Você está na página 1de 14

Uma Crítica a Três Certezas

Juspositivistas e a Busca de Outro


Paradigma Hermenêutico

Marco Aurélio Marrafon


Mestrando em Direito do Estado pela UFPR.

Introdução
m HOBBES, vê-se que o fortaleci-
mento e a consolidação do Estado
Absolutista dependia de um direito
que atuasse imperativamente, como um
comando, pois seu objetivo último era ga-
rantir a segurança antes inexistente no es-
SUMÁRIO tado de barbárie. Por isso, esse modelo
Introdução; estatal concebia o direito em função de seu
elemento de coação e reconhecia apenas a
I – A primeira certeza: o dogma da oni-
potência do legislador; emanação jurídica proveniente do próprio
Estado, adotando, de maneira sistemática,
II – A segunda certeza: a segurança
positivista e o mito da neutralidade do juiz;
a concepção monista de direito e lançando
as bases do positivismo jurídico.
III – A terceira certeza: a hermenêutica
de cunho empirista positivista; Posteriormente, com a ascensão da
IV – O rompimento com as idéias burguesia ao poder e o aprimoramento da
positivistas através da busca da instrumen- escola positivista, continuava sendo inte-
talidade das normas; ressante a adoção dessa concepção pois a
Referências bibliográficas. burguesia necessitava de um instrumento
de coação e de legitimação para que se
perenizasse no poder.
Para tanto, consagrou-se na teoria
positivista do direito o dogma da onipotên-
cia do legislador e, junto a ele, os princípios

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001 323


324 Marco Aurélio Marrafon

da neutralidade e imparcialidade do juiz, que fugissem da órbita de controle do pró-


sendo que, no momento de aplicação da prio Estado.
norma geral ao caso concreto, o jurista de-
No dizer de NORBERTO BOBBIO
veria buscar a vontade do legislador (cor-
esse dogma “elimina os poderes intermediá-
rente subjetivista) ou a vontade da lei
rios e atribui um poder pleno, exclusivo e
(corrente objetivista), através de uma teo-
ilimitado ao legislador, que é o aspecto ab-
ria hermenêutica que buscasse o sentido
solutista. Mas tal eliminação dos poderes
original das normas, numa relação entre o
intermediários possui também um aspecto
sujeito cognoscente, o objeto de análise e a
liberal, porque garante o cidadão contra as
linguagem como um terceiro elemento in-
arbitrariedades de tais poderes: a liberdade
terposto entre eles.
do juiz de pôr as normas, extraindo-as de
Nesse artigo, buscar-se-á compor seu próprio senso de eqüidade ou da vida
uma análise crítica dessas três certezas fun- social, pode dar as arbitrariedades nos con-
damentais à teoria juspositivista, demons- frontos entre cidadãos, enquanto que o le-
trando seus elementos que ocultam a gislador, pondo normas iguais para todos,
realidade, deixando livre de responsabilida- representa um impedimento para a arbitra-
de os operadores do direito que trabalham riedade do poder judiciário”.1
na resolução do conflito jurídico sem preo- Todavia, mesmo levando em consi-
cupações com o conflito social a ele deração o regime mais democrático possí-
subjacente, bem como o papel da herme- vel, o legislador contempla a vontade da
nêutica tradicional, nos moldes descritos no classe que está no poder (até porque ele
parágrafo anterior. também faz parte dela) em detrimento da
vontade do povo, e exatamente aí se encon-
I – A primeira certeza: o tra outra vantagem para aqueles que ne-
dogma da onipotência do cessitam manter o status quo em adotar
legislador incondicionalmente a teoria juspositivista
No âmbito das relações entre o juiz e com suas características de imperativismo.
o legislador, surge o dogma da onipotência ROBERTO DE AGUIAR,2 partin-
do legislador como o princípio que norteia do do pressuposto de uma sociedade hi-
toda a teoria positivista, primeiramente em potética qualquer, trabalha a idéia de que
HOBBES, que o analisava sob uma ótica nessa sociedade as diferentes valorações
absolutista e posteriormente em que seus membros dão a determinadas ati-
MONTESQUIEU, através de uma ótica li- vidades criam uma divisão de trabalho em
beral, justificando, assim, a monopolização nível vertical e os membros dos grupos si-
jurídica por parte do Estado e evitando que tuados nos graus mais altos da cadeia pro-
juízes viessem a criar direito (ou direitos) dutiva acabam detendo o poder de ditar

1 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 38.
2 In Direito, poder e opressão. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 23-24.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Crítica a Três Certezas Juspositivistas e a Busca de Outro Paradigma Hermenêutico 325

