanho. E Peggy parecia prestes a desmaiar. Os cinco
homens estavam satisfeitíssimos, especialmente Minello, que
continuava considera aquilo uma brincadeira divertidíssima e
originalíssima, esquecendo por completo a luta final pelo
campeonato mundial de pesos-pesados no Madison Square
Garden.
“Baby” olhou cada um dos membros do Conselho dos
Quatro.
— Espero, senhores — disse, com voz maviosa e com um
sorriso gélido — que tenham falado a verdade, porque, caso
contrario — seu sorriso desapareceu — eu ficaria
terrivelmente irritada...
CAPÍTULO TERCEIRO
Havia princesas e... um preceptor

Embaixo, o mar com vivas tonalidades verde e azul.


pontilhado de cristas brancas. Viam-se também grandes
manchas pardas com placas verdes das campinas, e praias
com palmeiras cujos troncos pareciam avançar para as águas.
Os pontos brancos eram as casas dos povoados das dezesseis
ilhas que formavam o Atlantic Kingdom. O avião especial
voava em círculos por cima das ilhas que mais pareciam
desenhos coloridos de Walt Disney.
— Acho que estou sonhando — murmurou Frank
Minello, absorto na contemplação da fantástica paisagem. —
Não pode deixar de ser um sonho, Brigitte!
— Também acho, meu querido Frankie — sorriu a espiã.
— Contudo, está bem claro que não se trata de uma
brincadeira. Estamos chegando à ilha maior, à Capital do
Atlantic Kingdom, e eu me pergunto que estará para
acontecer.
— Não posso imaginar. Tudo isso é absurdo. Agora estou
falando sério. Brigitte.
— Eu sei.
— Que pretende fazer? Bem ... Não interprete mal as
minhas palavras. Você tem méritos de sobra para ser rainha
de qualquer país, mas... Por que resolveu aceitar?! Toda essa
história de cérebro eletrônico, de quatro milhões de criaturas
esperando por você é inacreditável!
— Você bem sabe que minhas ambições pessoais não são
essas, Frankie. Não tenho o menor interesse em ser rainha.
Na realidade, sempre achei que qualquer pessoa pode ser rei
ou rainha. desde que saiba dominar-se. Nesse sentido eu
sempre fui uma rainha... Mas, afinal de contas, talvez seja
interessante ser rainha de um país.
— Eu conheço você muito bem — respondeu Minello —
de modo que não precisa estender-se em explicações sobre
sua decisão. Que lhe agradou, verdadeiramente, em tudo
isso?
— Não entendo...
— Entende, sim ... Embora seja uma garota muito bonita,
é bastante inteligente para se deixar cair numa cilada
simplesmente para ser chamada rainha. É milionária, tem o
mundo aos seus pés e uma coroa não a levaria a cometer um
deslize. Estou convencido de que esse reinado complicará a
sua vida. Sei muito bem que você é capaz de viver os seus
triunfos e ser feliz sem propaganda, sem publicidade... A
minha pergunta é para valer, Brigitte: porque decidiu aceitar
esse assunto absurdo?
— Há quatro milhões de pessoas nessas ilhas, quatro
milhões de criaturas pacificas que podem transformar-se em
feras se não tiverem uma rainha em quem confiar.
— É absurdo! — insistiu Minello,
— Aparentemente. Eu sei que em tudo isso existe algo
que não nos foi revelado. Há alguma cilada. Não percebo em
que pode consistir, mas sei que quatro milhões de seres
humanos poderão começar a matar-se uns aos outros a
qualquer momento e isso é o que pretendo impedir.
— Como sempre ... — ironizou Minello.
— Disse-o bem: como sempre.
— Mas você está sendo enganada. Brigitte!
E possível, mas talvez não. Há uma coroa lá embaixo, em
uma dessas ilhas, à espera de uma mulher que seja capaz de
impedir uma revolução com milhares de mortos. Isso é a
única coisa que me importa.
— Que acha desses quatro pingüins?
— Não sei. Parecem sinceros e honrados, mas isso nada
significa para mim. Oh, Frankie, não falemos mais disso.
Ninguém me engana por muito tempo, querido. Não há
dúvidas quanto a que alguém esteja tramando algo e que,
para realizar os seus planos, precise de uma rainha em
Atlantic Kingdom. Pois bem: aqui vai uma rainha muito
especial que sorrirá para o seu povo, corresponderá ao seu
afeto, procurará atender aos seus anseios. Mas, se algo não
funcionar bem, e isso é precisamente o que temo, a rainha
começará a cortar cabeças. Está satisfeito?
— Não sei.De qualquer modo, era isso o que contar
comigo para o que der e vier.
— Como rainha, talvez não necessite de ajuda, mas como
agente “Baby” sempre tenho de levar em conta as pessoas
merecedoras de toda a confiança. Agora, como se diz entre
os espiões profissionais, temos de adotar uma atitude
imutável, astuta e de sapa: ver, ouvir e... esperar. Atenção:
Martin se encaminha para cá .
— Majestade — disse este — estamos chegando á ilha
principal. Dentro de cinco minutos aterrissaremos no
Aeroporto Internacional de Queen City.
— É necessário que me chame Majestade? — indagou
“Baby”.
— Absolutamente necessário, Majestade. Para todo o
povo de Atlantic Kingdom, a rainha é a Majestade e espero
que seja recebida como tal. Suplico a Vossa Majestade que
ajuste o cinturão de segurança.
— Obrigada. Martin.
— Sempre ás ordens de Vossa Majestade.
Sua Majestade Brigitte afivelou o cinturão, sendo imitada
por Frank Minello, que estava ao seu lado, a despeito das
observações do protocolo que exigiam o mais completo
isolamento da Rainha
O grande avião pintado de azul e branco deslizou por
uma das três pistas, estando as outras duas, bem como a
terrace do prédio e as vizinhanças do campo apinhadas de
gente que se acotovelava para ver a rainha, agitando milhares
de bandeirinhas. Frank Minello passou o lenço na testa.
— Calculo em mais de trezentas mil pessoas. Brigitte!
— Eu até acho pouco para receber uma rainha.
Minello olhou de soslaio para a sua colega do “Morning
News”. Sabia muito bem que as multidões não a assustavam
e que ela seria capaz das mais fantásticas peripécias para
salvar vidas humanas. Tranqüilizou-se se lembrando de que
quatro milhões de criaturas esperavam por uma rainha sem
saber que, na realidade, iriam receber a mais astuta, fria e
desconfiada espiã. Se havia algo sujo cm tudo aquilo, não
seria “Baby” quem levaria a pior.
Os motores pararam de funcionar e, enquanto
desafivelavam os Cintos de segurança, ouviam a gritaria do
povo. Trezentas mil pessoas, talvez mais, gritavam a plenos
pulmões! Agitavam o pavilhão nacional de Atlantic
Kingdom, uma bandeira festiva de faixas azul, encarnado e
branco com dezesseis estrelas em círculos representando
todas as ilhas do arquipélago.
Minello olhou pela janela e viu o maior cadinho de raças:
pretos, brancos, mulatos, cafuzos e mamelucos. Todos com
camisas de cores psicodélicas, agitando freneticamente
trezentas mil ou mais bandeirinhas. Quando a porta do avião
foi aberta, o berreiro se tornou ensurdecedor e Frank tapou
os ouvidos com as mãos, colocando-se por trás da rainha de
Atlantic Kingdom.
Sua Majestade Brigitte surgiu no alto da escada, sorrindo
e agitando a mão e centenas de flashes dos fotógrafos
cintilaram ao mesmo tempo, para atenuar as sombras
produzidas pela luz solar, enquanto dezenas de câmaras de
televisão. portáteis, eram afoitamente levadas de um lado
Para outro a fim de colherem os melhores ângulos. Ao pé
da escada do avião, sete microfones esperavam as primeiras
palavras da futura rainha aos seus súditos.
A primeira iniciativa de Brigitte causou surpresa: ordenou
que a escada, com rodas, fosse afastada do avião. Depois,
subiu ao seu degrau mais alto e fez sinal aos locutores das
sete emissoras locais para que se aproximassem com seus
microfones. Quando estes chegaram, ergueu a mão direita e
o silêncio foi instantâneo. Surgiram as palavras da rainha:
— A recepção que me deram muito me alegrou e honrou.
Esta noite, às oito, quero que todos, sem uma única exceção,
estejam diante de telas de televisão para me ver e me ouvir.
Não sou um cérebro eletrônico, como aquele de que os meus
súditos se valeram para me escolher, mas posso garantir-lhes
agora mesmo três coisas: paz, segurança e prosperidade. Isso
é tudo quanto necessita qualquer país. Somente isso. Agora,
voltem para as suas casas, onde receberão a minha imagem
às oito. Então, eu lhes falarei com mais vagar e, caso me
aceitem em definitivo, deverão ter em mente que, além de
rainha, sou também servidora do meu povo.
Houve alguns segundos de silêncio após essas palavras,
pois os trezentos mil ou mais ilhéus ali presentes, bem como
os demais habitantes, que haviam permanecido em suas
casas, nas outras quinze ilhas, esperavam um longo discurso
cheio e pronunciamentos políticos e promessas
maravilhosas. Um grupo de negros que conseguiu romper o
cordão de isolamento formado pela Guarda Nacional deu
inicio aos aplausos que rapidamente se estenderam a toda a
massa humana que se acotovelava.
Duas companhias da Guarda Real formavam um corredor
desde a entrada do aeroporto até onde estava o automóvel da
rainha. Os mais altos dignitários aguardavam ao pé da
escada, com ramalhetes de flores, sendo apresentados a
Brigitte e recebendo, cada um, a promessa de que mais tarde
a soberana lhes dedicaria toda a atenção. Ela se limitava a
olhar cada um deles dentro dos olhos, como se não
precisasse de mais do que isso para conhecê-los
intimamente. Enquanto a rainha percorria o longo corredor
formado pela Guarda Real, com sua comitiva que engrossava
cada vez mais, a Banda Nacional executava o Hino Real e
uma esquadrilha de caças a jato, em formação em “V”,
passava por cima do aeroporto para logo realizar um looping
conjunto e se dispersar como um chuveiro de fogos de
artifícios, realizando estonteantes acrobacias. Dois caças,
empregando fumaça, escreveram as iniciais B.R. no céu,
significando Brigitte Regina — Rainha Brigitte!
Finalmente, a comitiva chegou ao grande estacionamento
onde estavam trinta automóveis pretos, enormes, cada um
deles com o chofer de uniforme azul-marinho, impecável,
perfilado junto ao capo. Martin apontou para um dos carros,
todo fechado, e Brigitte compreendeu que tinha vidros à
prova de bala. Apontou por sua vez para outro, de capota
arriada, dizendo:
— Quero ir naquele, Martin!
— Mas... Majestade! Teremos de atravessar toda a
cidade, pois as ruas estão repletas de gente que deseja ver a
Rainha! Nunca se sabe... A situação está...
— Irei no conversível, Martin — decidiu Brigitte como
verdadeira soberana. — E o desfile será muito lento.
— Está... Está bem, Majestade balbuciou homem,
preocupadíssimo.
Houve um rumor agitado entre os membros da comitiva,
mas todos logo se conformaram com a audaciosa decisão da
rainha, passando a admirá-la ainda mais por sua prova de
coragem. O desfile seguiu pela rodovia que margeava as
praias e não demorou para que se avistasse a capital toda
embandeirada. A passagem pelas ruas de Queen City foi
apoteótica. Num dado momento ninguém podia ver coisa
alguma tal a chuva de papei picado, confetes e serpentinas. O
berreiro dos indefectíveis serviços de alto-falantes se somava
à gritaria do povo, criando um ruído conjunto
enlouquecedor.
A comitiva chegou finalmente aos jardins do palácio,
cheios de palmeiras, flores tropicais, viveiros de pássaros,
araras muito coloridas e papagaios de todos os tipos
importados do Brasil.
Havia quatro pessoas aguardando a rainha na escadaria de
mármore do palácio e bastou um ligeiro olhar para que
Brigitte classificasse as quatro, enquanto avançavam em sua
direção com evidente descaso: eram duas mulheres, uma
menina e um homem. As duas mulheres eram jovens e
belíssimas. A menina devia ter uns dez a doze anos e era
surpreendentemente loura, com fantásticos olhos verdes
translúcidos O homem devia ter entre quarenta e cinco e
cinqüenta anos, era alto, empertigado, impressionante com as
têmporas prateadas e os olhos negros de olhar que também
pareceram definir Brigitte à simples vista. Após o primeiro
olhar o homem pareceu entre surpreso e desconcertado..
— Majestade — murmurou Martin, servil. — Elas são as
Princesas Dalilah, Jezebel e Mary Lou, meu é Conrad,
preceptor da Princesinha Mary Lou.
As três princesas se inclinaram, em elegante saudação, e
o homem se limitou a reclinar ligeiramente a cabeça.
— Princesas? — indagou Brigitte. — Como posso
entender isso, Martin?
— Bem... Pertencem à família real, Majestade.
A espiã-rainha ficou alguns segundos pensativa.
— Martin: estará, porventura, dizendo que ainda restam
membros da família real deste país?
— Exatamente, Majestade.
— Não compreendo. Deviam ter nomeado rainha
qualquer das três princesas, não acha?
— Mary Lou ainda é muito pequena, Majestade. Não
poderia reinar senão daqui a oito anos, isto é, quando
completasse dezoito. Quanto ás princesas Dalilah e Jezebel,
elas próprias se negaram a ocupar o trono toda vez que o
Conselho dos Quatro lhes fez tal sugestão.
— Elas se negaram?! Parece incrível!! Por quê?
— Talvez por compreenderem que não é fácil governar
um povo, Majestade.
— Isso é absurdo! Mesmo que uma rainha não se
considere capaz de governar, sempre contará com a
assessoria de homens politicamente experimentados que
formarão o seu Gabinete, tanto no exterior como no interior.
— Não se pode obrigar ninguém a aceitar uma coroa,
Majestade...
Brigitte deu de ombros e olhou para as três princesas,
vendo em seus olhos uma firme determinação, sem dúvida
relacionada com aquele assunto. Não pareciam dispostas a
reinar por coisa alguma deste mundo. Contemplou
demoradamente os maravilhosos olhos verdes de Mary Lou e
perguntou:
— Você também não quer ser rainha?
— Eu gostaria... Majestade.
— Acha que seria uma boa soberana?
— Agora, não, mas seria depois de coroada. Ainda tenho
muito tempo para estudar e aprender muitas coisas.
— De fato, menina inteligente, você ainda dispõe de
muito tempo. É de se esperar que mister Conrad seja um
bom mestre.
— Faço o que posso. Majestade — disse secamente o
sedutor Conrad.
Sua animosidade para com a nova rainha era tão flagrante
que dispensava qualquer comentário. Os membros do
Conselho dos Quatro olhavam para ele com visível
expressão de critica, porem Brigitte se limitou a sorrir.
— Fazer-se o que se pode é fácil, mister Conrad, não tem
mérito algum. Realmente meritório é a criatura se esforçar
para fazer o que esteja fora do seu alcance.
Conrad pareceu atingido por uma centelha elétrica.
— Terei sempre em mente as palavras de Vossa
Majestade.
— Faço votos. Confio em que nos veremos com
freqüência... Agora talvez seja oportuno todos nós
almoçarmos. Suponho que uma rainha e algumas princesas
tenham o direito de sentir fome ...
Olhou nesse instante para um indivíduo gigantesco que
surgira naquele exato momento por trás da família real.
Encabeçava uma longa fila de serviçais que aguardavam o
momento de ser apresentados á nova rainha. Era um homem
de quase dois metros de altura, de ombros largos, cabelos
quase inteiramente brancos e crespos. Não devia ter menos
de sessenta anos, o que só se podia imaginar vendo-se os
seus olhos e seus cabelos. Era um mulato-aço que parecia
conservar um vigor extraordinário próprio de um homem
saudável aos quarenta. Estava com uniforme impecável de
libré vermelho e calças brancas justas nas pernas firmes
como troncos de árvore. Seu olhar era terrivelmente fixo e
inexpressivo. Martin se deu conta do interesse por ele
despertado em Brigitte e pigarreou.
— É o mordomo, Majestade; chefe dos serviços do
Palácio. Está esperando ser apresentado para, por sua vez,
apresentar toda a criadagem. Mas se Vossa Majestade
prefere adiar as apresentações...
— Por que motivo? — indagou Brigitte, quase num
sussurro. — Conhecerei agora os serviçais do palácio e, ás
cinco da tarde, os membros da Câmara dos Comuns e os
chefes militares.
— Seu nome é Jonás, Majestade.
O assombroso Jonás se inclinou estritamente o
necessário, o quanto mandavam as regras palacianas,
murmurando:
— As ordens de Vossa Majestade.
Logo a seguir apresentou todos os demais. Eram doze
mulheres e quatorze homens e cada nome pronunciado por
Jonás ficava para sempre gravado na memória infalível de
uma mulher que a aguçava diariamente para poder conservar
sua própria vida. Também nunca esquecia um rosto. Por isso,
sorriu quando Jonás sugeriu:
— Se Vossa Majestade desejar, farei uma lista com o
nome de todos, e suas respectivas funções.
— Você é muito amável, Jonás, mas a lista não
necessária. E agora, por favor, dê as ordens oportunas para
que seja servido o almoço das princesas e o meu.
Entrementes, irei aos meus aposentos trocar de roupa. Mister
Martin me acompanhará.
Uma ligeira alteração no rosto de Jonás traduziu sua
surpresa.
— As ordens de Vossa Majestade.
Brigitte tornou a sorrir, dando um adeuzinho a todos os
que a haviam acompanhado até o palácio, logo começando a
subir a escadaria de mármore. Quando chegou ao alto, dois
guardas reais apresentaram armas, rígidos como se fossem
de pedra. Brigitte entrou e ficou maravilhada, olhando para
todos os lados, a tudo analisando como conhecedora de obras
de arte. Martin apontou para a escadaria que levava ao
segundo andar e os dois subiram silenciosamente, até que
ela, depois de olhar de soslaio para o seu hirto
acompanhante, indagou:
— Quem é, exatamente, o homem chamado Conrad?
— Preceptor da princesa Mary Lou, mas antes foi político
importante no país. Um grande amigo do último príncipe-
consorte, chamado Jebediah, até que este morreu.
— Quanto tempo faz que morreu?
— Sete anos.
— E não foi possível manter Conrad num cargo político?
Se ele era realmente hábil, não vejo por que transformá-lo
em mestre de uma menina.
— Ele próprio escolheu essa função, Majestade. Desde
que Mary Lou nasceu, Conrad demonstrou grande afeto por
ela e a menina por ele. Foi, desde o principio, uma adoração
mútua.
— Entendo. E os pais de Mary Lou?
O pai faleceu quando ela tinha dois anos, num acidente de
automóvel. A mãe de Mary Lou ainda não era rainha, tendo
sido coroada somente dois anos depois.
— Que houve com ela?
— Também morreu, Majestade.
— De quê?
— De um ataque cardíaco.
— Oh... É lamentável ... Devia ser muito jovem.
— Tinha vinte e seis anos. Os aposentos de Vossa
Majestade ocupam toda a ala oriental do palácio — Martin
ab riu uma das duas folhas enormes da porta escura, maciça,
velha. — Todas as dependências desta ala se comunicam
entre si. Jonás ou a criadagem que Vossa Majestade se
dignar escolher mostrará todas as peculiaridades de cada
aposento. Mas se Vossa Majestade preferir que eu...
— Não, Martin, não... Muito obrigada. Se não me falha a
memória, disponho de um vestuário completo, com as
minhas medidas...
— De fato, Majestade. Os costureiros reais.
— Eu mesma encontrarei o que quiser. Por enquanto é
tudo, Martin — sorriu. — Falarei com Jonás mais tarde para
distribuir os serviços de acordo com as minhas necessidades,
mas, por enquanto, ficarei bem servida apenas com Peggy, a
minha criada de sempre. Poderá ter a gentileza de lhe dizer
que suba para me ajudar? Oh... E que não se esqueça de
minha maleta. Ela sabe qual é. Onde se alojará o meu amigo
Frankie?
— Nos aposentos da ala ocidental, Majestade.
— Ótimo. Felizmente este palácio não é excessivamente
grande. Adeus, Martin, até as cinco. Não se esqueça.
Providencie para que tudo esteja preparado para as oito no
estúdio de televisão.
— Como?! — exclamou Martin, boquiaberto. — Vossa
Majestade pretende ir..
— Naturalmente — interrompeu-o Brigitte. — Eu sei
muito bem que poderia ordenar a transferência de todo o
aparelhamento de televisão para este palácio, mas isso
importaria em sacrifícios para muita gente. Acho que não
haverá inconveniente algum em que a rainha vá a um estúdio
de televisão para falar ao seu povo.
— Bem... Claro... Nenhum inconveniente... Cumprirei
fielmente as ordens de Vossa Majestade.

