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Introdução
m HOBBES, vê-se que o fortaleci-
mento e a consolidação do Estado
Absolutista dependia de um direito
que atuasse imperativamente, como um
comando, pois seu objetivo último era ga-
rantir a segurança antes inexistente no es-
SUMÁRIO tado de barbárie. Por isso, esse modelo
Introdução; estatal concebia o direito em função de seu
elemento de coação e reconhecia apenas a
I A primeira certeza: o dogma da oni-
potência do legislador; emanação jurídica proveniente do próprio
Estado, adotando, de maneira sistemática,
II A segunda certeza: a segurança
positivista e o mito da neutralidade do juiz;
a concepção monista de direito e lançando
as bases do positivismo jurídico.
III A terceira certeza: a hermenêutica
de cunho empirista positivista; Posteriormente, com a ascensão da
IV O rompimento com as idéias burguesia ao poder e o aprimoramento da
positivistas através da busca da instrumen- escola positivista, continuava sendo inte-
talidade das normas; ressante a adoção dessa concepção pois a
Referências bibliográficas. burguesia necessitava de um instrumento
de coação e de legitimação para que se
perenizasse no poder.
Para tanto, consagrou-se na teoria
positivista do direito o dogma da onipotên-
cia do legislador e, junto a ele, os princípios
1 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 38.
2 In Direito, poder e opressão. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 23-24.
normas aos grupos situados nos níveis in- comunidades não estatais, o direito é visto
feriores, mantendo, então, o privilégio de como um e, embora se registrem as várias e
legislar.3 diferentes acepções da palavra direito, aque-
las que identificam uma realidade outra que
Essas reflexões reforçam a idéia de
não a do direito positivo são consideradas à
que quem legisla é quem detém o poder que,
parte, uma possibilidade excepcional de
como sabido desde o fim do feudalismo, é a
ampliar o conceito de direito.4
classe com maior poderio econômico, an-
tes a burguesia, hoje os grandes conglome- Torna-se possível compreender, so-
rados econômicos transnacionais. mando as reflexões de ROBERTO DE
AGUIAR com as lições de LUIZ
De outra feita, considerando a expli-
FERNANDO COELHO, que, mais uma
cação do princípio monista dada por LUIZ
vez, em nome da cientificidade do direito e
FERNANDO COELHO para quem: Por
de sua íntima ligação com a classe social no
princípio monista entende-se a crença,
poder, institui-se a acepção de direito com
subjacente à dogmática jurídica, de que o
um comando imperativo, só válido se sus-
direito é um só, ou seja, a crença na exis-
tentado pela força de coerção emprestada
tência de uma ordem jurídica, que é preci-
do Estado e advinda do legislador (que não
samente a de gênese estatal. O seu
é outro senão a própria classe dominante),
enunciado é a primeira forma de legitimação
ignorando, propositadamente, a existência
da ordem social burguesa, e não é muito
de inúmeros ordenamentos fora da esfera e
claro justamente porque constitui um pres-
do controle estatal (à medida que eles re-
suposto, está nas entrelinhas e nos silên-
presentam um perigo para a ordem vigen-
cios dos enunciados que formam o saber
te).