normas aos grupos situados nos níveis in- comunidades não estatais, o direito é visto
feriores, mantendo, então, o privilégio de como um e, embora se registrem as várias e
legislar.3 diferentes acepções da palavra direito, aque-
las que identificam uma realidade outra que
Essas reflexões reforçam a idéia de
não a do direito positivo são consideradas à
que quem legisla é quem detém o poder que,
parte, uma possibilidade excepcional de
como sabido desde o fim do feudalismo, é a
ampliar o conceito de direito”.4
classe com maior poderio econômico, an-
tes a burguesia, hoje os grandes conglome- Torna-se possível compreender, so-
rados econômicos transnacionais. mando as reflexões de ROBERTO DE
AGUIAR com as lições de LUIZ
De outra feita, considerando a expli-
FERNANDO COELHO, que, mais uma
cação do princípio monista dada por LUIZ
vez, em nome da cientificidade do direito e
FERNANDO COELHO para quem: “Por
de sua íntima ligação com a classe social no
princípio monista entende-se a crença,
poder, institui-se a acepção de direito com
subjacente à dogmática jurídica, de que o
um comando imperativo, só válido se sus-
direito é um só, ou seja, a crença na exis-
tentado pela força de coerção emprestada
tência de uma ordem jurídica, que é preci-
do Estado e advinda do legislador (que não
samente a de gênese estatal. O seu
é outro senão a própria classe dominante),
enunciado é a primeira forma de legitimação
ignorando, propositadamente, a existência
da ordem social burguesa, e não é muito
de inúmeros ordenamentos fora da esfera e
claro justamente porque constitui um pres-
do controle estatal (à medida que eles re-
suposto, está nas entrelinhas e nos silên-
presentam um perigo para a ordem vigen-
cios dos enunciados que formam o saber
te).
constituído a partir das normas estatais, e
das próprias normas; ainda quando a exi- No Brasil, o exemplo da lei que im-
gência do rigor científico impõe a concep- pera nas favelas, onde os traficantes repre-
ção lata do direito ligado ao fato das sentam a segurança e proteção e a polícia,

3 Segue a transcrição do trecho aqui referido: “Essa sociedade para se manter necessita de produzir, essa produção origina uma
divisão de trabalho, essa divisão de trabalho impregna as outras instituições existentes nessa sociedade. À luz dessas institui-
ções estabelecem-se teias de relações em sentido horizontal e vertical: as relações em nível horizontal são determinadas pelo
fato de os indivíduos se situarem no mesmo plano de atribuição ou por terem atribuições semelhantes. As relações em nível
vertical são determinadas pelo valor maior ou menor que essa sociedade dá a atribuições diferentes e este valor está relacionado
com os modos de produção e apropriação que ela desenvolve. Assim, vão-se formando nessa sociedade grupos humanos em
posições paralelas, em posições inferiores ou superiores em relação aos outros. Esses grupos se relacionam dinamicamente na
medida em que a sociedade muda, trocando de posições entre si ou simplesmente desaparecendo. O grupo situado nos níveis
mais altos das relações verticais detém o poder dominando e controlando os outros grupos e se apropriando daquilo que é mais
valioso e útil, daquilo que a sociedade produz. Desse modo, ele passa a deter nas mãos o privilégio de legislar, de ditar normas
para si e para os outros que terão de aceitar estas normas, ou porque eles guardam alguma compatibilidade com seus interes-
ses, ou porque tais grupos, ignorando sua própria condição, acreditam serem essas normas as melhores para a sociedade, ou
ainda porque neles foi inculcada e internalizada a crença de que são incapazes de governar, ou por último, simplesmente pela
força, pela sanção”. (grifo nosso)
4 COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 266.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


326 Marco Aurélio Marrafon

o medo,5 demonstra de forma dramática o CPC; 252 a 254, CPP), ou seja, o juiz é um
distanciamento desse dogma com a reali- órgão que está entre as partes e acima delas.
dade social. Consoante explica JACINTO NEL-
SON DA MIRANDA COUTINHO, “du-
II – A segunda certeza: a rante determinado período da história do
segurança positivista e o pensamento, acreditou-se que era possível
mito da neutralidade do ao homem, enquanto sujeito cognoscente,
juiz anular-se completamente nas relações de
conhecimento. Com isto, procurava-se ob-
Após derrubar o mito da neutralida-
ter um tipo de saber que não tivesse eivado
de da lei, cabe agora analisar outros dois
de qualquer imperfeição humana. Daí o
fundamentos máximos do positivismo: o
método perfeito para a consecução deste
mito do juiz neutro e imparcial e o da segu-
desiderato, proposto pelo empirismo. Para
rança jurídica advinda do juspositivismo os
este, ‘o método consiste em um conjunto
quais, por sinal, estão intimamente ligados,
de procedimentos que por si mesmos garan-
já que para os positivistas não se pode falar
tem a cientificidade das teorias elaboradas
em segurança jurídica quando não se tem
sobre o real. Como sujeito se limitaria a cap-
certeza das decisões a serem tomadas pelo
tar o objeto, essa captação seria tanto mais
juiz.
eficaz e neutra quanto mais rigoroso fosse o
Mas será que há essa certeza mesmo método utilizado. Assim, a elaboração cien-
nas sentenças dos juízes mais dogmáticos? tífica se limitaria ao cumprimento rigoroso
Para mostrar que não, será feita uma análi- de certas técnicas preestabelecidas, que
se à luz da construção social da realidade e conteriam o poder quase miraculoso de con-
da hermenêutica jurídica. ferir cientificidade aos conhecimentos ela-
A noção de juiz neutro e imparcial borados através delas’”.6
surge da teoria de que o juiz não pode estar No mesmo sentido, CARLOS AN-
ligado nem objetivamente nem subjetiva- TONIO DE ALMEIDA MELO7 ensina que
mente às partes em litígio, sendo que para “cada um tem uma consciência de mundo,
garantir a imparcialidade das decisões, deve que é proporcional ao tamanho de seu co-
o juiz declarar seu impedimento, incompa- nhecimento”, sendo que a partir dela, che-
tibilidade ou suspeição (arts. 134 e 135, ga-se ao real (aquilo que existe com as