CAPÍTULO QUARTO
O pesadelo da rainha

Com voz veludínea e um sorriso irresistível, Sua


Majestade a Rainha de Atlantic Kingdom falou durante
quatorze minutos, proferindo o seu primeiro discurso real
que mais parecia uma palestra com os quatro milhões de
súditos.
Somente os quatro membros do Conselho sabiam que o
discurso não fora escrito nem decorado, mas feito de
improviso com base em umas quantas perguntas que Brigitte
lhes fizera pouco antes de se encaminhar para o estúdio de
televisão. Todos os habitantes das dezesseis ilhas estavam
com os olhos pregados nas telas dos receptores.
— E, por último, quero lembrar a todos que a grandeza de
um país não se mede por sua extensão territorial, nem pela
quantidade de seus habitantes, e muito menos, pela raça de
seus cidadãos. Jamais se esqueçam disto. O nosso país será
sempre pequeno, mas poderá demonstrar sua grandeza.
Qualquer sacrifício, por menor que seja, será valioso para se
conseguir isso. Eu não pedirei sacrifícios angustiantes...
Apenas trabalho constante, realizado com a satisfação de
saber que contribuirá pura a grandeza da Pátria. Uma
grandeza que se mede por dentro e não por fora. Uma
grandeza que talvez ninguém veja até que tenhamos relações
diplomáticas com o mundo inteiro e sejamos admitidos em
todos os organismos internacionais. Uma grandeza que será,
simplesmente, uma indestrutível solidez interna. Jamais se
deve esquecer que os pulses destituídos dessa solidez interna
são fácil presa dos poderosos, os quais, com o pretexto de
uma ajuda econômica, social, militar ou política, vão
realizando um trabalho de sapa em todas as instituições
genuinamente nacionais até subjugarem o país de dentro para
fora valendo-se dessas próprias instituições, que se terão
tornado apenas supostamente representativas da
nacionalidade. Mas isso não acontecerá em Atlantic
Kingdom enquanto os meus quatro milhões de súditos
trabalharem árdua e alegremente como eu pretendo trabalhar.
Repitam sempre mentalmente esta assertiva: um castelo não
pode ser defendido por um débil, mas uma simples choça
pode ser e é protegida por um forte que a ame de verdade. E
não se esqueçam de que a vossa rainha é também vossa
servidora.
O rosto da futura rainha desapareceu do vídeo sendo
substituído pelas armas do reino e o hino nacional começou a
ecoar nas paredes da pequena casa praiana, no subúrbio
elegante da parte Oeste de Queen City.
Um dos homens que estavam na pequena sala se levantou
da poltrona, desligou o televisor e se virou para o outro, que
continuava sentado, sorrindo ironicamente.
— Onde arranjaram essa mulher? — perguntou.
— Num cérebro eletrônico.
— Conheço a história e me pergunto se é séria.
— Completamente séria, camarada Kurvanian. Algo o
desagrada?
— Não gosto dessa mulher — respondeu Kurvanian. —
Também não gostei de suas palavras, especialmente das
últimas.
— Os ilhéus não são tão inteligentes e trabalhadores
quanto ela parece supor. Não conseguirá nada.
— Mas suas palavras foram muito vigorosas. Abordou
todos os temas nacionais em apenas quinze minutos. Nesse
curto espaço de tempo pôs à mostra todas as chagas e
sugeriu o modo de curá-las. Acima de tudo, aquelas palavras
finais... Será que ela sabe de algo?
— Que pode saber’?
— Não sei, Bolonov, não sei... Mas se não sabe, deduz.
Essa mulher está percebendo que há um trabalho subterrâneo
em tudo isso.
— Ora, vamos!... — sorriu Ivan Bolonov. — Você está
exagerando, camarada Kurvanian. Sem dúvida esse discurso
foi elaborado pelos Quatro.
— Pois não deviam tê-lo redigido naqueles termos, com
aquelas palavras tão penetrantes. Foram como flechas
certeiras...
— E que desejava que dissessem? Que pretendiam
afundar o seu próprio país?... Estou convencido de que a as
palavras foram postas na boca da rainha pelos Quatro. É uma
velha tática. Se você avisar a caça de que vai persegui-la,
terá grande dificuldade em encontrá-la. Mas se a caça está
convencida de que você pretende apenas acariciá-la, deixar-
se-á apanhar com toda a facilidade ...
— Está certo de que os Quatro não o enganam?
— Absolutamente seguro. Pode ficar tranqüilo, camarada
Kurvanian. Tudo foi perfeitamente planejado. A cilada será
concluída no máximo dentro de duas semanas. Além disso,
há essa bruxaria estranha que todos os ilhéus conhecem.
Tudo sairá a contento.
Kurvanian foi até a mesinha, recolheu um dos jornais e
ficou alguns segundos contemplando o belo rosto de mulher.
— Não gosto dessa criatura.
— Pois é muito bonita — sorriu Bolonov.
Kurvanian recortou com os dedos a fotografia da rainha
de Atlantic Kingdom, metendo-a no bolso.
— Regressarei a Miami — disse. — Enviarei esta foto á
MVD pelo sistema de prioridade.
— Perderá o seu precioso tempo. Em primeiro lugar,
porque já devem conhecê-la, pois os nossos companheiros
não podem ter ficado inativos e, em segundo lugar, porque,
se essa mulher tivesse algo que temer por parte da MVD, não
teria sido louca a ponto de se tornar a mais famosa do mundo
em vinte e quatro horas.
— O que você está dizendo é razoável — admitiu
Kurvanian, hesitante — porém continuo não gostando dela.
Sem dúvida é belíssima, mas no fundo desses olhos
sorridentes há alguma coisa que não pode agradar a um
agente dos Planos Exteriores Soviéticos.
— Como queira pareceu aborrecer-se Ivan Bolonov. —
Eu não passo de um diplomata secreto, de modo que me
limitarei á minha tarefa relacionada com este assunto. Você,
camarada Kurvanian, deverá fazer o que lhe parecer mais
apropriado.
— Partirei imediatamente para Miami. Não se pode
subestimar coisa alguma, camarada Bolonov.
***
— Parece que você está levando a coisa muito sério —
sorriu, divertido, o atlético Frank Minello.
— Eu sempre levo tudo a sério, meu querido sorriu
também a futura rainha, acariciando as minúsculas orelhas
de “Cícero”. — Gostou do discurso?
Minello se deixou cair numa das grandes poltronas do
gabinete particular da rainha.
— Divertido. De certo modo, você não prometeu mais
que qualquer candidato a um trono ou a uma presidência.
— De fato — admitiu Brigitte. — Acho que tudo não
passa de uma jogada de alguém.
— Que espécie de jogada?
— Ainda não sei, mas ficarei sabendo quando eles
considerarem conveniente. Aceitarei tudo o que me
proponham. Trata-se de uma oportunidade que só se tem
uma vez na vida.
— Não estou compreendendo — disse Minello, muito
sério.
— Pois é bem fácil, meu querido Frankie.. Ah... ai está a
nossa querida Peggy com o champanha quase gelado.
Arranjou cerejas. Peggy?
— Arranjei, miss... Majestade.
— Não seja tola, menina — disse Brigitte, divertindo-se a
valer com o embaraço da criada. — Ainda não fui coroada.
De qualquer forma, na intimidade serei a mesma. Ande:
sirva logo esse champanha.
Minello esperou que as duas taças estivessem cheias, com
cerejas no fundo. Infelizmente não havia “Perignon” da safra
de 1955 no palácio.
— De que oportunidade você estava falando, Brigitte?
— Bem.. Não sei exatamente. Contudo, é fácil
compreender que há algo surpreendente em tudo isso, a
começar por minha eleição para rainha. Acho que num
determinado momento me será dada a resposta.
— Que espécie de resposta?
— Dinheiro, naturalmente, meu querido. Não sei como
nem quando, mas me oferecerão dinheiro para fazer algo.
Seja o que for, aceitarei e partirei com as malas cheias de
dólares. Isso é a única coisa que me importa
verdadeiramente, embora sem dúvida, tenha de ser razoável
— Que acha de uma oferta de cinco milhões de dólares?
Minello estava boquiaberto, com o rosto encarnado de
surpresa e indignação.
— Você me vai dizer que pretende seguir o jogo de
alguém, traindo este país que a acolheu como se fosse
realmente sua rainha?!!
— É possível. Cinco milhões de dólares não podem ser
desprezados, Frankie. E é possível que eu consiga mais.
Como você bem sabe, a única coisa que me interessa é o
dinheiro.
O rosto de Frank Minello não podia estar mais encarnado
de ira sem que começasse a transudar sangue. Por um
momento pareceu a ponto de atirar a taça de champanha no
rosto de Brigitte, mas exatamente nesse instante ela erguia
um abajur de cristal de cima de uma mesinha circular de
caoba, apontava para a sua base com um dedinho e sorria
ironicamente. A boca de Minello se abriu ainda mais e seu
rosto passou do encarnado ao pálido cadavérico quando ele
viu o diminuto microfone magnético embutido na base da
bonita lâmpada de mesa. Quando tornou a olhar para
Brigitte, viu o seu olhar destilando uma astúcia venenosa,
como aquela que certa vez lhe valeu o cognome de “Víbora
sem Ninho”.
— Que houve, Frankie? — indagou a perigosa espiã. —
Está surpreso com minha atitude?
— Não... Claro que não. É que... me pareceu que você
estivesse levando a sério essa história de ser rainha.
— Oh, não seja tolo. Está claro que levo a sério. Mas não
para mim. Quando estiver com o dinheiro nas mãos, baterei
asas... Eis tudo.
— Ótimo. Só espero que você me leve em conta...
— Sem dúvida pedirei algo para você. Estamos
discutindo a direção de um país e não a venda de... bananas.
Haverá dinheiro para todos. Tomara que eu não esteja
enganada, porque não sei o que faria como rainha de um
país. O importante é que me façam logo essa proposta, seja
ela qual for, desde que haja dinheiro no meio. Espero que se
tenha dissipado a sua surpresa.
— Não foi surpresa. Mas... medo diante de sua audácia.
— Minha audácia?! Audácia foi a deles, indo buscar uma
rainha fora do país quando contavam com três princesas. Foi
isso o que me levou a compreender que há uma jogada muito
suja. Mas a questão da sujeira de propósitos não me afeta no
mínimo. Com esses milhões darei uma esmola polpuda aos
meus velhinhos e aos meus meninos paranormais. Isto é,
com parte do dinheiro, é claro.
— Você é muito astuta — disse Minello, com toda a
sinceridade.
De fato. Enquanto falava, Brigitte passeava pelo quarto
mostrando ao cronista esportivo outros dois microfones, um
deles atrás de um paneaux persa e o outro habilmente
aderido à moldura de um quadro. Peggy não saia do espanto,
mas aprendera a ficar com a boca fechada enquanto sua
patroa falasse e isso sempre dera bons resultados.
— Não é necessário muita esperteza para se tirar proveito
de uma situação — sorriu Brigitte. tornando a sentar-se. —
Só nos resta esperar durante pouco tempo e voltar rara os
Estados Unidos com todas as honrarias e alguns milhões.
Pode estar certo, meu querido Frankie, que não conseguirão
comprar uma rainha por menos de cinco milhões.
— É o mínimo que se pode exigir — sorriu Minello.
— Agora, se você não se importar, descansarei um
pouco. Ontem á noite não repousamos o suficiente e hoje
trabalhei muito. Não estou acostumada...
— Não terá de trabalhar quando tudo isto terminar —
disse Minello, levantando-se. — Boa-noite, Majestade.
— Boa-noite, Sua Alteza Príncipe Consorte — respondeu
Brigitte, dando uma de suas risadinhas maliciosas.
Frank Minello saiu rindo dos aposentos da rainha e, no
corredor, um guarda se perfilou á sua passagem.
Brigitte entrou em seu enorme quarto, digno de uma
rainha, com candelabro de cristal, cama de dossel de ébano e
colchão de penugem de pato, penteadeira descomunal com
espelhos de cristal basculantes e um guarda-roupa de dez
portas, tomando toda uma parede, também de ébano. Havia
duas amplas portas envidraçadas dando para um terraço, com
cortinas amarelo-ouro
A espiã se despiu, como sempre, diante do espelho do
armário, ordenando a Peggy que se retirasse e levasse Cícero
para os seus aposentos. Sim, porque mimo de rainha também
tem direito a contorto.
— Está bem, miss... Majes... miss...
— Miss Montfort, como sempre, Peggy.
— A que horas devo chamá-la, miss Montfort?
— Uma rainha deve madrugar, para atender aos assuntos
do Estado. Portanto, pode me chamar ás oito
Peggy sabia muito bem que “Baby” tinha dentro da
cabeça um despertador ou algo parecido.
Brigitte ficou finalmente só. Levou uns três minutos para
encontrar mais dois microfones e sorriu, satisfeita. Só se
preocupava com o fato de ainda não saber quem os havia
instalado. Podiam ter sido os russos, mas também os norte-
americanos, ou, talvez, os ingleses. Sim, os ingleses. Por que
não?
Vestiu pijamas curtíssimos e se atirou na cama, apagando
a luz do abajur de cabeceira. Não levou quinze segundos
para dormir profundamente.
***
A espiã internacional despertou de repente. sentando-se
rapidamente na cama, em silêncio. Procurou em vão
distinguir algo na escuridão. conseguindo apenas ver as
estrelas. Tivera a pachorra de afastar as cortinas e escancarar
as portas envidraçadas para dormir a seu gosto, com o
frescor da noite. Ouviu a orquestra de centenas de insetos.
Dentro, ao seu redor, um ruído que parecia o de papel
sendo manuseado.
Sem se mexer, adiantou lentamente a mão para o