constituído a partir das normas estatais, e
das próprias normas; ainda quando a exi- No Brasil, o exemplo da lei que im-
gência do rigor científico impõe a concep- pera nas favelas, onde os traficantes repre-
ção lata do direito ligado ao fato das sentam a segurança e proteção e a polícia,
3 Segue a transcrição do trecho aqui referido: Essa sociedade para se manter necessita de produzir, essa produção origina uma
divisão de trabalho, essa divisão de trabalho impregna as outras instituições existentes nessa sociedade. À luz dessas institui-
ções estabelecem-se teias de relações em sentido horizontal e vertical: as relações em nível horizontal são determinadas pelo
fato de os indivíduos se situarem no mesmo plano de atribuição ou por terem atribuições semelhantes. As relações em nível
vertical são determinadas pelo valor maior ou menor que essa sociedade dá a atribuições diferentes e este valor está relacionado
com os modos de produção e apropriação que ela desenvolve. Assim, vão-se formando nessa sociedade grupos humanos em
posições paralelas, em posições inferiores ou superiores em relação aos outros. Esses grupos se relacionam dinamicamente na
medida em que a sociedade muda, trocando de posições entre si ou simplesmente desaparecendo. O grupo situado nos níveis
mais altos das relações verticais detém o poder dominando e controlando os outros grupos e se apropriando daquilo que é mais
valioso e útil, daquilo que a sociedade produz. Desse modo, ele passa a deter nas mãos o privilégio de legislar, de ditar normas
para si e para os outros que terão de aceitar estas normas, ou porque eles guardam alguma compatibilidade com seus interes-
ses, ou porque tais grupos, ignorando sua própria condição, acreditam serem essas normas as melhores para a sociedade, ou
ainda porque neles foi inculcada e internalizada a crença de que são incapazes de governar, ou por último, simplesmente pela
força, pela sanção. (grifo nosso)
4 COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 266.
o medo,5 demonstra de forma dramática o CPC; 252 a 254, CPP), ou seja, o juiz é um
distanciamento desse dogma com a reali- órgão que está entre as partes e acima delas.
dade social. Consoante explica JACINTO NEL-
SON DA MIRANDA COUTINHO, du-
II A segunda certeza: a rante determinado período da história do
segurança positivista e o pensamento, acreditou-se que era possível
mito da neutralidade do ao homem, enquanto sujeito cognoscente,
juiz anular-se completamente nas relações de
conhecimento. Com isto, procurava-se ob-
Após derrubar o mito da neutralida-
ter um tipo de saber que não tivesse eivado
de da lei, cabe agora analisar outros dois
de qualquer imperfeição humana. Daí o
fundamentos máximos do positivismo: o
método perfeito para a consecução deste
mito do juiz neutro e imparcial e o da segu-
desiderato, proposto pelo empirismo. Para
rança jurídica advinda do juspositivismo os
este, o método consiste em um conjunto
quais, por sinal, estão intimamente ligados,
de procedimentos que por si mesmos garan-
já que para os positivistas não se pode falar
tem a cientificidade das teorias elaboradas
em segurança jurídica quando não se tem
sobre o real. Como sujeito se limitaria a cap-
certeza das decisões a serem tomadas pelo
tar o objeto, essa captação seria tanto mais
juiz.
eficaz e neutra quanto mais rigoroso fosse o
Mas será que há essa certeza mesmo método utilizado. Assim, a elaboração cien-
nas sentenças dos juízes mais dogmáticos? tífica se limitaria ao cumprimento rigoroso
Para mostrar que não, será feita uma análi- de certas técnicas preestabelecidas, que
se à luz da construção social da realidade e conteriam o poder quase miraculoso de con-
da hermenêutica jurídica. ferir cientificidade aos conhecimentos ela-
A noção de juiz neutro e imparcial borados através delas.6
surge da teoria de que o juiz não pode estar No mesmo sentido, CARLOS AN-
ligado nem objetivamente nem subjetiva- TONIO DE ALMEIDA MELO7 ensina que
mente às partes em litígio, sendo que para cada um tem uma consciência de mundo,
garantir a imparcialidade das decisões, deve que é proporcional ao tamanho de seu co-
o juiz declarar seu impedimento, incompa- nhecimento, sendo que a partir dela, che-
tibilidade ou suspeição (arts. 134 e 135, ga-se ao real (aquilo que existe com as
5 Recentemente, os moradores do Rio de Janeiro que freqüentavam o piscinão de Ramos foram proibidos de vestir qualquer peça
de roupa vermelha para não fazer alusão ao grupo Comando Vermelho, rival do grupo de traficantes que controla aquela área.