5 Recentemente, os moradores do Rio de Janeiro que freqüentavam o piscinão de Ramos foram proibidos de vestir qualquer peça
de roupa vermelha para não fazer alusão ao grupo Comando Vermelho, rival do grupo de traficantes que controla aquela área.
Para maior aprofundamento acadêmico dessa questão, remeto o leitor à leitura do texto “Notas sobre a história jurídico-social de
Pasárgada” de SOUZA SANTOS, Boaventura de, in SOUTO, Cláudio & FALCÃO, Joaquim. Sociologia e direito. São Paulo:
Pioneira, 1980.
6 In “Princípios gerais do processo penal brasileiro”, artigo preparado no âmbito da Comissão de Estudos criada pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná e Instituto Max Planck, de Freiburg, Alemanha, no Projeto “A Justiça como garantia dos direitos
humanos na América Latina”. Curitiba, maio de 1998, p. 07.
7 Em aulas proferidas na Faculdade de Direito da UFMT na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Crítica a Três Certezas Juspositivistas e a Busca de Outro Paradigma Hermenêutico 327

nossas valorações) que é o produto da lores e alternativas possíveis. E aí mesmo quan-


dialética entre materialidade do mundo e o do não atue em nome dos interesses de classe ou
sistema de significação, o qual proporciona estamentais, ainda quando não milite em favor
a multiplicidade de realidades. Em outras do próprio interesse, o intérprete estará promo-
palavras, cada indivíduo tem seu próprio vendo suas próprias crenças, a sua visão de
sistema de significação, seus próprios valo- mundo, o seu censo de justiça”.8 (destaquei)
res (os quais advém desde o ambiente de
Aprimorando essa idéia, JACINTO
criação, das situações vividas na escola, de
COUTINHO conclui: “o juiz não é mero
seu credo religioso, de sua raça, etc.), e es-
sujeito passivo nas relações de conhecimen-
ses fatores interferem diretamente em sua
visão de mundo e também na sua noção de to. Como todos os outros seres humanos,
realidade social. também é construtor da realidade em que
vivemos, e não mero aplicador de normas,
Como conseqüência, ainda de acor- exercendo atividade simplesmente
do com o citado professor “a compreensão recognitiva. Além do mais, como parece
de um texto não decorre apenas da sintomático, ele, ao aplicar a lei, atua sobre a
decodificação pura e simples dos itens realidade, pelo menos, de duas maneiras: 1)
lingüísticos nele contidos. Na realidade o buscando reconstruir a verdade dos fatos no
leitor deixa aflorar no momento da leitura o processo, e 2) interpretando as regras jurídicas
seu conhecimento do mundo, suas crenças, que serão aplicadas a esse fato ou, em outras
suas vivências, os quais conduzem ao esta- palavras, acertando o caso que lhe é posto re-
belecimento de conexões entre os enuncia- solver”.9 (grifei)
dos e os levam a construir o sentido do texto”.
Na prática, esse fenômeno é facil-
Já LUÍS ROBERTO BARROSO usa mente observável, basta citar, como exem-
argumentos semelhantes para atacar a neu- plo, o caso do índio pataxó em que a juíza,
tralidade e imparcialidade do juiz em face da numa interpretação complacente com os
hermenêutica: “não será possível libertá-lo réus (mauricinhos que, na falta do que fazer,
de próprio inconsciente, de seus registros procuravam diversão queimando mendi-
mais primitivos. Não há como idealizar um gos), não enxergou o dolo eventual ali ca-
intérprete sem memória e sem desejos. Em racterizado. Será que, com base na mesma
sentido pleno não há neutralidade possível lei, essa decisão não poderia ter sido dife-
(...) é claro que há uma infindável quantidade rente?
de casos decididos pelo Judiciário que não mobi-
lizam o juiz em nenhum sentido que não o de Sustentado por inúmeros exemplos
burocraticamente cumprir seu dever. Outros de prática jurídica, AMILTON BUENO DE
tantos casos, porém, envolvem a escolha de va- CARVALHO10 vai mais além e chega até

8 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 258.
9 Op. cit., p. 11.
10 In Direito alternativo em movimento. 2. ed. Niterói: Luam, 1997.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


328 Marco Aurélio Marrafon

mesmo a trabalhar a idéia de que a própria vo com as reais aspirações das bases sociais.
localização e o ambiente de trabalho, a hora, Exige-se não mais a neutralidade, mas a cla-
o cansaço e até mesmo o humor do juiz no ra assunção de uma postura ideológica, isto
momento de julgar podem interferir na é, que sejam retiradas as máscaras hipócri-
maior ou menor severidade do julgamento. tas dos discursos neutrais, o que começa
Outro aspecto a ser lembrando, é o pelo domínio da dogmática aprendida e
caráter ideológico que se esconde atrás do construída na base da transdiscipli-
princípio da neutralidade e imparcialidade nariedade”.12
do juiz, uma vez que exerce uma função de Muito embora, como esse autor re-
ocultação dos verdadeiros conflitos existen- conhece, a neutralidade e imparcialidade
tes na sociedade. possam funcionar como uma meta a ser
Acerca desse caráter ideológico, atingida pelo juiz, ainda que inatingível, à
LUÍS ROBERTO BARROSO assim se pro- medida que ela constitui “garantia tanto
nuncia: “A idéia de neutralidade do Estado, para aquele que exerce a jurisdição, como
das leis e de seus intérpretes, divulgada pela para aquele que demanda perante ela”.13
doutrina liberal-normativista, toma por base o No mesmo sentido, MARÇAL
status quo. Neutra é a decisão ou a atitude JUSTEN FILHO, ao tentar responder a in-
que não afeta nem subverte as distribuições de dagação se é possível a imparcialidade do
poder e riqueza existentes na sociedade (...) elas doutrinador do direito ou ainda se há a pos-
são fruto do direito posto. E, freqüentemente, sibilidade de um sujeito atenuar a influên-
nada têm de justas. A ordem social vigente é cia de suas convicções políticas mais
fruto de fatalidades, disfunções e mesmo per- ferrenhas, assim se manifesta: “Por mais que
versidades históricas. Usá-la como referência se pretenda uma resposta positiva, sempre
do que seja neutro é evidentemente indesejá- restará a dúvida, relacionada com a própria
vel, porque instrumento de perenização de in- natureza do ser humano. Não é exagero afir-
justiça”.11 (destaquei) mar que produzir ciência – especialmente,
A saída é dada por JACINTO a ciência social – importa, antes de tudo,
COUTINHO que proclama que a “demo- produzir conhecimento sobre si próprio. Daí
cracia – a começar pela processual – exige a necessidade de o autor esclarecer suas
que os sujeitos se assumam ideologicamen- próprias ideologias, deixando claras suas
te. Por esta razão é que não se exige que o convicções axiológicas e políticas pessoais.
legislador, e de conseqüência o juiz, seja É necessário que o leitor conheça o autor
tomado completamente por neutro, mas da obra que lê para que possa avaliar as
que procure, à vista dos resultados práticos opções pessoais realizadas. Somente assim
do direito, assumir um compromisso efeti- será possível aderir ou rejeitar teses que re-