interruptor do abajur, considerando-se imprudente por não
ter dormido com a sua pistolinha de cabo de madrepérola,
senão mesmo com a sua maleta azul adornada com flores
vermelhas, cheia dos mais imprevisíveis truques. Acendeu a
luz e, ao mesmo tempo em que compreendia que a sua
pistola de nada lhe teria valido, empalidecia intensamente,
tendo o corpo sacudido pelo terror. Começou imediatamente
a suar por todo o corpo. Estava paralisada de horror.
A cobra que subira pelo pé da cama deslizava lentamente
para ela por cima do finíssimo lençol azul-celeste. Era uma
cobra verde e fina, com olhos diminutos e aquosos, que
parecia não ter pressa de atacar. Sem forças sequer para
engolir saliva, “Baby” olhou para o chão. Em torno do leito
real havia mais umas trinta cobras iguais á que estava em
cima da cama, olhando para ela de um modo aterrador,
movendo a cabeça de um e um
lado para outro, como que se deliciando com o terror da
vitima. Eram víboras!
Mais duas se esforçavam para subir, enroscando-se nos
pés da cama e o ruído de papel-de-seda sendo manuseado
aumentava. O braço que Brigitte estendera para alcançar o
abajur caiu sobre o travesseiro, sem forças. A espiã estava
gelada de pavor. Seus dedos se crisparam na fronha. Já não
olhava para as trinta víboras que rastejavam ao redor da
cama nem para as duas que estavam subindo, mas apenas
para aquela que estava mais perto, a mais audaz, a maior de
todas, que continuava balançando a cabeça, quase
hipnotizando-a, quase matando-a de horror. Embora ainda
não se tivesse decidido a atacar, a indecisão não iria durar
indefinidamente. As duas outras não tardariam para subir e,
quando a primeira visse as outras, o reforço, passaria ao
ataque. As três atacariam!
Com a serenidade do desespero, Brigitte decidiu agir
antes que isso acontecesse. Seu cérebro extraordinariamente
lúcido lhe dizia que seria sua única oportunidade de escapar.
Se não tomasse uma iniciativa desesperada morreria
inapelavelmente. Segurou ainda com maior firmeza a fronha
e, num movimento velocíssimo, colocou o travesseiro entre
seu corpo e a víbora. Esta atacou, assustada pelo movimento,
dando com a cabeça no travesseiro, que logo foi posto sobre
ela, imobilizando-a. A espiã sentia sob as mãos os
movimentos da cobra, enquanto olhava ao redor com os
olhos azuis muito arregalados. Poderia gritar, caso
encontrasse forças para tanto, mas isso de nada valeria.
Alguns guardas entrariam em seu quarto e vários deles
seriam mortos enquanto muitas víboras subissem á cama,
matando-a. Não, essa não seria a solução.
O suor empapava o pijama de Brigitte e a primeira cobra
continuava procurando uma saída sob aquela massa branda
que a imobilizava parcialmente. As outras duas já estavam
chegando ao pé da cama!
Porém a mente poderosa da melhor espiã do mundo teria
forçosamente de vencer o terror. Uma pessoa normal teria
desmaiado até mesmo antes de dominar a primeira cobra,
porém Brigitte Montfort já havia demonstrado várias vezes,
inclusive a si mesma, que não era normal, que sua natureza
era consideravelmente superior á da maioria dos mortais. Era
um dom pelo qual devia agradecer a Deus e... saber utilizar.
Levantou-se de um salto, ainda em cima da cama, o que
levou a primeira cobra a escapulir, atacando às cegas e
caindo ao chão entre as trinta que ali rastejavam. As outras
duas conseguiram finalmente subir e Brigitte se agarrou a
uma das barras horizontais do dossel, fez uma flexão com o
corpo e, depois de girar em torno da barra, ficou estendida
sobre ela. A delgada peça de ébano deu um estalido, o
mesmo acontecendo com toda a estrutura do dossel. Tudo
iria ruir de um momento para outro sobre o montão de
cobras: os adornos, as barras de ébano e ... ela! As víboras
pareciam pressentir instintivamente o que estava para
acontecer, pois todas estavam de cabeça erguida, olhando
para cima.
Muito lentamente e enquanto algumas cobras já estavam
subindo em espiral pelas colunas do dossel, Brigitte se pôs
de pé, oscilando, com um equilíbrio do qual ela própria mais
tarde se admirou. De repente, como um felino, deu um salto
assombroso e, após um vôo impressionante de três metros,
aferrou as mãos ao circulo maior do grande candelabro que
pendia do teto por uma corrente de ferro. O candelabro
oscilou, os pingentes de cristal se entrechocaram produzindo
um melódico tilintar e uma das lâmpadas se apagou. Brigitte
ficou dependurada, balançando sobre as cobras que não
tinham conseguido subir à cama.
Em vez de cair, o dossel se inclinou para a cabeceira da
cama, ficando apoiado à parede. A agente “Baby” balançou
vigorosamente as pernas, aumentando a oscilação do
candelabro na direção do terraço e, por um instante, virou a
cabeça, olhando para a porta de comunicação de seu quarto
com o de Peggy, bendizendo o sono profundo da empregada,
pois se ela despertasse com o tilintar dos pingentes e entrasse
no quarto, possivelmente ainda tonta de sono, estaria
liquidada. Desmaiaria e as cobras não teriam trabalho algum
para atacá-la.
O movimento oscilatório do candelabro se tornou cada
vez mais forte e, quando mais de uma dezena de víboras já
haviam subido ao dossel. “Baby” se lançou com toda a força
para o terraço. Caiu ao chão, girou como se fosse de
borracha, levantou-se de um salto e fechou as portas
envidraçadas. As cobras ficaram presas no quarto.
Ficou durante alguns segundos olhando através das
vidraças, observando as cobras que já avançavam para o
terraço e vigiando a porta que dava para o quarto de Peggy.
Nesses poucos segundos tomou uma decisão: agarrou-se às
pedras da parede externa do palácio e foi descendo
lentamente até se encontrar a menos de dois metros do
pórtico inferior, deixando-se cair. O guarda. que parecia
dormitar de pé, se sobressaltou e, á luz da tênue iluminação
noturna do palácio, a espiã pode ver seus olhos quase saindo
das órbitas como se ele tivesse visto um fantasma.
— Chame a guarda! — ordenou Brigitte, ofegante.
— S-s-siii ... Siim, Majestade!
— Sem escândalos. Atue com a mais absoluta
tranqüilidade.
— Sim, Majestade!
O guarda saiu em disparada, virando de vez em quando a
cabeça como se quisesse certificar-se de que realmente
estava vendo a sua rainha de pijama. Num minuto meia
dúzia de guardas estavam diante de Sua Majestade Brigitte,
sob o comando do oficial de serviço. Este estava com cara de
sono, mas se perfilou devidamente e permaneceu rígido,
aguardando as ordens da rainha.
— Às ordens de Vossa Majestade! — quase gritou.
— Há gases no Corpo da Guarda, tenente?
— Não... Isto é... Somente gás lacrimogêneo, Majestade.
— Meia dúzia de granadas e toda a guarda comigo.
Imediatamente! Pela porta principal.
— Sim, Majestade!
Cinco minutos depois de haver descido pela parede a
rainha de Atlantic Kingdom subia a escada de mármore que
levava ao primeiro andar do palácio, seguida por vinte
guardas bem armados e dois deles portando as seis granadas
lacrimogêneas. Os passos cadenciados puseram em estado de
alerta todo o palácio. Frank Minello surgiu no amplo
corredor de cima, de pijama e empunhando enorme pistola
automática de calibre 45.
— Que houve’?! — perguntou. aos gritos, assim que
deparou com Brigitte.
As princesas Jezebel e Dalilah chegavam
apressadamente, com deliciosos deshabillées, e, logo atrás
delas, o estranho Conrad vestindo um robe sobre o pijama.
Peggy surgiu na porta do seu quarto que abria diretamente
para o corredor e ficou olhando, atônita, primeiro para
Brigitte e depois para os vinte guardas que, perfilados,
aguardavam as ordens e sua Majestade.
— Há umas trinta ou quarenta cobras no meu quarto —
disse Brigitte, já com a frieza da espia internacional. —
Lancem primeiro as bombas de gás lacrimogêneo. Depois,
matem-nas a baioneta. Tenham todo o cuidado, porque não
quero que nenhum de vocês seja mordido.
Houve uma atitude geral de estupefação, de
incredulidade, porém o oficial de serviço era um dos que
haviam aceitado aquela mulher como sua rainha e agiu sem
pestanejar. Foi o primeiro a abrir a porta que dava para os
aposentos de Brigitte e também o primeiro a chegar ao seu
gabinete particular, alcançando, dali, acompanhado dos
guardas, a porta do quarto, a qual abriu de um empurrão.
Afastou-se, apontando para o interior. Os dois soldados que
portavam as granadas avançaram, dispostos a lançá-las, mas
pararam em seco e se voltaram desconcertados para o
tenente. Este compreendeu seus olhares e entrou no quarto.
Após alguns segundos saiu e se plantou no meio do
gabinete, perfilando-se magnificamente.
— Não há cobras, Majestade — disse.
— Há mais de trinta, tenente.
O oficial apenas pestanejou e permaneceu firme, ainda
com a mão espalmada na pala do capacete. Não se atrevia a
contradizer a sua rainha, porém não havia cobras...
Franzindo a testa, Brigitte entrou no quarto. passando
entre os soldados que portavam as granadas. Estes lhe deram
passagem impressionados e aturdidos.
O quarto estava vazio. Nem uma só cobra! Não havia o
menor sinal delas. O dossel estava bem colocado, como se
nada tivesse acontecido. O candelabro estava imóvel, com
todas as lâmpadas acesas. O travesseiro estava no seu devido
lugar, na cabeceira da cama, cuja roupa estava perfeitamente
arrumada. As portas envidraçadas estavam abertas, tal como
Brigitte as deixara ao ir para a cama. Por um instante as
narinas da espiã vibraram. Depois, ela voltou ao gabinete
sorrindo como se a coisa fosse divertida.
— Pode retirar-se, tenente. Que cada guarda volte a
ocupar o seu posto.
— As ordens de Vossa Majestade!
Os soldados já estavam saindo quando Jonás, o chefe dos
serviçais, chegava correndo. Olhou para todos, sem nada
compreender, e finalmente seus olhos negros se fixaram na
rainha.
— Uma boa noite para todos — disse esta. Dalilah e
Jezebel estavam tão pálidas que pareciam de mármore.
Foram as primeiras a sair, parecendo prestes a desmaiar.
Jonás olhou para cada um dos presentes, mas acabou por se
retirar sem dizer uma única palavra. Conrad foi até a porta
olhando estranhamente para a rainha.
— Espero que nenhuma cobra tenha mordido Vossa
Majestade — murmurou roucamente. — As cobras de nossas
ilhas são muito venenosas...
— Tais cobras não existem — sorriu Brigitte. — Acho
que foi um pesadelo, mister Conrad. De qualquer forma, eu
lhe agradeço pelo interesse. A pequena Mary Lou está
dormindo?
— É o que parece, Majestade. Felizmente.
— É. Felizmente. Mister Conrad: eu gostaria que
tivéssemos uma conversa amanhã. Isto é, hoje, pois não
tardará a amanhecer. Poderá dispor de alguns minutos para
conversarmos?
— Para Vossa Majestade, disponho de todos minutos de
minha vida.
Foi uma resposta amável, porém dada em tom muito
seco. Simples protocolo.
— Muito obrigada, mister Conrad. Que tal ás onze horas,
nos jardins?
— As onze, nos jardins, Majestade — inclinou-se,
saindo.
Quando Brigitte, Peggy e Minello ficaram a sós, este
olhou estranhamente para a espiã.
— Acho que você não me pretende fazer engolir o conto
do pesadelo. O seu cérebro é uma máquina perfeita e não
acredito que.
— Venha comigo, Frankie. Você também, Peggy. Em
primeiro lugar, qualquer pessoa pode ter pesadelos, Frankie,
inclusive eu, naturalmente. Uma vez aceita essa verdade,
entre no meu quarto e use atentamente o olfato. A resposta
não precisa ser dada às pressas.
Os três entraram e Minello e Peggy começaram a cheirar
com todo o cuidado. Estiveram quase um minuto fungando e
percorrendo o quarto em todos os sentidos. Por fim, ambos
ficaram olhando para Brigitte. Esta tocou o dossel, que
oscilou com facilidade, rangendo. Os adornos de filó e
arminho pareciam intactos, mas podiam-se ver imperfeições
na parte mais alta. Até aquele momento a agente “Baby”
jamais tivera pesadelos.
— E agora? — indagou, sorrindo friamente.
— Não sinto cheiro de nada — rosnou Minello, mal-
humorado.
— Nem eu — murmurou, a medo, Peggy.
— Que cheiro teríamos de sentir? — interessou-se o
jornalista.
— Nenhum... Nenhum, Frankie. Falaremos disso
amanhã.
— É absurdo dormirmos tão afastados uns dos outros —
protestou Minello. — Essa gente pode ter preconceitos, o
que está certo, mas se você tem de ser visitada por mais de
trinta cobras, eu prefiro...
— Foi um pesadelo — sorriu “Baby”.
— Não diga tolices! — explodiu Minello. — Ainda que
isso tivesse acontecido. você teria despertado antes de
mobilizar toda a guarda do palácio. Se você chegou, a fazer
isso...
— Será melhor você voltar para o seu quarto, Frankie.
— Com mil demônios! — rugiu o gigante, saindo
abruptamente dos aposentos de Sua Majestade.
— Miss Montfort: seria melhor dormir comigo esta noite,
pois talvez volte a ter...
— Agradeço a boa intenção, Peggy. mas sou a rainha
deste palácio e este é o quarto da rainha. Portanto, dormirei
aqui. Descanse tranqüila.

