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DEPOIS DO ÊXTASE,

LAVE A ROUPA SUJA

COMO O CORAÇÃO FICA MAIS SÁBIO


NO CAMINHO ESPIRITUAL

JACK KORNFIELD

Tradução
CARLOS A. L. SALUN
ANA LUCIA FRANCO

EDITORA CULTRIX
São Paulo
Dedicado ao Venerando Ajahn Chah, a seu irmão no Dharma o
Venerando Ajahn Buddhadasa e à linhagem dos Anciãos da floresta
UMA PROSTERNAÇÃO INICIAL
Há mais de trinta anos, quando praticava num mosteiro de uma
floresta da Tailândia para ser monge budista, tive que aprender a
me prosternar. Era esquisito no início. Quando entrávamos na sala
de meditação, tínhamos que cair de joelhos e tocar três vezes o
chão de pedra com a cabeça. Era um ato de reverência e atenção,
uma forma de reverenciar com um gesto do corpo a submissão ao
caminho do monge: simplicidade, compaixão e consciência. Nós
nos prosternávamos todas as vezes que íamos treinar com o
mestre.
Eu estava no mosteiro havia umas duas semanas quando um dos
monges mais antigos me chamou para me dar instruções. "Neste
mosteiro nós não nos prosternamos apenas para entrar na sala de
meditação ou para receber ensinamentos do mestre, mas também
diante dos superiores." Como único ocidental do mosteiro, eu queria
agir corretamente. Perguntei, então, quem eram os meus
superiores. "Segundo a tradição, todos os que se ordenaram antes
de você são seus superiores." Levei um momento para perceber
que ele se referia a todo mundo.
Assim, comecei a me prosternar diante de todos. Às vezes estava
certo: havia sábios na comunidade. Mas às vezes era ridículo.
Encontrava um monge de vinte e um anos, cheio de arrogância, que
estava ali só para agradar os pais ou para comer melhor do que em
casa. E tinha que me prosternar porque eu havia sido ordenado
uma semana depois dele. Ou tinha que me prosternar diante de um
velho agricultor babaca que estava no mosteiro para gozar a
aposentadoria e vivia mascando folhas de bétele, sem nunca ter
meditado um único dia na vida. Era duro me prosternar diante
desses companheiros da floresta como se eles fossem grandes
mestres.
Mas lá estava eu me prosternando e, por estar em conflito,
procurava um jeito de fazer a prática valer a pena. Assim, enquanto
me preparava para mais um dia de prosternações, comecei a
buscar méritos em cada um de meus "superiores". E assim passei a
me prosternar diante das rugas no rosto do velho agricultor, das
dificuldades que ele tinha enfrentado e vencido; diante da vitalidade
e da jovialidade dos jovens monges, das incríveis possibilidades
que ainda tinham pela frente.
Comecei a gostar de me prosternar. Eu me prosternava diante de
meus superiores, antes de entrar e antes de sair do salão de
refeições. Eu me prosternava antes de entrar na minha cabana na
floresta e antes do banho, diante do poço. Depois de algum tempo,
a prosternação começou a fazer parte de mim. Eu me prosternava
diante de tudo.
É o espírito da prosternação que informa este livro. A verdadeira
tarefa da vida espiritual não está em locais distantes ou em estados
incomuns de consciência: está aqui, no presente. Ela exige espírito
aberto para saudar com coração sábio, respeitoso e gentil tudo o
que a vida nos dá. Podemos nos prosternar diante da beleza, do
sofrimento, da nossa confusão, do nosso medo e das injustiças do
mundo. Reverenciar assim a verdade é o caminho para a liberdade.
Prosternar-se diante do que é e não de algum ideal não é fácil mas,
por mais difícil que seja, é uma das práticas mais proveitosas e
mais nobres.
Prosternar-se diante das dores e traições da vida é aceitá-Ias.
Através desse gesto profundo, descobrimos que tudo na vida vale a
pena. Aprendendo a nos prosternar, descobrimos que temos no
coração mais liberdade e compaixão do que imaginávamos.
O poeta persa Rumi diz o seguinte:

Ser um ser humano é uma casa de hóspedes.


Todas as manhãs chega alguém.
É uma alegria que chega, uma depressão, uma mesquinharia,
um dar-se conta momentâneo:
visitas inesperadas.
Dê as boas-vindas a todos,
Mesmo quando um bando de tristezas
carrega toda a mobília
da sua casa.
Trate cada hóspede com reverência,
Talvez ele abra espaço
para uma nova alegria.
o pensamento sombrio, a vergonha, a malícia,
receba-os na porta sorrindo,
e convide-os para entrar.
Agradeça a quem quer que chegue,
porque cada um foi enviado
como um guia do além.
INTRODUÇÃO:
ALGUMAS PERGUNTAS HONESTAS

Quando o pássaro e o livro discordam,


acredite sempre no pássaro.
JAMES AUDUBON

A iluminação existe. É possível despertar. Liberdade e alegria


irrestritas, unidade com o Divino, despertar para um estado de
graça eterna - essas experiências são mais comuns e estão mais
perto do que você pensa. Mas tem uma coisa: elas não duram.
Descobertas e despertares revelam a realidade do mundo e trazem
a transformação, mas passam.
Você já deve ter lido histórias tradicionais de sábios iluminados da
Ásia ou de santos e místicos imaculados do Ocidente. Mas essas
narrativas ideais enganam. Na verdade, não existe uma
aposentadoria iluminada depois do despertar do coração. As coisas
não acontecem assim.
Todos sabem que depois da lua-de-mel vem o casamento, que
depois da eleição vem a tarefa árdua de governar. Na vida espiritual
é a mesma coisa: depois do êxtase, vem a roupa suja para lavar.
A maioria dos relatos espirituais termina com a iluminação. Mas e
que tal perguntar o que acontece depois? O que acontece quando o
mestre zen volta para casa, para junto da mulher e dos filhos? O
que acontece quando o místico cristão vai fazer compras? Como é
a vida depois do êxtase? Como viver a compreensão com coração
pleno?
Para aprofundar essas questões, falei com pessoas que dedicaram
vinte e cinco, trinta e cinco, quarenta anos a um caminho espiritual,
transformando-se nos mestres de meditação, abades, lamas e
professores da nossa geração. Essas pessoas me falaram do
começo de sua jornada e do seu despertar, das lições dos anos que
se seguiram, do que fizeram para seguir o verdadeiro caminho de
compaixão nesta terra.
O relato que se segue é de um mestre zen ocidental falando de seu
satori (experiência de iluminação) e do que aconteceu depois. Em
geral, relatos assim não são publicados porque podem passar a
falsa noção de que o despertar é reservado a pessoas especiais. A
experiência é especial, mas não é exclusiva de pessoas especiais.
Ela acontece com qualquer um que consiga se soltar, abrir o
coração e sentir o mundo de maneira radicalmente nova.
Para esse professor, o despertar veio aos cinqüenta e oito anos,
depois de praticar muitos anos com vários mestres de meditação,
cuidando ao mesmo tempo da carreira e da família.

"Para mim, a semana de meditação no sesshin zen era sempre


muito intensa. Eu sentia uma profunda liberação emocional e era
assolado por fortes lembranças - como num parto, eu tinha dores e
uma catarse física. E, depois de voltar para casa, eu continuava
assim por mais algumas semanas.
Esse sesshin começou do mesmo jeito. Nos primeiros dias, lutei
com fortes emoções e com a liberação das energias que percorriam
o meu corpo. O mestre ficava sentado como uma rocha e sua
presença me estabilizava como um leme em escuros mares
turbulentos. Eu sentia como se estivesse morrendo ou me
despedaçando e ele me instava a mergulhar no meu koan, a me
abandonar a ele. Eu não sabia mais onde começava ou terminava a
minha vida.
Então, comecei a sentir uma surpreendente doçura. Vi três
vidoeiros pela janela e era como se eles fossem a minha família. Eu
me senti passando a mão na casca lisa dos seus troncos e me
transformei na árvore me tocando. Minha meditação se encheu de
luz.
Eu já havia sentido essa felicidade em alguns retiros - ondas de
bem-aventurança depois das dores do corpo se resolverem - mas
agora era diferente. A luta cessou e minha mente ficou luminosa,
radiante, vasta como o céu e cheia de um delicioso aroma de
liberdade, de despertar. Eu me senti como o Buda sentado sem
esforço hora após hora, sustentado e protegido pelo universo
inteiro. Eu estava num mundo de paz ininterrupta e de alegria
indescritível.
As grandes verdades da vida estavam claras: vi que a avidez é a
causa do sofrimento; que quando nos guiamos pela noção estreita
do eu, esse falso ego, corremos em círculos como um proprietário
insignificante, brigando por nada. Eliminei todas as dores
desnecessárias. Depois eu não conseguia parar de rir e de sorrir. Vi
que tudo é perfeito, que cada momento é uma iluminação para
quem está aberto para ela.
Repousei nessa paz eterna por vários dias, o corpo flutuando, a
mente vazia. Eu acordava e ondas de amor e de energia feliz
inundavam a minha consciência. Então, vieram revelações e
descobertas, uma depois da outra. Vi que a corrente da vida se
desdobra em padrões que criamos como fluxos do karma. Vi a idéia
de renúncia espiritual como uma piada que nos faz desistir dos
prazeres e da vida. Na verdade, o Nirvana é aberto e alegre, é
muito mais do que qualquer um dos pequenos prazeres que
buscamos. Você não renuncia ao mundo, você conquista o mundo."
Em geral, a descrição de um despertar magnífico como esse
aparece no fim das histórias espirituais. A iluminação vem, a pessoa
entra na corrente dos seres sábios e tudo se segue naturalmente
depois disso. Ficamos com a impressão de que, uma vez desperta,
a pessoa vive feliz para sempre. Mas que tal ler os outros capítulos
dessa história?

"Alguns meses depois desse êxtase, entrei em depressão e fui


vítima de graves traições no trabalho. Tinha problemas constantes
com meus filhos e com a minha família. Mas continuava sendo um
bom professor e dava palestras inspiradoras. Mas, se você falasse
com a minha mulher, ela lhe diria que eu estava cada vez mais
impaciente e mal-humorado. Eu sabia que a visão espiritual era a
verdade e que ela continuava ali, mas via também que muitas
coisas não tinham mudado. Para ser honesto, minha mente e minha
personalidade continuavam iguais, assim como as minhas
neuroses. Era ainda pior, pois agora eu via com mais clareza.
Apesar das revelações cósmicas, eu ainda precisava de terapia
para entender os erros e as lições do cotidiano de uma vida
humana."

O que aprendemos com um relato de despertar como esse e com a


história que se segue? Diante do espelho que ele nos oferece, nós
nos compreendemos melhor. As tradições sagradas são
transmitidas em grande parte por histórias assim: contamos e
recontamos as histórias de Noé, de Bal Shem Tov, de Maomé, de
Santa Teresa, de Milarepa, de Krishna e de Arjuna, a busca do
Buda e as parábolas de Jesus. Nos tempos mo demos, ouvimos a
história da vida de Thomas Merton, de Suzuky Roshi, de Anue
Frank e de Martin Luther King Jr. Através da vida espiritual dos
outros, enxergamos as nossas possibilidades e aprendemos a viver
com sabedoria.
Observar as pessoas também faz parte da minha linhagem. Meu
professor, Ajahn Chah, sabia que, pelo caráter, é possível descobrir
o sofrimento e a liberação de cada um. Assim, ele observava os que
vinham vê-lo como um relojoeiro abrindo o estojo de um relógio.
Por sorte, como "profissional" do espírito, as circunstâncias me
puseram em contato com muitas figuras da moderna vida espiritual.
Vivi e trabalhei com freiras santas e abades sábios de mosteiros
cristãos, com místicos judeus, com mestres budistas, hindus e sufis
e com figuras importantes das comunidades junguiana e
transpessoal. O que é possível observar e ouvir em tal companhia
revela muito sobre o desenvolvimento da moderna jornada espiritual
e sobre as dificuldades que até as pessoas mais dedicadas
encontram. Eis um exemplo do que é possível aprender com essas
pessoas.
Venho organizando, desde o início dos anos noventa, uma
sucessão de reuniões para professores budistas das principais
escolas. Uma dessas séries teve como anfitrião o Dalai Lama no
palácio Dharamsala. Professores ocidentais e asiáticos se reuniram
para discutir a utilidade das práticas budistas no mundo moderno e
também as dificuldades que estávamos enfrentando. Era um salão
lotado de mestres zen, lamas e monges cheios de bondade e
compaixão, cujo trabalho e sabedoria tinham beneficiado milhares
de pessoas. Falamos dos sucessos e da alegria de ter participado
deles. Mas, quando chegou o momento de falar abertamente dos
nossos problemas, ficou claro que não havia só harmonia na vida
espiritual. Ela refletia o esforço coletivo e também as neuroses
individuais. Até mesmo em companhia tão augusta e dedicada,
havia áreas de preconceito e cegueira.
Sylvia Wetzel, uma professora budista da Alemanha, falou da
dificuldade que a comunidade budista tem para incluir as mulheres
e a sabedoria feminina. Ela apontou os budas dourados e as
excelentes pinturas tibetanas nas paredes da sala, observando que
só homens eram retratados. Então, pediu que o Dalai Lama e os
outros lamas e mestres fechassem os olhos e meditassem com ela,
imaginando que estavam entrando na sala, que tinha sofrido uma
transformação: eles se prosternavam agora diante da décima quarta
encarnação feminina do Dalai Lama. Ela estava cercada de
conselheiras, mulheres como sempre. Nas paredes, imagens de
budas e santos, todos em corpo de mulher. Não se ouviu uma única
palavra sobre a inferioridade dos homens, mas eles foram
convidados a sentar-se em silêncio no fundo da sala e a ajudar na
cozinha depois da reunião. No fim da meditação, todos os homens
da sala abriram os olhos, levemente perplexos.
Então, Ani Tenzin Palmo, uma freira tibetana de origem inglesa que
treinou durante vinte anos, doze dos quais em cavernas da fronteira
tibetana, falou em voz suave, descrevendo o anseio espiritual e as
incríveis privações de mulheres devotas que tinham permissão para
viver apenas na periferia dos mosteiros, muitas vezes sem
orientação nem comida. Quando ela terminou, o Dalai Lama pôs a
cabeça entre as mãos e chorou. Depois, prometeu fazer de tudo
para dar às mulheres uma posição de igualdade em sua
comunidade. Mas, nos anos que se seguiram, muitos professores
dos países budistas continuaram a resistir e a lutar contra essas
mudanças, às vezes em nome da tradição, às vezes por causa de
condicionamentos psicológicos e culturais. Na reunião com o Dalai
Lama, um abade zen contou que tinha tido um mau relacionamento
com a mãe, o que o impedia de orientar as monjas do seu templo.
Outros confessaram as próprias dificuldades nessa área. A
conversa passou para outras formas de cegueira: sectarismo e lutas
pelo poder entre comunidades e mestres budistas; o isolamento e a
solidão da função do professor; professores que usavam o poder, o
dinheiro e a sexualidade para explorar alunos. Em discussões
informais, falamos também de problemas mais pessoais,
Professores falaram de divórcios dolorosos, de momentos de medo
e depressão, de conflitos com a família e com outros membros da
comunidade. Professores de meditação falaram de stress e doença,
de filhos adolescentes que ameaçavam se suicidar ou passar a
noite fora e agrediam os pais dizendo: "Você é um mestre zen, e
olha só como é apegado às coisas." Todos nós temos problemas
inerentes ao corpo, à personalidade, à família e à comunidade.
Enxergamos assim a nossa humanidade comum.
Felizmente, falamos também das dádivas maravilhosas da prática
espiritual, da alegria e da liberdade que levamos conosco em meio
às circunstâncias difíceis e instáveis do mundo.
A novidade foi a honestidade com que falamos. Nossa intenção foi
inspirada pela humildade e pela compaixão do próprio Dalai Lama,
sempre com vontade de aprender, até mesmo com seus erros.
Vimos que era possível aprender uns com os outros, evitar a
repetição de erros dolorosos, permitir que nossos ideais incluíssem
o que há de humano em nós. Foi como se o florescimento da
sabedoria individual ficasse mais vivo ao se tomar coletivo.
Não é só nas tradições orientais que é difícil encontrar uma
expressão para a vida espiritual nas circunstâncias modernas. Uma
madre superiora, abadessa de um antigo convento católico no
Maine, viveu no silêncio da clausura desde os dezessete anos.
Então, nos anos sessenta, no espírito da reforma e graças ao Papa
João XXIll, a missa deixou de ser rezada em latim e o silêncio das
ordens monásticas deixou de ser tão rigoroso. Essas mudanças
foram duras para quem vivia há décadas na segurança do silêncio
sagrado, com os dias tomados pela prece e pela reflexão interior.
Essas pessoas não sabiam conversar e, quando o faziam, o conflito
era surpreendente. Ao lado do amor, surgiam críticas, medos,
ressentimentos e mesquinharias que estavam escondidos no
recipiente de prece e silêncio. As irmãs se viram forçadas a tocar a
vida espiritual em voz alta, sem nenhum treinamento para falar com
sabedoria. Muitas deixaram o convento. Levou alguns anos para a
comunidade encontrar nas palavras humanas a graça que antes
sentia no silêncio. Mas ambos são necessários na vida espiritual.
Assim como o respiração entra e sai, ela deve integrar
conhecimento interior e expressão externa. Não basta ter contato
com o despertar. Temos que descobrir como viver totalmente a sua
visão.
A iluminação perfeita aparece em muitos textos, mas não entre os
mestres e professores ocidentais que eu conheço. Momentos de
grande sabedoria, profunda compaixão e verdadeiro conhecimento
da liberdade se alternam com períodos de medo, confusão, neurose
e luta. A maioria dos professores admite prontamente essa verdade.
Mas, infelizmente, alguns ocidentais alegam ter atingido a perfeição
e a liberdade sem sombras. Em suas comunidades, as coisas são
ainda piores: com essa inflação do eu, criaram comunidades
perniciosas e centralizadas no poder.
Os mais sábios expressam mais humildade. Abades como o Padre
Thomas Keating do Mosteiro Snowmass e Norman Fischer do San
Francisco Zen Center, por exemplo, costumam dizer: "Estou
aprendendo." Ou: "Não sei." No espírito de Gandhi, de Madre
Teresa, de Dorothy Day e do Dalai Lama, eles sabem que não é
deles que nasce a perfeição espiritual, mas da paciência e do amor
que crescem através da sabedoria de toda a comunidade; que
liberdade e realização espiritual incluem a compaixão por tudo o
que surge nesta forma humana.
Cabe a pergunta: e os velhos mestres da Ásia? Será que os
mestres zen e os lamas ocidentais não são jovens demais e pouco
desenvolvidos para representar a verdadeira iluminação? Muitos
professores ocidentais diriam que, no seu caso, isso é verdade. Lá
longe pode haver alguém que se encaixe na imagem da perfeita
iluminação, mas essa aparência pode ser o resultado de uma
confusão entre o nível arquetípico e o nível humano. Um ditado
tibetano diz que devemos viver a uma distância de pelo menos três
vales do nosso guru. Como entre esses vales há montanhas
enormes, ver o professor significa uma dura viagem de vários dias.
Mas é só a essa distância que a perfeição do guru nos inspira.
Quando disse ao abade Ajahn Chah, considerado santo por milhões
de pessoas, que nem sempre ele agia como um iluminado, ele riu e
disse: "Ainda bem, pois do contrário você imaginaria que é possível
encontrar o Buda fora de você. E não é onde ele está."
Na verdade, alguns dos mais respeitados mestres asiáticos
disseram que ainda são alunos, que ainda aprendem com seus
erros. Alguns, como o Mestre Zen Shunryu Suzuki, nem mesmo se
dizem iluminados. Dizia ele: "Estritamente falando, não há pessoas
iluminadas; há apenas atividade iluminada." Essa notável afirmação
nos diz que ninguém detém a iluminação. Ela simplesmente existe
em momentos de liberdade.
Pir Vilayat Kahn, o líder de setenta e cinco anos da Ordem Sufi do
Ocidente, dá a sua opinião:

"Se você trouxesse para a América os grandes professores que


conheci na Índia e na Ásia, se lhes desse uma casa, dois carros,
uma mulher, três filhos, um emprego, seguro e impostos... todos
eles se veriam em grandes dificuldades."