11 Op. cit., p. 256-257.


12 Op. cit., p. 12.
13 Idem.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Crítica a Três Certezas Juspositivistas e a Busca de Outro Paradigma Hermenêutico 329

tratam certa visão do mundo que informa o mentos a favor da reprodução de saberes ins-
autor e se retrata em tomadas de posição tituídos e da manutenção do status quo.
fundamentais. Trata-se de evitar o mas-
Assim, em relação à segurança jurí-
caramento de convicções político-ideológicas
dica, e o mito da certeza nas decisões, se for
através de argumentações travestidas de fei-
levado em consideração que a lei é com-
ção lógico-abstrata”.14 (destaquei)
prometida com os interesses dominantes, e
Analisando essa questão à luz da o juiz (e todos os intérpretes que operam o
semiologia do poder, LUIZ ALBERTO direito) não é neutro mas atua (re)cons-
WARAT,15 verifica que as diferentes signi- truindo seus próprios mundos e valores a
ficações das palavras da lei atuam como ins- cada nova interpretação, gerando decisões
trumento de controle social, através de díspares num mesmo ordenamento jurídi-
inúmeros conceitos vagos ou ambíguos, co, é possível crer que não há, absolutamen-
como mulher honesta (arts. 215, 216 e 219 te, segurança ou certeza nas decisões, ainda
do CP), justificável confiança (art. 217 do que emanadas dos juízes mais dogmáticos.
CP) e motivo fútil (art. 121 do CP), donde
percebe-se que a exaltação do valor segu- III – A terceira certeza: a
rança é mais um instrumento que tem por
hermenêutica de cunho
principal escopo “legitimar o exercício do
empirista positivista
poder socialmente dominante, o qual se
apresenta como seu legítimo guardião sen- Dentro da teoria dogmática clássica,
do todos os seus atos intrinsecamente jus- trabalha-se a hermenêutica jurídica num
tos por serem legais, vale dizer, não paradigma que aqui será chamado de
arbitrários porque contidos nos marcos das empirista positivista, à medida que há a pro-
normas gerais. A norma geral adquire, as- funda crença que o sujeito, ao ler a norma
sim, o valor de uma autolimitação através de diferentes métodos herme-
apriorística do exercício do poder”.16 nêuticos, pode extrair o seu significado real,
ou ainda, de acordo com a corrente a que
Não é exagero, então, afirmar que o
for filiado, o intérprete poderia extrair da
sentido comum teórico dos juristas identifi-
lei a vontade do legislador ou mesmo a von-
cado por WARAT, enquanto topoi
tade da lei, aqui entendida como um ser
interpretativo, constitui o corpus ideologicus
que ganha vontade própria após ser promul-
que dá segurança e irresponsabilidade aos
gada.
adeptos do habitus dogmaticus, os quais, sem
consciência de seu papel social e das artima- Esse paradigma hermenêutico en-
nhas dogmáticas, tornam-se meros instru- contra-se arraigado no imaginário de gran-

14 JUSTEN FILHO, Marçal. “O Direito das Agências”, minuta debatida na disciplina de Direito Econômico no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado da UFPR, Curitiba: 2002. Inédito, p. 03.
15 In Introdução geral ao direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.
16 Idem, passim.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