CAPÍTULO QUINTO
Um duende e... morte horripilante!

Conrad e Mary Lou se levantaram quando a rainha


chegou junto a eles exatamente á hora marcada para o
encontro, o que pareceu surpreender o estranho homem.
— Bom-dia, mister Conrad. Olá. Mary Lou... Dormiu
bem?
— Dormi.
— Dormi, Majestade — corrigiu-a suavemente, Conrad.
— Ela não é minha rainha — disse a menina. — Eu sou a
rainha, já que as minhas primas Jezebel e Dalilah não
desejam a coroa.
— Receio que terei de castigá-la, Mary Lou —
murmurou Conrad.
— Eu lhe suplico que não o faça — disse Brigitte, com
um sorriso encantador. — De certo modo, a menina tem
razão. Mas isso será o motivo de uma conversa à parte.
Agora, Mary Lou, se você quisesse ser amável, daria um
passeio pelo parque com Peggy. Eu lhe ficaria imensamente
grata.
Mary Lou não parecia muito convencida, porém um olhar
severo de Conrad fê-la mudar de atitude. Afastou-se com
Peggy, que logo começou a lhe falar animadamente,
seguindo ordens de Brigitte para que fosse muito amável
com a menina.
Brigitte sentou-se á sombra de chorões, dizendo a
Conrad:
— Não há motivo para que permaneça de pé, mister
Conrad...
Este se sentou, obediente, parecendo aborrecido.
— Suplico a Vossa Majestade que não leve em conta a
atitude de Mary Lou. Ela é...
— Levarei muito em conta a atitude dessa menina, mister
Conrad, porque ela tem razão. Mas eu já lhe disse que isso
será o assunto de outra conversa. Agora o que me interessa é
que esclareça o caso das víboras.
— Não compreendo, Majestade... Vossa Majestade acha,
porventura, que eu tenha algo a ver com essas cobras de
vosso pesadelo?
— Mister Conrad, eu sou uma mulher inteligente e
razoável e não uma ignorante. Mas se o senhor for um
ignorante, nada mais teremos a dizer. O senhor é um
ignorante, mister Conrad?
— Não. Majestade.
— Magnífico. Agora, explique qual o significado
daquelas cobras que vi no meu quarto.
— Não foi um pesadelo, Majestade
— Deveras? Então, como desapareceram do meu quarto?
Eu admitiria de bom grado a hipótese de algumas terem
saído pelo terraço, mas... todas?
— É... uma bruxaria, Majestade.
— Ah! Uma bruxaria real... Conheço outra história talvez
parecida com esta, mister Conrad. Mas, como chegamos à
conclusão de que nenhum de nós dois é ignorante, imbecil
ou tolo, podemos estar certos de que a nossa conversa será
interessante e amena. Entendo que as princesas Jezebel e
Dalilah não querem ocupar o trono por medo dessa
bruxaria... Certo?
— Absolutamente certo. Majestade.
— Por outro lado, Mary Lou deve ignorar tal coisa e, por
isso, não vacila em se declarar herdeira presuntiva. Certo?
— Certo, Majestade.
— Agora, explique-me essa bruxaria. Nós dois sabemos
que é uma tolice, mas pode explicar em que consiste essa
superstição. Que lhe ocorre? Por que me olha desse modo?
— Se Vossa Majestade me permite, eu a vejo com
agrado... Receio que não tenha sabido dar-lhe o devido valor
ontem.
Brigitte agradeceu essas palavras inclinando a cabeça e
dando um de seus sorrisos abismais.
— A bruxaria, mister Conrad... Não tema aborrecer-me
nem me cansar.
— Bem... Escrevi algo muito detalhado sobre isso, mas
posso explicar de forma resumida para Vossa Majestade,
neste instante. Mais tarde, se Vossa Majestade desejar, eu
vos submeterei o meu trabalho detalhado sobre o assunto.
Tudo começou quando morreu o príncipe Jebediah.
— Ele era querido?
— Muitíssimo. Sabia permanecer na sombra, porém nós,
que éramos muito chegados ao palácio, sabíamos que a
rainha o considerava o seu principal conselheiro. Embora
com a discrição que compete ao príncipe-consorte. Jebediah
era, na realidade, quem governava o país. E era excelente
governador, Majestade. Era um homem notável em tudo.
Alto, forte, risonho, inteligente, bondoso. Tinha grande
nobreza de sentimentos.
— Como morreu, e com que idade?
— Tinha cinqüenta anos, em 1961, quando lhe sobreveio
a morte.
— Que tipo de morte?
Conrad passou a língua pelos lábios.
— Morreu. Majestade — murmurou, estranhamente.
— Assassinado?
— Morreu... A explicação dos médicos foi um tanto
ambígua. Sabe... O coração.
— Que mais? — indagou a espiã, baixando os olhos.
— Apenas dois meses depois morreu a rainha.
— Do coração?... — sorriu Brigitte.
— Essa foi a explicação, porém, Majestade. o certo é que
a rainha morreu de medo. Quando o seu cadáver foi
encontrado, tinha os cabelos completamente brancos e o
rosto retorcido numa carda de horror.
— Cobras? — o rosto de “Baby” se crispou.
— Um duende, Majestade.
— Está brincando, mister Conrad? — perguntou Brigitte,
empalidecendo ligeiramente.
— Não, Majestade. Um duende é ...
— Eu sei perfeitamente o que é um duende. É um homem
morto que ressuscita parcialmente e caminha á noite pelos
lugares escuros como um lento autômato, como uma sombra
da morte Isso é o que se diz nas Antilhas, miter Conrad.
Porém nós dois sabemos que ninguém ressuscita, nem
parcial, nem completamente. Os duendes não passam de
mais um truque de bruxaria do Caribe. Eu lhe direi mais,
mister Conrad: conheço o suficiente sobre bruxarias para que
nenhum truque me impressione. Nem sequer os ritos da
macumba.
— Devo admitir que Vossa Majestade é mulher de
amplos conhecimentos e inteligência lúcida. A mim também
não me impressionam os ritos da bruxaria, mas o certo é que,
antes de encontrar a rainha morta naquela manhã, um
soldado da Guarda Real se apresentou desfigurado ao oficial
de serviço. Estivera desmaiado alguns minutos em seu posto
porque, segundo afirmou, vira o príncipe Jebediah
caminhando pelos jardins transformado num duende.
— Pelo amor de Deus — quase se irritou Brigitte. —
Como pode um povo que acredita em duendes progredir,
desenvolver-se?! Não percebe que isso não passa de uma
tolice?
— Eu, sim, Majestade, mas o soldado viu o duende.
— Onde está esse soldado? Quero..
— Partiu, Majestade. Fugiu para longe de Atlantic
Kingdom, como muitos outros. Refiro-me aos outros que
também viram o príncipe Jebediah transformado em duende
passeando pelos jardins do palácio de madrugada.
— E que pretendia ele com esses passeios? — sorriu com
sarcasmo a espiã. — Colher Flores para o seu túmulo?
— Cada vez que o duende de Jebediah foi visto, uma
rainha morreu, Majestade.
— Como?!
— A esposa de Jebediah foi sucedida por uma sobrinha,
porque eles não tinham filhos. Isso foi em 1962, depois que
o trono esteve vago durante alguns meses. Pois bem: a rainha
morreu pouco depois de ser coroada.
— De medo?
— Foi mordida por grande quantidade de cobras
venenosas... Seu corpo estava inchado, lívido. Horrível! Não
se encontrou nem rasto das cobras, porém outro soldado viu
o duende de Jebediah passeando pelos jardins. A essa rainha
sucedeu outra sobrinha da esposa de Jebediah nos primeiros
dias do ano seguinte.
— Também morreu’?
— Queimada em seu próprio quarto. Também naquela
noite o duende foi visto nos jardins. A última rainha que
tivemos se chamava Alexandra. Como as anteriores,
pertencia à família da esposa de Jebediah. Também pouco
depois de ser coroada, um duende foi visto nos jardins.
Quando o oficial de serviço foi informado correu ao quarto
da rainha, encontrando-a enforcada no dossel do leito real,
Isso ocorreu nos primeiros dias de 1965, e desde então não
tivemos rainha em Atlantic Kingdom. Dalilah e Jezebel se
negam terminantemente a aceitar a coroa, enquanto que
Mary Lou, ainda ignorando tais acontecimentos, está
desejosa de chegar aos dezoito anos para ser coroada.
Entrementes, nestes três anos e meses sem rainha, as coisas
vão de mal a pior no país. O povo quer uma rainha por
considerar que sua ausência é a causa de todos os males. E
alguém. não sei exatamente quem, sugeriu a idéia de trazer
uma rainha de fora, na suposição de que assim se
desencantaria a bruxaria.
— Ou, pelo menos, não morreria ninguém da família real,
mas uma estrangeira ... Não se pode dizer que o meu povo
seja amável comigo, mister Conrad.
— Quer uma rainha e julga que Vossa Majestade sabe de
tudo. Por isso admira sua coragem, amando-a desde o
princípio. O povo espera muito de sua rainha atual. Uma
rainha com coragem suficiente para aceitar sobre si uma
maldição merece tudo. Tudo!
— O povo acha que eu estava ciente de tudo?
— Acha. Os Quatro não contaram o caso a Vossa
Majestade’?
— Não.
— É o que eu temia. Deve ser outra de suas manobras
sujas.
— Outra, mister Conrad’?
— Diversas ... Talvez... Bem, talvez não tenham sido mal
intencionados, mas apenas ignorantes. Mas, de qualquer
forma, quer tenha sido por maldade, quer por ignorância,
isso significa que o Conselho dos Quatro não está capacitado
para governar o país. Se pensarmos detidamente no assunto,
poderemos concluir que esperam que, com a senhora
ocupando nominalmente o trono, resolva os seus
problemas...
— Noto que já não me chama Majestade, mister Conrad.
— Queira desculpar, Majestade disse Conrad, levantando
o queixo.
— Não se desculpe — disse ela. estendendo-lhe a mão.
— A conversa se torna mais fluente sem tanta formalidade.
Em suma: Os Quatro me ludibriaram com o beneplácito do
povo e... do cérebro eletrônico, para que eu desencantasse a
bruxaria ou para que, se a maldição continuasse. eu morresse
em lugar de uma das princesas.
— Acho que colocariam qualquer delas no trono, com a
mesma indiferença, se uma delas aceitasse. O que desejam é
contentar o povo para continuar fazendo seus negócios,
explorando a nação.
— Explorando a nação?
— Isso mesmo. Qualquer país, por mais subdesenvolvido
que seja, sempre tem rendas vultosas. Tais rendas devem ser
dedicadas ao bem-estar do povo, porém este jamais percebe
a realidade, e assim, enquanto se dá por satisfeito com
receptores de televisão, arremedos de automóvel de baixo
custo e outras falsas necessidades apresentadas como
imprescindíveis, deixando-se levar por quinquilharias, á
semelhança das tribos seduzidas por balangandãs, os
dirigentes desonestos embolsam milhões, aumentando cada
vez mais os seus depósitos bancários — em bancos
estrangeiros, naturalmente. Na verdade, o povo ignora o que
seja realmente a vida verdadeira, autenticamente feliz e
próspera que de fato poderia levar em seu próprio país. Não
passa de um rebanho de ovelhas tosquiadas quando sua lã se
faz necessária ou mandadas para o matadouro quando se
precisa de carne — de bucha para canhão... Um rebanho de
quatro milhões para que os quatro membros do Conselho
vivam à tripa-forra.
— Entendo. O país está assim tão mal?
— Estou há anos afastado da política, mas sei que as
coisas vão muito mal. Se não receber ajuda imediata do
exterior tudo ruirá. Há alguns anos teria sido possível evitar
essa petição de ajuda, mas agora é tarde demais. Agora ela é
inevitável. Talvez ainda possamos agüentar um ano ou
pouco mais, porém será o fim caso não nos concedam um
empréstimo.
— Não cabe dúvida, mister Conrad, quanto a que, para
uma pessoa afastada da política, o senhor esteja muito
atualizado. Suponhamos que no Atlantic Kingdom houvesse
uma rainha honrada e um Conselho honrado. Com quanto
dinheiro se poderia recomeçar, sem apuros, com alegria?
Conrad ficou pensativo.
— Eu calculei... Claro que, com o correr do tempo...
— Entendo tudo isso — interrompeu-o Brigitte. —
Quanto?
— Uns duzentos milhões de dólares. Com essa quantia e
com a boa vontade de todos, as coisas seriam endireitadas.
— É muito dinheiro! Não se conseguiria alguma coisa
com... digamos, cem milhões de dólares?
Conrad sorriu com ceticismo.
— Seria tão difícil conseguir cem como duzentos.
Cem...? Sim ... sim, não há dúvida. Com uma boa rainha e
um Poder Executivo inflexível se poderia recomeçar. Mas
lentamente, com mais esforço por parte de todos. Este país é
pequeno e, com cem milhões de dólares, uma pessoa
adequada ao mando supremo poderia fazer milagres.
— Conhece essa pessoa adequada, mister Conrad?
— É possível, Majestade.
— Será possível também conhecer três pessoas absoluta
confiança? Três pessoas que pudessem sair do país
discretamente, sem chamar atenção.
— Sim, também é possível.
Brigitte se levantou e Conrad imitou-a rápidamente.
— Nesse caso, mister Conrad, será melhor que avise a
essas três pessoas que devem estar preparadas para viajar. Eu
o espero esta tarde, às cinco, no meu gabinete particular.
— Às ordens de Vossa Majestade.
— Muito agradecida, mister Conrad. Vou passear pelos
jardins. São belíssimos.
— Hmm... Se Vossa Majestade me permitisse, eu vos
aconselharia a não ir até aquela parte — apontou para um
dos lados dos jardins e Brigitte franziu a testa.
— Por quê?
— Ali está o Mausoléu Real.
— Ah... A residência do duende do príncipe Jebediah?
— Talvez se possa dizer desse modo, Majestade. —
respondeu Conrad, sorrindo com admiração.
— Pois saiba que talvez eu vá precisamente até lá. Não
haveria um meio de eu ver o cadáver de Jebediah?
Compreendo que, após sete anos, não deverá estar muito
agradável, mas, assim mesmo, eu gostaria de vê-lo. Sem
dúvida isso me convenceria da impossibilidade dos seus
passeios noturnos.
— A visita de Vossa Majestade seria inútil: por um
acordo entre o Conselho dos Quatro e a família real, o
cadáver foi incinerado por causa de seu último passeio
noturno.
— Ah...Em tal caso, nada tenho a temer do duende. Mas
eu gostaria de ver, de algum modo. o príncipe-consorte
Jebediah.
— Posso avisar a Jonás, para que lhe mostre quadros e
fotografias de toda a família real, inclusive de jebediah,
naturalmente.
— Eu lhe ficaria imensamente agradecida, mister Conrad.
Também estarei esperando por Jonás ás cinco, com os
quadros e fotografias. Até logo.
***
— As quatro são muito bonitas, não há dúvida murmurou
Brigitte, contemplando as fotografias espalhadas diante dela.
— Quanto ao príncipe-consorte Jebediah, era realmente forte
e bem apessoado. Um grande esportista. Estarei enganada,
Jonás’?
— Não, Majestade — disse, cheio de satisfação, o mulato
chefe dos serviços internos do palácio. — O príncipe foi um
grande homem em todos os sentidos.
— Você o admirava muito, não?
— Muito, Majestade.
— Todos nós o admirávamos e queríamos muito — disse
Conrad — porém Jonás seria até capaz de se deixar matar
pelo seu príncipe.
— Como o senhor por Mary Lou? — disse Brigitte,
olhando-o nos olhos.
— Eu diria que Jonás iria mais longe — respondeu
Conrad, sorrindo com naturalidade. — Sua veneração era
algo que nos impressionava. Chorou durante uma semana
inteira, ininterruptamente.
Brigitte olhou carinhosamente para o mulato e novamente
para o quadro e a fotografia de Jebediah. O príncipe tinha
realmente feições nobres, com abundante cabeleira grisalha e
espessa barba também grisácea. Olhos grandes, vivos, de
olhar gentil. A boca era firme, de lábios delgados.
— A julgar por estas fotografias e pelo quadro, o príncipe
era pessoa que sabia fazer-se querida. Não há mais
fotografias ou quadros, Jonás?
— Ainda restam alguns, Majestade, porém são pequenos.
Posso trazer centenas de fotografias, mas depois de se ver
estas...
— Entendo. Está bem. Jonás: pode levar os quadros e as
fotografias.
Jonas se retirou ficando no gabinete Brigitte, Peggy,
Minello e Conrad. Assim que o mordomo desapareceu
“Baby” entregou três envelopes a Conrad.
Os envelopes estão devidamente sobrescritados. Os três
amigos de confiança já estão preparados?
— Estão, Majestade. Podem partir quando Vossa
Majestade desejar.
— Neste instante.
Um lampejo brilhou nos olhos de Conrad, que se
levantou metendo os envelopes no bolso.
— Partirão imediatamente. Com a permissão Vossa
Majestade...
Também saiu e Minello acendeu dois cigarros entregando
um deles a Brigitte.
— Acha que surtirá efeito? — perguntou. — Acho que
pediu muito.
— Eu nunca peço mais do que já me ofereceram, Frankie.
Seria um abuso pedir que você se casasse comigo?
Frank Minello empalideceu a ponto de parecer que ia
desmaiar e disse, com voz abafada:
— Vou buscar as testemunhas e..
— Continue sentado seu tolo — interrompeu-o Brigitte.
— Era só para demonstrar que se alguém oferecer algo a
“Baby” é porque pensa cumprir o que diz. Agora, vá buscar
os microfones no banheiro. Nós vamos repô-los nos seus
lugares para que pensem que a pausa não passou de simples
e ligeira avaria eletrônica. Ficarão muito tranqüilos quando
tornarem a ouvir a nossa conversa.
Minello foi buscar os microfones muito desconcertado
com a falsa proposta de casamento. Na verdade, quem
pretendesse enganar “Baby” teria de ter poderes
sobrenaturais. Três minutos depois os microfones estavam
reinstalados em seus lugares e Brigitte respirou fundo antes
de voltar a desempenhar o papel de mulher que só pensa
levar vantagem.
— De qualquer forma, meu querido — disse, como se
estivesse por muito tempo falando no assunto — tudo isto é
muito maçante. Não pense que seja fácil ocupar um trono.
Esta manhã tive de resolver uns casos complicados e amanhã
sairei de iate para dar uma volta pelas demais ilhas deste
insignificante reino. Martin quer que todos os súditos me
vejam pessoalmente e não pude rejeitar sua sugestão.
Segundo me parece, passaremos três dias navegando de ilha
em ilha. Depois ficaremos mais um dia nesta ilha e. no dia
imediato, serei coroada.
— Será um espetáculo digno de se ver — comentou
Minello, piscando um olho.
— Acho que sim. Espero que depois disso eu possa levar
uma vida mais tranqüila enquanto me deixarem continuar
aqui...
— E se tudo desse certo e, quando você percebesse, já
estivesse coroada rainha deste país?
— Por favor, Frankie, não me assuste! Seria horrível!
CAPÍTULO SEXTO
A “contrajogada” da espiã