Para que seja autêntica, a visão da vida espiritual que temos no


começo, seja ela qual for, deve ser realizada aqui e agora, no lugar
em que vivemos. Como é a jornada de um ocidental em meio a uma
sociedade complexa? Como os que devotaram vinte e cinco, trinta,
quarenta anos à prática espiritual aprenderam a viver? Foram essas
perguntas que comecei a fazer para mestres zen, lamas, rabinos,
abades, freiras, yogues e professores ocidentais - e para seus
alunos mais avançados.
Para compreender a vida espiritual, comecei do começo. Perguntei
o que nos atrai para a vida do espírito e que dificuldades temos que
superar em nosso caminho. Perguntei que dádivas e despertares
alcançaram e o que dá para saber sobre iluminação. Perguntei
então o que acontece depois do êxtase, à medida que
amadurecemos nos ciclos da vida espiritual. Existe uma sabedoria
que inclua o êxtase e a roupa suja?
PRIMEIRA PARTE

PREPARAÇÃO PARA O ÊXTASE


1

BABA YAGA E O ANSEIO SAGRADO

No momento em que ouvi minha primeira história,


comecei a procurar por você...
RUMI

A meio caminho na estrada da vida eu despertei


e me vi sozinho num bosque escuro.
DANTE ALIGUIERI

o que leva uma pessoa à vida espiritual? Até onde a memória


alcança, cada um de nós sente um certo mistério no fato de estar
vivo. Diante de um bebê que acabou de nascer ou quando a morte
de uma pessoa querida passa muito perto de nós, o mistério fica
palpável. Lá está ele quando vemos um entardecer radiante ou
quando sentimos a quietude silenciosa de um momento nos tempos
fluidos de agora. Entrar em contato com o sagrado é talvez a nossa
mais profunda necessidade.
O despertar nos chama de mil maneiras. Como canta o poeta Rumi:
"As uvas querem se transformar em vinho." Existe uma atração pela
totalidade, pela vida plena, mesmo quando já esquecemos. Os
hindus dizem que a criança no útero canta: "Que eu não esqueça
quem sou." Mas que logo depois de nascer sua canção é: 'Já
esqueci."
Mas, assim como há uma viagem de ida, há uma viagem de volta.
Em todo o mundo há histórias dessa viagem; há imagens do desejo
de despertar, dos passos ao longo do caminho que todos seguem,
das vozes que chamam, da intensidade da iniciação por que todos
passam, da coragem que é necessária. No coração de cada um há
a sinceridade original do buscador, que admite que é pequeno o
nosso conhecimento do universo, que é grande o desconhecido.
A honestidade que a busca espiritual exige de nós é ilustrada nos
contos russos de iniciação sobre Baba Yaga. Baba Yaga é uma
velha de aparência selvagem e maltrapilha que mora no meio da
floresta, está sempre mexendo o caldeirão e sabe de tudo. Ela
assusta, pois quem a procura é obrigado a entrar na escuridão, a
fazer perguntas perigosas, a deixar o mundo da lógica e do
conforto.
Quando, empenhado na busca, o primeiro jovem chegou tremendo
à porta de sua cabana, Baba Yaga perguntou: "Você está aqui por
conta própria ou foi mandado por alguém?" Como a família do
jovem apoiava sua busca, ele respondeu: "Fui mandado pelo meu
pai." No mesmo instante, Baba Yaga o jogou no caldeirão e o
cozinhou. A segunda pessoa a procurá-Ia, uma moça, viu o fogo
crepitando e ouviu a risada de Baba Yaga. Novamente, Baba Yaga
perguntou: "Você veio por conta própria ou foi mandada por
alguém?" Essa jovem tinha ido para o bosque sozinha em busca do
que encontrasse. "Vim por conta própria", respondeu ela. Baba
Yaga a atirou no caldeirão e a cozinhou também.
Mais tarde, um terceiro visitante, uma moça profundamente confusa
diante do mundo, chegou à casa de Baba Yaga lá no meio da
floresta. Ela viu a fumaça e percebeu o perigo. Baba Yaga a
encarou: "Você veio aqui por conta própria ou foi mandada por
outra pessoa?" A jovem respondeu com sinceridade: "Em parte vim
por conta própria, mas em parte vim por causa de outras pessoas.
Em parte vim porque você está aqui, por causa da floresta e por
causa de alguma outra coisa que esqueci. E em parte nem sei por
que vim." Baba Yaga ficou olhando para ela por um momento e
disse: "Você serve." E a convidou para entrar na cabana.

DENTRO DO BOSQUE

Não conhecemos todas as razões que nos impelem para a jornada


espiritual, mas de alguma forma a vida nos obriga a ir. Alguma coisa
em nós sabe que não estamos aqui só para dar duro no trabalho.
Há uma atração misteriosa que nos dá vontade de lembrar. O que
nos leva a sair de casa para entrar na escura floresta de Baba Yaga
pode ser uma combinação de acontecimentos. Pode ser um anseio
vindo da infância ou um encontro "acidental" com uma pessoa ou
livro espiritual. Às vezes, alguma coisa dentro de nós desperta
numa viagem para uma cultura estrangeira, quando o mundo
exótico de ritmos, fragrâncias e cores nos catapulta para fora do
sentimento corriqueiro de realidade. Às vezes basta caminhar pelas
montanhas azuis-verdes ou ouvir um coral cantando uma música
tão bonita que parece inspirada pelos deuses. Às vezes é preciso,
ao lado da cama de um moribundo, presenciar a misteriosa
transformação da "pessoa" que desaparece da existência, deixando
apenas um saco de carne sem vida à espera do funeral. Mil portões
se abrem para o espírito. Seja no brilho da beleza, seja no bosque
escuro da confusão e da dor, uma força real como a gravidade nos
traz de volta ao coração. Isso acontece
com todos nós.

OS MENSAGEIROS DO SOFRIMENTO

A passagem mais freqüente para o sagrado é o sofrimento e a


insatisfação. Inúmeras jornadas espirituais começam num encontro
com as dificuldades da vida. Um começo comum entre os mestres
ocidentais é o sofrimento da vida em família: pais alcoólatras, maus-
tratos, doenças graves, morte de um parente querido, frieza e
ausência dos pais e hostilidade entre os membros da família são
situações que aparecem em muitas histórias. Para um mestre de
meditação, sábio e respeitado, a jornada começou com isolamento
e separação.

"Quando eu era criança, havia muita Infelicidade na nossa família.


Todos gritavam e eu sentia que aquele não era o meu lugar: era
como se eu fosse um alienígena. Então, por volta dos nove anos,
comecei a me interessar por discos voadores. Durante vários anos,
fantasiei que um OVNI ia me pegar, que eu seria abduzido e levado
de volta para outro planeta. Eu queria muito que isso acontecesse
de verdade, para me livrar da alienação e da solidão. Acho que isso
foi o começo de minhas quatro décadas de busca espiritual."

Todos sabem que o coração precisa de amparo espiritual em


momentos de dificuldade. "Respeite essa necessidade", diz Rumi.
"Seja grato a quem o faz voltar, seja qual for o motivo, ao espírito.
Preocupe-se com quem lhe oferece um delicioso conforto que o
afasta da prece."
Os trinta anos de trabalho interior de outro professor espiritual, que
é também médico e agente de cura, começaram com tristezas de
família.

"Meus pais brigavam muito e depois se divorciaram em clima de


violência. Fui mandado para um internato horroroso. Viver com a
minha família era tão doloroso que me tomei solitário, magoado,
inquieto e descontente com tudo. Eu não sabia viver.
Um dia, vi um homem com manto laranja e cabeça raspada
cantando 'Hare Krishna' nos degraus de uma praça. Ingenuamente,
pensei que se tratava de algum sábio indiano. Ele me falou de
karma, reencarnação, meditação e da possibilidade de liberdade.
Senti no corpo a verdade daquilo tudo. Fiquei exultante, telefonei
para minha mãe e disse: 'Vou sair da escola. Quero ser um monge
Hare Krishna.' Ela ficou histérica, mas acabamos escolhendo um
lugar para eu aprender meditação. E assim eu me abri para um
outro mundo. Aprendi a esquecer o passado e a ter compaixão por
mim mesmo. A meditação salvou a minha vida."
A crise é um convite para o espírito, não apenas na infância, mas
sempre que a vida passa pelo sofrimento. Para muitos mestres, o
portão para o espiritual se abriu quando a perda ou o desespero, o
sofrimento ou a confusão os levou a buscar consolo para o coração,
a buscar uma totalidade escondida. A longa viagem de um
professor começou já na vida adulta, em outro país.

"Eu estava em Hong Kong. Meu casamento ia mal, fazia dois anos
que minha filha mais nova tinha morri do ainda bebê e, no geral, eu
não estava feliz. De volta à América, vi um anúncio de aulas de tai
chi na Stanford Business School. Eu me inscrevi e a prática
começou a acalmar o meu corpo, mas o meu coração continuava
triste e confuso. Eu me separei da minha mulher e experimentei
várias formas de meditação para me acalmar. Então, uma amiga
me apresentou ao seu professor de meditação, que me convidou
para um retiro. A sala era formal e silenciosa e ficamos sentados
por várias horas. Na segunda manhã, eu de repente me vi jogando
uma pá de terra vermelha no túmulo da minha filha. Vieram as
lágrimas e eu soltei um gemido. Aos sussurros, os outros alunos me
mandaram calar a boca, mas o mestre pediu que ficassem quietos e
me abraçou. Eu chorei durante a manhã inteira, cheio de dor. Foi
assim que começou, Agora, trinta anos depois, sou eu que abraço
os que choram."

O encontro com o sofrimento que leva à procura de uma resposta é


uma história universal. O Príncipe Sidarta, o futuro Buda, vivia
isolado em belos palácios, protegido de todos os problemas pelo
pai. Finalmente, quis sair para ver o mundo. Percorrendo o reino de
carruagem, na companhia do cocheiro Channa, viu quatro cenas
que o chocaram profundamente. Primeiro viu um velho curvado e
frágil, andando com dificuldade. Depois viu um homem gravemente
doente, atendido pelos amigos. Depois viu um cadáver. A cada vez,
perguntou ao cocheiro: "Com quem essas coisas acontecem?" E
todas as vezes Channa respondeu: "Com todo mundo, senhor."
Essas visões são chamadas de "Mensageiros Celestiais", pois
assim como despertaram o Buda, elas nos fazem lembrar de buscar
a liberação, de buscar a liberdade espiritual nesta vida.
Você se lembra da primeira vez que viu um cadáver ou uma pessoa
muito doente? Esse primeiro encontro com a doença e a morte
provocou um choque em todo o ser de Sidarta, Ele se perguntou:
"Qual a melhor maneira de viver numa vida assolada pela doença é
pela morte?" O quarto mensageiro veio na forma de um monge que
ele viu na orla da floresta, um eremita que tinha devotado uma vida
de Simplicidade à busca de um fim para as dores do mundo. Ao vê-
lo, o Buda percebeu que ele também devia seguir esse caminho:
enfrentar diretamente as dores da vida para encontrar um caminho
além do alcance dessas dores.
Como um Sidarta moderno, uma professora conta que, viajando
pelas cidades e pelo campo, foi chamada para o seu caminho.

"Depois da faculdade, trabalhei como assistente social na Filadélfia.


Tentei ajudar famílias desesperadas, que viviam sem trabalho, com
montes de filhos, em casas miseráveis e às voltas com o problema
das drogas. Às vezes eu chorava quando chegava em casa. Então,
fui trabalhar com um amigo na América Central - El Salvador e
Guatemala. Lá, os camponeses
pareciam viver num oceano de problemas. Viviam ameaçados por
incursões militares e o que ganhavam com o trabalho só dava para
comprar comida e remédios para os filhos. Foi muito difícil. Quando
voltei, entrei para o convento e lá fiquei durante quatro anos, não
para fugir, mas para me encontrar, para descobrir o que fazer para
ajudar este mundo."

De uma forma ou de outra, os mensageiros celestes vêm para


todos nós, convidando-nos a buscar a totalidade que falta na nossa
vida. Eles não assumem apenas a forma das nossas próprias
dificuldades, mas também das dores do mundo, cujo efeito é
poderoso: um simples noticiário pode abrir o nosso coração. As
enchentes perenes de Bangladesh, a fome e a guerra na África, na
Europa e na Ásia, a crise ecológica no mundo inteiro, o racismo, a
pobreza, a violência das cidades - são esses os mensageiros. Eles
são um chamado. Assim como fizeram com o Buda, eles nos
convidam a despertar.

VOLTA À INOCÊNCIA

Por mais difícil que pareça, as forças que nos atraem para o bosque
têm outro lado. Uma beleza nos chama, uma totalidade que
sabemos que existe. Segundo os sufis, é "a voz do bem-amado".
Nascemos neste mundo com a canção nos ouvidos, mas é pela
ausência dela que em geral a conhecemos.
Vivendo sem uma iluminação do espírito, acabamos sentindo a
saudade profunda de uma criança perdida, uma saudade sutil,
como se soubéssemos que alguma coisa essencial está faltando,
alguma coisa que dança na orla da nossa visão, que está sempre
conosco, como o ar que só é lembrado quando o vento sopra. No
entanto, é esse espírito indefinível que nos ampara, que nos
alimenta o coração, que nos incita a buscar o que importa na vida.
Somos compelidos a voltar à nossa verdadeira natureza e ao nosso
coração, que é sábio e conhecedor.
Essa saudade sagrada pode surgir pela primeira vez na infância,
como aconteceu com o mestre zen de uma grande comunidade na
Europa.
"Quando criança, eu tinha experiências de deslumbramento e de
identidade com o mundo. Eu me identificava com as colinas que
pareciam dançar e com os rios entre elas. Um dia, eu me imaginei
como parte de uma forte tempestade de verão que varreu a cidade.
Aos doze anos, percebi como é incrível o jogo da vida, maior do que
tudo o que eu conhecia. Depois esquecia de tudo e ia jogar futebol
e brincar com os amigos até acontecer de novo outro momento de
ingênuo desabrochar. Tempos depois, na universidade, ouvi um
swami hindu falar sobre o mundo da natureza e do mistério.
Durante a palestra, ele chorou abertamente. Fiquei muito tocado,
como se estivesse ouvindo a voz de Jesus, e comecei a lembrar da
inocente ligação com a minha infância. Quem percebe o quanto
perdeu tem que sair em busca dos momentos em que o espírito
veio à vida pela primeira vez."

Com os anos, a sociedade prática e materialista costuma usurpar o


mistério original da infância. Entramos cedo na escola para
"crescer" e "ser uma pessoa séria": se não abandonamos logo a
inocência infantil, o mundo se encarrega de tirá-Ia de nós. Cem
anos atrás, no curso de engenharia da academia militar de West
Point, o pintor norte-americano James McNeill Whistler sentiu de
perto essa atitude. Certa vez, o professor mandou a classe fazer um
desenho de uma ponte e Whistler desenhou um arco de pedra
belamente detalhado, onde se viam crianças pescando. O tenente
encarregado do curso não gostou: "É um exercício militar. Tire
essas crianças da ponte." Whistler refez o desenho, agora com as
crianças pescando na beira do rio. Zangado, o tenente disse: "Eu
disse para tirar essas crianças do desenho." Assim, a última versão
de Whistler mostra o rio, a ponte e duas pequenas lápides na
margem.
Como disse o escritor existencialista Albert Camus:

A vida de um homem é apenas uma longa viagem pelos desvios da


arte para recapturar aqueles um ou dois momentos em que o seu
coração se abriu pela primeira vez.
Na tradição zen, essa jornada é descrita na história do boi sagrado.
Na Índia antiga, os bois simbolizavam as qualidades maravilhosas
que habitam todos os seres, que nos despertam para a descoberta
da nossa verdadeira natureza. A história zen sobre o pastor e o boi
começa com uma pintura feita em pergaminho que mostra um
homem vagando pela vegetação da montanha. A imagem é
chamada "Procurando o Boi". Atrás do homem há um labirinto de
estradas que se cruzam: são as velhas estradas de ambição e
medo, confusão e perda, exaltação e vergonha. Esse homem nem
se lembra mais dos rios e das paisagens da montanha. Mas no dia
em que lembra, parte em busca dos rastros do boi sagrado. Em seu
coração, ele sabe que, mesmo nas gargantas mais profundas e nas
montanhas mais altas, o boi não está perdido. Na beleza da
floresta, ela pára a fim de descansar. E, olhando para baixo, vê os
primeiros rastros.
Para uma professora de meditação, agora com sessenta anos, a
busca ao boi começou na meia-idade, depois de criar três filhos.

"Quando menina, vivia num ambiente intelectual em que não se


falava devida espiritual, com a exceção talvez do Natal. Meus pais
pareciam achar que estávamos acima dessa coisa de religião. Eu
tinha muita inveja das minhas amigas que iam à igreja. Com sete
anos, comecei a recortar dos cartões de Natal as imagens de Maria,
dos anjos e de Jesus. Eu as escondia no fundo de uma gaveta e fiz
ali um altar secreto. Eu as tirava da gaveta todos os domingos e
realizava o meu próprio serviço religioso.
Então, aos quarenta e três anos, viajando a negócios, tive uma
folga e fui visitar uma catedral famosa. Naquele espaço amplo e
frio, vi a luz do sol brilhando através do vidro colorido e um coral
começou a cantar cânticos gregorianos anunciando o serviço da
tarde. No altar havia uma linda imagem de Maria, igual às dos meus
cartões. Precisei me sentar. Eu me senti outra vez com sete anos,
os olhos cheios de lágrimas e o coração prestes a explodir. Aquela
pobre menina estava espiritualmente faminta. Na semana seguinte,
eu entrei num curso de yoga e depois me inscrevi num retiro para
meditar."
A PERGUNTA SAGRADA

Nas palavras de Joseph Campbell, a primeira visão do rastro do boi


é um chamado para despertar, um puxão interior. Com isso surge
uma questão sagrada, que é diferente para cada um de nós. Alguns
questionam a dor, outros querem saber qual a melhor maneira de
viver, outros se perguntam o que é importante ou qual é o propósito
da vida. Ou como é possível amar, quem somos, como fazer para
alcançar a liberdade. Em meio à correria da vida, alguns se
perguntam: "Por que tanta pressa?"
Alguns dos mestres entrevistados recorreram à filosofia para
responder às suas perguntas; outros tentaram a avenida da poesia
e das artes. Essas questões sagradas são a raiz de muitas poesias.
Yeats escreve: "Retórica é a conversa que você tem com o outro.
Poesia é a conversa consigo mesmo." O chamado para a viagem é
como um poema pela metade, à espera da conclusão. Kabir, o
poeta místico indiano, pergunta: "Você pode me dizer quem
construiu esta nossa casa? E para onde você vai com tanta pressa
antes da morte? Você consegue encontrar o que realmente tem
valor neste mundo?"
Seja qual for a fonte desse questionar profundo, temos que ir para
onde ele conduz. Uma professora budista estava cheia de
perguntas quando terminou o curso de psicologia clínica.
"Terminei o doutoramento em psicologia e comecei a trabalhar
numa unidade para adolescentes e em prevenção do suicídio.
Durante anos acreditei que a psicologia tinha todas as respostas
que eu procurava. Mas quando comecei a trabalhar minha fé se
abalou. Diante do vasto sofrimento sem tréguas que conheci, era
ridículo pensar que a psicologia me daria todas as respostas. Ao
que eu poderia recorrer para compreender esta vida?
Um dia, em 1972, fui visitar uma amiga em Berkeley. Andando na
rua, ela encontrou um estrangeiro e começou a conversar com ele.
Ela me disse depois que aquele homem alegre e brilhante era um
lama tibetano e me convidou para assistir à sua palestra sobre
sonhos. Eu não estava entendendo nada, mas num dado momento
uma mulher fez uma pergunta sobre compaixão e a resposta dele
fez com que compaixão deixasse de ser apenas uma palavra para
mim. A resposta trazia uma manifestação de compaixão que tocou
o meu coração. Fiquei atordoada. Até aquele momento, compaixão
era para mim uma bela palavra presbiteriana sem realidade: uma
bela idéia. Agora era uma força viva. Fiquei muito intrigada,
querendo saber o que havia acontecido. Foi isso que me abriu a
porta, espiritual."

Uma mulher de negócios de Chicago, criada numa família muito


unida, vivia uma vida tradicional. Mas, sentindo que o seu sucesso
era difícil e vazio, ela começou a questionar aquilo tudo.