330 Marco Aurélio Marrafon

de parte dos juristas brasileiros, não só por- Em contraponto ao que foi exposto
que presente como verdade absoluta na no capítulo anterior, crê o citado jurista que
maioria dos manuais de introdução ao di- é possível ao intérprete despojar-se de suas
reito, como também por representar impor- paixões, crenças, valores e significados de
tante método para se atingir a chamada mundo através da autocrítica e da
pureza positivista, fechando, desta maneira, autofiscalização, para que não vicie a inter-
o ciclo das certezas que constituem o pilar pretação: “Deve o intérprete, acima de tudo,
dessa teoria, pois consagra-se a onipotên- desconfiar de si, pesar bem as razões pró e con-
cia do legislador e a neutralidade do juiz com tra, e verificar, esmeradamente, se é a verda-
a pureza dos métodos hermenêuticos, os deira justiça ou se são idéias preconcebidas que
quais proporcionam ao juiz a verdadeira o inclinam neste ou naquele sentido. ‘Conhe-
vontade da lei (ou do legislador) no mo- ce-te a ti mesmo’, preceituava o filósofo
mento de sua aplicação ao caso concreto. ateniense. Pode-se repetir o conselho, po-
Com efeito, CARLOS rém completado assim: ‘e desconfia de ti,
MAXIMILIANO, ícone desse modelo de quando for mister compreender e aplicar o
hermenêutica no Brasil, e amplamente acei- Direito’. Esteja vigilante o magistrado, a fim
to pelos juristas e doutrinadores pátrios, de não sobrepor, sem o perceber, de boa fé,
enuncia o seu pensamento nas seguintes o seu parecer pessoal à consciência jurídica
palavras: “Com a promulgação, a lei adqui- da coletividade; inspire-se no amor e zelo
re vida própria, autonomia relativa; sepa- pela justiça e soerga o espírito até uma at-
ra-se do legislador; contrapõe-se a ele como mosfera serena onde o não ofusquem as nu-
um produto novo; dilata e até substitui o vens das paixões”.18 (destaquei)
conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; Essa solução não é nova nem sufi-
mostra-se, na prática, mais previdente que ciente e recai no velho dilema da neutrali-
seu autor. Consideram-na como disposição dade do sujeito das ciências sociais, que é o
mais ou menos imperativa, materializada num mito do BARÃO DE MÜNCHHAUSEN,
texto, a fim de realizar sob um ângulo determi- personagem que tenta se salvar da areia
nado a harmonia social, objeto supremo do
movediça puxando os próprios cabelos, con-
Direito. Logo, ao intérprete incumbe apenas
forme assinala MICHEL LÖWY.19
determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac
potestas legis; deve ele olhar menos para o Daí infere-se que a tradicional teo-
passado do que para o presente, adaptar a nor- ria da interpretação, oriunda da herme-
ma à finalidade humana, sem inquirir da von- nêutica de cunho objetivista bettiano
tade inspiradora da elaboração primitiva”.17 exposta na obra de CARLOS

17 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 30-31.
18 Idem.
19 LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conheci-
mento. 5. ed., rev., trad. de Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy, São Paulo: Cortez, 1994.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Crítica a Três Certezas Juspositivistas e a Busca de Outro Paradigma Hermenêutico 331

MAXIMILIANO, encara a linguagem objeto real, dotado de sentido próprio, cuja


como um terceiro elemento entre o sujeito existência não dependa do sujeito, sendo
cognoscente e o objeto, havendo uma bus- que esse objeto pode ser representado em
ca de conceitos ensimesmados nas palavras sua inteireza pelo conhecimento, bem como
da lei e fazendo com que o sujeito tenha sendo possível uma cisão absoluta entre os
que extrair da norma o seu sentido mais fatos (contidos na norma) e os valores do
puro possível através da utilização de diver- sujeito, sendo que essas características cons-
sos métodos tais como o gramatical, histó- tituem, em última análise, pressupostos da
rico, teleológico, entre outros. teoria positivista.21
Analisando a questão, PAUL Outrossim, encarar a linguagem
RICOEUR aduz que a hermenêutica vista como uma terceira coisa entre o sujeito e o
sob esse prisma objetivista exerce uma fun- objeto e não como parte de um todo com
ção de distanciamento alienante que recai sentido (sujeito + norma), exclui a respon-
na seguinte antinomia: “de um lado, disse- sabilidade do agente de transformar a pró-
mos, o distanciamento alienante é a atitu- pria realidade, vez que, apenas observando,
de a partir da qual é possível a objetivação contemplando, busca um sentido que já
das ciências do espírito ou humanas; mas exista e independa de suas crenças.
esse distanciamento, que condiciona o es- Ao contrário, tendo o sujeito cons-
tatuto científico das ciências, é, ao mesmo ciência de que faz parte desse todo e a par-
tempo, a degradação que arruína a relação tir de seu interesse fornece o sentido, sua
fundamental e primordial que nos faz per- responsabilidade se cristaliza, pois o resul-
tencer e participar da realidade histórica que tado da interpretação nada mais é que a
pretendemos erigir em objeto”.20 soma da concepção de mundo do sujeito
Assim, resta caracterizado que esse com as prescrições do texto normativo do
modelo hermenêutico é empirista por con- objeto (compreensão), exsurgindo daí um
ceber a possibilidade de um sujeito novo sujeito, por isso se diz que a relação
cognoscente extrair do seu objeto (no caso ultrapassa o plano sujeito-objeto para se
a norma) o seu verdadeiro sentido através tornar uma viragem lingüística de uma re-
lação sujeito-sujeito.
de sua percepção, aqui caracterizado pela
leitura, a qual pressupõe a visão. E é Nesse diapasão, LÊNIO LUIZ
positivista por acreditar na norma como um STRECK,22 apoiado em HEIDEGGER e em

20 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 43.
21 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (in Introdução a uma ciência pós-moderna. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p. 52) elenca
os seguintes pressupostos do positivismo: “a realidade enquanto dotada de exterioridade; o conhecimento enquanto representa-
ção do real; a aversão à metafísica e o caráter parasitário da filosofia em relação à ciência; a dualidade entre fatos e valores com
a implicação de que o conhecimento empírico é logicamente discrepante do prosseguimento de objetos morais ou da observa-
ção de regras éticas; a noção de unidade da ciência, nos termos da qual as ciências sociais e as ciências naturais partilham a
mesma fundamentação lógica e até metodológica”.
22 In Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999, p. 173-174.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