Martin se apoiou na amurada do belo iate chamado


“Green Islands” e apontou para uma faixa verde-escura que
já se divisava no horizonte.
— Dentro de uma hora chegaremos a Queen City,
Majestade. Que achou de vossas ilhas?
— Muito bonitas, Martin — respondeu Brigitte, também
apoiada na amurada, aparentemente pensativa. —
Riquíssimas. Eu me pergunto por que as coisas andam mal
em Atlantic Kingdom.
Martin olhou de soslaio para o castelo de popa, onde
Minello, estirado numa espreguiçadeira, conversava com
Isaac, Joseph e Zabulon, os outros três integrantes do
Conselho dos Quatro, sem perder de vista a rainha mas,
evidentemente. impossibilitado de ouvir o que ela e Martin
diziam. Não havia tripulantes na coberta.
— É possível que tudo melhore dentro em pouco,
Majestade.
— Graças a mim ou à minha presença no reino? —
ironizou Brigitte.
— Bem... Na verdade, não. Acho que Vossa Majestade
compreenderia tudo melhor se me concedesse alguns
minutos de conversa a sós.
— Assuntos oficiais, Martin?
— De certo modo...
— Não vejo inconveniente: fale.
— Seria melhor lá embaixo, no camarote de Vossa
Majestade e a sós, por favor.
— Está muito misterioso, Martin, mas não vejo
inconveniente em satisfazê-lo. Estou de muito bom humor
depois de visitar quinze ilhas belíssimas e ser recebida por
seus habitantes como uma rainha. E um caso pouco normal
de amor imediato de um povo por sua rainha, se é que de
fato me amam tanto quanto amariam a uma rainha autêntica
...
— Acho que até mais... Vamos, Majestade?
Desceram, Brigitte mandou que sua empregada fosse para
o convés, sentou-se e indicou uma cadeira ao membro do
Conselho dos Quatro. Assim que este se sentou, ela propôs:
— Entremos diretamente no assunto. Quero estar bem
preparada para o regresso a Queen City, pois suponho que
me espera uma grande acolhida.
— Sem dúvida... Bem, Majestade, antes de tudo gostaria
que ouvisse uma curiosa gravação.
Tirou do bolso pequeno aparelho que, conservando na
palma da mão, pôs a funcionar por meio de diminuto
interruptor. A voz da própria Brigitte saiu do aparelho, um
tanto metálica e, pouco a pouco, suas conversas com Frank
Minello, bem como ordens a Peggy e latidos estridentes de
“Cícero” foram brotando do pequeno gravador de pilhas.
Martin olhava com sarcasmo para a rainha que lhe parecia
muito surpresa e assustada.
— Será necessário prosseguir, miss Montfort? —
Perguntou, subitamente.
— Não — murmurou Brigitte. — Não é necessário, mas
não compreendo. Será que me esteve vigiando?
— Sem dúvida. Compreendo sua surpresa. Não passa de
uma aventureira, mas vejo que não tem grande escola de
espionagem. Os microfones estavam muito bem colocados
para que pudessem ser encontrados por uma mulher
ambiciosa mas pouco esperta.
— Está bem — disse “Baby”, com voz trêmula — Sou
uma tola... Suponho que, com essa gravação, pode conseguir
que me expulsem do país, ou, tal vez, que façam comigo
algo pior, pois está bem claro que estou disposta a vender a
minha coroa e o país inteiro. Que... que pensa fazer comigo?
— Não se assuste. Quer cinco milhões de dólares, não é
verdade?
— Bem... — exclamou Brigitte, com sorriso forçado. —
Para falar francamente, pensei que poderia conseguir essa
soma. Não sou tola a ponto de não perceber que alguém fazia
o seu jogo com toda essa história de me tornar rainha. Mas,
ao que parece, estava enganada e você só se preocupa com o
bem-estar do país.
— De certo modo... — riu-se o membro do Conselho. —
Eu me preocupo com o bem-estar de minha pátria, porque
significa o meu próprio bem-estar.
— Claro. Todo bom cidadão que trabalhe para...
— Não, não, nada disso — interrompeu-a Martin. — Só
ia dizer que estou trabalhando para a pátria, estava enganada.
Na verdade, o que pretendo é que a pátria trabalhe para mim,
miss Montfort.
— Não compreendo!
— Pois é muito simples. Como supôs, com muito acerto,
há um jogo... sujo, como disse e está gravado. A idéia de
buscar uma rainha por meio de um cérebro eletrônico foi
minha. Para mim, tanto fazia que fosse esta ou aquela
mulher. O importante era que uma mulher fosse coroada
imediatamente. Qualquer mulher. E, com esse propósito, fiz
uma coisa que só quatro pessoas sabem; cinco, agora,
contando com a sua pessoa: alterei o cérebro eletrônico.
Sabia perfeitamente que este não poderia fornecer o nome de
uma mulher com todas as qualidades exigidas pelo povo e
pela Câmara dos Comuns e providenciei para que saísse um
expediente qualquer. Compreenda que as exigências eram
tais, que o cérebro só poderia dar uma resposta: não existe
uma mulher com tantas qualidades. Alterei o cérebro e ele
indicou o seu expediente...
— Foi uma boa jogada... — suspirou Brigitte, — eu que
cheguei a achar que possuía todas as qualidades para ser
rainha!
— Desiluda-se: tudo foi obra minha. A máquina não
funcionou direito graças à minha intervenção na noite
anterior.
— Está bem. E por que me conta tudo isso? Não
considero necessário que me ponha a par das maquinações
dos Quatro, pois suponho que, nem bem cheguemos a Queen
City, vocês me humilharão irradiando pelas sete emissoras
do país as minhas conversas com Frankie.
— Já vi que não entende nada de nada. miss Montfort.
Não teríamos encenado toda a pantomima do cérebro
eletrônico se pretendêssemos fazer o que acaba de dizer. Por
certo não a teríamos trazido para Atlantic Kingdom dispostos
a coroá-la...
— Pretendem coroar-me, apesar dessa gravação?
— Por certo. Será que ainda não compreendeu?
— Francamente: não!
— Não é tão inteligente quanto se imagina ao ler os seus
artigos, mas, enfim, já está aqui, tudo está em marcha e isso
é o que interessa. Nos. do Conselho dos Quatro, queríamos
coroar uma mulher. Por seu lado, miss Montfort parece
interessada exclusivamente em dinheiro. Pede... Isto é,
pretendia pedir cinco milhões de dólares pela participação da
jogada.
— Todos temos direito a sonhar — suspirou “Baby”.
— No seu caso não será um sonho, porque nós lhe
pagaremos essa quantia, mas terá de ajustar as contas com o
seu amigo Frankie valendo-se do seu próprio dinheiro. De
acordo?
— Naturalmente...! — Brigitte parecia não caber em si de
espanto. — Mas... por que me darão tanto dinheiro?!
— Para que se deixe coroar. Explicarei detalhadamente,
porque depreendo de sua expressão, se me permite,
aparvalhada, que não entende nada de nada. Será coroada
rainha e, poucos dias depois, firmará certos documentos.
Neles, fará uma cessão muito clara e inapelável de seus
direitos reais, especificando com igual clareza considerar que
um país com grandes possibilidades de prosperar necessita
de um Governo... diferente. Sua abdicação total, definitiva,
frontal, trará consigo a cessação de qualquer futuro direito
real, por sua parte ou pela de qualquer outra pessoa.
Nesse documento em que ficarão definitivamente
anulados todos os poderes e mandatos reais, nomeará, para
formar o futuro e mais conveniente Governo da Pátria, um
Presidente e um Conselho de Três. Entende?
— Você será o Presidente e Joseph, Isaac e Zabulon
formarão o Conselho dos Três...
— Exato! O país não mais se chamará Atlantic Kingdom,
mas Atlantic States.
— Sim, entendo. Acho que entendo isso. Mas me
pergunto por que faz essas coisas.
— Não creio que isso lhe importe, mas responderei. O
país necessita de dinheiro... Muito dinheiro que...
— Foi roubado pelo Conselho dos Quatro — concluiu
cinicamente Brigitte Montfort.
Martin franziu a testa mas acabou sorrindo.
— Sim ... Isso mesmo.
— Nesse caso, acho que vocês são mais aventureiros do
que eu, pois imagino que terão roubado muito mais do que
cinco milhões de dólares. Mas diga-me: que tem a ver a
abdicação total com essa necessidade de dinheiro para
Atlantic Kingdom?
— Quando o nosso país deixar de ser um reino, alguém
nos fará um empréstimo. Outro país, se me entende.
— Formidável! — a espiã arregalou os olhos. — De
quanto?
— De duzentos e cinqüenta milhões de dólares.
— Ai! — gemeu “Baby”, perfeita em seu papel de
cretina. — É inacreditável! Como pode haver quem empreste
tanto dinheiro a um país nas condições do Atlantic
Kingdom?!
— Pois nos emprestarão esse dinheiro, miss Montfort.
— Fico satisfeita, pois imagino que, com tanto capital,
vocês do Conselho os Quatro poderão fazer muito pelo país.
Sem dúvida o povo ficará contentíssimo, grato a vocês e
alegre com o fato de a rainha haver abdicado. Será criado o
Conselho dos Três, você será Presidente de Atlantic States e
o povo terá prosperidade.
— Isso mesmo.
— Não cabe dúvida de que estejam realizando uma
façanha de fato heróica. O povo os adorará. Com duzentos e
cinqüenta milhões de dólares, qualquer país pequeno pode
subir como um foguete...O que me pergunto é se o povo
chegará a saber que vocês conseguiram essa soma.
— As vezes me parece uma mulher inteligente, miss
Montfort — o homem se mostrou mordaz. — O povo será
informado de que recebemos um empréstimo de cento e
cinqüenta milhões.
— Oh! Então os quatro heróis dividirão entre cem
milhões! É o golpe mais fabuloso de toda a história da
intriga política. Não obstante acho que, para tanto, terão de
contar com a cumplicidade do país prestamista, não?
— Contamos com essa cumplicidade.
— Em troca de quê? Que país é esse?
— Não creio que lhe importe, nem uma coisa nem outra,
miss Montfort. É evidente que, dentro de algumas semanas, o
mundo inteiro saberá quem nos emprestou o dinheiro. O
motivo pelo qual nos terá feito o empréstimo se tornará do
domínio público dentro de uns meses. Mas até então, isso
não importará.
— Na minha opinião. Martin, vocês, os Quatro, estão
disposto a vender o país. Sobre esse tema teci alguns
comentários em meu discurso televisado. O que vocês farão
será enriquecer o país debilitando-o por dentro, de modo
que, em pouco tempo, não será mais que um satélite de outro
país, mais poderoso.
— Isso também não é da sua conta — respondeu Martin,
irritado.
— Claro ... Não é da minha conta.
— Muito me alegra o fato de nos entendermos. Quanto
aos seus cinco milhões de dólares, eles lhe serão entregues
quando, depois de coroada, tiver firmado os documentos
que...
— Não! Ah, não, meu caro Martin, não... Isso, é da
minha conta. Quero o dinheiro antes. Antes de firmar os
documentos e, se possível, antes mesmo de ser coroada.
Você já me enganou descaradamente uma vez ao não me
informar sobre a tal bruxaria real. Chega de bromas. Vai ver,
toda essa história de bruxaria é também idéia sua, hem?
— Não! — Martin empalideceu. — Eu lhe asseguro que
nada tenho a ver com isso. Incineramos Jebediah, mas parece
que... que a maldição continua em vigor. Tem de me
acreditar, miss Montfort.
— Acredito. Seria absurdo que vocês mesmo me
quisessem matar. Pelo menos, não antes de eu haver firmado
os tais documentos, E não há dúvida alguma quanto a que as
víboras me poderiam ter liquidado. Então, há algo extra,
mais alguém metido nisso. Alguém que não quer rainhas.
— Deixemos esse assunto de lado, porque me põe
nervoso... Será muito bem protegida até partir do país, de
modo que nada terá a temer.
— De acordo. E o meu dinheiro?
— Bem... Terei de consultar... Não se movimenta cinco
milhões de dólares facilmente. Além disso, talvez esse
dinheiro não chegue antes de dois ou três dias, talvez mais.
— Mas vocês devem ter uma conta-corrente em algum
lugar, não? Fora de Atlantic Kingdom, naturalmente. Na
Suíça?
— Sim, claro... Na Suíça.
— Pois esta mesma noite vocês quatro me pagarão os
cinco milhões de dólares e vão fazê-lo de um modo
simpático, ficando com a imerecida auréola de honrados,
generosos, caritativos etc. Isso lhes ficará muito bem...
politicamente, não acha?
— Que modo será esse? — esforçou-se para sorrir.
— Enviaram dois milhões e meio normalmente à diretora
do meu asilo de velhos e igual soma ao meu querido centro
de recuperação de para-normais. Mas farão os donativos em
seus próprios nomes, não no meu. Isso lhes dará um bom
resultado nos Estados Unidos, meu caro Martin. Um bom
primeiro passo para conquistar a sólida amizade dos
americanos. Que tal a idéia?
— Pessoalmente. não gosto. Além disso, é muito
dinheiro. Não creio que até o momento tenhamos podido...
podido...
— Roubar tanto? — riu-se “Baby”. — Seja cordato: esses
cinco milhões serão rapidamente ressarcidos, não é
verdade’?
— Claro.
— Será apenas um adiantamento. Está resolvido. Dentro
de poucos dias telefonarei para as diretoras das duas
instituições beneméritas para certificar-me de que receberam
os generosos donativos dos principais cidadãos de Atlantic
Kingdom, e se obtiver resposta afirmativa, serei coroada e
firmarei os documentos. Vocês pedirão os cinco milhões de
dólares a quem lhes vá fazer o grande empréstimo, ocuparão
o Governo e terão apenas de aguardar a chegada dos
duzentos e cinqüenta milhões, embolsando os modestos cem
milhões... A essa altura dos acontecimentos, eu já terei
regressado aos Estados Unidos. resolvendo o meu caso com
as diretoras daquelas instituições. De acordo?
— De acordo.
— Então, estamos falados. Agora, faça-me um favor:
diga a Frankie que o espero aqui. Quero saber se ele está de
acordo com tudo. Terei de lhe dar uma parte dos meus cinco
milhões, mas isso não importa, porque o meu quinhão será
excelente.
— Isso é assunto entre os dois — riu-se Martin. — Direi
ao seu amigo que desça. Não se esqueça de que dentro de
meia hora ou pouco mais chegaremos ao porto, Majestade.
Martin saiu sorrindo do camarote real e um minuto
depois Minello entrava, trancando a porta a um sinal de
Brigitte. Sentou-se diante ela, expectante.
— Falaram de coisas interessantes?
— Claro. Escute, palavra por palavra.
“Baby” foi á mesinha onde se via sua maletinha vermelha
com flores azuis, recolheu o maço de cigarros do qual havia
retirado um cigarro na presença de Martin e voltou à cadeira.
Sacou do maço um aparelho ainda menor do que o do chefe
dos Quatro e ativou o mecanismo gravador de fio capilar.
Toda a conversa entre ela e Martin foi fielmente
reproduzida pelo diminuto aparelho. Quando terminou o
play-back, o jornalista sorria até as orelhas.
— Você tem uma capacidade assombrosa para ludibriar,
minha querida! — comentou. — Esse Martin não passa de
um coitado: atrever-se a brincar de espionagem com
“Baby”!...
— Devemos desculpar sua ignorância do assunto,
Frankie! Estive a ponto de rir em suas barbas.
— Eu não teria conseguido controlar-me. Há! há! há!
Afinal, qual será o país prestamista?
— A Rússia, naturalmente. Não lhe basta Cuba: quer uma
plataforma ainda maior e mais próxima dos Estados Unidos.
Dentro de um ano ou pouco mais, Atlantic Kingdom teria
suas dezesseis ilhas cheias de projéteis russos, soldados,
petroleiros. Seria ótima base para a sua esquadra, na qual
teriam mais autoridade do que têm em Cuba. Se acontecer o
que se está tramando, o Oceano Atlântico será em breve
outro Mediterrâneo, igualmente cheio de navios russos.
— E isso não interessa?
— Para ser sincera. Frankie, não sei. Já não sei ao certo o
que interessa ou não, á exceção da paz. A Rússia dispõe de
armas de tão longo alcance que pode prescindir da base que
criaria em Atlantic Kingdom. Também há demasiado
comunistas no mundo para que nos preocupemos com mais
ou menos quatro milhões deles. Nada disso me importa
seriamente, porque o dia que estourar a guerra as distâncias
não terão muita significação. Mas não quero que esses quatro
milhões de ilhéus sejam enganados, vendidos a um sistema
político que nem sequer conhecem. Portanto, impediremos
essa venda de um país inteiro.
— Como?
— A primeira coisa a fazer é vigiar continuamente
Martin. sem perdê-lo de vista. Você se incumbirá disso.
Quero saber aonde vai, com quem fala e o que faz. Será que
você se atreve?!
— Por você eu me atrevo a tudo...
— Então, meu querido, preste atenção à contrajogada da
agente “Baby”: você irá...
CAPÍTULO SETIMO
Afinal, os big-three não falharam.

— Sim, Jonás: entre.