Para maior aprofundamento acadêmico dessa questão, remeto o leitor à leitura do texto Notas sobre a história jurídico-social de
Pasárgada de SOUZA SANTOS, Boaventura de, in SOUTO, Cláudio & FALCÃO, Joaquim. Sociologia e direito. São Paulo:
Pioneira, 1980.
6 In Princípios gerais do processo penal brasileiro, artigo preparado no âmbito da Comissão de Estudos criada pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná e Instituto Max Planck, de Freiburg, Alemanha, no Projeto A Justiça como garantia dos direitos
humanos na América Latina. Curitiba, maio de 1998, p. 07.
7 Em aulas proferidas na Faculdade de Direito da UFMT na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito.
8 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 258.
9 Op. cit., p. 11.
10 In Direito alternativo em movimento. 2. ed. Niterói: Luam, 1997.
mesmo a trabalhar a idéia de que a própria vo com as reais aspirações das bases sociais.
localização e o ambiente de trabalho, a hora, Exige-se não mais a neutralidade, mas a cla-
o cansaço e até mesmo o humor do juiz no ra assunção de uma postura ideológica, isto
momento de julgar podem interferir na é, que sejam retiradas as máscaras hipócri-
maior ou menor severidade do julgamento. tas dos discursos neutrais, o que começa
Outro aspecto a ser lembrando, é o pelo domínio da dogmática aprendida e
caráter ideológico que se esconde atrás do construída na base da transdiscipli-
princípio da neutralidade e imparcialidade nariedade.12
do juiz, uma vez que exerce uma função de Muito embora, como esse autor re-
ocultação dos verdadeiros conflitos existen- conhece, a neutralidade e imparcialidade
tes na sociedade. possam funcionar como uma meta a ser
Acerca desse caráter ideológico, atingida pelo juiz, ainda que inatingível, à
LUÍS ROBERTO BARROSO assim se pro- medida que ela constitui garantia tanto
nuncia: A idéia de neutralidade do Estado, para aquele que exerce a jurisdição, como
das leis e de seus intérpretes, divulgada pela para aquele que demanda perante ela.13
doutrina liberal-normativista, toma por base o No mesmo sentido, MARÇAL
status quo. Neutra é a decisão ou a atitude JUSTEN FILHO, ao tentar responder a in-
que não afeta nem subverte as distribuições de dagação se é possível a imparcialidade do
poder e riqueza existentes na sociedade (...) elas doutrinador do direito ou ainda se há a pos-
são fruto do direito posto. E, freqüentemente, sibilidade de um sujeito atenuar a influên-
nada têm de justas. A ordem social vigente é cia de suas convicções políticas mais
fruto de fatalidades, disfunções e mesmo per- ferrenhas, assim se manifesta: Por mais que
versidades históricas. Usá-la como referência se pretenda uma resposta positiva, sempre
do que seja neutro é evidentemente indesejá- restará a dúvida, relacionada com a própria
vel, porque instrumento de perenização de in- natureza do ser humano. Não é exagero afir-
justiça.11 (destaquei) mar que produzir ciência especialmente,
A saída é dada por JACINTO a ciência social importa, antes de tudo,
COUTINHO que proclama que a demo- produzir conhecimento sobre si próprio. Daí
cracia a começar pela processual exige a necessidade de o autor esclarecer suas
que os sujeitos se assumam ideologicamen- próprias ideologias, deixando claras suas
te. Por esta razão é que não se exige que o convicções axiológicas e políticas pessoais.
legislador, e de conseqüência o juiz, seja É necessário que o leitor conheça o autor
tomado completamente por neutro, mas da obra que lê para que possa avaliar as
que procure, à vista dos resultados práticos opções pessoais realizadas. Somente assim
do direito, assumir um compromisso efeti- será possível aderir ou rejeitar teses que re-
tratam certa visão do mundo que informa o mentos a favor da reprodução de saberes ins-
autor e se retrata em tomadas de posição tituídos e da manutenção do status quo.