332 Marco Aurélio Marrafon

GADAMER, traz preciosa lição acerca da sa por parte dos projetos em cada caso revisa-
compreensão: “(...) não é simples dizer que dos, com o que a unidade de sentido fica clara-
as verdades que fazem parte do universo mente fixada”. (destaquei)
hermenêutico ou as verdades de um texto Rompe-se, então, com o paradigma
que é produzido no universo da da hermenêutica empirista positivista em
hermenêutica são verdades que se resolvem prol de uma outra abordagem, desta vez filo-
a partir de um universo ingênuo, a partir de sófica e compreensiva, por alguns denomi-
uma afirmação ametódica. Somos incapa- nada hermenêutica filosófica, a qual supera
zes de expor todos os pressupostos que es- as dicotomias positivistas entre fato/valor,
tão no universo hermenêutico. Algo sempre sujeito/objeto, ciência/senso comum.
escapa. A compreensão, que faz parte do
modo de ser no mundo, antecipa qualquer Nas palavras de CELSO LUIZ
tipo de explicação lógico-semântica, não no LUDWIG, a “onipotência da reflexão, mar-
sentido temporal, cronológico. Porque ca registrada da filosofia da consciência
estamos no mundo, há uma compreensão que moderna, é golpeada duramente pela estru-
se antecipa a qualquer tipo de explicação. Te- tura objetiva de uma realidade que não per-
mos uma estrutura do nosso modo de ser que é mite a cisão completa com um sujeito
a interpretação. Por isto, sempre interpreta- originária e epistematicamente concebido
mos. O horizonte de sentido é nos dado pela como consciência reflexiva. Por isso, a re-
compreensão que temos de algo. O ser huma- flexão se realiza sempre a partir de uma pré-
no é compreender. Ele só se faz pela compre- compreensão, ineliminável, porque
ensão. Ele só se dá pela compreensão. condição de possibilidade de toda compre-
Compreender é um existencial, que é uma ca- ensão”.24
tegoria pela qual o homem se constitui”. É de ressaltar-se que com base nessa
Em outra passagem, desta vez apoia- hermenêutica filosófica é que alguns estu-
do em HESSE, LÊNIO STRECK23 arrema- diosos vêm tentando pensar a ciência e o
ta: “O intérprete compreende o conteúdo da direito na pós-modernidade, como é o caso
norma a partir de uma pré-compreensão, que de BOAVENTURA DE SOUSA SAN-
é a que vai lhe permitir contemplar a norma TOS.25
desde certas expectativas, fazer uma idéia do No mesmo sentido, todavia com uma
conjunto e perfilar um primeiro projeto, ainda abordagem de maior aplicabilidade prática,
necessitado de comprovação, correção e revi- CARLOS ANTONIO DE ALMEIDA
são através da progressiva aproximação à coi- MELO esboça a seguinte tese: “(...) toda

23 Op. cit., p. 189.


24 LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razão – racionalidade jurídica e fundamentação do direito. Curitiba: Universidade Federal do
Paraná. Tese de Doutorado aprovada em 1997. Inédito, p. 97-98.
25 In A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na
transição paradigmática. 2. ed., vol. 1. São Paulo: Cortez, 2000 e Introdução a uma ciência pós-moderna. 3. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2000.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Crítica a Três Certezas Juspositivistas e a Busca de Outro Paradigma Hermenêutico 333

interpretação jurídica é realizada sob a in- fechamento, maior ou menor, da interpre-


cidência de determinantes e condicionantes tação (por exemplo, quando contém con-
que atuam simultaneamente na atividade ceitos indeterminados), possibilitando uma
do intérprete. Determinantes são os fato- interpretação extensiva ou restritiva”.26
res relacionados ao próprio intérprete como
Por sua vez, e com muita proprieda-
ideologia, visão de mundo, posição social e
de, IVAN GUÉRIOS CURY assevera: “A
demais interesses que direcionam sua ati-
chamada ‘ultrapassagem da dimensão
vidade de busca de significado das normas
dogmática’, todavia, significa mais a possibi-
jurídicas. Por sua vez, as condicionantes
lidade de dar um enfoque retrospectivo à
estabelecem o horizonte interpretativo e fir-
própria dimensão, antes que tentar pura e
mam as balizas da interpretação ou, em
simplesmente, eliminá-la. Esse enfoque, a
outras palavras, condicionam os limites em
meu ver, se dá no plano efetivo do direito,
que a interpretação pode estar contida. As
que é o da decidibilidade, porque o prisma
determinantes são insuscetíveis de contro-
do jurista é diferente, neste particular, do
le externo, uma vez que configuram fatores
prisma do literato, ou do historiador, à medi-
aos quais apenas o próprio intérprete tem
da que deve passar da compreensão à deci-
acesso pleno. Por sua vez o controle das
são, ou pelo menos, às condições de
condicionantes pode ser exercido pelo sis-
decidibilidade. Desta forma, vejo na herme-
tema jurídico que se encarrega de obstruir
nêutica a conjunção de seu aspecto crítico e
o trânsito das interpretações que ponham
revelação dos aludidos pressupostos ideológicos
em risco sua coerência e integridade. Nes-
com seu aspecto funcional de investigar o texto
te sentido, as interpretações discordantes
– no contexto – para viabilizar a decisão, ou,
prosperam apenas na doutrina, embora, por
permitir que se estabeleçam condições de
isto, não deixem de ter relevância para o
decidibilidade, de modo a neutralizar os confli-
sistema, funcionando como possibilidades
tos sociais revelados pela crítica”.27 (destaquei)
de mudança interpretativa. (...) uma nor-
ma pode oferecer um horizonte inter- Supera-se, assim, a terceira certeza
pretativo extremamente estreito, ensejando positivista, florescendo as possibilidades de
uma interpretação especificadora ou se pensar uma outra postura perante o
declaratória (quando fixa um prazo ou es- arcabouço normativo que, longe do
tabelece uma certa idade para a prática de cientificismo e dogmatismo, passe a se preo-
um ato, por exemplo) ou, ao contrário, pos- cupar também com os conflitos sociais
sibilitar um significativo alargamento ou subjacentes ao conflito jurídico.28