— Pareceu-me que Vossa Majestade estaria fatigada da
viagem...
— Foi uma viagem cômoda e alegre. A recepção foi
maravilhosa, com flores pelo caminho até o palácio. Jamais
esquecerei esses momentos. Mesmo que estivesse cansada
atenderia ás visitas.
— Vossa Majestade é muito bondosa.
— E muito formosa — acrescentou Minello, estendido
como um paxá num divã do gabinete particular da rainha.
Jonás lhe dirigiu um olhar de soslaio mas não fez o
menor comentário. Alto e forte, colossal, ainda parecia
capaz, aos sessenta anos, de fazer frente ao atlético Minello e
até de deixa-lo em dificuldades.
— Diga a mister Conrad que entre, Jonás.
— Sim, Majestade.
O mordomo se retirou e Conrad apareceu segundos
depois, inclinando-se profundamente diante da rainha, que
sorriu, divertida.
— Parece que me tolera melhor, mister Conrad, embora
não tenha comparecido ao porto.
— Estava ocupadíssimo, Majestade, parecendo-me mais
conveniente solicitar uma audiência particular.
— Muito bem. Aceito o protocolo. Agora, diga se há algo
novo.
— Sim, Majestade: já estou com as respostas das cartas
que Vossa Majestade se dignou enviar pelos meus três
homens de confiança.
— Já?!
— Precisamente quando Vossa Majestade chegava ao
porto no iate, o último dos enviados regressava da Europa.
Aqui estão as três respostas.
Brigitte recolheu os três envelopes e sorriu enquanto os
examinava por fora. Abriu a primeira missiva. Sorriu. Leu a
segunda e, logo a seguir, a terceira e última, sempre sorrindo.
— Pode ler as três, mister Conrad.
Ele recebeu as cartas, cuja procedência dava para
impressionar. Desconhecia o conteúdo, mas sabia que devia
tratar-se de assunto importante. Após ler as duas ou três
primeiras linhas da primeira carta, empalideceu e ergueu os
olhos para Brigitte, continuando a ler com avidez. As outras
duas missivas foram lidas com o mesmo assombro, porém
com maior avidez. Quando terminou, estava incrivelmente
pálido e olhava, entre atonito e incrédulo, para Sua
Majestade Brigitte.
— Como vê, mister Conrad — disse ela, maviosa —
embora a seu ver eu não mereça ser rainha, tenho amigos que
são reis e presidentes de seus países... As mensagens que
enviei a dois presidentes e um rei continham um pedido de
empréstimo para Atlantic Kingdom. Aí tem as respostas: um
total de cento e vinte e cinco milhões de dólares á disposição
do seu país quando nos queiramos valer dessa soma. São
cinqüenta milhões que nos emprestará Sandor II, da
Ausvânia, outros cinqüenta que nos emprestará a República
de Cavo Granada, e vinte e cinco milhões que nos
emprestará a República de San Nataniel2. Nenhum desses
três bons amigos falhou. Acha que poderemos fazer algo
com essa quantia, mister Conrad?
O fascinante preceptor de Mary Lou passou a língua
pelos lábios.
— Eu já disse a Vossa Majestade que se poderia
conseguir milagres com cem milhões bem administrados.
— Quanto a isso, não se preocupe: eu já tenho pessoa
adequada. Pode retirar-se, mister Conrad.
— Eu quisera pedir perdão por...
— Boa-tarde — interrompeu-o Brigitte com um olhar de
admiração feminina que o fez sentir um frio no estomago.
— Boa-tarde, Majestade.
Conrad saiu e Minello sorriu ironicamente, talvez
enciumado, olhando para o relógio de pulso.
— Bem, acho que o tal Martin já deve estar prestes a sair
do palácio disse. — Vou preparar-me para segui-lo.
— Está com todo o equipamento, Frankie? Entendeu
tudo? Se tiver dúvidas quanto ao manejo de algo...
— Não se preocupe. Há muito tempo não me divertia
tanto. Você vai ver como trarei resultados.
— Assim o espero. Você é lerdo como um elefante, mas
não tenho outro remédio senão recorrer à sua cooperação,
querido. Uma rainha não pode entrar e sair a todo instante do
palácio.
— Você não é muito amável comigo — reclamou o
brutamontes.
— Não obstante, eu o quero muito a despeito de você não
acreditar... Trate de partir, para que Martin não escape.
2
ver episódios: REI MORTO, RESERVAS DE OURO e UM EPISÓDIO EM
CAPRI
Tenha cuidado, porque deve estar muito contrariado ao
perceber que inutilizamos todos os seus microfones.
— Deixe comigo. Adeus, Majestade. — Adeus riu-se
“Baby”. — Diga a Jonás que entre.
Minello saiu sorridente e atirando um beijo com os dedos
para a rainha de Atlantic Kingdom. Jonás estava junto à
porta, empertigado como se tivesse engolido uma espada,
assentindo com a cabeça ao receber a ordem e entrando
imediatamente.
— Majestade .
— Quero falar com a Princesa Mary Lou, Jonás. Diga-lhe
que tenha a bondade de vir.
— Sim, Majestade.
Três minutos depois a menina entrava no gabinete
particular da rainha, sem a menor preocupação com o
protocolo, precedendo o mordomo, que deveria anunciá-la.
Este percebeu o olhar de indulgência da rainha e se retirou,
sorrindo. Mary Lou ficou de pé diante de Brigitte, olhando-a
fixamente, esforçando-se para manter sua atitude altiva, mas
havia em seus olhos verdes, estranhamente translúcidos, uma
luz diferente do brilho dos dias anteriores. Uma expressão de
indecisão infantil. Possivelmente Conrad lhe dissera algo e
isso a mergulharia na contusão.
— Sente-se, Mary Lou — aconselhou Brigitte, indicando
o divã ao seu lado. — Eu gostaria de conversar um pouco
com você.
— Sobre quê?
— Sobre tudo. Sempre há coisas que servem de assunto.
Continua achando que gostaria de ser rainha?
— Sim, Majestade.
— Ah! Parece que mister Conrad conseguiu convencê-la
de que, acima de tudo, deve ser educada. Diga-me: por que
gostaria de ser rainha?
— Para fazer muitas coisas boas que não podem ser feitas
agora.
— Magnífico! Que coisas boas você faria, por exemplo?
— Construiria mais duas escolas em cada uma das ilhas
pequenas e mais três nas grandes: dez nesta, que é a maior.
Também compraria maquinaria agrícola nos Estudos Unidos.
Ampliaria a frota pesqueira e providenciaria o aumento da
criação de gado e a melhoria do seu manejo. Enviaria os
melhores estudantes a uma universidade americana ou
mexicana para que aprendessem tudo e logo pudéssemos ter
primeiro uma universidade e depois vária. Faria concessões
para prospecção de petróleo em nossas águas e
incrementaria...
— Basta, basta... Você pensou em tudo isso sozinha?
A menina vacilou, visivelmente.
— Pensei.
— Uma princesa não pode mentir. Principalmente
quando aspira a coroa. Diga: você pensou em tudo isso?
— Não.
— Muito bem. São idéias de mister Conrad, não é
verdade?
— É, Majestade.
— Você gostaria que todas essas idéias de mister Conrad
se tornassem realidade?
— Claro.
— Pois vamos tentar. Está com pressa? Talvez tenha de
estudar agora, hem?
— Não... Agora não.
— Então, vamos adiantar os ensaios da coroação.
Entendo que, durante os dias de minha ausência, todos,
inclusive os jornalistas nacionais e muitos dos que vieram de
fora, foram inteirados do que deverão fazer, de onde deverão
colocar-se... Mas eu não sei absolutamente nada. Na verdade
— sorriu — a minha parte seria a mais fácil, não acha?
— Não sei.
— Hoje, jantaremos com as suas primas Jezebel e Dalilah
e amanhã, durante os ensaios, eu gostaria que você estivesse
ao meu lado. Que acha da idéia’?
— Boa... Majestade.
— Você titubeia, com freqüência, em me chamar
Majestade. Isso não está certo, porque sempre se deve fazer
as coisas direito. Eu gostaria que me falasse sobre o papel da
rainha. Sobre o que julga certo ou errado... Também me
explicara como é a cerimônia. Enfim, falará de muitas
coisas. Você gostaria de assistir à minha coroação?
A menina permaneceu em silêncio, mas sempre com os
olhos inteligentes fixos nos da espiã, tão azuis, tão belos e,
acima de tudo, tão acolhedores, que a frieza de Mary Lou se
atenuava aos poucos.
— Creio... — murmurou, por fim. — Creio que não,
Majestade.
— Preferia que fosse você a rainha coroada, Mary Lou?
— Ou uma de minhas primas.
— Mas você já sabe que elas não querem ser rainhas.
— Então, seria eu.
— Gostaria de ser rainha, ainda que isso fosse perigoso?
— Gostaria, Majestade.
— Devo admitir que você é uma menina de idéias bem
definidas e fixas. E agora pergunto: você gostaria de ensaiar
comigo, amanhã, a cerimônia da coroação? Quero dizer que
ensaiaria certas partes da cerimônia em meu lugar. Você já
assistiu a alguma coroação?
— Já, Majestade.
— Ótimo! Então, poderá ajudar-me muito. Você não
gostaria de ensaiar a cerimônia inteira, para que eu pudesse
aprender vendo fazer?
— Gostaria. Majestade.
— Maravilhoso! Tenho a impressão de que a idéia a
agradou muito, hem?
A menina não pode conter o sorriso.
— Sim, Majestade, gostei muito!
— Então, estamos combinadas: amanhã ensaiaremos
juntas.
***
O dia foi estafante para a agente “Baby”, que na realidade
era a única desconhecedora de seu próprio papel, dos
movimentos apropriados durante a coroação, pelo menos in
foco, pois já tivera de aturar longas descrições do ato feitas
por Martin durante a viagem de três dias no iate. A Sala do
Trono não era muito grande. de modo que as complicações
foram reduzidas ao mínimo, com alguns detalhes
modificados e certos defeitos corrigidos. Durante dez horas,
com ligeira interrupção para o almoço, os ensaios esgotaram
a todos, menos à rainha que, quando finalmente se retirou
para os seus aposentos, parecia tão fresca quanto ao chegar e
a manhã, à Sala do Trono.
Ao chegar ao seu gabinete particular, deixou-se cair numa
poltrona para saborear champanha com cereja no fundo da
taça e atender a Martin.
— Os cheques já estão em viagem — disse este,
sentando-se também, fatigado. — Foram enviados esta tarde.
Seus protegidos os receberão dentro de poucas horas, miss
Montfort. Já solicitamos ligações telefônicas com as duas
instituições de caridade para que possa comprovar o que
digo.
— Frankie, por favor: quer cuidar disso? Você já sabe...
— Sim, querida, não se preocupe. Descanse à vontade.
Zabulon e Minello se encaminharam para o telefone. O
jornalista conhecia muito bem as vozes das diretoras das
instituições, pois as visitara diversas vezes em companhia de
Brigitte. Enquanto se incumbia disso, Brigitte ouvia as
explicações de Martin, chefe do Conselho dos Quatro.
— Fizemos a coisa de modo a parecer um donativo do
Governo ilhéu, miss Montfort. Com a entrega dos cheques,
os nossos enviados especiais explicarão que preferimos fazer
tais donativos a gastar dinheiro com uma coroação
demasiado ostentatória que poderia ser considerada um
esbanjamento... Deverão ser considerados como um ato de
boa vontade do Governo de Atlantic Kingdom para com os
Estados Unidos da América no dia da coroação.
— Perfeito, Martin. Perfeito de fato. Muito obrigada
Sorveu um gole do champanha, enquanto Martin parecia
atônito ao ver a cereja no fundo da taça, deixando escapar
um pensamento que o atormentava:
— O que me pergunto, miss Montfort, como se
beneficiará desse dinheiro, uma vez que esta sendo entregue
a pessoas que não...
— Não deve preocupar-se com isso, Martin. Sempre há
solução para tudo. Já cumpriu a sua palavra. Todos estão
contentes: vocês os meus anciãos, os meus meninos
paronormais, todos, enfim. Sem dúvida os Estados Unidos
saberão apreciar o gesto e verão com mais simpatia um
vizinho até agora pouco sociável.
— Não necessitamos da amizade dos Estados Unidos.
— Quem sabe? Na pior das hipóteses, se o outro país
falhar, será bom que os Estados Unidos compreendam que,
com o liberal donativo de cinco milhões de dólares, Atlantic
Kingdom abre suas portas aos norte-americanos. Não acha
que isso beneficiaria o país?
— Se não tivéssemos um acordo em vigor com outra
nação
— É preciso usar a cabeça. Martin. Se esse acordo falhar,
o que não é totalmente impossível, será bom sermos amigos
da poderosa nação vizinha chamada USA. Aceitam uma taça
de champanha? Alegra, revigora e, acima de tudo, refresca
um pouco as mentes cansadas. Segundo um bonitão italiano
chamado Angelo Tomasini, a cereja no fundo da taça
empresta ao champanha um “sabor Brigitte”
— Para falar a verdade, prefiro dormir um pouco. Muito
obrigado.
— Mas, antes, vejamos o que nos diz o bom amigo
Frankie.
Minello se afastava do telefone, acenando
afirmativamente para ela com a cabeça: os cinco milhões
tinham chegado intactos aos destinatários.
— Boa-noite, cavalheiros — Brigitte despediu a todos
com um aceno de mão.
— Igualmente, Majestade, igualmente — sorriu Martin.
— Deve descansar bastante para estar radiante amanhã,
porque os televisores do mundo inteiro mostrarão todos os
atos da coroação.
Os Quatro saíram dos aposentos reais e Brigitte olhou
significativamente para Minello.
— Que houve? Está cansado?
— Estou.
— Estou também, mas não desisto... Vá atrás deles.
— Hoje á noite não se avistaram com ninguém. Seguiram
de carro para suas residências e não creio que...
— Não creia coisa alguma. Frankie: trabalhe. E tenha
sempre preparado o equipamento que tive a imprudência de
lhe emprestar. Não são gente que deixe cinco milhões no ar,
de modo que se apresentarão para reclamá-los de volta.
— Talvez o façam por telefone.
— Podem ter marcado um encontro por telefone, mas não
terão falado claramente. Devem ter outro meio de contato
mais direto, privado, inviolável. Contato pessoal. Não os
perca de vista.
— Você acabará comigo!
— Se isso acontecer, você poderá contar com meia dúzia
de lágrimas para regar as flores do seu túmulo — respondeu
a espiã internacional. — Vamos, Frankie, não perca mais
tempo!
— Está bem, já vou, já vou. Eu bem que gostaria de
passar uma noite nestes aposentos. Quanto à idéia relativa
a... aaa... ao príncipe-consorte sabe... Que tal se
apressássemos as bodas reais?
— Se você não sair imediatamente eu lhe jogarei um
sapato. Não se esqueça de que se acontecer algo deverá
chamar-me pelo rádio. Fora daqui!
Minello saiu pulando comicamente e Brigitte ordenou a
Peggy:
— Diga a Jonás que jantarei nos meus aposentos, Já
jantei ontem á noite com a... realeza e confesso que não me
agradou muito. Mary Lou é uma criança, porém mais
valente, generosa e inteligente do que as primas. Não são
más criaturas, mas não têm uma noção exata do que seja a
vida, com ou sem duendes. Informe a Jonás que você mesma
me servirá o jantar e que eu me deitarei logo após a refeição.
— Está bem, miss Montfort.
Uma hora mais tarde, por volta das dez, a agente “Baby”
se estendia a fio comprido no leito real, suspirando e
metendo embaixo do travesseiro a pistolinha com cabo de
madrepérola, bem como a pequena esferográfica-lanterna. Se
as cobras voltassem não acenderia a luz do abajur porque a
sua esferográfica iluminaria suficientemente o caminho da
fuga. Quanto às víboras, teriam de andar ás cegas. Andar?
Não: ser levadas.
Adormeceu em menos de um minuto.

CAPÍTULO OITAVO
O duende do príncipe-consorte

Soaram uns golpes lentos, espaçados. contra o soalho.