"Eu era a filha do meio de uma família com cinco filhos - e todos se
amavam. Eu ia à missa todos os dias e freqüentava uma escola
católica só para meninas. Rezava com fervor. Oferecia coisas às
almas do purgatório, fazia vários rituais inofensivos para não
esquecer de Jesus e de meu amor por ele. Então eu me casei.
Eram os tumultuados anos sessenta e meu casamento não durou
muito. Vivendo uma vida maior, mais livre e mais assustadora do
que a que eu conhecia, conclui ao mesmo tempo o curso de
administração de empresas em Chicago e uma terapia de vários
anos. Meus trinta anos foram um inferno... lutando contra uma
depressão profunda e prolongada, sem saber quem eu era e o que
esperar da vida. Eu trabalhava dia e noite e, em dez anos, fui a
primeira mulher a se tomar vice-presidente da companhia, numa
cerimônia no salão de festas do Carlton Hotel. No começo, esse
sucesso me subiu à cabeça - e compensou outras perdas. Mas com
o tempo o encanto acabou e minha vida começou a parecer
extremamente egoísta. Vendo que os ricos ficavam cada vez mais
ricos e que os pobres desciam cada vez mais na escala social, eu
percebi que fazia parte do problema - e nem mesmo estava me
divertindo.
Então, dois dos meus amigos mais próximos morreram. Minha mãe
seria a próxima. Pedi demissão da empresa para cuidar dela.
Ajudar meus pais a superar o choque e a aceitar a situação foi a
tarefa mais gratificante da minha vida. Eu me tomei voluntária num
asilo e comecei a meditar.
Enfrentar pela primeira vez o persistente demônio do vazio foi como
voltar para casa. Parece mentira, mas agora eu me sinto mais eu
quando estou sentada em silêncio, ouvindo. Reencontrei meu
coração depois de todos esses anos e, com a ajuda de meus
amigos, a coragem de segui-Ia."

CHAMADOS DO ALÉM

Às vezes, o desabrochar da mente e do coração é como um


chamado dos deuses, um empurrão que não vem da vida comum. É
como se forças desconhecidas nos obrigassem a entrar na floresta
à procura de Baba Yaga. O poema de Rumi sobre a casa de
hóspedes, citado antes, nos aconselha a agradecer a quem quer
que chegue, "porque cada um foi enviado como um guia do além".
O choque das experiências de quase-morte levou milhares de
norte-americanos a se abrir para o espírito. Em Closer to the Light,
o medico Melvin Morse documenta experiências de quase-morte
vividas por crianças. Uma dessas crianças, ao sair do estado de
coma depois de quase ter se afogado, falou ao médico de uma
figura dourada, um anjo, que a tirou da água escura e a levou por
um túnel onde ela encontrou o avô, que tinha morrido anos antes, e
depois o Pai do Céu. Em todos esses relatos, as crianças contam
que encontraram a "luz que faz todos nós" e a "luz onde tudo é
bom". Dizem também: "Mais nada me dá medo."
Um mestre sufi fala do acidente de motocicleta que sofreu aos
dezenove anos.

"Eu estava em estado crítico, com ossos quebrados e lesões


internas. Quando minha mente clareou, lembrei que, por um
segundo depois do impacto, eu fiquei olhando para baixo, vendo de
cima o meu corpo e a rua. Eu enxergava, mas meu ser era
completamente não-físico. Estava em paz, aliviado. Eu sabia que
tinha uma escolha a fazer: ou voltava para o meu corpo ou me
entregava àquela maravilhosa escuridão. Mas quando olhei para a
cena lá embaixo, nasceu um sentimento muito forte de amor por
aquele corpo e pela vida. O amor e a alegria me fizeram voltar.
Soube depois que fiquei rindo e chorando na ambulância. Senti uma
liberdade que estava além do físico, uma felicidade intensa que
motiva a minha vida espiritual há trinta e cinco anos. Eu amo esta
realidade e segui o seu chamado."

Cada chamado do além nos convida a sair da visão corriqueira que


temos do mundo. Para uma professora de yoga kundalini, o
chamado veio durante os trabalhos de parto.
"Minha respiração foi ficando cada vez mais rápida. Meu corpo
começou a vibrar entre as contrações e se encheu de luz radiante.
Não apenas a pélvis, mas o coração, a cabeça, cada parte de mim
queria se abrir. Eu me senti como o meu bebê e estava me
expandindo, contendo toda a energia do mundo. Mais tarde, meu
médico disse que eu o assustei. Ele tentou me dar um tranqüilizante
para me acalmar. Meus olhos estavam arregalados de espanto.
Mas a partir desse momento eu quis trazer essa energia para a
minha vida."
O mundo cientifico e materialista da nossa cultura tenta esconder
de nós a vasta fonte da vida, mas não pode negá-Ia. Muitas e
muitas vezes ouvimos histórias, grandes e pequenas, do coração,
do espírito, da alma redespertando para uma visão maior da
realidade.
A doença também serve para nos empurrar para a frente. Um lama
ocidental fez este relato:

"Vim para a Califórnia, entrei para uma comunidade e vivia um dia


depois do outro. Então tive hepatite e fui me curar numa cabana
emprestada, nas Montanhas de Santa Cruz. Eu vomitava todas as
noites, estava com a pele toda amarela e me sentia no fim das
minhas forças, físicas e emocionais. Eu tinha abandonado tudo e
estava confuso, sem saber o que fazer.
Então, no meio da noite, comecei a ouvir um canto. Acordei e olhei
através das gotas de chuva na janela ao lado da cama. Vi um
homem gordo sentado lá fora, segurando com a mão o chapéu
preto. Na minha cabeça soavam gongos e cânticos. Ele ficou lá por
muito tempo. Finalmente, cai no sono. Na manhã seguinte, acordei
e olhei no espelho: minha pele estava normal e eu estava melhor.
Depois de várias semanas dentro da cabana, saí para andar no
bosque, sentei-me à beira do córrego e chorei.
Tempos depois, eu me liguei a um grupo hippie de teatro tibetano e
fui com eles para o Nepal. O 16º Karmapa, mestre tibetano, foi a
Katmandu pela primeira vez em treze anos e eu e dois outros
ocidentais fomos vê-lo. Ele disse que estava esperando pela nossa
visita. Fiquei assombrado: era ele o homem que eu tinha visto pela
janela em Santa Cruz! Soube depois que ele pode entrar nos
nossos sonhos e que com isso somos curados das doenças.
Ele gostou da nossa visita e, depois de muitos dias juntos, disse
que numa vida anterior tínhamos sido tibetanos e companheiros
dele. Um dos lamas mais velhos me mostrou uma fotografia do
nosso mosteiro. Verdade ou não, foi como voltar para casa. Agora,
trinta e dois anos depois, nós três nos tomamos lamas."

Os chamados do além assumem milhares de formas. Assim, não


podemos ignorar o efeito das substâncias psicodélicas na vida de
muitos mestres modernos. Andrew Weil, um médico de Harvard que
estudou o uso de substâncias sagradas no mundo inteiro, escreve:
"Na maioria das culturas antigas, como na China, na Índia, na
Grécia e nas Américas, o uso positivo de substâncias psicoativas
faz parte da tradição." Muitos dos que seguiram a jornada espiritual
tiveram as portas da percepção abertas por experiências
psicodélicas. Na verdade, muitos dos atuais professores espirituais
do Ocidente percorreram esse caminho, pelo menos em parte. Há
muito perigo no mau uso dessas substâncias e todos nós
conhecemos histórias trágicas de abuso, mas elas fazem parte da
nossa herança. Dos beatniks de tendência zen dos anos cinqüenta,
aos hippies dos anos sessenta e setenta e aos viajantes xamânicos
dos oitenta, muitos líderes espirituais que conheci falaram do efeito
de experiências com estados mentais alterados.
Um mestre de meditação francês que passou anos na Índia e no
Tibete desconhecia no início o caminho espiritual.

"Eu era um artista jovem e vivia perto da praia em busca dos


prazeres da vida. Então minha namorada me deixou e alguns
amigos que voltavam do México puseram dois comprimidos de LSD
na minha mão, dizendo: 'Coma isso. Você nunca mais será o
mesmo.' De fato: nunca mais fui o mesmo. Tive visões de regiões
espirituais e formas de arte que minha mente jamais conseguiria
imaginar. E então tive um incrível desabrochar. Morri e me dissolvi
no mundo flutuante: agonia, êxtase e depois mais nada. Percebi
que no fim a vida inteira é uma peregrinação espiritual, uma jornada
de volta a essa compreensão. Depois disso, logo que pude fui para
a Índia."

Outro professor, que estudou matemática na Columbia University,


em Nova York, relembra:

"Sempre tive interesse pelas leis da mente. Foi por isso que me
interessei pela matemática. Um dia, meu colega de quarto me deu
uma omelete cheia de cogumelos psicodélicos e, depois de comê-
la, os sons e as cores se intensificaram a um ponto até então
desconhecido. Meu coração se derreteu, se abriu, e eu consegui
sentir o mundo, amá-lo de verdade. Percebi que o amor liga todas
as coisas.
Subi até o Cloisters, o velho mosteiro em Fort Tryon Park, e as
pedras cantavam para mim. Fui visitar Merton. Desde esse dia vivo
num mosteiro trapista. Já faz vinte e um anos."

Uma renomada professora zen começou a busca espiritual com


viagens psicodélicas, mas percebeu que essas experiências
visionárias não bastavam.
Foi então para a Coréia e para o Japão à procura de um mestre
zen. Visitou muitos templos, sem achar o que procurava. De volta a
Kyoto, o lar do Zen, ela teve a idéia de tomar LSD e ir ao mais
sagrado dos templos da cidade.
"Estava a caminho, quando uma força semelhante a uma enorme
mão invisível me deteve. Fiquei assombrada. Era como se os
deuses não quisessem que eu fosse em frente. O que fazer? Ao
lado da estrada, vi os portões de um templo. Fui até lá e entrei. Lá
dentro havia um homenzinho sentado de pernas cruzadas,
pregando num inglês muito simples, dizendo as coisas mais claras
que eu já tinha ouvido sobre a mente e o coração. Era o passo
seguinte, exatamente o que eu procurava. Larguei minhas mochilas
no chão e fiquei lá por doze anos."
Muitos professores perceberam logo que as substâncias
psicodélicas eram um caminho limitado demais, que não
despertavam a mente nem abriam o coração de maneira
sistemática. Como diz um professor budista:

"As substâncias psicodélicas fizeram parte do meu começo, mas eu


sabia que não bastavam. Decidi ir para os Himalaias. Fui convidado
para um puja conduzido por um velho lama tibetano nos arredores
de Dharamsala. Meu amigo e eu andamos uns dois quilômetros
pela floresta de rododendros floridos até uma clareira perto de uma
queda d'água. As montanhas nevadas se erguiam ali perto. Seis ou
oito lamas estavam sentados em volta de uma fogueira, despejando
oferendas de manteiga no fogo, tocando sinos e tambores,
praticando cânticos e mudras. E havia um segundo círculo à volta
deles, formado por melros. Minha mente parou. Senti que estava
vendo uma coisa muito antiga, anterior à separação de homens e
animais. Eu sabia que estava na presença de um grande mistério e
que o meu caminho era trabalhar com os professores que viviam
naquela realidade."

O chamado do além levou muitos professores da atualidade a


aventuras que eles nunca teriam imaginado. Pir Vilayat Khan,
mestre da Ordem Sufi, contou que o seu pai, Hazrat Inayat Khan,
morreu quando ele tinha apenas dez anos. E que, no leito de morte,
o pai lhe disse para procurar um grande sábio na nascente dos rios
Ganges e Jamuna, na Índia.

"Com dezenove anos, fui para a Índia por terra, quase sem dinheiro.
Foi difícil. Numa cidade fui jogado na prisão sob suspeita de ser um
espião paquistanês. Seguindo o Ganges, encontrei, acima da
cidade encantada de Gangotri, um sábio extraordinário numa
caverna de gelo. Esse sábio disse que a nascente dos rios Ganges
e Jamuna era um segredo e me indicou uma geleira além de
Jamnotri, já na encosta dos Himalaias.
Segui a trilha. Já distante dos últimos seres humanos, vi pegadas
na neve. Como eram muito grandes, fiquei com medo, pensando
que fosse um urso. Segui essas pegadas por algumas horas e
finalmente cheguei a uma caverna. Na entrada, sentado como um
rei, estava um fantástico rishi. Ele me fez um sinal e entendi que era
para eu não entrar.
Então sentei na neve de pernas cruzadas, fechei os olhos e,
quando voltei a abrí-los, ele estava sorrindo. Ele sabia que eu falava
inglês, pois disse: 'Por que veio tão longe para ver quem você
deveria ser?' Respondi: 'É maravilhoso me ver em você.' Então ele
disse: 'Você não precisa de um guru.' Respondi: 'Meu guru é o meu
pai. Não estou procurando um guru.' Ele disse: 'Bom, se não está
procurando um guru, entre.'
O rishi disse: 'Há outra caverna ali para você.' Então ele me ensinou
uma prática: olhar para meu coração com o terceiro olho até sentir
ele se abrir como uma lótus. E assim eu fiz. Então ele disse:
'Descanse na luz, não na luz física nem na imagem reflexa. Vá para
a verdadeira luz. É só isso que importa.'
Ele não era o tipo de pessoa para se bater um papo. Estava
totalmente iluminado, repousando em samadhi. E disse: 'Está
chegando o tempo em que não haverá mais rishis vivendo em
cavernas, como eu. Então, os seres iluminados terão que viver no
mundo entre as pessoas.'
Depois de vários dias, ele disse: 'Você já aprendeu o suficiente.'
Percebi que tinha adquirido auto-suficiência, desapego e
perspectiva. Tinha uma maravilhosa sensação de paz e felicidade e
não queria ir embora, mas sabia que precisava voltar para o mundo.
Esse foi um passo enorme da jornada, que vai durar a vida toda."

Parece impossível que não haja uma corrente espiritual, uma


corrente de despertar em potencial que, no momento certo, esteja
esperando por cada um de nós.

O lama Govinda contou a história de sua vida em The Way of the


White Clouds. Posteriormente, acrescentou este relato:
"No começo da minha estada na Índia, um velho peregrino tibetano,
caminhando nos Himalaias, viu as bandeiras de oração de minha
casa na montanha e entrou. Eu estava fora, mas ele deu à mulher
que cuidava da minha casa, por quem eu tinha muita afeição, um
presente para o seu 'filho' e continuou sua caminhada, que duraria
um ano, até os santuários. O presente era um livro que não
consegui ler e que depois de algum tempo guardei no sótão. Depois
de anos estudando o Budismo Tibetano, eu me tomei um lama, mas
não sabia o que fazer. Então, fui convidado para refazer a tradução
original do Livro Tibetano dos Mortos. Infelizmente, não havia
cópias fora do Tibete. Três dias depois, subi ao sótão e encontrei
por acaso o velho livro que o tibetano tinha me dado. Era uma
edição original do Livro Tibetano dos Mortos impressa manualmente
em Lhasa! Entrei em contato com Evans-Wentz e comecei a
trabalhar imediatamente. Tudo o que escrevi depois, o trabalho de
toda a minha vida, surgiu porque tinha recebido 'por acaso' um
presente de um velho peregrino."

A VOLTA PARA CASA

Muitas dessas histórias falam de viagens, mas seu verdadeiro tema


é a descoberta de nosso lar espiritual. O propósito de recontar
essas histórias exóticas e um pouco mágicas não é compará-Ias
com a nossa. Cada um de nós tem a sua história singular, o seu
chamado. Mas esses relatos podem provocar um choque que nos
faça lembrar que estamos todos aqui com uma incumbência.
No momento certo, todos nós vamos despertar. Talvez o despertar
fique escondido no sótão durante anos, enquanto cuidamos dos
filhos ou da carreira profissional. Mas algum dia vai aparecer,
derrubar o portão e dizer: "Pronto ou não, cá estou eu."
Estar vivo é por si só um mistério. Os indícios de nossa verdadeira
natureza estão sempre à nossa volta. Quando a mente se abre, o
corpo se modifica ou o coração é tocado, todos os elementos da
vida espiritual são revelados. Grandes questões, sofrimento
inesperado, inocência original - qualquer uma dessas coisas nos
leva além da rotina cotidiana, "da burocracia do ego", como disse o
professor tibetano Chogyam Trungpa. Cada dia traz seus próprios
chamados para o espírito, alguns pequenos, outros grandes, alguns
surpreendentes, outros comuns.
Um praticante zen descobriu, em 1969, os livros de Alan Watts
sobre Zen. Os livros atiçaram sua curiosidade e seu espírito e o
fizeram lembrar que a vida é mais do que a vida de advogado e pai
de família que ele levava na época. Abriu a lista telefônica na letra Z
e em poucos minutos estava falando com o roshi do San Francisco
Zen Center. Pediu o Programa do centro e, com o apoio do mestre,
começou a praticar. Trinta anos depois, ainda praticando com
vontade, ele diz: "Minha vida se transformou depois daquele
telefonema."
Ainda mais comum é a história contada por outro mestre da
meditação, que há trinta anos era um esportista entusiasmado. O
golfe era o seu esporte favorito. Com o tempo, foi percebendo que o
jogo era em grande parte determinado pela mente e pelo espírito.

"Procurei me aquietar. Fiquei pasmo ao perceber que minha mente


estava agitada e fora de controle. Uma amiga sugeriu que eu fosse
com ela à aula de yoga e meditação. Apesar da dificuldade que tive
para começar a meditar, foi como voltar para casa."

Os indícios estão sempre ai, mas a família e a educação nos


ensinam a fingir que não os vemos. Uma mulher judia, agora rabina,
disse que sua família não dava atenção a ensinamentos espirituais.
As ocasionais visitas ao templo reformista eram motivadas pela
responsabilidade social e pela comida judaica. Então ela teve que ir,
como escreve Rilke, "para uma igreja no Oriente que nosso pai
esqueceu". Durante dez anos, procurou seu caminho entre os
nativos norte-americanos. Então, circunstâncias curiosas a levaram
a Jerusalém, onde conheceu a mulher de um velho hassidim que a
fez lembrar da herança de milhares de anos de espírito dentro de
sua própria tradição.

"Depois de visitar o Muro das Lamentações, a mulher do rabino,


Miriam, me levou ao quarto dos fundos. Nós nos sentamos e
começamos a conversar. Ela me contou que suas avós acendiam
as velas, partiam o pão e criavam os filhos de maneira sagrada. Era
uma vida governada pela Torah: cada ato, um ato sagrado. Era
semelhante à vida dos nativos norte-americanos que eu tanto
amava, mas quando ela pegou umas folhas finas de papel com um
manuscrito kabalista, percebi que eu também fazia parte dessa
antiga linhagem, que a herança do espírito corria pelas minhas
veias e pelo meu coração."

Não é só na floresta que Baba Yaga vive: ela vive perto de nós. Ela
é parte de nossa história familiar. Podemos ir para a Índia ou para
Jerusalém - e algumas histórias mágicas dos mestres nos levam a
acreditar que é assim o começo da vida espiritual. Mas ela começa
também quando cuidamos do jardim, quando encontramos a casa
limpa depois de uma viagem, quando ouvimos a execução inspirada
de uma peça musical, na canção de um poema, no vôo de um
pássaro.
Para mim, crescer na costa oeste significou o prazer de ver vaga-
lumes no verão. Mas minha filha, que nasceu na Califórnia, nunca
tinha visto um vaga-lume. Em nossas viagens, descobrimos que
havia vaga-lumes nas noites tropicais de Bali. Uma noite, esperei
que ela dormisse, puxei o mosquiteiro que envolvia sua cama e sai
para pegar vaga-lumes. Quando voltei, ela ainda dormia. Soltei os
vaga-lumes dentro do mosquiteiro e a acordei de mansinho. Ela
ficou maravilhada com aqueles rastros luminosos na noite, até que
deixamos os vaga-lumes sair. Como é fantástico, como é
improvável que haja belos insetos com luzinhas que piscam - mas
não tão fantástico quanto um coração cheio de amor. Nosso
coração brilha como os vaga-lumes, com a mesma luz do sol e da
lua.
Dentro de nós há uma vontade secreta de lembrar dessa luz, de
sair do tempo, de sentir nosso verdadeiro lugar neste mundo
dançante. É onde começamos e para onde vamos voltar.
Podemos vê-lo hoje mesmo ou esperar até o último dia, mas o
chamado para o mistério se apresenta repetidamente aos nossos
olhos e ao nosso coração - como escreveu Mary Oliver.