26 Em artigo intitulado “A argüição de descumprimento de preceito fundamental e o horizonte interpretativo da Constituição” e


apresentado no XXVII Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, em Vitória/ES, em outubro de 2001.
27 CURY, Ivan Guérios. Dilemas do direito penal – reflexão a partir da hermenêutica do sistema. Curitiba: Universidade Federal do
Paraná. Tese de Doutorado aprovada em 1999. Inédito, p. 71.
28 LÊNIO STRECK no artigo intitulado “A revelação das obviedades do sentido comum e o sentido (in)comum das obviedades
reveladas” (in OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. (org.) O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de
Luiz Alberto Warat. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998) bem demonstra a distância da realidade dos juristas que atuam no

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


334 Marco Aurélio Marrafon

IV – O rompimento com as humanas e ao interpretar a norma, recons-


idéias positivistas através troem com ela sua visão de mundo, o que
da busca da também atinge a imparcialidade e a neu-
instrumentalidade das tralidade dos julgadores;
normas b) diferenciar dogmatismo de dogmá-
tica, pois enquanto o primeiro é o apego
Rasgado o véu que esconde a malig-
exacerbado e acrítico à letra legal, a segun-
na face do positivismo jurídico, ou melhor,
da é todo o instrumental disponível aos
a maligna falta de face que faz com que o
operadores do direito para que possam
positivismo legitime qualquer ideologia que
peticionar, emitir pareceres, julgar, tais como
interesse a quem detenha o poder, até mes-
a lei, a doutrina, a jurisprudência, etc.;
mo a nazista, surge a busca da instru-
mentalidade das normas jurídicas muito c) ousar e ter criatividade, até mes-
mais como um postura do operador do di- mo extrapolando os limites da legalidade
reito perante o ordenamento jurídico e todo rasteira, vez que o sistema jurídico consti-
arcabouço normativo – postura esta que tucional permite certa margem de discri-
rompa com o dogmatismo e com os postu- cionariedade (horizonte interpretativo de
lados conservadores da doutrina aqui estu- sentido) ao instituir a Constituição como o
dada – do que como uma teoria para o topo da hierarquia normativa e herme-
direito ou uma solução mágica para todos nêutica, possibilitando que se aplique e se
os problemas do universo jurídico. interprete o direito levando-se em consi-
deração os objetivos e princípios expostos
Com efeito, é possível encarar a nor-
no texto da Carta Magna;
ma não mais como um dogma, mas sim
como um instrumento a favor da justiça e d) privilegiar a justiça em detrimen-
da prestação jurídica a quem dela necessite to da segurança na solução de conflitos
e para isso é preciso pensar o direito a par- normativos ou no caso da escolha entre in-
tir de alguns enunciados básicos: terpretações díspares da mesma norma, po-
rém igualmente válidas;
a) não existe segurança jurídica à
medida que o direito é aplicado e trabalha- e) fugir da síndrome de Abdula 29 e
do por pessoas as quais, acima de tudo, são romper com o senso comum teórico dos

âmbito dogmático do senso comum teórico dos juristas: “(...) pouco importa ao jurista, inserido no sentido comum teórico, o
conteúdo das relações sociais. Pouco importa a teratologia resultante do paradoxo que é a imposição de uma pena mais branda
a quem estupra uma criança em comparação com aquele que estupra uma mulher adulta (...) (referindo-se ao conflito de normas
entre a Lei nº 8.069 e a Lei nº 8.072) (...) O que importa é fazer uma boa hermenêutica; o importante é resolver com competência
dogmática, neutramente, as antinomias do sistema (....) Vale lembrar nesse contexto o dizer de RUSSO, para que qualquer
estudante saiba que a verdade, em lógica formal, se adquire ao preço de renunciar ao conhecimento de mundo”. (destaquei)
29 LÊNIO STRECK, (Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 206-207), explica essa síndrome e suas conseqüências a partir de
um conto de ÍTALO CALVINO: “Pela estória, Alá ditava o Corão para Maomé, que, por sua vez, ditava para Abdula, o escrivão.
Em determinado momento, Maomé deixou uma frase interrompida. Instintivamente, o escrivão Abdula sugeriu-lhe a conclusão.
Distraído, Maomé aceitou como palavra divina o que dissera Abdula. Este fato escandalizou o escrivão que abandonou o profeta