fundamentais. Trata-se de evitar o mas-
Assim, em relação à segurança jurí-
caramento de convicções político-ideológicas
dica, e o mito da certeza nas decisões, se for
através de argumentações travestidas de fei-
levado em consideração que a lei é com-
ção lógico-abstrata.14 (destaquei)
prometida com os interesses dominantes, e
Analisando essa questão à luz da o juiz (e todos os intérpretes que operam o
semiologia do poder, LUIZ ALBERTO direito) não é neutro mas atua (re)cons-
WARAT,15 verifica que as diferentes signi- truindo seus próprios mundos e valores a
ficações das palavras da lei atuam como ins- cada nova interpretação, gerando decisões
trumento de controle social, através de díspares num mesmo ordenamento jurídi-
inúmeros conceitos vagos ou ambíguos, co, é possível crer que não há, absolutamen-
como mulher honesta (arts. 215, 216 e 219 te, segurança ou certeza nas decisões, ainda
do CP), justificável confiança (art. 217 do que emanadas dos juízes mais dogmáticos.
CP) e motivo fútil (art. 121 do CP), donde
percebe-se que a exaltação do valor segu- III A terceira certeza: a
rança é mais um instrumento que tem por
hermenêutica de cunho
principal escopo legitimar o exercício do
empirista positivista
poder socialmente dominante, o qual se
apresenta como seu legítimo guardião sen- Dentro da teoria dogmática clássica,
do todos os seus atos intrinsecamente jus- trabalha-se a hermenêutica jurídica num
tos por serem legais, vale dizer, não paradigma que aqui será chamado de
arbitrários porque contidos nos marcos das empirista positivista, à medida que há a pro-
normas gerais. A norma geral adquire, as- funda crença que o sujeito, ao ler a norma
sim, o valor de uma autolimitação através de diferentes métodos herme-
apriorística do exercício do poder.16 nêuticos, pode extrair o seu significado real,
ou ainda, de acordo com a corrente a que
Não é exagero, então, afirmar que o
for filiado, o intérprete poderia extrair da
sentido comum teórico dos juristas identifi-
lei a vontade do legislador ou mesmo a von-
cado por WARAT, enquanto topoi
tade da lei, aqui entendida como um ser
interpretativo, constitui o corpus ideologicus
que ganha vontade própria após ser promul-
que dá segurança e irresponsabilidade aos
gada.
adeptos do habitus dogmaticus, os quais, sem
consciência de seu papel social e das artima- Esse paradigma hermenêutico en-
nhas dogmáticas, tornam-se meros instru- contra-se arraigado no imaginário de gran-
14 JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências, minuta debatida na disciplina de Direito Econômico no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Direito Mestrado da UFPR, Curitiba: 2002. Inédito, p. 03.