Quando a morte vier


como urso faminto no outono;
quando a morte vier e tirar as moedas brilhantes da bolsa

para me comprar, e fechar a bolsa de novo...

Quero passar pela porta, cheia de curiosidade, me perguntando:


como será que é, aquela cabana de escuridão?

E por isso vejo tudo


como uma irmandade...

e para mim cada vida é uma flor, comum


como uma margarida do campo, e tão singular...

e cada corpo um leão de coragem, e uma coisa


preciosa para a terra.

Quando acabar, eu quero dizer: durante toda a minha vida


fui a noiva da perplexidade.
Fui o noivo, tomando o mundo nos braços...
2
OS GUARDIÕES DO CORAÇÃO:

ANJOS DE LUZ, OCEANO DE LÁGRIMAS

A segurança é em grande parte uma superstição. Ela não existe na


natureza, nem os filhos dos seres humanos como um todo a
experimentam. A longo prazo, evitar o perigo não é mais seguro do
que a exposição total. Ou a vida é uma aventura ousada ou não é
nada.
HELEN KELLER

Uma vez chamados para a aventura interior, começamos a seguir


os rastros do boi sagrado na floresta. Examinando a mente ou o
coração, descobrimos que eles contêm todo o nosso mundo.
Externamente, os telescópios revelam a vastidão do espaço, com
sua miríade de galáxias e novas estrelas. Internamente,
começamos a descobrir regiões igualmente vastas na consciência,
de onde surgem todas as coisas. Há quem diga que é preciso ter
cuidado quando resolvemos seguir os rastros do boi sagrado, pois a
jornada espiritual nos faz pôr em dúvida todas as coisas da vida. Há
quem chegue a nos advertir.
Como sempre, o professor tibetano Chogyam Trungpa chegou
atrasado para fazer a palestra. Dirigindo-se à sala lotada, disse que
reembolsaria quem não quisesse ficar. Avisou aos novatos que o
verdadeiro caminho espiritual é árduo, trazendo "uma injúria depois
da outra". Sugeriu que os que tivessem dúvidas nem começassem.
"Se não começaram, é melhor nem começar." Então olhou
fixamente para todos e disse: "Mas se começaram, é melhor
terminar."

UMA PRÁTICA DIGNA

Vivemos mima época desordenada, complicada, perturbada e


exigente, e no entanto a prática espiritual exige atenção constante.
Assim, em quase todas as viagens espirituais, a primeira tarefa é
nos aquietar para ouvir a voz do coração, para ouvir o que está
além das preocupações cotidianas. Seja na prece, na meditação, na
visualização ou no jejum, temos que nos afastar dos nossos papéis
habituais, dos dias atarefados guiados pelo piloto automático.
Temos que descobrir uma forma de nos tomar receptivos e abertos.
Não basta detectar o anseio espiritual. O coração precisa de
inspiração para a renovação, precisa de apoio para encontrar o
perdão, para despertar a liberdade, para se abrir para a graça.
Temos que encontrar uma embarcação, uma prática digna que nos
leve nessa viagem, uma disciplina confiável que nos traga de volta
para o presente e nos abra para o mistério - não para nos
transformar em outra pessoa, nem para nos corrigir, mas para que
possamos ver quem realmente somos.
Para isso, as grandes tradições espirituais oferecem centenas de
meios. Algumas práticas usam a respiração para aquietar a mente e
abrir o coração. Existem disciplinas do corpo baseadas na
meditação que transcendem a avidez do pequeno eu e nos fazem
desabrochar. Existem mantras e rituais de devoção, preces e
rosários, práticas diárias de atenção sagrada; existe a indagação
secreta do coração. Numa comunidade nativa norte-americana, os
jovens jejuavam dias e dias em busca de visões, girando sem parar
uma pedrinha em tomo de uma pedra maior, como a lua em tomo
da terra, até que surgisse a resposta para as suas perguntas.
No início podemos experimentar várias tradições e práticas, mas no
fim temos que escolher uma prática e segui-Ia de todo o coração. O
que importa é a sinceridade que trazemos para o caminho que
escolhemos, a perseverança e a disposição de permanecer com ele
e ver o que se abre dentro de nós.
Uma prática verdadeira nos leva para o silêncio da floresta. Seja
onde for o começo, temos que parar e ouvir. Há uma história da
época em que Bill Moyers era secretário de Imprensa do Presidente
Lyndon Johnson. Num almoço na Casa Branca, Moyers, que tinha
estudado para ser pastor, foi convidado a fazer a oração. "Fale alto,
Bill", pediu Johnson, "não estou ouvindo nada." Moyers respondeu
suavemente: "Eu não estava me dirigindo a você, presidente."
O que esperar quando entramos na floresta para ouvir melhor a
mais silenciosa das falas? Os primeiros passos para dentro da
floresta - seja através do ritual, da prece ou da meditação - trazem
um pouco de perplexidade e suaves revelações. Quando a atenção
sincera começa a separar a realidade do presente da interminável
cascata de pensamentos, o mundo brilha com uma beleza radiante.
Percebemos que a nossa vida é controlada por opiniões e estados
interiores antes despercebidos. Despertamos para padrões de
emoções e hábitos. Começamos a sentir os nossos conflitos da
perspectiva mais ampla da imensa corrente da prática que
escolhemos. Nós nos abrimos mais a cada passo.
Uma história tradicional sueca nos dá uma idéia da fase seguinte da
jornada. Por causa de percalços dos pais, uma jovem princesa
chamada Aris foi prometida em casamento a um terrível dragão.
Quando o rei e a rainha lhe revelaram sua sina, ela ficou
apavorada. Mas, recuperando a razão, saiu para procurar uma
mulher sábia que vivia além do mercado. Essa mulher tinha criado
doze filhos e vinte e nove netos e conhecia os dragões e os
homens.
A mulher sábia disse a Aris que ela tinha de casar com o dragão,
mas que havia a maneira certa de lidar com ele. Deu, então,
instruções para a noite de núpcias. Em especial, recomendou à
princesa que usasse dez vestidos bonitos, um em cima do outro.
Chegou o dia do casamento. Foi oferecida uma festa no castelo e
depois o dragão levou a princesa a seus aposentos. Quando o
dragão se aproximou da noiva, ela o deteve, dizendo que precisava
tirar a roupa do casamento com cuidado antes de oferecer seu
coração a ele. E ele também, acrescentou ela (instruída pela mulher
sábia), tinha que tirar sua roupa. Ele concordou alegremente.
"A cada camada de roupa que eu tirar, você também deve tirar uma
camada." Tirando o primeiro vestido, a princesa observou o dragão
tirar a camada externa de sua armadura de escamas. Doeu, mas
ele já tinha feito isso várias vezes. Mas então a princesa tirou outro
vestido e mais outro. A cada vestido, o dragão se via obrigado a
tirar outra camada de escamas. No quinto vestido, o dragão
começou a chorar lágrimas de dor. Mas a princesa continuou.
A cada camada, a pele do dragão ficava mais macia e sua forma
menos definida. Ele ia ficando cada vez mais leve. Quando a
princesa tirou o décimo vestido, o dragão tirou o último vestígio da
forma de dragão e emergiu como homem, um belo príncipe com
olhos brilhantes como os de uma criança, finalmente livre do antigo
feitiço. A princesa Aris e seu novo marido se entregaram então aos
prazeres da noite de núpcias, realizando assim o último conselho da
sábia mulher que tinha doze filhos e vinte e nove netos.
Como num sonho, todos os personagens dessa história podem ser
encontrados dentro de nós: o dragão cheio de escamas, a princesa
em busca de ajuda, a avó sábia, o rei e a rainha irresponsáveis, o
príncipe escondido e o desconhecido que lançou seu feitiço há
muito tempo. O que essa história revela é que a jornada não é um
simples mergulho na luz. As forças da história humana são tenazes
e poderosas e o caminho para a liberdade interior passa por elas.
Nem mesmo para os mestres é fácil receber a graça, estar aberto
para a iluminação e para a sabedoria. Esse caminho é comparado a
um difícil processo de purificação: limpar, arrancar, deixar para lá.
Suzuki Roshi o chama de "faxina geral da mente". Os dragões que
guardam o caminho são ferozes e é doloroso arrancar as escamas.
Para seguir em frente, precisamos da inspiração dos anjos,
precisamos mergulhar no oceano de lágrimas.
Às vezes o fim do cantinho se revela claramente. É como se o
mundo místico flertasse conosco, nos atraísse para o mundo do
espírito. Um professor de meditação diz o seguinte:

"As pessoas falam de momentos de pico. Pois no fim do meu


primeiro retiro de meditação, tive um dia inteiro de pico. Depois de
uma semana de muita dor, frustração e esforço, no último dia as
cores das árvores ao longo da estrada pareciam faiscar de luz, meu
coração estava aberto como a mãe do mundo. Senti que podia
abraçar a totalidade da vida e tudo o que via repousava num amor
natural. Tudo parecia natural e puro. Sabia que é sempre assim,
embora eu tivesse esquecido. Isso não durou, mas inspirou meu
coração a ir em frente."

É importante guardar essa primeira beleza. Mas é preciso lembrar


também das semanas de dor e esforço que passamos antes, e dos
muitos anos de prática que vão se seguir. Quando procuramos nos
abrir para a iluminação do divino, mesmo sabendo que o príncipe e
a princesa vão conseguir despertar, mesmo entrevendo o
casamento sagrado, não é possível pular para o fim da história e
viver felizes para sempre. Temos que passar pelo medo de casar
com o dragão, pela busca do conselho sábio e pelo longo processo
de abandonar os hábitos dolorosos a que nos agarramos. É um
processo de desapego lento e difícil, que nos faz despertar do
feitiço.

LIVRE DAS ESCAMAS DO CORPO

A maioria das pessoas diz que seus primeiros anos de prática


espiritual serviram para tirar as escamas do dragão. Temos a
experiência direta dessas camadas: no corpo, no coração e na
mente. A primeira camada de escamas a ser retirada, seja através
da prece, da meditação ou da devoção, é a das tensões que
guardamos no corpo. Basta atingir uma certa quietude para que as
áreas de contração se tomem aparentes: a rigidez nos ombros, nas
costas, nos maxilares ou nas pernas. Ao longo da vida, sempre que
nos deparamos com o conflito e o stress, nós nos contraímos da
mesma maneira, construindo o que Wilhelm Reich chama de
"couraça do caráter".
Algumas tradições liberam a tensão física, que se manifesta na
respiração e no corpo, através de técnicas como a yoga, o taí chi ou
o movimento sufi. Quando essas práticas são usadas com
sabedoria, para libertar o corpo e não para dominá-lo, as tensões
começam a diminuir e a sensação de contração dá lugar a uma
nova flexibilidade.
Mas mesmo nas tradições sem práticas físicas, as camadas do
corpo se manifestam e precisam ser administradas. Nas horas de
prece, meditação ou contemplação, aumenta a tensão e a dor. O
que estava contido há anos começa a vir à tona. Diz um estudante:

"No começo, eram os joelhos que doíam, e eu punha a culpa na


meditação. Mas então os ombros e o pescoço ficaram mais
quentes, as costas doloridas nos pontos de mais rigidez. A tensão
no corpo continuou a crescer. Às vezes, era difícil respirar fundo.
Lembranças e velhas mágoas começaram a vir à tona. Era tão
desagradável que eu tentava afastá-Ias. Tentei meditar deitado, no
colchonete mais macio que encontrei, esperando que a dor
sumisse. Mas, para minha surpresa, mesmo deitado, foi só prestar
atenção que lá estava a tensão esperando por mim. Lutei com o
meu corpo por muito tempo, anos. Ele só começou a se soltar
quando aprendi a aceitar até a dor mais profunda e a tratá-Ia com
bondade. Agora isso vai e vem. Que bênção seria enfim aceitar o
meu corpo."

Junto com as tensões do corpo, surgem também camadas de


inquietação e resistência. É como o esforço para se acalmar no
meio de um dia muito agitado. No começo, mal conseguimos ficar
sentados - temos tantas idéias e responsabilidades. Dentro de nós
há uma energia febril. Mas a prática da prece, da meditação ou da
devoção exige entrega constante, perseverança em meio a todas as
formas de inquietação e resistência. Uma professora lembra o início
de sua prática de cem mil prosternações:

"Nos meus primeiros anos de devoção tibetana tradicional e prática


de prosternações, todo o meu esforço era para continuar. Eu
sempre fui muito ocupada. Para mim, nunca foi fácil ficar quieta. Eu
estava sempre abrindo a geladeira, ligando a TV, telefonando para
um amigo. Devia ser solidão e dor oculta no corpo. Comecei a
praticar porque não queria mais fugir de mim mesma. Achei que
essa prática, que me obrigava a me curvar e a me movimentar, era
mais fácil do que ficar sentada, mas as resistências foram as
mesmas. Aprendi que não podia fugir de mim mesma. Quem se
entrega realmente a uma prática, tem que se ater a ela. Há
períodos muito difíceis, mas no fim acaba funcionando."

Felizmente, assim como no caso das peles do dragão, nem tudo é


dor. Há também a leveza que sentimos a cada vestido que é tirado,
como se os anjos trouxessem bênçãos para alternar com as nossas
lágrimas. Há momentos de calma maravilhosa, que abrem os
sentidos e restauram a inocência do coração. Um monge cristão
relata:
"Eu estava meditando no jardim do mosteiro: andava de um lado
para o outro, recitando uma prece e respirando suavemente a cada
passo para me fumar. De repente, voltei a ser um garotinho de dois
anos, dando meus primeiros passos. Foi glorioso. O prazer de pôr o
pé no chão, a grama macia, o cheiro de terra e de rosas. Todas as
plantas e insetos ficaram muito maiores, como quando eu era
pequeno. Tudo ficou tão vivo. Senti que faria qualquer coisa para
manter o contato com esse coração puro."

TROCA DAS PELES DO CORAÇÃO

No empenho para deixar o corpo mais solto e mais aberto, nós nos
deparamos inevitavelmente com a necessidade de abrir e curar o
coração. As escamas do coração aparecem primeiro em forma de
energias inconscientes que provocam contração. Os sufis as
chamam de "Nafs", os budistas e hinduístas falam de obstáculos ao
coração puro, os cristãos lutam com os sete pecados mortais, como
a luxúria e o orgulho. Em todas as jornadas espirituais, temos que
enfrentar diretamente as energias presentes na avidez, na raiva, no
orgulho, no medo, na inquietação e na dúvida - os hábitos que
fecham o coração.
Inicialmente, podemos descobrir como o coração se fecha quando
sucumbimos ao poder de nossa própria avidez. A mente carente ou
a miséria em nós querem mais do que temos agora. E tentamos
usar a experiência externa para suprir a necessidade espiritual.
Depois de trinta anos de prática, uma professora recorda:

"Meus pais eram do tipo espiritualista, mas nos anos sessenta voltei
minha energia para o impulso sexual e para o rock and roll. Eu não
queria me aproximar de Deus sem passar pelos degraus de baixo.
Durante anos vi os homens e a sexualidade como o caminho para a
felicidade.
Eu me tomei uma atriz de sucesso razoável. Finalmente, tive a
minha dose de sexo e percebi que essa não era a resposta. Eu
ainda queria alguma coisa. Minha mãe sempre me convidava para ir
a um retiro de yoga, mas eu nunca quis ir porque tinha medo que
ela prejudicasse meu estilo sexual. Um dia eu fui, e foi exatamente
isso que tive que resolver. Eu tive que enfrentar a carência que me
impulsionava. Foi esse meu primeiro passo na yoga e na
meditação."

Para soltar as peles de dragão da avidez e da carência, temos


antes que saber como elas se prendem ao corpo e as histórias que
contam na mente. Temos que localizar e dar nome a nossos
anseios. E temos que descobrir que é possível libertar o coração de
seu domínio.
No pólo oposto ao desejo e à mente carente, descobrimos a
couraça escameada que afasta o mundo: a raiva e o julgamento
que rejeitam as coisas como elas são. Em geral, quem começa a
praticar uma disciplina qualquer fica chocado pelo tanto de
preconceito, aversão e ódio que descobre em si mesmo. Sempre
que brigamos com o mundo à nossa volta e o culpamos, rejeitamos
e excluímos partes de nós mesmos. Aleksandr Solzhenitsyn, cujos
livros sobre a Rússia estalinista nos despertaram para o sofrimento
de milhões de pessoas, escreve:

Se ao menos lá houvesse pessoas más praticando insidiosamente


o mal, bastaria separá-Ias das outras e destruí-Ias. Mas a linha que
divide o bem do mal passa pelo coração de todo ser humano e
quem, entre nós, está disposto a destruir uma parte do próprio
coração?

Como o dragão, antes de nos libertar para o amor, temos que


conhecer nossas escamas e entrar em acordo com nossas vozes
sentenciosas. Encontraremos camadas de raiva e ódio causadas
pela traição e pela perda, mil aversões e resistências às coisas
como elas são. A atenção da meditação começa a desemaranhar o
novelo de julgamentos. Descobrimos um comentário critico
constante, que tudo avalia, que nos mantém em luta com a vida
como ela é. Diz um professor budista:

"Eu não sabia o quanto eu era sentencioso até começar a meditar.


Havia um julgamento e uma opinião sobre cada coisinha, dentro e
fora de mim - tudo era alto, macio, pouco, muito. Finalmente, meu
professor me fez contá-los - centenas de julgamentos em uma hora.
Comecei a rir quando percebi que isso era apenas um hábito que
eu não precisava levar tão a sério. Mas no ano seguinte minha
prática mudou e eu cheguei à raiva. Foi difícil. Há muito tempo eu
usava todos aqueles julgamentos para ser um bom menino. Eu não
tinha idéia do tanto de raiva e dor que eles escondiam. Durante
muitos meses a raiva e a dor se revelaram em sentimentos,
imagens, pensamentos e no meu corpo."

Uma freira da Congregação das Ursulinas fala de um processo


semelhante.

"Tivemos uma fase de grande inocência e inspiração logo que


começamos o noviciado. Mas quando fomos chegando aos trinta
anos, instalou-se uma sensação de traição. Tínhamos passado a
juventude trabalhando, rezando e tentando ser santas - e perdido
muita coisa. Quando conseguimos aceitar com honestidade quem
éramos na verdade, ficamos com muita raiva, uma raiva muito
anterior ao noviciado."

A raiva, como a sofreguidão do desejo ou a tirania do julgamento, é


uma pele que dá para soltar. Na história, a princesa e o dragão
tiveram que se revelar, camada por camada, e com isso os dois se
tomaram mais disponíveis, mais suaves. Quando tiramos as
primeiras escamas e vestidos, começamos a perceber o que está
sob a contração provocada pela raiva e pelo preconceito.
Em geral, descobrimos uma nova camada de mágoa, solidão, medo
e dor.
Nesse ponto, é essencial ter um coração temo. É o lugar da
coragem - a coragem para envolver em amor a dor mais dura, as
mais profundas mágoas e os maiores medos. É onde a confiança e
a entrega se alimentam. O despertar desse espírito de perdão e
bondade é como a visita dos anjos. Nasce a energia para perdoar,
uma nova ternura e receptividade do coração.
Meu professor Ajahn Chah diz o seguinte:

Se você não chorou profundamente, ainda não começou a meditar.


A dor e a mágoa que surgem quando começamos a desabrochar
são ao mesmo tempo pessoais e universais. Muitos professores
dizem que não esperavam tal dor, mas o coração tem a própria
lógica. Um respeitado professor zen relata:

"Depois de vários anos flertando com o Zen, tinha chegado o


momento de me comprometer. Eu me inscrevi para o treinamento
de inverno: três meses seguidos de treinamento intensivo. Como eu
já conseguia ficar calmo e confortável quando meditava, esperava
que essa clareza zen só crescesse. Mas não foi assim. Passei todo
o período de prática chorando e chorei metade do inverno seguinte.
Eu me lamentei pelo conflito e pela insegurança de antes, pelos
relacionamentos perdidos, por ter usado mal meu corpo, pelas
mágoas, pela morte de meu pai. Só então, depois de dois anos,
minha meditação se abriu para um silêncio profundo e imenso."