Eram golpes surdos, ligeiramente audíveis no silêncio da
noite. Tão pouco audíveis que somente os apurados ouvi dos
da agente “Baby” eram capazes de captá-los e somente o seu
cérebro excepcional, adormecido, podia senti-los.
Na sexta pancada Brigitte Montfort já havia aberto os
olhos e seu cérebro estava completamente desperto. Não se
moveu, continuando a ouvir as pancadas. Estavam cada vez
mais perto do leito. Eram... passos. Só podiam ser passos.
Lentos, pesados. cuidadosos, mas chegavam cada vez mais
fortes aos ouvidos da espiã, que foi movendo a mão
lentamente para baixo do travesseiro. Aferrou-se à pistola e à
esferográfica-lanterna. passando esta para a mão esquerda,
pronta para lançar o raio delgado que se transformaria num
circulo luminoso cada vez maior com o aumento da
distância.
Eram passos humanos. Estranhos, mas passos humanos
dados com dificuldade, lentos, pesados. A porta do terraço
estava entreaberta; porém, lá fora só se via certa claridade
das estrelas e de lutes distantes, dos postos da guarda da ala
ocidental do palácio. Dentro do grande quarto tudo era
silêncio, a não ser por aqueles passos cuidadosos.
Tensa, Brigitte lançou finalmente o delgado facho de luz
para o ponto de onde vinha o ruído de passos. O raio de luz
mais pareceu uma cutilada na escuridão e perto do pé da
cama, a um lado ouviu-se um muxoxo. Os passos se
detiveram em seco.
A luz incidira em algo escuro: roupa grossa. volumosa.
Ascendeu imediatamente iluminando um peito humano e
continuou subindo até que o circulo luminoso clareou um
rosto de homem. Barbudo, orlado de vasta cabeleira. Seus
olhos negros, ferozes, se fecharam sob o intenso raio de luz e
sua boca dura, se crispou furiosamente.
Um grito chegou até a garganta de Brigitte, mas não saiu
porque ela estava paralisada de espanto. O rosto que via era,
inconfundivelmente do príncipe-consorte Jebediah, o homem
que morrera sete anos antes e fora finalmente incinerado
para evitar o terror que causavam as suas aparições como
duende, isto é, um morto parcialmente ressuscitado, revivido
por poderes de magia negra.
Aterrorizada ante tão surpreendente visita, a agente
“Baby” conseguiu por fim reagir. O rosto desapareceu do
circulo luminoso e o leito estremeceu, vibrou. Por uma
fração de segundo Brigitte acreditou que o duende tivesse
caldo sobre o leito, mas não foi assim. Este se deslocou
bruscamente, as madeiras rangeram e os adornos do dossel
caíram ao chão. O leito era arrastado e sacudido de tal modo
que Brigitte não podia orientar o facho de luz para o
animalesco duende de Jebediah, cuja força era tal que ele
conseguira erguer o leito, emborcando-o. Brigitte ficou
esmagada pela cintura entre o pesado móvel e o chão. A
lanterna e a pistolinha lhe escaparam das mãos, porém a
espiã logo conseguiu reencontrar a arma, com dedos
trêmulos, disparando duas vezes a esmo, às cegas. Ouviu o
ruído das balas penetrando na madeira, mas nenhum gemido.
Teve de recorrer a todo o seu autodomínio para se controlar,
prendendo a respiração num esforço para detectar o menor
ruído indicativo da posição do duende.
A porta do quarto de Peggy se abriu e a empregada
apareceu no retângulo de luz que inundou o quarto real.
— Mi... mi... miss!
— Não entre! Não entre sem arma, Peggy! Traga a sua
pistola!
Peggy desapareceu e Brigitte largou a pistolinha no chão
para poder empregar as duas mãos num esforço para sair da
prensa de madeira e colchão. Conseguiu virar-se quase
completamente, ergueu a cama com os braços e rastejou até
sair.
Quando Peggy voltou, empunhando nervosamente uma
pistola. Brigitte já havia acendido a luz e olhava
desconfiadamente ao redor. Sabia que o duende não tinha
saído pela porta do gabinete, nem pela que dava para o
quarto de Peggy. No entanto, não estava ali!
— Miss Montfort, que... que...
Brigitte olhou para e Peggy, sem responder. Outro
pesadelo? Ah surdo! Tão absurdo quanto a idéia de que um
duende a tivesse visitado e logo desaparecido. Vira
claramente o seu rosto e era o do príncipe-consorte Jebediah.
Porém, daí até aceitar a idéia de que um corpo incinerado
pudesse recuperar a matéria humana para vagar meio vivo e
meio morto pelo palácio havia uma distância muito grande.
Não acreditaria, nem mesmo que a sua boa amiga a bruxa
Mabanga jurasse de pés juntos.
Peggy não desviava é olhar do leito tombado, porém
Brigitte não dava a menor atenção a esse detalhe,
examinando com os olhos azuis todos os recantos do enorme
quarto em busca de uma explicação lógica. Um homem
havia entrado e saído sem se utilizar de portas ou do terraço.
Conclusão lógica, fria, indiscutível, sem bruxarias: havia
outra entrada para o quarto real. Seu olhar se fixou no
armário. Uma das portas não estava bem fechada e isso era
uma coisa que ela jamais faria. Não por simples mania de
perfeição, mas por tática, por método rotineiro. Aproximou-
se até se plantar diante daquela porta do grande armário,
quase em seu extremo esquerdo, que se juntava á parede.
— Saía daí! — ordenou friamente. Sem mais palhaçadas!
Tem apenas três segundos! Transcorrido esse prazo,
dispararei através da madeira!
Os três segundos transcorreram em silêncio e Brigitte
apontou friamente na altura de um homem de grande
estatura, para o coração. Apertou o gatilho três vezes,
separando cada impacto de dez polegadas. Saltaram pedaços
de madeira, porém não se ouviu coisa alguma dentro do
armário. Nem um gemido. Nem sequer o ruído de um corpo
caindo.
— Traga a maleta, Peggy.
A empregadinha saiu correndo e voltou como uma flecha.
Brigitte recolheu um pente de balas da maleta, recarregou a
pistola e desferiu mais três tiros contra o armário. Nada!
— Ai, meu Deus! — gemeu Peggy.
Brigitte abriu as duas portas baleadas e olhou: apenas
roupas perfuradas. Recuou dois passos e ficou examinando o
armário detidamente. De repente, saiu correndo para o quarto
de Peggy e se pôs a examinar o seu armário. Era mais
estreito. Voltou correndo para o seu quarto, recolheu a
esferográfica-lanterna do chão e se aproximou do grande
armário, passando a retirar tudo o que continha, até deixá-lo
inteiramente vazio. Entrou e começou a bater na parede do
fundo com os nós dos dedos. Logo ao segundo golpe notou
um som oco. Examinou cuidadosamente os bordos do painel
de madeira, empurrando-o logo a seguir com toda a força,
como se intentasse derrubar armário, parede e tudo o que
pudesse estar à sua frente.
Uma porta de metro e meio de altura por uns noventa
centímetros de largura cedeu para dentro.
— Santo Deus! Valei-nos, Nosso Senhor! — implorava
Peggy.
— Cale-se, mulher! — gritou a espiã. — Fique aqui
vigiando. Se sair alguém mais que não eu, atire.
— Miss Montfort, não entre, pelo amor de Deus!
— Feche a porta do armário! Vamos!
Peggy obedeceu, porque conhecia muito bem aquele tom
de voz. Brigitte se encontrou às escuras, valendo-se apenas
da luz de sua lanterninha. que ela lançou para frente e para
baixo. Havia uma escada de pedra. Desceu cautelosamente.
Contou cem degraus e compreendeu que estava no subsolo
do palácio. Sentiu cheiro de umidade e um frio de arrepiar.
Diante dela havia extenso corredor de paredes de terra
reforçadas apenas em alguns trechos com grandes pedras. O
teto também só era reforçado em certos pontos. Um trio
intenso quase fazia a espiã tiritar, pois ela estava apenas com
sua camisola diminuta e ultratransparente em cima da pele,
seus pés descalças deslizavam silenciosamente na terra
gelada.
Apressou o passo, tendo de dobrar uma esquina depois de
percorrer nada menos de uns trezentos metros. Lançou a luz
para frente, sempre buscando o duende. Lá estava ele, como
uma sombra difusa, não muito distante. A luz quase não
chegava ao gigantesco vulto que corria pesadamente
afastando-se da espiã mais corajosa de todos os tempos.
— Alto! — gritou Brigitte. — Alto ou eu disparo!
Sua voz pareceu ficar presa entre aquelas paredes úmidas
e o duende, sempre correndo pesadamente, desapareceu.
Sem vacilar e percebendo que aquele homem não estava tão
bem armado quanto ela, Brigitte também correu, logo
compreendendo por que ele havia desaparecido: o túnel tinha
outra curva naquele ponto. Logo a seguir mais outra, bem
perto, por onde tornou a desaparecer o duende. “Baby”
continuou correndo e entrou em outra curva, estacando
secamente, com um grito de susto, pois quase tropeçou num
esqueleto humano. Nesse ponto o túnel se alargava,
formando pequena galeria de uns quatro a cinco metros de
diâmetro. A um lado estava o esqueleto, amarelento, sentado
numa posição forçada, com a cabeça e os ombros reclinados
na parede e escorado de encontro a ela por um grande
machado de guerreiro, enferrujado pelo tempo, que lhe
atravessava os ossos do tórax.
Depois de recuar alguns passos e engolir em seco,
Brigitte reencetou a perseguição ao duende. Tornou a vê-lo
no extremo de outro trecho reto e novamente ordenou que
parasse. fazendo-o com voz tão tensa, tão angustiada. que ele
compreendeu que ela estava com medo. Mas assim mesmo
não pareceu disposto a parar e ela resolveu por fim á
perseguição: apontou friamente para as costas muito largas
que mal conseguiu vislumbrar e apertou várias vezes o
gatilho.
Viu o duende cambalear a cada estampido, tendo a
impressão de que as balas penetravam um montão de roupas
molhadas. O duende tornou a desaparecer, apoiando-se nas
paredes úmidas, e ela reiniciou a corrida até notar que o túnel
terminava bruscamente. Encontrou-se diante de um muro de
lajes de pedra. Não havia variantes do subterrâneo em ponto
algum, de modo que a explicação era demasiado simples:
muito perto dali devia haver outra saída. E essa saída era o
próprio muro, que cedeu para frente quando “Baby” o
empurrou com todas as suas forças e entrou assim que se
formou uma abertura suficiente para o seu delgado corpo,
buscando o duende com a luz da lanterninha. Parou
repentinamente ao deparar com uma tumba, ou coisa
parecida, no centro daquele quarto.
Movimentou a lanterna e viu os ocos de diversos
carneiros. Alguns estavam tampados e tinham inscrições no
mármore. Estava no mausoléu real!
Um braço fortíssimo rodeou sua garganta e uma
respiração ardente lhe aqueceu a nuca. Porém o sobressalto
não durou nem um segundo porque “Baby” sabia que se
defrontava com um homem de carne e osso. E desarmado...
Sem gritar, sem perder a serenidade, tentou aplicar um
“balão”, mas foi o mesmo que tentar erguer uma baleia. A
pressão aumentava de tal forma que ela compreendeu
claramente que já estaria morta se o homem não estivesse
perdendo as forças por causa dos ferimentos de bala.
Compreendeu também que não conseguiria lançá-lo por
cima dos ombros, de modo que fez justamente o inverso:
lançou-se para o alto, apoiando-se exatamente no braço
fortíssimo, e o fez com tamanha rapidez que o duende
perdeu por completo a noção do que estava acontecendo. A
espiã passou por cima de seus ombros, numa flexão
diabólica, enquanto imprimia, ao mesmo tempo, um giro ao
corpo, no sentido do eixo longitudinal, livrando-se
limpamente do aperto feroz mas lento.
Quando o duende se virou, cambaleante, Brigitte estava
de joelhos, recolhendo a lanterninha do chão. Iluminou o
rosto barbudo.
— Não se mexa! — ordenou, ofegante. — Não mexa,
senão eu atiro para matar!
A luz subia e descia, iluminando a áspera indumentária
do duende e seu rosto — o rosto do príncipe-consorte
Jebediah, morto sete anos antes e incinerado havia três anos
e pouco! Mas o duende se mexeu, porém para dar apenas um
passo e cair de bruços, com uma das mãos crispadas no peito
e levando a outra às costas, gemendo. Gemeu mais forte
quando Brigitte conseguiu virá-lo. Estava agonizando e suas
forças desapareciam rapidamente. A espiã ajoelhou ao seu
lado, sem deixar de focalizar para o seu rosto a lanterna e... a
pistola, claro.
De um puxão arrancou a barba e a cabeleira postiças, bem
como um pedaço de massa que pendia do nariz,
desfigurando-o. Com a massa toda uma máscara mole se
desprendeu do rosto do duende, deixando a descoberto a
verdadeira fisionomia do gigante.
— Jonás! — exclamou Brigitte. — Então, era você!
— Ela... ela não... prestava... Todas as rainhas.. não...
prestam.
— Refere-se á esposa de Jebediah?
— Ela... ela... o enganava... Recebia... homens... Pelo
caminho do mausoléu
— Você a matou porque ela... recebia homens depois de
viúva!
— Antes... Recebia muito antes... Ordinária!...
— Como a matou?
— Cobras... ela morreu... de medo... Você... aaahhh...
mais valente... Eu adormecia as cobras... com ... ampolas de
gás... Tenho escondidas mais de... mais de...
— Deixe isso agora, Jonás.
— Jebed... Jebediah foi envenenado... Eu sabia... O
homem que ... ajudou a miserável a matá-lo está... está.... no
túnel... Matei-o com o machado... Vinguei... Jebediah...
Ficou ali dias e dias... quando estava morrendo... de fome...
tive o prazer de... matá-lo!
— Entendo, Jonás. Talvez vingar o seu príncipe possa ter
alguma justificativa, mas você errou matando as outras
rainhas.
— Todas são... perversas como... serpentes... Toda...
rainha... é adúltera! Aaaah!
Ficou imóvel, com os olhos abertos, e Brigitte moveu
tristemente a cabeça. Jonás, o chefe dos serviços internos do
palácio, terminara sua carreira de fantasma oficial do palácio
de Queen City.
A espiã se encaminhou para a grande porta cheia de
cravos de bronze, que dava para os jardins. Estava trancada,
mas Brigitte encontrou a chave no bolso de Jonás. Também
constatou que sob a estranha indumentária o duende tinha
muita roupa, o que fazia aumentar sua corpulência. Mantinha
as pernas rígidas por meio de talas de madeira. Sem dúvida,
se tivesse conseguido matá-la, Jonás teria passeado pelos
jardins, assombrando um dos guardas. Para sua desgraça
Brigitte Montfort não era uma mulher normal: não morreu de
medo ao ver o fantasma de Jebediah e ele não pode escapulir
com a rapidez necessária por ter os movimentos tolhidos
pelas talas de madeira atadas ás pernas.
“Baby” arrastou o cadáver do mordomo para o túnel
úmido e fechou a porta de laje para que não fosse visto por
quem entrasse no Mausoléu Real. Somente quem conhecesse
aquela passagem secreta poderia encontrá-lo e,
aparentemente, ninguém a conhecia ou se lembrava de sua
existência. Conservou a chave da entrada principal, para
qualquer eventualidade, e, pouco depois, reapareceu no
armário do seu quarto. Abriu a porta deste e esbarrou na
pistola empunhada por Peggy, que tremia da cabeça aos pés.
— Vamos, mulher: atire de uma vez, ou guarde essa
arma...
— Miss… Miss Montfort! Felizmente! Que viu?!
— Nada. Foi mais um dos meus pesadelos. Vá dormir em
paz.
— Não conseguirei dormir!
— Não? Tenho uma idéia para tranqüilizá-la: esta noite
dormirei com você. Não estou disposta a desemborcar essa
enormidade — apontou para o leito real.
— Eu Não .... entendo o que está acontecendo! Eu não..
— Vá dormir. Ou prefere que um duende a leve para os
pântanos?
— Os duendes do existem, miss Montfort.
— Tem certeza? Isso me acalma os nervos... Vamos
dormir?

CAPITULO NONO
O erro de não conseguir errar...

Em meio a grande silêncio Sua Majestade apareceu na


Sala do Trono, junto a cuja plataforma estavam os mais altos
dignitários do país. De um lado, o chefe da Guarda Nacional
e dois oficiais impecáveis, garbosos, custodiavam a coroa de
ouro, platina, pérolas, brilhantes e rubis que repousava numa
almofada de seda encarnada.
Nos terraços, cinqüenta jornalistas estrangeiros, vinte
nacionais e os serviços de rádio e televisão do país
esperavam. O mundo inteiro receberia video-tapes da
cerimônia fornecidos pela TVAK — Televison Atlantic
Kingdom, a emissora oficial de TV.
De ambos os lados do corredor, regiamente atapetado,
enfileiravam-se os convidados especiais, dentre eles
enviados diplomáticos de nações que se esforçavam por
estabelecer relações amistosas com o arquipélago.
Por toda parte comentários de admiração ante a beleza
estonteante da rainha. Ela se encaminhou lentamente para a
plataforma, subiu, postou-se diante do trono e se virou. No
alto, em uma espécie de sacada interna, os comentaristas de
rádio e TV murmuravam apressadamente a descrição dos
primeiros momentos da coroação. O representante
eclesiástico máximo do país se adiantou para o trono e ficou
diante da rainha, proferindo as palavras tradicionais de
benção religiosa. Depois, aproximou-se da coroa, do manto e
do cetro, benzendo-os.
***
Na pequena sala da casinha praiana, no subúrbio elegante
de Queen City, Ivan Bolonov olhou ligeiramente para
Kurvanian, sorrindo ironicamente.
— É divertido, não acha?
Kurvanian tinha o olhar fixo nos olhos da rainha que iria
ser coroada dentro de poucos segundos.
— Ainda não podemos rir, camarada Bolonov.
— Pensei que a MVD já lhe tivesse dado uma resposta e
que essa resposta tivesse deixado bem claro que essa Brigitte
Montfort nada tem a ver com organizações de espionagem
ou algo parecido.
— De fato. Ela esteve em Moscou duas vezes e, numa
dedas, realizou, sem que se soubesse, um intercâmbio de
serviços entre a CIA e a MVD3. Sem dúvida um de nossos
mais astutos e inteligentes espiões, Fedor Kosarin, afirma
que Brigitte Montfort ignorava por completo o que estava
Fazendo. Foi utilizada precisamente porque jamais teve
ligação alguma com a espionagem internacional e o assunto
exigia a máxima segurança.