15 In Introdução geral ao direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.
16 Idem, passim.
de parte dos juristas brasileiros, não só por- Em contraponto ao que foi exposto
que presente como verdade absoluta na no capítulo anterior, crê o citado jurista que
maioria dos manuais de introdução ao di- é possível ao intérprete despojar-se de suas
reito, como também por representar impor- paixões, crenças, valores e significados de
tante método para se atingir a chamada mundo através da autocrítica e da
pureza positivista, fechando, desta maneira, autofiscalização, para que não vicie a inter-
o ciclo das certezas que constituem o pilar pretação: Deve o intérprete, acima de tudo,
dessa teoria, pois consagra-se a onipotên- desconfiar de si, pesar bem as razões pró e con-
cia do legislador e a neutralidade do juiz com tra, e verificar, esmeradamente, se é a verda-
a pureza dos métodos hermenêuticos, os deira justiça ou se são idéias preconcebidas que
quais proporcionam ao juiz a verdadeira o inclinam neste ou naquele sentido. Conhe-
vontade da lei (ou do legislador) no mo- ce-te a ti mesmo, preceituava o filósofo
mento de sua aplicação ao caso concreto. ateniense. Pode-se repetir o conselho, po-
Com efeito, CARLOS rém completado assim: e desconfia de ti,
MAXIMILIANO, ícone desse modelo de quando for mister compreender e aplicar o
hermenêutica no Brasil, e amplamente acei- Direito. Esteja vigilante o magistrado, a fim
to pelos juristas e doutrinadores pátrios, de não sobrepor, sem o perceber, de boa fé,
enuncia o seu pensamento nas seguintes o seu parecer pessoal à consciência jurídica
palavras: Com a promulgação, a lei adqui- da coletividade; inspire-se no amor e zelo
re vida própria, autonomia relativa; sepa- pela justiça e soerga o espírito até uma at-
ra-se do legislador; contrapõe-se a ele como mosfera serena onde o não ofusquem as nu-
um produto novo; dilata e até substitui o vens das paixões.18 (destaquei)
conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; Essa solução não é nova nem sufi-
mostra-se, na prática, mais previdente que ciente e recai no velho dilema da neutrali-
seu autor. Consideram-na como disposição dade do sujeito das ciências sociais, que é o
mais ou menos imperativa, materializada num mito do BARÃO DE MÜNCHHAUSEN,
texto, a fim de realizar sob um ângulo determi- personagem que tenta se salvar da areia
nado a harmonia social, objeto supremo do
movediça puxando os próprios cabelos, con-
Direito. Logo, ao intérprete incumbe apenas
forme assinala MICHEL LÖWY.19
determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac
potestas legis; deve ele olhar menos para o Daí infere-se que a tradicional teo-
passado do que para o presente, adaptar a nor- ria da interpretação, oriunda da herme-
ma à finalidade humana, sem inquirir da von- nêutica de cunho objetivista bettiano
tade inspiradora da elaboração primitiva.17 exposta na obra de CARLOS
17 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 30-31.
18 Idem.
19 LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conheci-
mento. 5. ed., rev., trad. de Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy, São Paulo: Cortez, 1994.
20 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 43.
21 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (in Introdução a uma ciência pós-moderna. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p. 52) elenca
os seguintes pressupostos do positivismo: a realidade enquanto dotada de exterioridade; o conhecimento enquanto representa-
ção do real; a aversão à metafísica e o caráter parasitário da filosofia em relação à ciência; a dualidade entre fatos e valores com
a implicação de que o conhecimento empírico é logicamente discrepante do prosseguimento de objetos morais ou da observa-
ção de regras éticas; a noção de unidade da ciência, nos termos da qual as ciências sociais e as ciências naturais partilham a
mesma fundamentação lógica e até metodológica.
22 In Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999, p. 173-174.
GADAMER, traz preciosa lição acerca da sa por parte dos projetos em cada caso revisa-
compreensão: (...) não é simples dizer que dos, com o que a unidade de sentido fica clara-
as verdades que fazem parte do universo mente fixada. (destaquei)
hermenêutico ou as verdades de um texto Rompe-se, então, com o paradigma
que é produzido no universo da da hermenêutica empirista positivista em
hermenêutica são verdades que se resolvem prol de uma outra abordagem, desta vez filo-
a partir de um universo ingênuo, a partir de sófica e compreensiva, por alguns denomi-
uma afirmação ametódica. Somos incapa- nada hermenêutica filosófica, a qual supera
zes de expor todos os pressupostos que es- as dicotomias positivistas entre fato/valor,
tão no universo hermenêutico. Algo sempre sujeito/objeto, ciência/senso comum.