A pele de dragão das lágrimas não derramadas cobre a tristeza e o


anseio que nos liga ao domínio da tristeza. Às vezes a tristeza
resulta de um só fato: a morte dos pais, uma história familiar de
alcoolismo e maus-tratos, uma perda importante. Outras vezes é o
acúmulo de milhares de momentos em que nos faltou
reconhecimento e apoio.
Num poema chamado "De Volta a Maio de 1937", Sharion Olds fala
da necessidade de reconhecer as tristezas que nos fizeram ser a
pessoa que somos agora. Ela vê os pais como os garotos inocentes
que eram quando se conheceram.

Eu os vejo de pé nos portões formais do colégio,


Vejo meu pai saindo
Pelo arco de arenito ocre...
Vejo minha mãe com alguns livros apoiados no quadril...
Eles estão prestes a se formar, prestes a se casar...
Quero ir até eles e dizer: Parem,
não façam isso - ela é a mulher errada,
ele é o homem errado, vocês vão fazer coisas
que nem imaginam agora,
vocês vão fazer coisas ruins para os filhos...
mas eu não vou. Quero viver. Eu
os pego como bonequinhos de papel,
homem e mulher, e bato um no outro
como se tirasse faíscas
de lascas de pedra. Eu digo:
Façam, seja o que for, e
eu vou falar sobre isso.

Uma prática espiritual digna reconhece as perdas que sofremos,


conta a nossa história e nos arranca lágrimas para nos libertar do
passado. O poeta sufi Ghalib convida as "nuvens da tempestade a
se desfazer totalmente em lágrimas", para que o céu volte a ficar
vasto e limpo.
Mesmo na dor, na raiva ou na inquietação, percebemos que grande
parte do trabalho com as limitações do coração está relacionado
aos nossos "negócios inacabados". Nós nos deparamos com as
forças e situações que nos fecharam para nós mesmos e para os
outros. O que é conflitante, não pranteado, inacabado, se revela
logo que nos tornamos atentos. É nesse ponto que temos que
aprender a trabalhar respeitosamente com as forças profundas que
governam a vida humana. São as camadas dessas energias que
criam a contração e o sofrimento. Soltá-Ias traz o despertar e a
liberação.

AS CAMADAS DA MENTE

Assim como no caso do corpo e do coração, quando examinamos a


mente também nos deparamos com a contração. O mestre de
meditação Ajahn Buddhadasa diz que o mundo moderno está
"perdido em pensamentos". A mente moderna retém camadas de
dúvida, ambição, medo e convicção, mil histórias e auto-imagens,
passadas e futuras, que formam nossa estrutura mental defensiva.
Vemos a freqüência com que a mente descarta o momento
presente para chegar a outro lugar, tornar-se outra. Na prática da
prece, da meditação ou do serviço altruísta, enfrentamos os
pensamentos repetitivos e os pontos de vista limitantes que criam a
estreita noção de eu. Nosso cálice pensante está cheio; nele não
cabe mais nada.

"Nos anos de noviciado, nós nos entregávamos a horas de práticas


em grupo, aos cânticos, ao ciclo diário de prece coletiva, ao estudo
das escrituras, à devoção e aos serviços. Nesses primeiros meses,
perdida em fantasias ou histórias, eu estava sempre em outro lugar.
Ficava imaginando que era uma grande santa, que provava para
minha família que estava certa, que voltava para os que tinham me
desprezado. Ou senão eu me preocupava com o passado e ficava
dizendo para mim mesma ou para as outras como poderia ou
deveria ter sido. A madre superiora me repreendia, dizendo que eu
me perdia em histórias em vez de estar onde estava - que assim
acabaria passando em branco pelo noviciado."

Emaranhados em opiniões e pensamentos sobre nós mesmos,


sobre os outros e sobre o mundo, não conseguimos estar onde
estamos. É como o pintor zen que pintou na parede de sua casa um
retrato em tamanho natural de um tigre. Dias depois, chegou em
casa perdido em pensamentos e levou um susto ao ver o tigre,
esquecendo que era criação sua.
Quando nos propomos a aquietar a mente através da meditação ou
da prece, percebemos o quanto nossa vida é governada por essas
histórias inconscientes. Don Juan, o guia xamânico de Carlos
Castaneda, diz isso da seguinte maneira:

Você fala demais com você mesmo. Nisso você não é o único. Todo
mundo faz isso. Sustentamos o nosso mundo com o diálogo interior.
Um homem ou mulher de conhecimento tem consciência de que o
mundo vai mudar totalmente logo que parar de conversar consigo
mesmo.

Começamos a conhecer os temas do diálogo interior: ambição ou


desmerecimento, incerteza ou esperança, ódio de si mesmo ou
auto-aperfeiçoamento. As histórias refletem nosso condicionamento
pessoal e cultural. Uma vez, um grupo de psicólogos norte-
americanos teve um encontro com o Dalai Lama, que lhes
perguntou quais as dificuldades mais comuns entre os estudantes
ocidentais do Budismo. Uma das dificuldades mais citadas foi ódio
de si mesmo. A reação do Dalai Lama foi de incredulidade, pois o
ódio de si mesmo é desconhecido na cultura tibetana. Ele deu uma
volta na sala, perguntando a todos: "Você já teve ódio de si
mesmo?" Quase todos responderam que sim.
As opiniões fixas que temos sobre nós mesmos estão no centro das
histórias que contamos. É como se atuássemos num filme fazendo
o papel do deprimido, do bonito, do tolerante, do palhaço, da vítima
zangada, daquele de quem ninguém mais vai se aproveitar. Esses
pensamentos e pressupostos são tão poderosos que usamos
repetidamente sua energia. Esses padrões de pensamento,
juntamente com as couraças no corpo e no coração, criam uma
noção limitada de eu. Às vezes são chamados "corpo de medo".
Quando vivemos do corpo de medo, temos uma vida que se limita
ao hábito e à reação.
Uma prática digna desmascara essas histórias e seus pontos de
vista limitantes, além de abrir o corpo e o coração. Começamos a
reconhecer padrões nessas contrações e a perceber que elas não
são a realidade fundamental. Aprendemos a sair da velha pele, da
noção estreita de eu, para a realidade do presente. Aprendemos a
deixar o corpo mais à vontade, o coração mais temo e a nos livrar
das velhas histórias da mente. É o momento em que vemos o que
são na verdade as peles de dragão - um feitiço kármico que não é
mais necessário - e em que o príncipe e a princesa revelam seu ser
temo e vulnerável.
Inocentes e abertos, voltamos à Simplicidade da experiência direta.
Quando saímos da corrente de pensamentos, deixando para lá o
"como foi", o "como deveria ter sido" e o "como deveríamos ser",
entramos no presente eterno.
Mas até mesmo essa troca de pele, essa libertação do corpo, do
coração e da mente, é apenas uma preparação para uma jornada
mais profunda. O príncipe e a princesa se viram. Agora, juntos,
terão de enfrentar a vida e a morte diante deles.
3
OS FOGOS DA INICIAÇÃO

Quase morrer é uma coisa que recomendo a todo mundo, pois


desenvolve caráter. Ganhamos uma perspectiva muito mais clara
do que é importante e do que não é, do valor e da beleza da vida.
ASTRÔNOMO CARL SAGAN,
QUANDO SOBREVIVEU A UMA DOENÇA QUASE FATAL

Vá em frente, acenda suas velas, queime seu incenso, toque seus


sinos e clame a Deus, mas cuidado, porque Deus virá e o porá na
Sua bigorna, acenderá a forja e baterá e baterá até transformar o
latão em ouro puro.
SANT KESHAVADAS

É hora de entrar mais fundo na floresta. O que descrevemos até


agora é uma preparação. Começamos a liberar o que há muito
tempo está retido no corpo; a nos abrir conscientemente para as
emoções profundas que, em grande parte, motivam nossa
experiência; a trabalhar com as crenças e padrões repetitivos da
mente.
Por meio desse trabalho, chegamos a uma clareira e nos vemos
frente a frente com o boi sagrado, ouvindo sua respiração calma e
regular. Segundo a doutrina zen, temos que domar o poderoso boi
para depois soltá-lo juntamente com o eu. Só então vamos entrar
em harmonia unificada com o mundo. Liberar as energias da vida
exige um processo radical de transformação, que muitas vezes é
acompanhado de um duro ritual de iniciação.
Na prática espiritual, a iniciação não é uma simples cerimônia - é
uma tarefa difícil, ao longo da qual o coração amadurece. A
passagem pelas provações do peno do de iniciação modifica a
visão que temos de nós mesmos e do mundo. Conseguimos assim
despertar em nós a autoridade espiritual e o saber interior, uma
confiança que vai nos amparar nas dificuldades e diante da morte.
A iniciação impõe a nós uma mudança de identidade que favorece a
transcendência da noção estreita de eu, a liberação do "corpo de
medo" e o despertar da sabedoria, do amor e do destemor eternos.
O processo transformador da iniciação nem sempre é externamente
óbvio. Para alguns é como uma lenta espiral, um refazer constante
e repetitivo do ser interior. Aos poucos, o coração aprofunda o
saber, a compaixão e a confiança, graças a centenas de milhares
de práticas repetidas e da sinceridade de uma disciplina espiritual
regular. O Buda comparou esse processo ao fundo do oceano, que
desce pouco a pouco até as profundezas.
Uma vez, os alunos do professor Dainan Katagiri Roshi pediram
que ele falasse sobre a fé e o calor que irradiava: "É isso que
queremos aprender com você. Como é que se aprende?" O mestre
respondeu: "Quem me vê hoje não vê os anos que passei com o
meu professor!" Ele contou que praticou ano após ano, vivendo com
simplicidade, ouvindo os mesmos ensinamentos muitas e muitas
vezes, meditando todas as manhãs, cumprindo os rituais do templo.
Esse é o lento caminho da iniciação: assumir vezes sem fim uma
atitude de atenção e respeito, pôr-se a assar no fomo até estar
totalmente cozido, amadurecido, transformado.
Mas é mais comum a iniciação trazer uma mudança intensa,
radical, rápida. Essa transformação costuma assumir a forma
arquetípica do rito de passagem. Um rito de passagem é como
passar por um desfiladeiro tão estreito que não nos permite levar
bagagem - um renascimento que nos obriga a abandonar a antiga
vida. O risco é grande, às vezes a morte passa raspando, mas só
assim adquirimos coragem e encontramos aquilo dentro de nós que
está além da morte.
Às vezes a iniciação acontece espontaneamente. Perdas, crises ou
doenças, quando administradas com sabedoria, fazem o coração
crescer. Mas às vezes é preciso criar deliberadamente uma
iniciação. Seja como for, a necessidade de iniciação é universal, e
para a juventude moderna essa necessidade é desesperada. Como
não há nada que se assemelhe a uma iniciação espiritual ao mundo
dos homens e das mulheres, os jovens buscam a iniciação na
estrada ou na rua, em carros velozes, nas drogas, no sexo
perigoso, nas armas. Por mais inquietante que seja, esse
comportamento tem sua raiz numa verdade fundamental: a
necessidade de crescer. Uma das motivações para se buscar a
iniciação, e uma de suas ferramentas, é a consciência cada vez
maior da morte. Um lama tibetano norte-americano me contou:

"Meus pais morreram quando eu tinha só dezessete ou dezoito


anos. A realidade da morte provocou um choque enorme,
inesperado, e levei muito tempo para superar a dor. Sem meus
pais, senti que não havia mais nada entre mim e a morte. Essa
constatação me empurrou para a prática espiritual. É espantoso que
seja tão difícil perceber a iminência da morte."

Don Juan, o xamã de Carlos Castaneda, recomenda fazer da morte


um conselheiro:

A morte é a nossa eterna companheira. Ela está sempre à nossa


esquerda, à distância de um braço. Ela o observa sempre e vai
continuar a observá-lo até o dia que bater no seu ombro.
Quando estiver impaciente... volte-se para a esquerda e peça o
conselho da morte. Muita mesquinharia será deixada de lado se a
morte lhe fizer um gesto, se você tiver um vislumbre dela ou
simplesmente perceber que sua companheira está ali a observá-lo.

Quem se entrega ao caminho espiritual tem que enfrentar o medo


da morte ainda em vida. Na prática mística cristã, isso é "reviver o
mistério da crucificação e da ressurreição". Na meditação budista, é
"aprender a morrer antes da morte". Como a morte vai nos levar de
qualquer forma, por que passar a vida com medo? Por que não
morrer para o jeito antigo e ficar livre para viver?

NACHIKETA E O SENHOR DA MORTE

Há uma antiga história indiana que fala de um jovem, Nachiketa,


que ficou frente a frente com a morte. Com a morte de vários
amigos, Nachiketa sentiu a brevidade da vida. Percebeu que,
divorciadas da compreensão espiritual, as ocupações mundanas
são superficiais. Filho de um rico mercador, ele sabia que a
felicidade do coração não vem das propriedades que se tem. Isso
explica o que ele fez quando o pai, instigado pelos sacerdotes
Brahim da comunidade, resolveu fazer uma grande doação ao
templo para garantir um bom renascer na outra vida. Essa doação
seria feita no centro da cidade, na presença de todos. A idéia de
comercializar virtude e mérito publicamente horrorizou Nachiketa.
O dia chegou. Em seu discurso, o pai disse: "Dou o meu gado, o
meu ouro e tudo o que tenho de valor aos sacerdotes do templo."
Mas Nachiketa observou: "Tudo o que tem de valor? E eu, seu
filho?" Publicamente humilhado e ofendido por essas palavras, o pai
de Nachiketa respondeu zangado: "Vou dá-lo também. Vou dá-Ia à
Morte!" Os olhos de Nachiketa brilharam e ele respondeu: "Aceito."
E foi embora.
Nachiketa chegou a um ponto remoto da floresta e ficou esperando
que a Morte se revelasse. Por três dias e três noites ficou sentado
ali, concentrado e imóvel, determinado a encontrar o boi branco e
olhá-lo nos olhos, determinado a enfrentar a Morte em sua busca
espiritual. Concentrado apesar da fome, da dor e da exaustão,
Nachiketa chegou finalmente à terra de Yama, o Rei da Morte,
também conhecido como "Guardião das Contas". Lá, os três
ajudantes da Morte - a pestilência, a fome e a guerra - lhe disseram
que o Senhor Yama estava fora. "Ele foi receber os rendimentos."
Nachiketa respondeu: "Está bem. Eu espero."
Três dias depois, quando o Senhor da Morte voltou, seus ajudantes
lhe disseram que um jovem estranho tinha vindo procurá-lo. Quem
ouve falar da Morte sempre corre na outra direção, mas esse jovem
estava esperando havia três dias. O Senhor Yama cumprimentou
Nachiketa e lhe pediu desculpas por tê-lo feito esperar. "Bem-vindo
ao meu reino. Vejo que é um homem dedicado à jornada. E eu o
deixei esperando. Vou compensá-Io pelos três dias de espera com
uma oferta. Você pode escolher três graças para a sua jornada."
Enquanto viajava e esperava, Nachiketa tinha entrado no limiar
entre os mundos, onde a verdade é revelada. Agora, três graças lhe
eram oferecidas. Em seu luminoso estado mental, Nachiketa pediu
perdão para si mesmo e para tudo com que tinha tido contato. "Que
meu pai me olhe com a alegria que sentiu no dia em que eu nasci."
Nachiketa sabia que para continuar a jornada tinha que abrir mão
do passado e se reconciliar com o que havia de incompleto no seu
coração.
Ao pedir perdão para si mesmo, Nachiketa perdoou o pai, porque o
perdão tem sempre mão dupla. Perdoar não é uma simples questão
de vontade e nem sempre é fácil. Às vezes, para perdoar, temos
que nos submeter a um longo processo de indignidade, mágoa e
pesar. Perdoar não significa relevar as injustiças do passado.
Podemos jurar: "Nunca mais vou deixar que isso aconteça." Mas no
fim basta deixar para lá a dor e o ódio do passado. Graças a essa
bondade que tudo suaviza, nós nos livramos da repetição cega, de
levar a dor do passado para o futuro. Perdoar não é tirar a outra
pessoa do coração: Nachiketa sabia que, se tirasse o pai do
coração, não poderia continuar o caminho com todo o seu ser.
O beneficio trazido pelo perdão é a reunião com a vida, que deixou
o coração de Nachiketa aberto e claro. Olhando-o de frente, o
Senhor Yama observou: "Seu primeiro pedido foi sábio, Nachiketa.
Qual é o segundo? Fale!" Depois de um momento de reflexão,
Nachiketa falou: "Peço a graça do fogo interior."
Nachiketa sabia que para ter sucesso na jornada espiritual
precisava de ardor e coragem para seguir o caminho com todo o
seu ser. Assim, pediu força para se entregar à busca: fogo interior é
energia sincera, paixão espiritual, Shakti, intensidade de ser.
Esse fogo, ou plenitude, não deve ser confundido com a ambição,
avidez ou sofreguidão na realização de uma meta. Não é um
esforço para nos melhorar ou para obter alguma coisa. Quando
pediu essa intensidade, Nachiketa não pretendia chegar ao fim de
uma jornada imaginada, mas estar totalmente onde estava.
Precisamos da energia de nossa presença total para encontrar
edomar o boi sagrado. O Senhor Yama elogiou outra vez a
sabedoria de Nachiketa, abençoando-o com a força interior.
Livre das restrições de antigos conflitos e cheio de perseverança e
energia, Nachiketa tinha agora quase tudo que é preciso para
passar pela iniciação. Finalmente, o Senhor da Morte lhe disse para
fazer o último pedido. Depois de refletir, Nachiketa olhou para a
Morte e disse: "Peço o que é imortal." Surpresa, a Morte lembrou ao
audacioso jovem que esse pedido era o último e que ele podia pedir
qualquer coisa. E dito isso conjurou visões do que Nachiketa
poderia escolher: um harém de belas donzelas para lhe fazer
companhia na jornada, um carro de guerra dourado puxado pelos
cavalos mais velozes do mundo, um palácio onde Nachiketa
reinaria.
Nachiketa viu tudo isso e muito mais. "Por que não escolher uma
dessas coisas?", perguntou-lhe a Morte. Mas Nachiketa era um
jovem determinado, que não se deixava convencer com facilidade.
Quem já viu o boi branco sabe que um circo de moscas é só um
circo de moscas. Assim, Nachiketa perguntou: "Essas coisas que
me mostrou não vão voltar, mais cedo ou mais tarde, para seu
reino, Senhor Yama?" O Senhor da Morte sorriu diante da
sabedoria de Nachiketa e respondeu: "Sim, é verdade." "Então eu
quero conhecer o que é imortal."
Diante disso, o Senhor Yama disse: "Vou lhe conceder sua graça."
Então deu a Nachiketa um presente simples mas extraordinário: um
espelho. "Se você quer descobrir o segredo da imortalidade,
Nachiketa, eu só posso lhe dizer para se olhar de frente e se fazer
repetidas vezes a maior das perguntas humanas: 'Quem sou eu?'
Olhe além do seu corpo e dos seus pensamentos, Nachiketa.
Assim, vai encontrar o que procura."
Seja na iniciação, seja na meditação, nós também temos que
enfrentar o Senhor Yama. Temos que perguntar quem é que nasce
e morre. Ao olhar no espelho sagrado, Nachiketa penetrou no
profundo questionamento espiritual que leva ao que é imortal.
Quando ele conseguiu abrir mão de tudo a que se agarrava, surgiu
um coração puro e eterno - Nachiketa estava livre.