3
Ver Numa Viagem de Prazer
— Então, nada temos a temer dessa mulher. Seria muito
diferente se ela fosse, por exemplo, a tal agente “Baby” da
CIA.
— Nem pronuncie esse nome — disse Kurvanian,
estremecendo. — É o pesadelo de todo o serviço secreto
russo. Mas vamos assistir a essa cerimônia. Essa mulher tem
uma classe excepcional!
— Deveras?
— Não acha? Repare bem, Bolonov.
— Estou reparando, mas acho que nenhuma mulher que
se venda, seja por que motivo for, tem classe. Nem mesmo
quando se venda por cinco milhões de dólares, e nós
sabemos que ela entrou em conchavo com o Conselho dos
Quatro.
— Quase chego a lamentar — suspirou Kurvanian —,
pela decepção que me causa. Mas a verdade é que sua
venalidade nos proporcionará o maior elogio até agora feito
pelo Kremlin.
— Esperemos que assim seja — murmurou Bolonov. —
O nosso trabalho foi lento. monótono e árduo.
— Mas dentro de uma semana estará terminado, Essa
mulher abdicará e... Atenção para a tela!
***
Na tela, os dois oficiais que custodiavam a coroa se
haviam aproximado do trono e colocavam o manto sobre os
ombros da rainha, que o atou ao pescoço com extrema
facilidade. Depois e sempre de acordo com o protocolo de
Atlantic Kingdom, o oficial-general de mais alta graduação
se aproximou dela, oferecendo-lhe numa almofada, o cetro
que simbolizava o mando. Por fim recolheu a coroa trazida
na almofada pelo chefe da Guarda Nacional. Com a coroa
entre as mãos, o general se voltou para a Saia do Trono.
exibindo-a a todos, lentamente, descrevendo um semicírculo.
Voltou-se para a rainha, que permanecia imóvel, com a
cabeça inclinada. Nesse momento a rainha ergueu a cabeça
para receber a coroa, que foi colocada sobre seus cabelos
negros. O general recuou dois passos e, antes de se inclinar
respeitosamente, disse:
— Eis a nossa Rainha! Viva a Rainha!
***
— Bem ... — sorriu Bolonov — Agora, ela dirá algumas
palavras e nossa parte estará terminada. Vou desligar.
— Espere. Não temos pressa. Ouçamos o que vai dizer.
— Como queira. camarada Kurvanian.
Este olhava fixamente para a teta. A rainha se havia
sentado no trono, tomando posse dele. Por trás, apareceu um
oficial da Guarda Nacional que colocou um microfone junto
ao trono para que as palavras da rainha recém-coroada
chegassem a todos os cantos do salão e, através dos serviços
de rádio e televisão, a todo o país.
— Acho que vai dizer umas tolices — comentou
Bolonov.
— Ouça, homem!
A voz de Sua Majestade soou com toda a clareza na sala
da pequena casa praiana:
— Querido povo de Atlantic Kingdom. Agradeço o
carinho demonstrado durante esta semana de estada entre vós
e sei que me dedicariam esse carinho durante toda a minha
vida. Mas esta noite tive tempo para refletir longamente e
decidi abdicar.
— Está louca! — exclamou Bolonov. — Não tem de
fazê-lo agora! Essa mulher é uma estúpida! Devia esperar
alguns dias para que ninguém suspeitasse!
— Cale-se! — gritou Kurvanian. — Escute!’
— ... família real — prosseguia a rainha recém-coroada.
— E creio que essa família real tem todos os direitos sobre
este trono. Assim, tomei a decisão e tenho já escritos os
documentos que dão validez a essa decisão. Agora só me
hasta firmá-los com os plenos poderes que me confere a
coroa.
Um novo personagem apareceu na tela do televisor,
trazendo um pergaminho e um cavalete. Colocou o cavalete
diante da Rainha e, sobre este, o pergaminho, entregando
uma pena á soberana, que começou a firmar o documento
ante o assombro e a expectativa dos convidados.
— Quem é esse sujeito? — perguntou Kurvanian.
— Acho que é o preceptor de uma das princesas.
— Que papel representa em tudo isso?
— Não sei. Mas estou certo de que essa mulher é uma
idiota e me pergunto por que não esperou uma ou duas
semanas para abdicar completamente e nomear um
Presidente e um Conselho de Três.
— Talvez Martin não lhe tenha sabido dar devidamente
as instruções.
— Então o miserável do Martin é que deve ser
considerado idiota! Vou...
Kurvanian lhe exigiu silêncio, apontando para a tela, na
qual se via a rainha sorridente após firmar o documento.
— Eis aqui as minhas primeiras e últimas disposições de
Rainha. Numa delas, nomeio Regente de Atlantic Kingdom
Conrad Harris Baldford, o qual, com poderes plenos e
absolutos, governará este país até que a Rainha tenha dezoito
anos. Refiro-me á nova e autêntica Rainha, em favor da qual
abdico desde este mesmo instante, também normal e
legalmente, com documentos firmados...
A Princesa Mary Lou apareceu no corredor e se
encaminhou diretamente para o trono. Agora, o silêncio era
ainda maior, forçado, incrédulo. Todos os olhares estavam
fixos na menina, que subiu à plataforma do trono e se
colocou diante de Sua Majestade, a qual se levantou e,
sorrindo retirou a coroa da cabeça. Sempre sorrindo,
colocou-a na cabeça da menina e levou-a por uma das mãos
até ao trono ajudando-a a sentar-se.
Mais sorridente do que nunca. Brigitte Montfort voltou-se
para os presentes e disse:
— Eis a nossa Rainha! Viva a Rainha!
Ivan Bolonov deixou-se cair numa poltrona. depois de
quase se lançar contra o aparelho de televisão. Tinha o rosto
tão pálido que mais parecia um cadáver. Kurvanian, de pé
junto a ele, estava igualmente pálido, enxugando o suor frio
da testa com um lenço.
— Estamos perdidos... — gemeu. — Fomos traídos por
aqueles quatro suínos.
— Talvez seja coisa dela — murmurou roucamente
Bolonov.
— Você está louco?! Essa mulher não tem capacidade
mental suficiente para planejar tudo isso! Tudo foi preparado
pelo Conselho dos Quatro! Não pode ser de outro modo!
— Acho que devemos acalmar-nos. Kurvanian. Sim. isso
é o que temos de fazer: acalmar-nos. Devemos analisar
detidamente a situação atual.
— Não há nada que analisar... Está bem claro: essa
mulher abdicou em favor de uma princesa real e nomeou
Regente do Reino esse Conrad Harris Baldford. Posso dizer
o que significa, sem necessidade de analisar coisa alguma: o
país nos escapou das mãos. Até que essa menina atinja os
dezoito anos. Atlantic Kingdom será governado com plenos
poderes exclusivamente pelo Regente. E estou certo de que
souberam escolher o homem adequado pura que nem sequer
ouça uma proposta nossa!
Bolonov passou a língua pelos lábios e olhou para a tela,
na qual se via o escudo do país como fundo para a execução
do Hino Nacional. A cerimônia havia terminado. Desligou o
televisor e tornou a deixar-se cair na poltrona, transpirando
tanto quanto Kurvanian.
— Moscou sabe quais eram exatamente os seus planos?
— indagou.
— Eu disse aos chefes que seria uma grata surpresa para
eles. Só isso. Mas dentro de poucas horas verão o vídeo-tape
e...
— Espere. Talvez ainda possamos tentar algo ...Talvez,
em Moscou acreditem que este seja o nosso plano, pelo
menos enquanto nós procuramos uma solução.
— Não diga tolices. Neste momento, uma dezena de
agentes da MVD já sabe o que ocorreu e Moscou terá a
verdade em menos de duas horas: o Conselho dos Quatro nos
traiu, nos ludibriou. Isso é fácil de compreender. Ninguém
acreditará em outra coisa se não que fomos burlados como
imbecis por esses quatro homens!
— É... Isso é o que acreditarão. Mas... Não lhe parece
estranho? É inacreditável. Esses homens são por demais
ambiciosos. Estão corrompidos, iam ganhar cem milhões de
dólares. Não podem ter sido eles.
— Quem, então? A rainha dos olhos azuis? — indagou
com sarcasmo, Kurvanian.
— Por que não? — duvidou Bolonov. — Por que não?!
— É impossível... Impossível! Seriam necessárias uma
astúcia e uma audácia diabólicas!
— Antes, você desconfiava dessa mulher, vendo em seus
olhos algo que não o agradava. Não desconfia mais?
— Escute: para idealizar tudo isso, para levar o plano a
cabo tão de surpresa, essa mulher teria de ser uma velha
raposa conhecedora de todos os truques das intrigas
políticas. da espionagem, de... de tudo!
— Ela esteve em Moscou como uma inocente
intermediaria entre a CIA e a MVD não é verdade?
— É.
— E se não fosse tão inocente? E se fosse uma
especialíssima agente norte-americana? Você poderá dizer
que a coincidência seria demasiada, mas... por que não? Não
se esqueça de que foi escolhida por um cérebro eletrônico.
— Você mesmo me disse que Martin havia alterado a
engenhoca pura que saísse um nome qualquer, pois de outra
forma não haveria um meio de encontrar uma mulher
capacitada para ser rainha. Seria demasiada casualidade —
insistiu Kurvanian.
— E se o cérebro eletrônico tivesse funcionado direito?
— Tolice, Bolonov! Acho que o melhor que temos a
fazer é partir imediatamente deste país.
— Não. Se a jogada foi dos Quatro. Eles não nos
deixarão escapar. Tudo estará vigiado, inclusive, talvez, esta
casa. Mas, se não foi coisa deles por certo nos chamarão ou
virão até aqui. Logicamente, em Moscou considerarão o
assunto maquinado pelos Quatro e nos declararão ineptos.
Mas... e se os Quatro nada tivessem a ver com a coisa?
Poderíamos suavizar o nosso fracasso informando a Moscou
que a culpa foi dessa mulher e talvez pudéssemos saber de
mais coisas sobre ela. Vamos esperar, camarada Kurvanian,
porque é a única coisa que podemos fazer. Tenhamos calma,
porque, se esses homens tem de vir, sem dúvida surgirão
antes do anoitecer.
***
Exatamente ás dez da noite, os Quatro chegaram a
casinha praiana. Ivan Bolonov lhes abriu a porta, deixando-
os entrar, em silêncio. Quando chegaram à pequena sala.
viram Kurvanian desgrenhado, pálido, com o rosto contraído
demonstrando impaciência e preocupação.
— Estamos dispostos a escutar — disse Bolonov
Os Quatro não estavam menos pálidos do que os dois
russos. Martin, como sempre, elegeu-se porta-voz do grupo:
— Foi ela! — deixou escapulir, num sopro. — Foi essa
mulher! Têm de acreditar!
— Ela planejou tudo? Não pode ter sido esse Não, não,
não... Ela idealizou tudo. Conrad não sabia de nada meia
hora antes da coroação. Foi quem mais se surpreendeu. Foi
ela!
— É impossível que uma mulher imbecil tenha
conseguido armar essa jogada contra nós, mister Martin —
disse friamente Kurvanian.
— Não é nenhuma imbecil! É ... é uma víbora. Uma
víbora, podem estar certos!
— Parece que sua idéia triste de mexer no cérebro
eletrônico teve más conseqüências — rugiu Bolonov. —
Talvez tivesse sido melhor deixá-lo funcionar normalmente.
Quem sabe se ele não escolheria...
— Funcionou normalmente — sussurrou Martin,
parecendo encolher.
— Como’?! — exaltou-se Kurvanian.
— O... o cérebro eletrônico funcionou bem. Ontem, o
representante da IBM me procurou e me perguntou se os
serviços de sua empresa tinham sido satisfatórios. Eu lhe
disse que sim e que já podia levar a máquina, acrescentando
que, se houvesse qualquer defeito decorrendo de nossa
atuação, nós pagaríamos o conserto. O homem sorriu e disse
que um IBM raramente apresenta defeitos e que, quando isso
acontece, a própria máquina os conserta sem incomodar os
clientes e que... que, além disso, os seus técnicos tinham
feito uma vistoria, constatando que funcionava
perfeitamente. Tanto assim que pretendem enviar o cérebro a
outro cliente.
— A máquina funcionou bem — repetiu pausadamente
Bolonov. — Isso quer dizer que essa mulher reúne as
condições exigidas para ser rainha!
Parecia prestes a desfalecer, com expressão aparvalhada e
o olhar fixo num ponto inexistente.
— Isso... isso mesmo. Pensei ter conseguido alterar o
funcionamento, mas... mas não consegui — lamuriou-se
Martin.
— Mas então, que espécie de mulher será essa, que está
capacitada para governar um país, que abdica da coroa, que
destrói os planos por nós longamente elaborados? —
exaltou-se Bolonov. — Que diabo de mulher será essa?!
— Eu não disse que ela não me agradava? — sussurrou
Kurvanian.
— É assombroso! Até agora, só uma mulher conseguiu
jogadas parecidas com...
Os dois russos ficaram olhando um para o outro,
desfigurados, transpirando em abundância. Não podiam estar
certos do que lhes ocorrera, porém a realidade lhes martelava
o cérebro. Kurvanian passou a mão pela testa, como se com
isso pudesse afastar a idéia que o perseguia naquele instante.
— Não pode ser... — gemeu. — Seria uma coincidência
espantosa, inacreditável — olhava para Martin. — Ela não
os delatou?
— Não. Ignoramos o que pretende. Se quisesse, já fazer
algo contra nós, já estaríamos detidos e vocês também.
— Por isso não saímos daqui. Sabíamos que seria inútil
tentar fugir, que tudo estaria vigiado — declarou Kurvanian.
— Estamos certos de que ela não disse coisa alguma a
nosso respeito a quem quer que seja — afirmou Zabulon,
lívido.
— Mas... por quê? O lógico seria prendê-los e obriga-los
a nos denunciar. Sabemos muito bem que não teríamos
possibilidade alguma de escapar e aguardamos porque
tínhamos alguma esperança. Mas não é lógico! Talvez ela
ache que a nossa detenção e os interrogatórios inevitáveis
provocariam grande alvoroço político, uma tensão
internacional. Não fugimos por considerarmos inútil
qualquer tentativa, mas se nem vocês foram presos... Por
quê?
— Foi o que você sugeriu: talvez não queira provocar
conflitos políticos — interveio Bolonov.
— Então, que pretenderá? Como espera solucionar este
assunto? — indagou Kurvanian, agitadíssimo.
— Tem os seus cinco milhões esperando por ela nos
Estados Unidos — lembrou Martin. — Talvez só esteja
interessada no dinheiro.
— Nada disso! — rugiu Kurvanian. — Vocês, os Quatro,
estão redondamente enganados. Ela quer algo mais. Armou
uma grande jogada que a coloca no cimo da astúcia política e
da espionagem. Mas isso só é do conhecimento de algumas
pessoas. Vejamos: nós seis e esse Conrad, o novo Regente.
Preparou uma jogada tão importante que talvez a MVD
chegue a conclusões importantíssimas sobre ela quando
enviarmos o relatório. Podemos ... momento! Um momento!
Vocês não foram seguidos?
— Não. Claro que não.
Os dois russos se entreolharam, com os olhos faiscando.
— Bem — murmurou Kurvanian. — Não sei o que ela
está tramando, mas o certo é que vamos tentar fugir daqui e,
como vocês são os únicos que nos conhecem...
O olhar trocado entre os russos tinha sido muito
expressivo, porém os Quatro só compreenderam a verdade
quando cada russo sacou da pistola provida de silenciador.
— Não! — gritou Martin. — Esperem! Não podem...
Não chegou a concluir. Os Quatro foram crivados de
balas, lançados uns contra os outros, salpicando-se
mutuamente de sangue. Em menos de cinco segundos jaziam
no chão tragicamente misturados, uns em cima dos outros.
Joseph e Zabulon ainda gemiam, porém mais quatro disparos
solucionaram a questão. Os quatro cadáveres formaram um
grotesco montão manchado de vermelho.
— Vamos... — disse friamente Kurvanian. — Só eles nos
conheciam, de modo que temos muitas possibilidades de
escapar. Se essa mulher for realmente a agente “Baby”,
estará liquidada. Enviaremos a informação à MVD e
esperaremos que a revelação atenue os efeitos de nosso
fracasso no outro assunto. Não deixe nada de importante,
Bolonov.
— Recolherei os portfolios.
Em menos de um minuto os dois russos saiam para o
alpendre.
— Levantem as mãos, camaradas — disse uma voz. — E
voltem para o ninho...
Os dois ficaram por um instante petrificados. Depois,
ainda sem erguer os braços, se viraram e olharam para o
homem alto, atlético, de rosto simpático e traços rebeldes.
Parecia um desportista.
— CIA? — indagou Bolonov.
— Levantem as mãos de uma vez e entrem.
Os dois obedeceram, entrando na pequena sala e quando
se viraram, viram o recém-chegado muito pálido, olhando
para os cadáveres.
— Sentem-se — ordenou o gigante. Caso se atrevam a
mover uma orelha terei um bom pretexto para apertar o
gatilho.
Os russos tornaram a obedecer. Viram o homem retirar
um maço de cigarros do bolso, mas compreenderam a
verdade quando ele apertou o maço e um dos cigarros
sobressaiu meia polegada.
— Já estão a caminho? — perguntou o atleta.
— Já. Estão com você? — respondeu uma voz de mulher.
— Estão. Mataram os Quatro.
— Tenha muito cuidado, Frankie. Mate esses indivíduos
sem a mínima vacilação, impiedosamente, à menor suspeita.
Chegaremos dentro de cinco ou seis minutos. Não se
descuide, por Deus!
— Terei a grande satisfação de matá-los se moverem um
fio de cabelo, mas ande depressa.
***
Brigitte guardou o diminuto emissor-receptor e olhou
para Conrad.
— Não pode correr mais, mister Conrad?
— Faço o que posso. Já sei... Já sei... Isso não tem
mérito... Irei mais depressa. Sabe que ainda não me refiz da
surpresa.
— A que se refere? Não descuide do volante!
— Fique tranqüila... Eu me referia ao túnel.
— É um bom sistema para sair do palácio sem ser visto.
Uma vez no mausoléu, não é difícil sair, à noite, para os
jardins reais.
— Não se esqueça, senhor Regente, de que Mary Lou
jamais deverá ter conhecimento da existência desse
subterrâneo.
— Não saberá. É tudo tão surpreendente... e tão horrível.
Quem havia de pensar isso de Jonás? Seu desaparecimento
causará estranheza, mas entendo que não poderemos dar
explicações. Enfim...
— Só se dá explicações quando não há outro remédio —
sorriu friamente “Baby”. — Principalmente em casos como
este.
— Eu a considero uma mulher extraordinária,
desconcertante. Não consigo compreendê-la, mas pode estar
certa de que eu a admiro profundamente e me pergunto como
poderei agradecer tudo o que fez por Mary Lou e por minha
pátria.
— Bastará que jamais revele a quem quer que seja o que
fiz, porque, caso contrário, encurtará a minha vida.
— Pode contar com o meu eterno silêncio Que faremos
agora? Que estará para acontecei nessa casa que o seu amigo
diz existir na beira da praia’?
— Agora, mister Conrad, encerraremos o assunto da
única maneira possível, pois temo que esses homens tenham
tirado conclusões muito acertadas sobre a minha
personalidade. Além disso, são assassinos.
— Que pensa fazer’?
Brigitte Montfort sorriu gelidamente.
— Já verá. Mas, haja o que houver, mister Conrad, aqui
terminará a minha intervenção, ficando o resto a seu
encargo. Dará a quem de direito as explicações que julgue
convenientes. Quando nos separarmos, eu voltarei sozinha
para o palácio, saltarei as grades e entrarei pelo mausoléu
real. Isso será tudo. O resto será por sua conta. De acordo?
— De acordo.
Três minutos depois o carro parava na casinha á beira-
mar e Brigitte descia rapidamente. Quando Conrad se reuniu
a ela na pequena sala, a enorme automática calibre 45, de
Frank Minello, já estava na mão direita da espiã. Conrad
olhou para os russos e abriu a boca pura fazer uma pergunta,
mas foi interrompido.
— Saiam! — disse Brigitte. — Os dois, mister Conrad!
Você ouviu, Frankie?!
— Mas eu ...
— Fora!
Minello passou a língua pelos lábios, segurou Conrad por
um braço e os dois saíram da casa. Os russos olharam
fixamente para a bela mulher dos mais belos olhos azuis.
“Baby” olhou ligeiramente para os quatro cadáveres.
— Vocês são dois assassinos! — declarou. —
Compreendo e admiro os espiões, inclusive quando matam
por ordens superiores, expressas, ou quem mereça morrer.
— Era a nossa segurança pessoal... — balbuciou
Bolonov.
— Ah ... Estimo que compreendam. Também se o de
matar por segurança pessoal, não é verdade? Evidentemente,
um espião identificado está muito próximo da morte. Muita
agradecida por admitirem o fato. Agora, cavalheiros.
— Espere! Apenas... uma pergunta ... Você é “Baby”, da
CIA?
— Não...
Do alpendre, Frankie e Conrad ouviram dois estampidos.
Os dois russos continuaram sentados, cada um numa
poltrona. com um orifício no meio da testa. Brigitte os
contemplou friamente e sorriu com igual frieza, só então
concluindo a resposta:
— Não... Não sou apenas a agente “Baby”, da CIA, seus
desnaturados. Sou muito mais do que isso. Sou um ser
humano que não mata por prazer.
***
Quatro dias depois. a rainha-menina de Atlantic Kingdom
se despedia da rainha que abdicara em seu favor, da mulher
que seria pura sempre carinhosamente lembrada por quatro
milhões de ilhéus. Ao seu lado, no Porto de Queen City,
estava Conrad Harris Baldford, o homem que, com apenas
dois dias de regência, consolidara três empréstimos no total
de cento e vinte e cinco milhões de dólares e solicitara a
admissão de sei país em todos os organismos internacionais,
a lado das nações democráticas.
Da amurada do transatlântico. Brigitte contemplou até
perder de vista, milhares e milhares de mãos num
prolongado adeus.

FÉRIAS...

Já de volta à sede da CIA, “Baby” olhava ironicamente


para o seu chefe direto, mister Cavanagh.
— A Junta Diretora me incumbiu de felicitá-la.
Compreendeu perfeitamente que nenhum serviço de contra-
espionagem desconfiará de uma mulher tão conhecida em
todo o mundo por sua fantástica coroação num arquipélago.
Se algum espião ainda pensava que miss Brigitte Montfort
fosse uma espiã norte-americana, terá de abandonar suas
suspeitas.
— Muito me alegra que a CIA tenha compreendido o que
eu compreendi desde o inicio, no tocante ao Atlantic
Kingdom, não me afastando daquelas ilhas.
— Cortesia da casa... — brincou Cavanagh. —
Champanha?
— Já sei que, atrás desse champanha, vem algo
perigoso...
— Bem...
— Aceitarei o champanhe enquanto me diz para onde irei
desta vez.
Cavanagh tirou da geladeira a garrafa de Perignon da
safra de 1955, servindo duas taças com cerejas no fundo.
Ergueu a sua, dizendo:
— Por seus êxitos contínuos.
— Muito amável... Para onde devo ir desta vez?
— Há um relatório completo sobre o assunto, mas não é
coisa de grande urgência. Bastará que você siga daqui a dois
dias.
— Que férias maravilhosas! Quase dois dias!...
— Sabe? No fundo chego quase a lamentar que você
tenha abdicado da coroa de Atlantic Kingdom. Deve ser
formidável poder contar com a amizade de uma rainha...
— E pode contar com essa amizade, mister Cavanagh
disse a espiã, com a taça de champanha entre os lábios. Não
se esqueça de que eu sou... Sua Majestade, Brigitte...

Brigitte Montfort volta em:

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