escapa. A compreensão, que faz parte do
modo de ser no mundo, antecipa qualquer Nas palavras de CELSO LUIZ
tipo de explicação lógico-semântica, não no LUDWIG, a onipotência da reflexão, mar-
sentido temporal, cronológico. Porque ca registrada da filosofia da consciência
estamos no mundo, há uma compreensão que moderna, é golpeada duramente pela estru-
se antecipa a qualquer tipo de explicação. Te- tura objetiva de uma realidade que não per-
mos uma estrutura do nosso modo de ser que é mite a cisão completa com um sujeito
a interpretação. Por isto, sempre interpreta- originária e epistematicamente concebido
mos. O horizonte de sentido é nos dado pela como consciência reflexiva. Por isso, a re-
compreensão que temos de algo. O ser huma- flexão se realiza sempre a partir de uma pré-
no é compreender. Ele só se faz pela compre- compreensão, ineliminável, porque
ensão. Ele só se dá pela compreensão. condição de possibilidade de toda compre-
Compreender é um existencial, que é uma ca- ensão.24
tegoria pela qual o homem se constitui. É de ressaltar-se que com base nessa
Em outra passagem, desta vez apoia- hermenêutica filosófica é que alguns estu-
do em HESSE, LÊNIO STRECK23 arrema- diosos vêm tentando pensar a ciência e o
ta: O intérprete compreende o conteúdo da direito na pós-modernidade, como é o caso
norma a partir de uma pré-compreensão, que de BOAVENTURA DE SOUSA SAN-
é a que vai lhe permitir contemplar a norma TOS.25
desde certas expectativas, fazer uma idéia do No mesmo sentido, todavia com uma
conjunto e perfilar um primeiro projeto, ainda abordagem de maior aplicabilidade prática,
necessitado de comprovação, correção e revi- CARLOS ANTONIO DE ALMEIDA
são através da progressiva aproximação à coi- MELO esboça a seguinte tese: (...) toda
âmbito dogmático do senso comum teórico dos juristas: (...) pouco importa ao jurista, inserido no sentido comum teórico, o
conteúdo das relações sociais. Pouco importa a teratologia resultante do paradoxo que é a imposição de uma pena mais branda
a quem estupra uma criança em comparação com aquele que estupra uma mulher adulta (...) (referindo-se ao conflito de normas
entre a Lei nº 8.069 e a Lei nº 8.072) (...) O que importa é fazer uma boa hermenêutica; o importante é resolver com competência
dogmática, neutramente, as antinomias do sistema (....) Vale lembrar nesse contexto o dizer de RUSSO, para que qualquer
estudante saiba que a verdade, em lógica formal, se adquire ao preço de renunciar ao conhecimento de mundo. (destaquei)
29 LÊNIO STRECK, (Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 206-207), explica essa síndrome e suas conseqüências a partir de
um conto de ÍTALO CALVINO: Pela estória, Alá ditava o Corão para Maomé, que, por sua vez, ditava para Abdula, o escrivão.
Em determinado momento, Maomé deixou uma frase interrompida. Instintivamente, o escrivão Abdula sugeriu-lhe a conclusão.
Distraído, Maomé aceitou como palavra divina o que dissera Abdula. Este fato escandalizou o escrivão que abandonou o profeta
juristas, que faz com que os operadores sem- convite que nos aterroriza e que nos põe nos
pre recorram às interpretações de grandes limites de nossas certezas: pensar por conta
doutrinadores ou ainda dos tribunais, os própria. Me contaram ou li (ou inventei) que
quais seriam os únicos aptos a dizer o direi- segundo os chineses pensar dói. Dói. É um
to, gerando uma nova forma de divisão do risco a assumir. Exige colocar tudo em jogo. É
trabalho jurídico; conduzir-se aos limites a despeito da insegu-
rança. É neste momento que o chão nos falta
f) não apenas reproduzir velhas fór-
e preferimos a burra paz dos que não sabem.
mulas e ensinamentos pois em cada caso
De fato, pensar dói. Mas é a única coisa que
há variantes compostas pelo momento his-
nos resta..30 (destaquei)
tórico, pelas circunstâncias em que ocor-
reu e, principalmente, pelas suas
conseqüências sociais. Referências bibliográficas
AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito, po-
Enfim, irretocável é a lição de der e opressão. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega,
AMILTON BUENO DE CARVALHO em 1990.
