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Universidade Estadual de Campinas – 11 a 24 de julho de 2005

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O homo laborens, o homo faber, o homo motor e o cyborg na adaptação do nosso corpo aos meios de produção

Ilustrações do livro The Human Motor, do historiador Anson Rabinbach, que caracteriza o século 19 como o século da fadiga e da neurastenia

A história do corpo humano Os arquétipos


do século XXI
Foto: Antoninho Perri
LUIZ SUGIMOTO Na opinião de Maria Cecília
sugimoto@reitoria.unicamp.br Ugarte, a chamada Revolução
da Informação ou do

A história do corpo humano


é a história da civilização. A
partir dessa analogia, a economis-
Conhecimento também atinge
o corpo humano de maneira
brutal. Neste mundo do
trabalho altamente mecanizado
ta Maria Cecília Donaldson Ugarte e informatizado, ela cita o
estudou as transformações impos- sociólogo Francisco de
tas ao corpo humano para adaptá- Oliveira, que observa um salto
lo aos meios de produção, desde a em direção ao trabalho
Revolução Industrial até a Revolu- abstrato. “Os salários passam
ção da Informação dos dias de ho- a ser atrelados à produtividade
je, quando o homem aparece de- e não mais às horas de
senraizado da carne e dos ossos, trabalho, dando margem à
terceirização informal. É um
em ambiente virtual. Tendo traba- ‘salve-se quem puder’ que tira
lhado por 11 anos como executiva do trabalhador o poder de lutar
na iniciativa priva- por seus direitos. Já que ele
Pesquisadora da, Maria Cecília precisa sobreviver, sujeita-se.
atuou como voltou à vida aca- A exploração das pessoas, da
dêmica para pers- sociedade e do ambiente
executiva crutar por dois a- prevalece sobre o sentido de
comunidade e solidariedade. A
por 12 anos nos e meio os ca- fadiga e a neurastenia descritas
minhos do corpo, por Rabinbach desdobram-se
vivenciando experiências com psi- neste início de século em
codrama, criatividade corpórea e várias denominações como
saúde mental no trabalho. Sua pes- depressão, estresse, anorexia,
quisa resultou em dissertação de bulimia, obesidade e
mestrado apresentada na Faculda- dependência química”, afirma a
de de Educação Física (FEF) da Uni- pesquisadora.
camp, sob orientação da professo- Maria Cecília observa, ainda,
que diante da relação tão íntima
ra Maria Beatriz Rocha Ferreira. das pessoas com a tecnologia,
“Sempre estudamos a Revolução o corpo já não é percebido
Industrial como um grande feito, como antes, parecendo
sem considerar que houve uma ex- desenraizado de si mesmo e
ploração maciça e cruel da popula- esfumado em ambiente virtual.
ção. Foi a mais radical transforma- “Como disse a feminista Donna
ção da vida humana já registrada Haraway, em seu Cyborg
em documentos escritos, segundo Manifesto, ficou difícil saber
onde nós acabamos e onde as
Eric Hobsbawn, que deveria ser máquinas começam. Para ela,
mais lido para fundamentação his- A economista Maria Cecília Donaldson Ugarte: “A relação entre corpo e trabalho é bem mais estreita do que transparece”
ser cyborg não tem a ver com a
tórica”, afirma Maria Cecília Ugar- Fotos: Divulgação implantação de bits de silício
te, referindo-se ao historiador cujos varia gerações. Portanto, a resistên- ou próteses sob nossa pele,
conceitos sustentam boa parte da cia foi grande, gerando bloqueios mas com ir à academia de
dissertação. Ela lembra que antes e conflitos”, observa a economista. ginástica, a uma prateleira de
da revolução, durante séculos, os Com a difusão dos motores a vapor alimentos energéticos e dar-se
corpos trabalharam integrados e de novos métodos de produção, conta de estar em um lugar que
as cidades inflaram com o êxodo do não existiria sem a idéia do
com suas ferramentas, como os te- corpo como uma máquina de
ares, num urdir e tecer em ritmo campo e surgiu também o desem- alta performance”, compara.
natural, onde estavam presentes as prego. A ciência avançava junto Na visão da pesquisadora, os
sensações corporais, a imaginação com a industrialização, mas crescia atletas olímpicos são bons
e as emoções. “Podia-se parar, con- a população carente, subnutrida e exemplos de que já “estamos
versar, rir e recomeçar. Era o homo com altos índices de mortalidade. cyborgs”. “Vencer a Olimpíada
laborens, que estava em inter-rela- ologia, educação física, ergonomia em pesquisas na aviação, fotogra- não depende simplesmente de
ção com as pessoas, os objetos e a Século da fadiga – O historia- – objetivando a perscruta do cor- fia e cinema, Etienne-Jules Marey correr mais rápido. Depende de
dor Anson Rabinbach caracteriza po, num esquadrinhamento que foi, também, quem realizou os pri- toda uma interação entre
natureza”, observa. medicina, dieta, práticas de
Segundo a pesquisadora, o capi- o século 19 como o século da fadiga vai embasar teorias até as chega- meiros estudos sobre os movimen- treinamento, vestimentas
talismo na Inglaterra começou no e da neurastenia. Em The Human das do taylorismo e do fordismo, for- tos do corpo, em 1868. Inventou especiais, fabricação de
lar, já por volta de 1750, com o tra- Motor, ele descreve o processo de mas econômicas de divisão do tra- instrumentos de medição e pes- equipamentos, visualização e