AS LIÇÕES DE NACHIKETA:
PRIMEIRO, DESENCANTO

Cada passo da iniciação de Nachiketa se reflete na jornada dos


buscadores modernos. Os temas eternos são os mesmos: a
necessidade de encarar a morte, de perdoar, de encontrar energia e
coragem, de buscar a verdade. Essas tarefas repercutem no
coração de todos os que seguem o caminho do despertar.
Como em muitos casos citados neste livro, Nachiketa foi chamado à
iniciação por um terrível desencanto que o levou a rejeitar
completamente os valores superficiais deste mundo. Da mesma
forma, o desencanto com os pais, com a comunidade e até mesmo
com a religião pode favorecer nossa jornada. Joseph Campbell
costumava dizer, com desagrado, que a religião organizada oferece
apenas "inoculação contra o místico", rituais vazios que solapam o
impulso espiritual com uma versão de segunda mão. Há muitas
maneiras de se perder o coração para deuses falsos.
Às vezes é um choque ou um golpe, como a morte dos amigos de
Nachiketa ou a hipocrisia dos sacerdotes que prometeram a seu pai
a salvação em troca de dinheiro, que nos faz retomar ao coração.
As dificuldades têm valor porque intensificam a coragem, dão vida
ao nosso propósito mais profundo, redespertam a tarefa da alma na
terra. O doloroso ruir do nosso mundo é muitas vezes a preciosa
oportunidade que o coração precisava para aprender a ser
verdadeiro consigo mesmo.
Meu mestre de meditação costumava nos perguntar em relação à
vida espiritual: "Quais foram as lições mais valiosas, os bons
momentos ou as dificuldades?" O próprio sofrimento, trazido pelo
desencanto, nos dá coragem para questionar, contra todas as
probabilidades. Como Nachiketa, temos que abandonar a
segurança e o conforto para depositar nossa confiança no
questionamento. Vem então a necessidade de falar a verdade.
Kabir, o místico indiano, conhecia essa busca. "É a intensidade da
necessidade que faz tudo", disse ele.

FRENTE A FRENTE COM O DESCONHECIDO

Em muitas histórias de iniciação, a busca pelo que está além da


morte é representada pela imagem do herói atravessando a grande
água, escalando a montanha impossível, enfrentando dragões,
combatendo os exércitos de Mara, que personifica as forças do mal.
Em cada uma dessas situações, arriscamos a vida que
conhecemos para descobrir algo novo.
Elas são terríveis porque o território desconhecido da iniciação se
abre diante de nós só quando temos a coragem de voltar todo o
nosso ser em sua direção. Ao enfrentar de boa vontade o
desconhecido, depositamos confiança num propósito maior da vida.
Temos então que ir para onde a estrada nos levar, a despeito da
escuridão e do medo no coração.
Para enfrentar com firmeza o desconhecido, precisamos da ajuda
da prática ou do ritual a que nos entregamos. Para Nachiketa, a
ajuda veio através da meditação, da imobilidade de três dias e três
noites. Para outros, vem através da prece incessante em meio à
crise ou de um ritual tradicional de iniciação conduzido pelos mais
velhos. A intensidade da necessidade e a firmeza com que nos
voltamos para o desconhecido é o que nos leva ao reino do Senhor
Yama.
O encontro com a morte pode assumir muitas formas. Assim como
a floresta remota de Nachiketa, os mosteiros da Tailândia, onde fiz
meu treinamento para ser monge budista, ficam numa região cheia
de animais selvagens, cavernas escuras e fantasmas. Como parte
do treinamento, passei noites sozinho e meditei no cemitério da
floresta, junto aos corpos que estavam sendo cremados, até o fogo
se apagar de madrugada.
No curso natural da vida cotidiana, uma doença ou um parto podem
nos pôr frente a frente com a morte, modificando a vida que vem
depois. Como a provação de Nachiketa, os trabalhos de parto de
minha mulher levaram três dias e três noites, até que nossa filha
Caroline nasceu. Respiramos juntos, ficamos de mãos dadas,
esperamos. A cada hora que passava ela ia ficando mais exausta,
até que os últimos estágios do trabalho de parto a levaram para o
mundo da maternidade.
Na iniciação, nós nos damos à luz. Uma freira tibetana de origem
inglesa, que viveu doze anos nas cavernas dos Himalaias, fala de
uma ocasião em que recorreu à pratica espiritual para salvar a vida,
quando uma enorme avalanche cobriu a caverna e o vale, matando
muitas pessoas. Ela cavou um buraco para respirar e ficou
meditando na escuridão do inverno, durante muitos dias e muitas
noites.
Cada iniciação oferece um teste em que somos convidados a
abandonar a antiga visão e nos abrir para uma visão mais ampla.
Às vezes, a iniciação é individual e privada, mas às vezes exige um
ritual coletivo de transformação, um ato público de coragem. No
movimento pró-democracia da Tailândia, durante os anos setenta,
os estudantes e a polícia militar travavam batalhas de vários dias
nas ruas de Bangkok, deixando centenas de estudantes mortos ou
feridos. Numa manhã, depois de uma luta sangrenta, um mestre de
meditação de Bangkok reuniu seus monges e freiras e lhes disse
que era hora de testar seu treinamento. E seguiu para o meio do
conflito, à frente de uma fila indiana formada por umas cem figuras
de hábito, com tigelas de esmolar em punho. Quando entraram na
terra de ninguém entre as barricadas, as armas baixaram, a tensão
se aliviou. Monges e freiras a favor da paz, eles lembraram a todos
os presentes que havia outras possibilidades. Naquela manhã,
começou o processo gradual de reconciliação.

PERDÃO E RECONCILIAÇÃO

A iniciação de Nachiketa exigiu também a graça da reconciliação e


do perdão. Enquanto sua jornada era uma briga com o pai, ele se
desviava internamente de sua verdadeira tarefa: enfrentar o medo e
despertar o coração.
Na vida espiritual, o perdão é ao mesmo tempo preparação e fim,
um tema a que voltamos muitas vezes. É difícil: temos que enfrentar
a dor e a mágoa da traição e do desapontamento, e descobrir o
movimento do coração que, apesar de tudo, se dispõe a perdoar.
Às vezes, durante a viagem, vamos sentir, como Nachiketa, que
nosso coração está fechado e que somos reféns do passado.
Embora nos faça clamar por justiça, o perdão é uma atitude
generosa, de deixar para lá, pelo nosso bem e pelo bem dos outros.
É como o encontro de dois antigos prisioneiros de guerra. Um deles
perguntou: "Você perdoou seus captores?" O outro respondeu:
"Não, nunca." O primeiro ex-prisioneiro olhou com bondade para
seu amigo e perguntou: "Mas então você continua prisioneiro deles,
não é?"
A iniciação de professores espirituais exige o perdão - para os
outros, para eles mesmos, para a própria vida. Sem a sabedoria do
perdão, carregamos o fardo do passado vida a fora.
Uma enfermeira com muita experiência em partos, conta esta
história:

"Apesar da dor, a maioria dos partos corre bem e é grande a alegria


no momento em que os pais seguram o bebê. Mas, quando há uma
tragédia, quando o bebê nasce morto ou morre, as outras
enfermeiras me chamam. Acho que é por causa do que já passei.
Um dia, quando tinha oito anos, fiquei tomando conta da minha irmã
mais nova e do meu irmãozinho de três meses. Naquele dia, ele
morreu de repente no berço. Durante anos eu me senti responsável
pela morte dele e meu pesar era incrível. Minha mãe nunca disse
que tinha sido culpa minha, mas também nunca disse que não tinha
sido, e nunca me deixou demonstrar pesar. Eu era uma menina
crescida e meninas crescidas não choram.
Quando entrei na escola de enfermagem, ainda carregava essa
culpa. Cuidava de pacientes com câncer, que só respiravam graças
aos aparelhos. Às vezes, eles me imploravam para deixá-Ias
morrer. Esse ambiente refletia o que havia dentro de mim. Era muito
difícil. Então, fui a meu primeiro retiro de meditação. No silêncio,
tudo veio à tona. Tantas cenas - a morte do meu irmão, os
hospitais, ondas de pesar e dor vindas do passado - e eu percebi
que em todos aqueles anos nunca tinha perdoado minha mãe nem
a mim mesma. Passei alguns dias em silêncio com a minha dor,
como se fosse um trabalho de parto. Chorei e então senti aquele
perdão que eu tinha buscado a vida inteira. Foi uma graça. Meu
coração se abriu: consegui gostar de mim, perdoar minha mãe e
deixar para lá tudo o que me impedia de viver e de amar.
Hoje, faz quase vinte anos que medito. E, de alguma forma, adquiri
a capacidade de lidar com a angústia e a dor sem precisar controlá-
Ias ou modificá-Ias. Assim, agora os médicos e as enfermeiras me
chamam. Às vezes, fico de mãos dadas com os pais ou choramos
juntos em sua vulnerabilidade, encarando a terrível decisão que
eles precisam tomar diante de um feto defeituoso. É o perdão que
toma esta vida viável."

Perdoar a si mesmo é essencial, mas as feridas causadas pelos


outros também são um portão necessário para a cura. Um professor
de um ashram hindu fala da vez em que enfrentou as lembranças
que tinha do padrasto, um homem muito severo.

"Ele me criou desde os dois anos de idade e passei anos brigando


com ele ou tentando merecer sua aprovação. Então, um dia, depois
de um retiro de yoga de um mês, eu caminhava pelos campos perto
do ashram quando me ocorreu que meu padrasto não tinha muito
tempo de vida. Percebi que naqueles anos todos ele tinha tentado
me amar mas, como tinha tido um pai muito duro, não conseguia
demonstrar seus sentimentos. Ele também tinha medo. Com sua
falta de jeito, ele tinha me criado como seu filho. E com minha falta
de jeito, eu o perdoei. Voltei para visitá-lo. Depois disso, muita coisa
ficou mais leve na minha vida. Agradeço a Deus pelo perdão."

Às vezes não se trata tanto de perdoar más ações, mas de aceitar e


a respeitar a luta pela própria vida. Uma história da Segunda Guerra
Mundial mostra que um coração temo e capaz de perdoar nos
permite voltar ao mundo.
Durante a Segunda Guerra, muitos soldados japoneses foram
mandados para as ilhas do Pacífico. Com a derrota do Japão, essas
ilhas foram abandonadas tão depressa que centenas de soldados
nem ficaram sabendo que a guerra tinha acabado. Ao longo dos
anos, muitos desses homens foram encontrados por nativos mas,
como se sabe, alguns continuaram escondidos em florestas e
cavernas. Eles acreditavam que, como bons soldados, tinham que
permanecer fiéis ao seu país e defender a nação japonesa da
melhor forma possível, mesmo em meio a tantas provações.
E que tratamento receberam esses homens quando foram
encontrados, depois de dez ou quinze anos? Não foram
considerados desorientados nem tolos. Quando um deles era
localizado, o primeiro contato era feito com muito cuidado. Um
oficial japonês de alta patente, veterano de guerra, tirava o uniforme
e a espada de samurai do armário e, a bordo de um velho barco
militar, ia para a área onde o soldado perdido tinha sido visto. O
oficial entrava na selva e chamava o soldado até localizá-Ia.
Quando se encontravam, o oficial, com lágrimas nos olhos,
agradecia ao soldado pela lealdade e pela coragem que tinha
demonstrado ao continuar defendendo o país por tantos anos. Fazia
perguntas sobre suas experiências e lhe dava as boas-vindas. Só
depois dessa preparação o oficial dizia ao soldado que a guerra
tinha acabado e que o país estava novamente em paz. Ao chegar
em casa, o soldado tinha uma acolhida digna, celebrando sua luta e
a volta para os seus.
Faz tanto tempo que julgamos nós mesmos e os outros, que
lutamos com o passado e com a própria vida. No perdão, nós nos
prosternamos diante disso com clemência e respeito. É assim que
começamos a domar o boi branco: fazendo amizade com ele. A
coragem do perdão nos deixa livres para entrar no estágio seguinte
da iniciação.

FOGO INTERIOR

Como segunda graça, Nachiketa pediu fogo interior: ardor e


coragem para perseverar na jornada mesmo em face da morte.
Essa paixão e disposição para se abrir, para descobrir, para
aprender, é uma das principais qualidades de todos os que
avançam na vida espiritual.
A qualidade do fogo interior transforma obstáculos e dificuldades no
processo de despertar e de iluminação. Todos nós valorizamos os
momentos em que estamos plenamente vivos. Com paixão
espiritual, o despertar é possível em qualquer lugar. Um dia, um
aluno disse ao meu professor Ajahn Chah que era muito ocupado e
não tinha tempo para meditar. Ajahn Chah riu e disse: "Você tem
tempo para respirar? Se estiver determinado, basta prestar atenção.
Essa é sua prática, esteja onde estiver, seja o que for que estiver
acontecendo: respirar, estar totalmente presente, ver o que é
verdadeiro."
Uma professora budista relembra seus primeiros anos de prática.
Inspirada pelo mestre, pela plenitude de sua presença, por sua
compaixão e espontaneidade, ela queria estar viva como ele.

"Ficava sentada no Zendo, mas na verdade não sabia o que fazer.


A única instrução de que me lembro era: 'Desapareça na almofada.'
Eu me sentava ali com bastante entusiasmo, pensando: 'É isso
mesmo que quero fazer.' Mas não sabia como continuar. Então,
indo a outros retiros, fui aprendendo que o importante era me
entregar cada vez mais à prática. Com isso, descobri uma
expansão orgânica de minha capacidade de ficar sentada por mais
tempo e de dormir menos. Finalmente, no meu primeiro retiro
Vipassana de três meses, descobri que estava queimando de tanta
energia para praticar e que só precisava dormir três horas. Quando
consegui me. entregar, minha força interior cresceu."

Às vezes, esse fogo interior nos é impingido. Uma professora que


tive, Dipama Barua, de Calcutá, era uma grande yogue. Depois da
morte do marido e dos filhos, ela se interessou por meditação.
Começou a praticar, mas ficou muito doente nos primeiros tempos
que passou no templo. Mesmo assim, não desistiu. Fraca demais
para andar, subia os degraus do templo se arrastando, tão
determinada estava a enfrentar seus medos e atingir a liberdade.
Até quem está na prisão pode descobrir o caminho para essa
liberdade. Conscientes do fato doloroso de que gastamos mais com
o sistema penitenciário do que para educar nossas crianças, muitas
comunidades espirituais começaram a proporcionar ensino para os
milhões que vivem atrás das grades. Essa iniciativa parte do
princípio de que todos os seres humanos precisam encontrar a
liberdade interior e a salvação, e que ninguém está além da
redenção. Fleet Maul, um prisioneiro que segue os ensinamentos
tibetanos de Thrangu Rinpoche, diz:

"O barulho e a falta de privacidade são os maiores obstáculos à


pratica da meditação formal na prisão. Das sete da manhã às onze
da noite, todos os espaços disponíveis estão superlotados e em
constante tumulto. Para praticar nessas horas, eu esvaziava um dos
armários de material de limpeza, onde ficavam os esfregões,
vassouras e latas de lixo. Punha tudo para fora para ninguém me
interromper, pegava uma cadeira e ficava sentado meditando por
uma ou duas horas. Os outros me achavam meio estranho, mas
acabaram se acostumando com meu costume de sentar dentro do
armário. Quando finalmente consegui uma cela só para mim, depois
de anos de superlotação infernal, comecei a prática tibetana de cem
mil prosternações e recitações completas. Agora, quando fazem a
contagem às cinco da manhã, os guardas me vêem fazendo
prosternações completas ao lado da cama."
Em algum momento temos que renunciar aos medos e às
esperanças, morrendo para a jornada ideal que imaginamos e nos
abrindo de novo para o mistério. Nachiketa não pediu para chegar
ao fim de uma jornada ideal, mas para estar plenamente onde
estava. Até mesmo uma prisão, até mesmo um palácio, pode ser o
local do despertar.
Às vezes, a entrega da iniciação é acompanhada de alegria e
êxtase. Uma vez, fui visitar um templo às margens do Rio Ganges,
em Benares, e os peregrinos estavam cantando para a Santa Mãe.
Cantaram sem parar por sete dias e sete noites. Quando ficavam
exaustos, eles dormiam no chão por algumas horas e começavam
de novo. Sem parar, sem comer, eles cantavam o nome de Deus.
Andando em círculos em volta do altar, uma multidão de devotos
cantava o santo nome ao som de harpas e tamborins indianos. Uma
mulher me contou depois que, nos primeiros dias, a dor, a fome e a
preocupação com a família interrompiam internamente seu canto.
Mas a cada interrupção ela voltava a se entregar ao santo nome de
Deus e aos poucos tudo nela foi diminuindo e ela continuou a andar
e a levar sua vela sem esforço, o espírito do Divino enchendo-a de
êxtase.
Um rabino e místico conta que sua passagem através do fogo não
se deu num templo, mas no altar de um amargo divórcio americano.
Ele tinha estudado muitos anos em Jerusalém com mestres
hassídicos e kabalistas e era agora professor e líder espiritual numa
devota comunidade judaica.

"Então, depois de quatorze anos, minha mulher me deixou,


condenando tudo o que eu tinha feito, dizendo que eu não ligava
para ela, que ela tinha desperdiçado a vida naquele casamento. Ela
lutou ferozmente pela custódia de nossos três filhos, pelo nosso
dinheiro e pela casa onde tínhamos morado, fazendo exigências
cada vez maiores. Cada vez mais zangada e destrutiva, ela me
denunciou publicamente para os amigos e para a comunidade.
Como professor espiritual, esse foi um período de agonia na minha
vida. Senti como se morresse muitas vezes, como se fosse
rasgado, forçado a atravessar o fogo, a abrir mão de meus filhos, de
minha reputação, e ainda assim manter o coração aberto."
Vários anos depois desse período torturante, o rabino diz:

"Eu não pretendia sofrer tanto, mas a dor me deu mais humildade e
honestidade em relação a mim mesmo e à vida espiritual. Fui
obrigado a me tomar mais simples, mais verdadeiro comigo mesmo,
menos afoito ao julgar os outros. Felizmente minha relação com
meus filhos voltou ao normal. E eu que falava de aprender a
compaixão! Foi duro, mas acho que precisava daquilo."

Essa é uma das tarefas da iniciação. Na medida em que nos


entregamos sinceramente ao trabalho do espírito, a vida se toma
simples e plena. O poeta Rilke fala sobre isso.

Veja só, eu quero muito.


Talvez eu queira tudo:
a escuridão que vem a cada queda infinita
e o brilho febril de cada avanço.

Tantos vivem e nada querem


e são elevados à condição de príncipe
pela facilidade escorregadia dos julgamentos levianos.

Mas o que você gosta de ver são rostos


que trabalham e sentem sede...

Você ainda não está velho e não é tarde demais


para mergulhar em suas profundezas cada vez maiores
onde a vida revela calmamente o seu segredo.
(Tradução de Robert Bly)

GRAÇAS ETERNAS

O último pedido de Nachiketa foi conhecer o que é imortal, eterno.