relação aos óbices de se tomar uma postura ALMEIDA MELO, Carlos Antonio de. A argüição
mais crítica e progressista frente a dogmática de preceito fundamental e o horizonte
jurídica: é terrível a dificuldade em se tra- interpretativo da Constituição, artigo apresen-
balhar teoricamente. No momento da abs- tado no XXVII Congresso Nacional dos Procu-
radores de Estado, em Vitória/ES, em outubro
tração tudo parece sem sentido. O operador
de 2001.
jurídico necessita ver para compreender (a
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação
tônica é: por favor, dêem-me um exemplo!).
da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
Daí a cópia (a repetição) parece inevitável
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de
(e com a massificação do computador che- filosofia do direito, comp. por Nello Morra; trad.
ga-se ao limite copiativo insuportável: ini- de Marcio Pugliese. São Paulo: Ícone, 1995.
ciais e sentenças de conteúdos desconexo, CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito alternativo
cansativo, acrítico passam a ser algo inevi- em movimento. 2. ed. Niterói: Luam, 1997.
tável no espaço forense). Pensar? Criar? Ja- ________. Teoria e prática do direito alternativo. Porto
mais, pois não somos treinados para tanto. Alegre: Síntese, 1998.
ROBERTO GOMES (Crítica da razão COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 2.
tupiniquim, 9. ed. Criar, p. 91), em sempre ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
atual estudo, bem apanha a questão: Eis o 1991.
e perdeu a fé. Abdula não era digno de falar em nome de Alá . Não há exagero em fazer uma analogia desta estória com o que
ocorre no cotidiano das práticas jurídicas. Assim como o personagem Abdula não tinha consciência do seu poder (e de seu
papel), os operadores jurídicos também não conhecem as suas potencialidades hermenêuticas de produção do sentido. Em sua
maioria, prisioneiros das armadilhas e dos grilhões engendrados pelo campo jurídico sofrem dessa síndrome de Abdula. Consi-
deram que sua missão e seu labor é o de apenas reproduzir os sentidos previamente dados/adjucados/atribuídos por aqueles
que têm o skeptron, é dizer a fala autorizada! Não se consideram dignos-de-dizer-o-verbo. Perderam a fé em si mesmos. Como
órfãos científicos, esperam que o processo hermenêutico lhes aponte o caminho-da-verdade, ou seja, a correta interpretação da
lei! Enfim, esperam a fala-falada, a revelação da verdade! (destaquei)
30 CARVALHO, Amilton Bueno de. Teoria e prática do direito alternativo. Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 12.
CURY, Ivan Guérios. Dilemas do direito penal refle- são de Estudos criada pelo Tribunal de Justiça
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Universidade Federal do Paraná. Tese de Dou- Freiburg, Alemanha, no Projeto A Justiça como
torado aprovada em 1999. Inédito. garantia dos direitos humanos na América Lati-
JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências, na, Curitiba, maio de 1998.
minuta debatida na disciplina de Direito Eco- OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de (org.). O
nômico no âmbito do Programa de Pós-Gradu- poder das metáforas: homenagem ao 35 anos de
ação em Direito Mestrado da UFPR, Curitiba: docência de Luis Alberto Warat. Porto Alegre:
2002. Inédito. Livraria do Advogado Editora, 1998.
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de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
na sociologia do conhecimento. 5. ed., rev., trad.
de Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy. São SOUSA SANTOS, Boaventura. O discurso e o po-
Paulo: Cortez, 1994. der: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica.
LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razão racionalidade Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
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Universidade Federal do Paraná. Tese de Dou- dício da experiência. Para um novo senso comum.
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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação paradigmática. 2. ed., vol. 1. São Paulo: Cortez,
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STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise:
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uma exploração hermenêutica da construção do di-
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