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


Uma Crítica a Três Certezas Juspositivistas e a Busca de Outro Paradigma Hermenêutico 335

juristas, que faz com que os operadores sem- convite que nos aterroriza e que nos põe nos
pre recorram às interpretações de grandes limites de nossas certezas: pensar por conta
doutrinadores ou ainda dos tribunais, os própria. Me contaram ou li (ou inventei) que
quais seriam os únicos aptos a dizer o direi- segundo os chineses ‘pensar dói’. Dói. É um
to, gerando uma nova forma de divisão do risco a assumir. Exige colocar tudo em jogo. É
trabalho jurídico; conduzir-se aos limites a despeito da insegu-
rança. É neste momento que o chão nos falta
f) não apenas reproduzir velhas fór-
– e preferimos a burra paz dos que não sabem.
mulas e ensinamentos pois em cada caso
De fato, pensar dói. Mas é a única coisa que
há variantes compostas pelo momento his-
nos resta.’”.30 (destaquei)
tórico, pelas circunstâncias em que ocor-
reu e, principalmente, pelas suas
conseqüências sociais. Referências bibliográficas
AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito, po-
Enfim, irretocável é a lição de der e opressão. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega,
AMILTON BUENO DE CARVALHO em 1990.
relação aos óbices de se tomar uma postura ALMEIDA MELO, Carlos Antonio de. “A argüição
mais crítica e progressista frente a dogmática de preceito fundamental e o horizonte
jurídica: “é terrível a dificuldade em se tra- interpretativo da Constituição”, artigo apresen-
balhar teoricamente. No momento da abs- tado no XXVII Congresso Nacional dos Procu-
radores de Estado, em Vitória/ES, em outubro
tração tudo parece sem sentido. O operador
de 2001.
jurídico necessita ver para compreender (a
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação
tônica é: por favor, dêem-me um exemplo!).
da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
Daí a cópia (a repetição) parece inevitável
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de
(e com a massificação do computador che- filosofia do direito, comp. por Nello Morra; trad.
ga-se ao limite copiativo insuportável: ini- de Marcio Pugliese. São Paulo: Ícone, 1995.
ciais e sentenças de conteúdos desconexo, CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito alternativo
cansativo, acrítico passam a ser algo inevi- em movimento. 2. ed. Niterói: Luam, 1997.
tável no espaço forense). Pensar? Criar? Ja- ________. Teoria e prática do direito alternativo. Porto
mais, pois não somos treinados para tanto. Alegre: Síntese, 1998.
ROBERTO GOMES (Crítica da razão COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 2.
tupiniquim, 9. ed. Criar, p. 91), em sempre ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
atual estudo, bem apanha a questão: ‘Eis o 1991.

e perdeu a fé. Abdula não era digno de falar em nome de Alá ”. Não há exagero em fazer uma analogia desta estória com o que
ocorre no cotidiano das práticas jurídicas. Assim como o personagem Abdula não tinha consciência do seu poder (e de seu
papel), os operadores jurídicos também não conhecem as suas potencialidades hermenêuticas de produção do sentido. Em sua
maioria, prisioneiros das armadilhas e dos grilhões engendrados pelo campo jurídico sofrem dessa síndrome de Abdula. Consi-
deram que sua missão e seu labor é o de apenas reproduzir os sentidos previamente dados/adjucados/atribuídos por aqueles
que têm o skeptron, é dizer a fala autorizada! Não se consideram dignos-de-dizer-o-verbo. Perderam a fé em si mesmos. Como
órfãos científicos, esperam que o processo hermenêutico lhes aponte o caminho-da-verdade, ou seja, a correta interpretação da
lei! Enfim, esperam a fala-falada, a revelação da verdade! (destaquei)
30 CARVALHO, Amilton Bueno de. Teoria e prática do direito alternativo. Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 12.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001


336 Marco Aurélio Marrafon

CURY, Ivan Guérios. Dilemas do direito penal – refle- são de Estudos criada pelo Tribunal de Justiça
xão a partir da hermenêutica do sistema. Curitiba: do Estado do Paraná e Instituto Max Planck, de
Universidade Federal do Paraná. Tese de Dou- Freiburg, Alemanha, no Projeto “A Justiça como
torado aprovada em 1999. Inédito. garantia dos direitos humanos na América Lati-
JUSTEN FILHO, Marçal. “O Direito das Agências”, na”, Curitiba, maio de 1998.
minuta debatida na disciplina de Direito Eco- OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de (org.). O
nômico no âmbito do Programa de Pós-Gradu- poder das metáforas: homenagem ao 35 anos de
ação em Direito – Mestrado da UFPR, Curitiba: docência de Luis Alberto Warat. Porto Alegre:
2002. Inédito. Livraria do Advogado Editora, 1998.
LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. 4. ed. Rio
Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo
de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
na sociologia do conhecimento. 5. ed., rev., trad.
de Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy. São SOUSA SANTOS, Boaventura. O discurso e o po-
Paulo: Cortez, 1994. der: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica.
LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razão – racionalidade Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
jurídica e fundamentação do direito. Curitiba: _______. A crítica da razão indolente contra o desper-
Universidade Federal do Paraná. Tese de Dou- dício da experiência. Para um novo senso comum.
torado aprovada em 1997. Inédito. A ciência, o direito e a política na transição
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação paradigmática. 2. ed., vol. 1. São Paulo: Cortez,
do direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. 2000.
MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. “O ________. Introdução a uma ciência pós-moderna. 3.
papel do pensamento economicista no direito ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
criminal de hoje”, texto especialmente prepara-
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise:
do para o VII Encontro Internacional de Direi-
uma exploração hermenêutica da construção do di-
to da América do Sul, realizado em Florianópolis/
SC, de 06 a 08 de maio de 1998. reito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

________. “Princípios gerais do processo penal bra- WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito.
sileiro”, artigo preparado no âmbito da Comis- Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001

Você também pode gostar