O Senhor Yama respondeu: "Para descobrir o que é eterno, você
deve examinar o coração da própria vida." Então, deu um espelho a
Nachiketa.
O mistério da identidade - "Quem sou eu?" - é uma das questões
espirituais mais importantes da humanidade. Será que somos este
corpo de carne e sangue? Será que a consciência é apenas um
produto do sistema nervoso, dos pensamentos e dos sentimentos?
Será que somos apenas herança genética ou será que, em sua
essência, nossa natureza é espiritual? Será que somos uma criação
da própria consciência, uma centelha do divino, um reflexo da
mente universal? São essas as perguntas dos místicos e dos
sábios.
Nos mosteiros da floresta onde pratiquei, os novatos são levados a
um bosque sagrado para ser ordenados. Então, os mais antigos
ensinam a cada novo monge a primeira e mais importante prática
de meditação: investigar o mistério do nascimento e da morte. Essa
prática consiste em meditar sobre a pergunta: "Quem sou eu?"
Primeiro, você examina o corpo físico para constatar que ele é feito
de terra, ar, fogo e água e para entender como esses elementos se
combinam nas diferentes partes do corpo: pele, cabelo, unhas,
dentes, sangue, coração, fígado, pulmões, rins. Nesse saco de pele
e ossos, quem é você? Nesse ponto, você começa a investigar a
questão da identidade, a deixar para lá tudo o que não é
permanente no corpo e na mente e a descobrir uma consciência
eterna além do nascimento e da morte.
A questão da identidade é colocada de muitas formas. Durante um
retiro de três meses de meditação do insight, houve uma palestra
de um velho mestre zen coreano, vindo de um mosteiro chamado
Nove Montanhas. Ele disse aos participantes que era uma perda de
tempo praticar fosse o que fosse durante três meses. Bateu o
bastão no chão e apontou para si mesmo: "A única prática que vale
a pena é perguntar: 'O que é isto?' 'O QUE É ISTO?'"
O sábio indiano Ramana Maharshi usava esse questionamento
para despertar seus discípulos. Quando vinham com problemas e
perguntas, ele os olhava com um "olhar de piedade", de profunda
compaixão por estarem tão perdidos. Então, ele os conduzia à
meditação do autoquestionamento. Pergunte a si mesmo: "Quem
sou eu? Quem nasceu neste corpo?" Responda essa pergunta e
todos os problemas estarão resolvidos. Fazer essa pergunta é olhar
no espelho de Nachiketa. Cada experiência é questionada: "É isso
que eu sou?
É isso o eterno?" As experiências se sucedem - idéias, imagens,
planos, amores, medos, sentimentos a favor ou contra alguma
coisa, sensações mutáveis de sons e visões do mundo físico - e
cada uma é vista como realmente é: passageira, limitada, incapaz
de durar. Uma a uma, são deixadas de lado: "eu não sou isso, eu
não sou aquilo", até que deixamos de lado toda a noção de eu e
repousamos num silêncio profundo e indizível.
Um místico judeu, o rabino Mezritcher, ensinava a mesma verdade:
para sair da realidade limitada para outra realidade, "temos que
virar nada, o verdadeiro estado, aquele que é antes e depois de
todas as coisas".
Quando despertamos, descobrimos que não somos limitados por
quem pensamos que somos. Todas as histórias que contamos a
nós mesmos - as opiniões, os problemas, a identidade inteira da
noção estreita de eu, "o corpo de medo" - desaparecem e um senso
eterno de graça e libertação se abre para nós.
Como diante da morte, abandonar a velha identidade tem um preço.
O preço é abrir mão de tudo o que pensamos ser, é o despojamento
total até que só o eterno permaneça. Por meio da iniciação, da
dificuldade e da graça, conhecemos outra realidade. Um lama
americano que entrevistei descreve da seguinte maneira sua
iniciação:

"Minha maior lição aconteceu durante o retiro de três anos. Foram


três anos e três meses totalmente preenchidos, dia e noite, por
meditações e preces ininterruptas e práticas puxadas. Mas, na
metade do último ano, recebi a notícia de que meu irmão mais novo
tinha morrido, de acidente ou suicídio. Recebi o telegrama e todo
meu ser entrou em choque. Eu estava muito exposto. Aquilo tinha
jogado minha família no caos, na dor e no desespero. Queriam que
eu voltasse para ajudar. Tinha que decidir se terminava ou não o
retiro, porque quem sai não pode voltar. Foi como estar na beira de
um enorme penhasco.
Consultei meu mestre tibetano. Ele me disse que, durante um retiro
de três anos, muitas pessoas nascem e morrem, que muitos
obstáculos advêm.
Ele disse que eu podia fazer o que quisesse, sem esquecer que
tinha prometido ficar em retiro durante três anos. Foi uma resposta
absoluta. Meditei e ondas avassaladoras de impotência, dor, culpa
e medo me sufocaram. Cada parte do meu condicionamento, a
identidade que tinha mantido até aquele momento, gritava para
voltar para casa. Sentia o conflito em cada célula do meu corpo. Eu
estava sendo dilacerado. Mas eu tinha me comprometido a praticar
no domínio da verdade absoluta, a buscar compaixão universal por
todos os seres. Para chegar a isso, percebi, tinha que deixar para lá
o apego pessoal.
Eu tinha que ficar. Foi como saltar de um penhasco na escuridão
total. Foi incrivelmente difícil. Mas, pela prática e pelo espírito do
meu professor, eu me liguei à liberdade absoluta de minha
verdadeira natureza, que não depende do que acontece. Agora
simplesmente sei que isso é verdade.
E, meio ano depois, quando saí e vi minha família, todos estavam
felizes por eu ter terminado o retiro, compreendendo que me
juntava a eles de maneira totalmente nova. Sinto agora que tudo o
que vivi naquele retiro e nas profundezas dos meus conflitos de
consciência os ajudou."

Há um paralelo na tradição cristã. Para despertar para o coração de


Jesus, temos que "estar dispostos a andar por muito tempo como
um cego na escuridão". Assim escreveu São João da Cruz.
Segundo a obra-prima da literatura contemplativa, The Cloud of
Unknowing, quem contempla tem de "morrer para si mesmo e
perder a consciência radical centralizada em si mesmo de seu ser,
pois é o eu que fica no caminho de Deus".
Um mestre sufi conta que foi assustador perder a identidade
quando sua vida espiritual se abriu:

"Observando o que eu pensava que era eu, o indivíduo separado,


tudo foi ficando claro. Houve primeiro um vazio, mas com ele veio
uma rajada de medo, um esforço para existir, uma espécie de
terror. Senti que estava abrindo mão de tudo - todo o meu senso de
eu tinha se dissipado. Um dia, viajava de avião quando senti como
se estivesse caindo pela janela e o terror veio em ondas, irracional
e muito forte. Eu me senti como um animal caindo no espaço. Só
mais tarde, quando aprendi a me soltar, a me deixar cair, foi que me
abri para um céu sem nuvens onde desapareci."

Em sua iniciação, esse professor sufi sentiu como se fosse morrer.


Um professor hindu com quem falei teve uma experiência mais
literal de quase-morte. Ele viveu muitos anos no Ocidente,
praticando yoga e meditação, e aos quarenta e três anos foi passar
um ano na Índia:

"Depois de meses no ashram, fui em peregrinação para Benares,


Allahabad e Rishikesh, e fiquei muito doente. Fui parar num hospital
imundo, com muito pouco dinheiro e sem amigos, tão fraco que mal
conseguia falar. Achei que ia morrer ali sozinho e, depois de muitos
dias de febre alta, eu realmente cheguei perto da morte. Fiquei ali
deitado, tremendo e com medo. Depois de alguns dias de confusão,
me ocorreu que era para isso que serviam meus anos de
treinamento. Fechei os olhos e senti o fim da minha vida a um sopro
de distância.
Senti o mundo inteiro de nascimento e morte girando em tomo de
mim. Estava em todo o meu corpo - a dor, a busca do prazer - e
quando enfrentei a enormidade do medo, foi como se tivesse
morrido um pouco. Então despontou um puro saber: 'Não é isso que
você é.' Percebi que o que os yogues tinham me ensinado era
verdade, e minha resistência desapareceu. Só encontramos o que é
imortal quando enfrentamos a morte. Quando voltei, era um homem
curado e mais humilde."

"Senti como se tivesse morrido um pouco" é uma frase semelhante


à usada por Ijukarjuk, um renomado xamã esquimó, para descrever
sua iniciação durante um jejum de trinta dias numa pequena cabana
na neve. Graças a essa viagem, Ijukarjuk se tomou um homem
sábio e um mestre da cura. Para nos libertar, como Nachiketa,
temos que fazer as perguntas sagradas e segui-Ias, mesmo que
seja até o Senhor Yama e o reino da morte. É lá que encontramos
graças eternas.
Há mais uma coisa na história de Nachiketa. Na conclusão, vemos
o jovem se prosternando pela última vez diante do Senhor Yama,
totalmente em paz. E então, como num passe de mágica, o Reino
da Morte se transforma nos campos de arroz de sua Índia nativa.
Lá, um último segredo lhe é revelado: morte e nascimento não são
coisas distintas. A renovação vem através da morte. Depois de
enfrentar a morte e a solidão, não temos mais medo de viver e a
vida floresce sob os nossos pés. Todos os lugares em que
passamos se tomam solo sagrado.
Nachiketa sabia disso em seu coração e caminhou em direção à
sua casa, para abraçar o pai e começar uma nova vida. Se a sua
história fosse pintada por um praticante zen, veríamos caminhando
ao seu lado a figura de um boi branco, domado.
SEGUNDA PARTE
OS PORTÕES DO DESPERTAR
OS PORTÕES DO DESPERTAR

Todas as tradições espirituais têm histórias daqueles que


despertaram de seu estado habitual, semelhante a um sonho, para
uma maneira sagrada de ser. Através da iniciação, da purificação,
da prece ou da entrega total à dança da vida, conheceram o que é
sempre presente e sagrado.
O fundador do Zen japonês, Dogen, explicou:

A verdadeira natureza da mente humana é a liberdade absoluta.


Milhares de milhares de alunos que praticam a meditação já
atingiram essa compreensão. Não duvide das possibilidades por
causa da simplicidade do método. Se você não consegue encontrar
a verdade onde você está, onde espera encontrá-Ia?

Há uma parte de nós que conhece a eternidade assim como


sabemos o nosso nome. Ela pode estar esquecida ou encoberta,
mas está ali. Como Nachiketa, temos apenas que pedir a verdade -
e vamos descobrir que ela está no espelho. Para meu professor
Ajahn Chah, esse centro interior é "Aquele Que Sabe".
Os praticantes espirituais que entrevistei descobriram esse centro
em si mesmos. Mas Aquele Que Sabe não está apenas nos
praticantes. Um famoso estudo sobre a vida espiritual norte-
americana revelou que a maioria dos entrevistados tinham tido uma
experiência mística em algum momento da vida. No entanto, o
estudo revelou também que a maioria não queria que aquilo
acontecesse de novo. Por quê?
Não conseguimos entender o que não dá para dizer em palavras e
que, portanto, não se encaixa em nossa visão do que é real. Como
mostra o estudo, quando tropeçamos em algo assim somos pegos
de surpresa e ficamos assustados. Nos mapas, os antigos
cartógrafos escreviam nos locais desconhecidos:
"Aqui há dragões."
Mas, assim como habitamos o mistério do nascimento e da morte,
assim como a noite é cheia de estrelas, assim como conhecemos a
necessidade de amor, temos em nós a possibilidade do despertar.
Ainda hoje, em muitas partes do mundo, pessoas consideradas
iluminadas, santas ou sábias são amplamente reverenciadas. O
sábio em nós também pode ser despertado, Aquele que Sabe pode
ser encontrado na nossa vida.
Há vários pontos de entrada para a sabedoria eterna do coração,
que chamamos de "portões do despertar". Cada portão é uma
entrada para nós mesmos, uma entrada para a verdade. Vamos
falar de quatro dos mais poderosos, pela descrição de pessoas que
os transpuseram. Você vai perceber que na sua vida também há
passagens assim.
4
O CORAÇÃO COMO MÃE DO MUNDO:
O PORTÃO DA TRISTEZA

Supere a amargura por não estar à altura da magnitude da dor


confiada a você.
Como a mãe do mundo, você está carregando a dor do mundo no
seu coração.
SUFI

Transpomos os portões do despertar levados pelas mesmas


melodias, pelas mesmas canções de alegria e desespero que nos
chamaram para o espírito. O oceano de vida nos traz ondas de
nascimento e morte, alegria e tristeza. Para muitos, assim como no
começo da busca, são as dolorosas verdades da vida que se
transformam em portão sagrado, que conduzem ao grande coração
da compaixão. Nosso retomo para o espírito pode ter começado
com o golpe da tragédia, com a devastação da perda. Agora, numa
oitava mais abaixo, a dimensão do despertar nos abre para a dor do
mundo. É o "Despertar pelo Portão da Tristeza".
Dizem que na manhã do seu despertar, o Buda olhou para o vasto
universo com olhos de sabedoria recém-despertos e lágrimas
começaram a rolar pelo seu rosto. Ele viu seres, em todas as
circunstâncias da vida, lutando pela felicidade. Mas, por equívoco,
esses seres agiam de maneira a causar mais sofrimento para si
mesmos e para os outros. Alguns dizem que, ao tocar a terra, as
lágrimas do Buda ganharam vida e se transformaram em Tara, a
Deusa da Compaixão.
No Muro das Lamentações, em Jerusalém, vemos as mesmas
lágrimas e súplicas por compaixão, não apenas pelo templo perdido
de Israel, mas pela tristeza de quem está distante do Divino.
Manhã e noite, o coração clama:

Responda, meu Deus, pois estamos em grande aflição. Por favor,


atenda nosso grito, permita que sua bondade nos conforte. Antes
que o invoquemos, nos responda, como disse o profeta Isaías:
"Acontecerá então que, antes de me invocarem, já eu lhes terei
respondido; enquanto ainda estiverem falando, já eu os terei
atendido."

Sem compreender a fonte de sofrimento, os seres humanos lutam


para atingir a felicidade através do controle e da ganância, da
violência e do ódio. Quando agimos por desilusão e ignorância, a
dor é o resultado inevitável. A sofreguidão, o envolvimento
agressivo com o mundo, traz consigo dificuldade e perda, mesmo
quando a intenção é buscar segurança e encontrar felicidade.
O Buda viu o que vêem os corações sábios: que a vida na terra é
bela mas dolorosa. Só que nossas reações confusas ampliam essa
dor fundamental, transformando-a num sofrimento ainda maior.
Enquanto escrevo estas palavras, decisões humanas fomentam a
guerra em vinte e oito países. Milhões morrem de fome, embora
haja comida em abundância. Milhões definham em casa ou em
hospitais, vitimados por doenças contra as quais temos remédios e
vacinas. Esse sofrimento não é alheio a nós. A professora budista
Sylvia Boorstein conta que uma vez foi à Sinagoga no dia em que é
costume rezar por parentes mortos no Holocausto e se espantou
com o número de pessoas que se levantaram para rezar. "Olhei
para todas aquelas pessoas de pé e pensei: 'Será que todas elas
são sobreviventes diretos?' E então percebi que todos nós somos
sobreviventes diretos e me levantei também."
Às vezes, na vida espiritual, temos a impressão de que todas as
barreiras que erguemos para nos proteger das dores do mundo
ruíram. Com o coração sensível e exposto, sentimos uma afinidade
natural com tudo o que vive. Os gritos das crianças de rua ecoam
em nossa mente, imagens de terrorismo, de racismo, de destruição
ecológica, de pobreza e de escravidão enchem a nossa
consciência, que parece se abrir às lutas da humanidade e da
própria terra. Às vezes, sentimos como se estivéssemos num
cemitério, vendo o sofrimento de inúmeras gerações. E percebemos
que não há como fugir.
Mas é preciso abrir os olhos e o coração para o sofrimento do
mundo para encontrar a liberdade e a paz. Cada um à sua maneira,
todos nós, como futuros budas, temos que examinar esta questão:
qual é a verdade do sofrimento na vida humana e qual é a causa
desse sofrimento?
No Sermão do Fogo, o Buda fala da gênese das tristezas do
mundo.

Tudo está queimando. O olho está queimando e o que se vê está


queimando. Os ouvidos e os sons que eles ouvem estão
queimando, o nariz, a língua, o corpo e a mente. Com que fogos
estão queimando? Com os fogos da ganância, do ódio, da
ignorância, queimando de ansiedade, ciúme, perda, decadência e
aflição. Considerando esse sofrimento, o seguidor do caminho fica
cansado dos fogos, cansado da ganância e do ódio que alimentam
a busca ávida de visões, sons, cheiros, gostos, corpo ou mente.
Cansado, ele se desnuda dessa avidez e, pela ausência dessa
avidez, ele fica livre.

Ver a verdade do sofrimento é chegar à liberdade através do portão


do sofrimento. Não dá para compreender nem para ter controle
sobre as condições mutáveis da vida. Não dá para ter controle
sobre o amante, o companheiro, a casa, o trabalho. Não dá para ter
controle nem mesmo sobre os filhos. Dá para amá-los e protegê-
los, mas qualquer tentativa de controlá-Ios gera sofrimento. Prazer
e dor, exaltação e vergonha, sucesso e fracasso se alternam dia
após dia. No mundo, a dor e o prazer se entrelaçam, assim como a
noite se entrelaça ao dia. Quem resiste a essa verdade,
inevitavelmente sofre.
Ramakrishna foi um sábio hindu cujas visões e devoção se
tomaram legendárias na Índia no século passado. Dizem que uma
vez ele ficou vários dias perdido em orações às margens do
Ganges, à espera de uma revelação do rosto da Divina Mãe,
criadora da própria vida. Então, num dado momento, a superfície da
água se agitou e uma bela deusa saiu do rio, os cabelos brilhantes
pingando, os olhos como lagos que contêm toda a criação. Ela abriu
as pernas e seres saíram de seu corpo - crianças e animais, uma
fonte de nascimentos de todas as espécies. Então, num momento
terrível, ela se abaixou, levou uma criança recém-nascida à boca e
começou a comê-Ia, sangue escorrendo pelo peito. Ela que cria é
também a que destrói, ela é a fonte, a continuação e o fim da vida.
Então, lentamente, a deusa desapareceu nas ondas, deixando
Ramakrishna a contemplar seu poder.
Quando abrimos o coração através do portão da tristeza, sentimos
que a dor e a insatisfação se entrelaçam ao tecido da experiência.
Em meio ao prazer, ficamos nos perguntando quando ele vai
acabar. Com o controle total da situação, ficamos preocupados com
a perda. Até mesmo o nascimento mais belo e a morte mais
abençoada trazem a dor, pois entrar e sair do corpo são processos
dolorosos. Ao longo do dia, experiências agradáveis, neutras e
desagradáveis se sucedem sem cessar. Essa mutação sem fim é
em si mesma uma fonte de dor e nossa maneira habitual de reagir a
ela gera uma continua sensação de luta.
Uma estratégia para atingir a liberação é focalizar a atenção nessa
experiência continua de insatisfação e dor, pois em meio a ela
podemos chegar a uma liberdade que nos livra da avidez e da
identificação.
Os alunos da tailandesa Maha Naeb aprendem a entender a
insatisfação prestando atenção meticulosa ao que motiva cada ação
e cada movimento ao longo do dia. Para isso, o aluno fica
absolutamente quieto, sem mudar de posição nem fazer nada, a
menos que perceba qual é a experiência, do corpo ou da mente,
que precisa da mudança. Ao acordar de manhã, ele fica deitado
meditando em silêncio, sem se mexer. Depois de algum tempo,
percebe que ficar deitado numa só posição faz com que o corpo
fique dolorido, e então se movimenta para se sentir melhor.
Passado algum tempo, sente por exemplo a bexiga cheia e vai ao
banheiro para aliviar essa fonte de dor. Mas o assento da privada é
duro e o banheiro é frio. Assim, depois de aliviar esse desconforto,
sai do banheiro e vai se sentar numa poltrona confortável. Mas
então é a barriga que se manifesta: é a fome matutina. Para aliviá-
Ia, vai para a cozinha comer. Mas depois precisa arrumar a cozinha,
porque restos de comida apodrecem e cheiram mal. Depois fica
sentado mais um pouco, até que outra dor ou desconforto faça com
que se movimente. E assim vai.
A observação cuidadosa da origem de cada ação revela um
movimento constante para aliviar o sofrimento. Quem enfrenta essa
verdade não acha que ela seja uma fórmula de desespero, mas um
portão para a compaixão. Porque, no coração, a liberdade e o amor
são ainda maiores do que o sofrimento. Quem enfrenta a dor do
mundo desperta um coração destemido e generoso, direito inato da
humanidade.
O poeta sufi Rumi celebra a sabedoria que se dispõe a mergulhar
nos fogos da vida.

A presença de Deus está ali à nossa frente,


um fogo à esquerda,
um lindo córrego à direita...
Quem entra no fogo
aparece de repente no frescor do córrego,
A cabeça que desaparece sob a superfície da água,
essa cabeça emerge do fogo.
A maioria das pessoas se resguarda do fogo,
e é nele que acaba...
Se você é amigo de Deus,
o fogo é a sua água.
Você deveria pedir cem mil
pares de asas de mariposa,
para poder queimá-los, um par por noite.
(Tradução de Coleman Barks)

Um professor de meditação conta que o sofrimento foi seu portão


para o despertar e que ele conseguiu se abrir para esse fogo e ficar
impassível no meio dele.