balho de pai, mãe e filhos em favor construção do corpo e sua relação balho. “Antes, achavam que o cor- quisou inicialmente os animais, controle do tempo, e não
de um empreendedor que forne- com o trabalho, dentro da visão da po era uma máquina capaz de tra- principalmente os movimentos do raramente da utilização de
cia a matéria-prima. Todas as ca- energética e do materialismo que balhar sem parar, bastando-lhe um cavalo (ritmo, duração e intensida- drogas para melhorar a
sas tornaram-se fábricas em mini- permeavam a época. O homo-mo- pouco de comida e de descanso. de), além dos mecanismos de vôo performance. Haraway também
tor, para o autor, é uma metáfora da Ignorava-se a segunda lei da en- de pássaros e insetos. Mediu de- afirma que este é um mundo de
atura e foi justamente com este
redes entrelaçadas, humanas e
artesanato doméstico que se ini- força de trabalho, ou seja, de que tropia: que a energia se esgota a pois o andar humano, na passada maquínicas, que jogam
ciou a transformação dos proces- o corpo humano seria um reserva- cada vez que se usa. A fadiga e a e na corrida. Suas descobertas ex- conceitos como ‘natural’ e
sos produtivos. “Aos poucos, o ho- tório como o das máquinas, capaz neurastenia tornaram-se uma ver- tasiaram os especialistas, pois ba- ‘artificial’ na lata do lixo”,
mo laborens foi dando lugar ao homo de converter energia em trabalho dadeira epidemia, principalmente lizavam as pesquisas para uma avalia.
faber – termos criados por Hanna mecânico. Corpo, máquinas e na- na França e Alemanha, onde a re- ciência do trabalho, e também os Depois de rever mais de 200
Arent. Quando a revolução che- tureza eram movimentos passíveis sistência às inovações foi ainda artistas, porque significavam uma anos de história do corpo
gou 30 anos depois, e se acelerou de ser medidos dentro das leis da maior”, conta Maria Cecília.. representação artística do movi- humano, Maria Cecília Ugarte
o processo de industrialização, as dinâmica – e conseqüentemente mento. O próprio Marey produziu julga que chegou a hora de
parar para “pensar o corpo”, o
famílias foram retiradas de seu dominados, submetidos a sistemas Esquadrinhamento – Ao final instantâneos do movimento, cri- quanto ele foi desprezado em
território e levadas para trabalhar organizacionais cientificamente do século 19, portanto, já diminuía ando o que chamou de ‘photochro- nome da transcendência e
nas fábricas, morando em cantos desenhados. o discurso de que havia resistên- nographer’ e depois o ‘chronopho- manipulado em nome do
fétidos que marcaram o surgimen- “Rabinbach considera que a mo- cia ao trabalho por causa de indo- tographo’. capital. “Os efeitos da
to do meio urbano. A jornada de dernidade industrial européia via- lência e preguiça. Higienistas, fi- Maria Cecília Ugarte observa Revolução da Informação
trabalho chegava a 14 horas. “Des- se sempre ameaçada pela subver- siatras, psicólogos, antropólogos que a educação física foi fundada podem ser comparados aos do
territorializada, a pessoa, antes são do fantasma da preguiça. O do trabalho, médicos e políticos nesse contexto, dentro da área mé- desenraizamento dos
vista por inteiro – mente, corpo e labor era pregado como um remé- examinavam a tendência à pregui- dica, com novos aparatos para que camponeses de suas terras no
início da industrialização.
espírito –, perde o seu centro e fica dio contra os apetites dos sentidos ça, mas também passaram a reco- os corpos adquirissem resistência Precisamos pensar onde
nas mãos manipuladoras do po- e como um amigo da alma. Daí, a nhecer os danos do excesso de car- física e mental na luta contra a fa- ficaram as possibilidades de
der. Foi um estrago impressionan- necessidade de ‘docilizar’ os cor- ga de trabalho, o que levou à defesa diga e a neurastenia. Também apa- escolha, já que esta revolução
te”, diz Maria Cecília. pos para que esquecessem seu es- de reformas sociais com novas re- receram os primeiros estudos de é silenciosa para a população
No entanto, a nova classe operá- tilo de vida arraigado desde os an- gulamentações e leis trabalhistas. ergonomia. “A relação entre cor- comum e excluída Do homo-
ria relutou em aceitar os relógios, o tepassados e se transformassem “A idéia era de que a saúde da po- po e trabalho é bem mais estreita motor aos cyborgs, nesta
trabalho imposto não mais pela na- em uma força de trabalho produ- pulação precisava ser incentivada, do que transparece superficial- corrida atrás do progresso e da
tureza, mas sim pelo ritmo das má- tiva e disciplinada”, explica Maria mas visando aumentar a capacida- mente. O corpo é deslocado para multiplicação tecnológica,
devemos refletir e perguntar
quinas e da produtividade. “A for- Cecília Ugarte. de de resistência do corpo ao tra- deixar de pertencer a si mesmo e onde ficam as pessoas”.
mação do que Norbert Elias cha- The Human Motor mostra a liga- balho”, recorda a pesquisadora. servir como uma máquina de pro-
mou de um novo habitus social le- ção entre as novas ciências – fisi- Médico, fisiologista e pioneiro dução”, resume a pesquisadora.

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