"Minha meditação era sempre muito difícil. Tinha muita tensão e dor
no corpo e também no coração. Como ambientalista, lidava havia
anos com o sofrimento do mundo, e uma multidão de imagens e
tristezas afluía quando eu meditava. Era como se eu estivesse no
meio da floresta tropical sendo queimado e devastado. Via a guerra
e a poluição, imagens do que faziam à terra. Eu ficava ali chorando,
mas continuava, mesmo quando era tudo muito forte. Eu não queria
fugir do mundo. Tinha que enfrentá-lo, entrar nele. Então houve
uma mudança.
Eu estava no ashram, praticando com um pequeno grupo de alunos
adiantados. Tinha sentido muita dor física naquelas semanas, mas
fiquei sentado, imóvel, com a mente muito focalizada e muito quieta.
Meus pensamentos diminuíram até quase sumir e minha
consciência desceu ao centro do coração. Os sons, sensações ou
pensamentos que surgiam eram como vibrações sutis atravessando
o espaço do meu coração. Isso era tudo o que eu sentia. Era como
se a quietude do meu coração se expandisse até se transformar no
mundo. As experiências eram pequenas vibrações que passavam
sutilmente por esse vasto coração cheio de paz.
Então, de alguma forma, eu me soltei ainda mais e entrei na mais
profunda paz imaginável, sem qualquer som ou sensação. Eu
estava totalmente silencioso e vazio. Eu não sentia meu corpo nem
minha mente, só pura consciência. Toda minha identidade se
dissipou. Foi assombroso, fantástico, além do êxtase. Percebi que
nunca mais sentiria medo da morte porque só essa consciência
eterna, não-nascida, é real.
Eu senti que no mundo não há nada que se compare a essa paz.
Visões, sons ou pensamentos, por mais agradáveis que sejam, são
perturbações dolorosas diante desse silêncio. Quando voltei,
entendi o sentido de sofrimento para o Buda: cada nascimento leva
à morte, a luta dos opostos - noite e dia, alegria e tristeza, tudo o
que surge e passa - é inerentemente dolorosa.
Logo depois disso, numa estrada da Índia, vi um carneirinho
nascendo. Fiquei pasmo, vendo a luta do nascimento naquele
carneirinho que surgia. Percebi que qualquer identificação com esta
vida - com o processo de nascimento, envelhecimento, morte - é
sofrimento. Fiquei ali parado, chorando pelo sofrimento do mundo:
eu o sentia com compaixão. Eu sabia que jamais esqueceria.
Mas é assombroso também como é forte o desejo, as raízes do
prazer e do estímulo. Depois de alguns meses, voltei ao Ocidente,
atrás de música e vinhos finos. A força do querer e da indulgência
voltou de maneira exorbitante, uma reação ao que eu tinha visto.
Mas continuei a seguir minha prática espiritual, porque uma parte
de nós sabe quando vemos a verdade. Não dá para esquecer."
Quando respeitamos o portão do sofrimento, surge o maravilhoso
poder da compaixão. Essa compaixão é descrita como a reação do
coração à dor de qualquer outro ser. É uma ternura por todas as
formas de vida, por tudo o que nasce e morre, por todas as
criaturas que vivem do nascimento e da morte umas das outras. Às
vezes é compaixão por nós mesmos. A necessidade de tal
compaixão está em cada jornada, budista ou hindu, judaica ou
cristã. A questão do sofrimento humano é central na jornada da
graça e da redenção.
Uma freira relata:

"No mês anterior à Páscoa, houve as preparações de costume, com


preces e vigílias extras. Era primavera e resolvi me entregar mais
do que nunca a elas. Passei horas contemplando o mistério de
Cristo na Cruz. Chegou a Páscoa, vivemos a alegria da
ressurreição e toda a comunidade se sentia ainda mais sensível.
Uma noite, cerca de uma semana depois, eu estava no meu quarto
olhando para o crucifixo moderno, a única coisa que tínhamos na
parede. De repente, fui tomada pela tristeza e pela dor. Meu corpo
começou a doer e deitei-me na cama em agonia. Senti como se
estivesse morrendo, tão real era aquilo tudo. Comecei a chorar por
Jesus, por seu sofrimento e morte na cruz. Eu era Maria segurando
o filho crucificado e sabia que essa crucificação não tinha acabado.
Eu era todas as mães que tinham perdido seus filhos na guerra, em
acidentes, na doença, que ainda hoje não têm como dar de comer
aos filhos famintos. Eu era a mãe presa num terremoto na Armênia,
lutando desesperadamente, incapaz de salvar o filho. Eu era todos
os soldados nas batalhas sem sentido, eu era as vacas e os porcos
a caminho dos matadouros, eu era os generais modernos e os
soldados romanos, eu era a mãe carente e o explorador da
pobreza, a vitima e o algoz, todos que morreram, todos que sofrem.
Fiquei deitada, velada pela dor do mundo - tanta dor. Não dava para
suportar. Meu coração chorava.
Então Jesus estava no meu corpo e juntos suportamos o sofrimento
do mundo. Percebi que suportá-lo com compaixão era divino. Meu
coração se abriu graças a essa dor sagrada. É esse o propósito de
Deus para as nossas dores; unir o coração de todos nós. Há tanta
compaixão. Compaixão dentro da compaixão."
Às vezes aprendemos essa compaixão na solidão de nossa cela,
outras vezes precisamos que outro ser humano veja a nossa
tristeza e toque o que está fechado em nós.
Uma das dádivas de um bom professor é a capacidade de segurar
o espelho da compaixão para que nosso coração saiba de novo se
abrir. Um mestre zen fala de seus primeiros anos de prática:

"Eu tentava tanto, enfrentava tanta aflição e dor na minha prática.


Eu havia atingido o meu limite - estava prestes a desistir. Então
procurei a mestra que, vendo a profundeza da minha luta, deixou de
ser uma roshi severa e exigente. Foi como se ela tivesse se
transformado numa Deusa da Compaixão. 'Muito bem, muito bem.'
Senti que ela havia tocado o lugar mais sensível do meu coração
com sua compaixão e com sua voz."

Era assim que Dipama Barua, avó e anciã budista, trabalhava com
seus alunos em Calcutá e em suas visitas aos Estados Unidos. Os
alunos a procuravam com perguntas relativas à meditação, que ela
respondia pacientemente. Depois oferecia um chá e fazia perguntas
interessadas sobre a saúde e a família de todos. Uma vez, um
aluno contou que seus pais estavam muito aborrecidos pelo fato de
ele estar estudando meditação na Índia. A mestra tirou de baixo do
colchão parte de suas economias e entregou a ele, dizendo:
"Compre um presente da Índia para a sua mãe." Quando os alunos
falavam de suas lutas ou estavam tristes por causa das dores do
mundo, ela estimulava a prática. Dizia: "Mas não é só isso que
existe." E os abençoava e os abraçava, fazendo carinho e repetindo
palavras suaves de amor e bondade, até que eles se acalmavam,
como que envoltos na graça de uma grande mãe.
É esse o caminho para a liberdade pelo portão da tristeza. A
compaixão que nele encontramos permite que a plena verdade da
vida e da encarnação, sua dança de agonia e beleza, seja vista e
aceita sem resistência.
Se aceitarmos o que o mestre zen John Tarrant chama de abertura
para as "Lágrimas do Caminho", vai nascer a sabedoria. No livro
The Light lnside the Dark, ele cita o relato de uma praticante que,
tomada por uma aflição inesperada, chorava noite e dia, até que o
choro começou a mudar.

Fui invadida por lembranças do meu pai e da dor de suas ausências


e de ter sido entregue a instituições, negligenciada e desdenhada.
Achava que estava me abrindo e então essa espessa questão
pessoal me arrebatou. Fiquei totalmente envolvida. Chorava e
chorava. Tudo o que eu via parecia ser um novo motivo para as
lágrimas. Depois de vários dias, meu estado de espírito começou a
mudar e minhas lágrimas ficaram mais impessoais, mais sem causa
- lágrimas de comoção pela vida. Fui tomada pela ternura,
especialmente por coisas negligenciadas, abandonadas - um
determinado tom de azul no céu do amanhecer, os ossos de rato
que as corujas deixam cair. Estas últimas lágrimas são as lágrimas
da iniciação. Somos arrebatados pela amplidão.

Quem, nos recessos profundos do coração, abre mão de tudo e


deixa de lado a luta e a avidez, atinge aquele saber que é eterno.
Como disse um professor:

"Depois que me abri além de qualquer senso de mim mesmo, senti


que 'minha dor' se transformou na 'dor', a dor do mundo. Vi que o
universo se move e o planeta está em fogo - uma dor imensa, que
no entanto nada perturbava e que eu conseguia suportar. Ela
repousava em meio a uma paz imensa."

No portão da tristeza nós nos libertamos da ilusão e da avidez, do


falso alheamento em relação à vida, e tudo suportamos.
Repousamos no grande coração do Buda, no coração d'Aquele Que
Sabe.
5
NADA E TUDO:
O PORTÃO DO VAZIO

Você vive na ilusão e na aparência das coisas. Há uma realidade,


mas você não sabe disso.
Quando souber, vai ver que você não é nada. E, sendo nada, você
é tudo. É isso.
KALU RINPOCHE

De onde vem nossa vida de alegria e tristeza? Quando a fonte da


criação é personificada, recebe nomes como Alá, Brahma ou Deus.
Mas alguns experimentam a fonte divina fora da personificação.
Segundo místicos e meditadores que tiveram essa experiência, o
cosmos sai de um vazio sagrado, o Grande Vazio. Os místicos
judeus o descrevem da seguinte maneira:

Do vazio Deus fez o mundo; ele existe só no coração de Deus. Para


conhecer nosso lugar temos que ser outra vez como nada, e então
o que é santo vai nos traspassar e iluminar tudo o que fazemos.

O que significa "ser como nada"? Compreender o vazio ou a


ausência de eu é desconcertante: é difícil de explicar, assim como a
água é óbvia, mas difícil de explicar para um peixe. Mas a
experiência dessa verdade nos abre para a paz e para a alegria.
Angelus Silesius, um místico da Renascença Cristã, explica:

Deus, cujo amor e alegria estão em toda parte,


você só pode visitá-lo
se você não estiver lá.
(Tradução de Stephen Mitchel)

Ao receber o espelho do Senhor da Morte, Nachiketa foi levado a


investigar a fonte do próprio ser. Nas profundezas desse
questionamento, os praticantes da meditação podem descobrir a
experiência do vazio. Esse vazio tem dois lados: o vazio do eu e o
vazio do vazio.
O vazio do eu aparece primeiro na falta de controle sobre o "eu"
supostamente fixo. Quem se volta para dentro para meditar ou rezar
se depara imediatamente com a corrente mental de pensamentos
em constante mutação e com as infindáveis ondulações de
humores e emoções que dão cor a cada momento. As emoções e
correntes de pensamentos têm vida própria. Nelas, uma visão
completa da infância ou a repetição de complexas experiências
adultas aparecem, arrebatam a nossa atenção e desaparecem em
poucos momentos. Em geral, achamos que somos a soma desses
pensamentos, idéias, emoções e sensações corporais, mas neles
não há nada de sólido. Como dizer que somos nossos
pensamentos, opiniões ou emoções se eles nunca são os mesmos?
Recuando um passo, conseguimos ver quem é que sabe disso, o
espaço de saber em que isso surge.
Na meditação, podemos tirar a atenção da idéia de que tudo faz
parte da "minha experiência" e levá-Ia a uma observação mais
silenciosa, menos possessiva. Essa observação silenciosa nos
permite ver o primeiro aspecto do vazio, a ausência do eu ou do
ego - a descoberta de que a idéia de si mesmo como um sólido ser
isolado é apenas uma imagem mental. É isso que Alan Watts
chama de segredo mais bem guardado em The Book: On the Taboo
Against Knowing Who You Are.
Há um monge tibetano que era um bem-sucedido cineasta e
produtor de televisão nos anos sessenta, quando conheceu seu
professor, o Lama Yeshe. Quando foram apresentados, o Lama
Yeshe descobriu que seu futuro aluno fazia filmes e disse: "Você
faz filmes para TV? Sou um bom ator. O melhor! Posso ser
qualquer coisa porque sou vazio. Não sou nada." E riu.
Emily Dickinson também fez uma alusão ao nosso sentimento
intuitivo dessa verdade:

Sou ninguém! quem é você?


Você é - Ninguém - Também?
O que significam essas misteriosas descrições do não-eu? Para
uma praticante da meditação, a experiência do vazio de eu foi um
sinal em sua vida espiritual. Ela tinha estudado em vários lugares
da Índia, com vários lamas e mestres. Voltou depois de muitos anos
na Ásia, mas ainda passava dias meditando.

"Nas montanhas, eu acordava cedo, ainda no escuro. Sentada em


silêncio dia após dia, tive uma experiência maravilhosa e terrível. Eu
desapareci. Tudo o que eu era se dissipou. Não sei que nome dar a
isso e nem sei se dá para lhe dar um nome, nem mesmo Nirvana,
porque está antes dos nomes. Uma tal felicidade! Sabia que aquele
coração aquele corpo não eram mais meus, eram do mundo."

No vazio do eu o mundo fica transparente, claro, descomplicado.


Percebemos que a idéia do eu separado é falsa. O que somos no
eu convencional desaparece no silêncio, na paz e na pura
experiência de ser, sem ninguém para ter essa experiência.
Identificado o vazio do eu, chegamos à segunda dimensão do vazio:
o vazio de todos os fenômenos. Um texto budista, o Samutta
Nikaya, diz o seguinte:

Imagine que uma pessoa que não é cega veja as muitas bolhas do
Ganges que passam com a correnteza e, depois de cuidadoso
exame, descubra que são vazias, irreais, insubstanciais. Da mesma
maneira, é possível examinar impressões sensoriais, percepções,
sentimentos e pensamentos, tudo o que experimentamos, e
descobrir que são vazios e sem um eu.

O vazio do eu nos abre para a experiência do vazio em si mesmo, o


vazio dinâmico do qual nascem todas as coisas. Na tradição
budista, o despertar para o vazio é um portão para o Nirvana, a
liberdade de coração a que se dá o nome de Não-Nascido, Não-
Criado, Não-Condicionado.
Místicos de todos os tempos falam da descoberta desse portão. Há
várias maneiras de transpor esse portão, mas é mais comum
transpô-lo através da meditação, através de um encontro com
alguém desperto ou através da imersão numa solidão tão profunda
que nos toma transparentes.

DESCOBERTA ATRAVÉS DA MEDITAÇÃO

Esta é a experiência de um professor durante um longo retiro de


meditação do insight:

"Depois de vários meses, só precisava de três ou quatro horas de


sono. A ordem era ficar absolutamente presente e. alerta, sem
reagir a nada que acontecesse. Os pensamentos e emoções
vinham e passavam. Houve dias de intensa solidão, de lágrimas e
aflição, e depois momentos de arrebatamento. Em certos dias eu
me sentia como se estivesse morrendo, como se meu corpo
estivesse se desintegrando. Estava imerso num mundo de morte e
destruição. Mas depois tudo isso se dissipou. Era como se flutuasse
pelas horas de meditação, com ondas de luz e êxtase, o corpo
dissolvido e aberto como o céu, sem limites.
À medida que a minha quietude aumentava, as experiências vinham
com maior rapidez. Embora houvesse um fluxo constante de
pensamentos, eu conseguia observar cada um deles. Cada forma-
pensamento criava um mundo de idéias, lembranças ou fantasias e
sumia logo que era observada. No silêncio mental cada vez mais
profundo, comecei a sentir sutis pré-pensamentos, como se a
mente estivesse grávida, prestes a liberar o pensamento seguinte.
Sons, cheiros, emoções e sensações, por menores que fossem,
eram observados e libertados, como vaga-lumes na noite. Mantive a
rotina de sentar e andar, sentindo como se estivesse sob o mar
num mundo silencioso e transparente.
Uma tarde, eu me deitei para meditar no calor do dia. Meus olhos
se fecharam e despontou a consciência de todas as sensações
dessa nova postura. Flutuando, as percepções apareciam e
desapareciam como bolhas no refrigerante. Eu me abandonei a isso
e as percepções vieram ainda mais depressa, como se o universo
pulsasse rapidamente - pulsos de luz, como vaga-lumes. Um
momento de medo veio e se foi, e então minha mente se abriu e
tudo ficou tolamente silencioso, além do silêncio. Não havia eu, nem
experiência, nem palavras. Só um saber. O mundo repousava num
oceano de paz de onde vinham todas as manifestações - que logo
sumiam. Foi assombroso. Eu sabia que a essência da consciência
era essa grande paz. Eu sabia que eu, como tudo, era apenas uma
manifestação na mente. E além desse mundo onde tudo nasce,
muda e morre, está essa realidade sempre presente. É claro que
tudo voltou, mas mais luminoso, transparente, brilhante de alegria."

Às vezes, os primeiros momentos dessa abertura para o não-eu são


bem mais simples. Outro professor conta como descobriu o vazio:

"Eu estava caminhando e meditando no jardim junto ao templo.


Lembro-me do lugar exato. Ergui o pé, voltei a pousá-lo na terra,
senti todas as sensações do movimento e percebi que ele não
estava acontecendo para NINGUÉM, que não havia eu! Veio o
pensamento: 'É um processo vazio.' E esse pensamento foi tão
vazio quanto o passo."

Para uma professora zen, a compreensão do vazio veio em silêncio.


Ela chama o seu caminho de "perseverança suave" e explica: "Eu
não era uma estudante zen do tipo guerreiro."

"Eu estava meditando com o koan MU, fazendo o meu zazen com
os outros. Estava bem relaxada e MU estava se repetindo, tinha
assumido vida própria. Então, eu simplesmente desapareci. Havia o
sentar e o meditar e sons e MU, e era tudo MU. Eu era nada e era
MU e, quando fui ver o mestre, ri muito. Era isso que eu sempre
tinha sido."

Dizem que o espírito de meditação deve continuar quando nos


levantamos da almofada. Um professor de meditação fez um longo
retiro na Índia, mas sua descoberta começou no quintal, com um
cachorrinho doente no colo.

"As pessoas costumam abandonar cachorros no templo e nesse


retiro havia uma ninhada com vários cachorrinhos doentes. Sentei-
me por vários dias, sempre com um cachorrinho. Aquilo me
dilacerou. Muitos cães iam e vinham, mas nesse dia vi que a
verdade fundamental da vida não muda, embora se manifeste nos
corpos em mutação. Continuei meditando com os cachorrinhos e
sua dor de barriga e depois voltei para a sala.
Minha paz era grande. Pensamentos e intenções despontavam e se
dissolviam, mas eu não tinha impulso para segui-los. E então
aconteceu um abandono mais profundo, como se toda a percepção
se dissipasse no espaço, no vazio. De repente não havia eu, não
havia nada a fazer nem a resolver. Tudo era bobagem. Eu me ergui
da almofada com um enorme sorriso e no vazio despontou a
alegria, um rio sem margens, uma dança do vazio, uma
confirmação de liberdade em que a vida não é problema, o eu não é
problema, nem mesmo os cães doentes são um problema."

O VAZIO NA PRESENÇA SAGRADA DE OUTRA PESSOA

A compreensão do vazio é contagiosa: parece que podemos pegá-


Ia dos outros. Sabemos que, quando uma pessoa triste ou zangada
entra numa sala, nós também ficamos tristes ou zangados. Então,
não é de estranhar que a presença de um professor que esteja
vazio, aberto e desperto tenha uma forte influência sobre os outros,
especialmente sobre quem está preparado. Em todas as tradições,
há histórias sobre o despertar de alunos através de encontros
diretos com o mestre. Um professor de meditação e raja yoga viveu
uma experiência decisiva quando assistia a uma palestra na
Califórnia, e essa experiência o levou a uma estada de dez anos na
Índia.

"Estava ouvindo Krishnamurti na sua escola em Ojai Valley, num dia


de primavera. Ele estava sentado numa cadeira de madeira, um
velho frágil de presença grandiosa. Havia uns mil alunos sentados
na grama, abrigados num bosque de carvalhos antigos. Todos
tinham a atenção voltada para o palestrante, que desafiava tudo o
que sabíamos sobre a vida e sobre nós mesmos. Ele falava da
verdadeira atenção. 'Vocês estão ouvindo de verdade? Não com as
idéias limitadas de um pensamento ou reflexão, mas no silêncio
total além da mente?' E naquele instante minha mente parou. Entrei
numa enorme quietude. O bosque começou a se expandir e a
flutuar, como se estivesse no centro da galáxia. As palavras saíam
das árvores. Eu me senti totalmente vivo e no entanto morto, além
de mim mesmo. Tudo estava cheio de luz e só existia um espaço
eterno e ilimitado. Sempre. Ouvindo as palavras flutuar como um
sonho, soube que, com Krishnamurti, eu tinha conseguido me abrir,
como se a alegria do despertar fosse contagiosa e eu a tivesse
apanhado, sentido, penetrado."

No Zen, a expressão "palavra decisiva" é usada para descrever


aquelas poucas palavras que fazem a mente se voltar para sua
verdadeira natureza de um momento para o outro. Foi o caso da
expressão de Krishnamurti: "silêncio além da mente". Há registros
desses momentos de despertar em centenas de histórias zen,
conhecidas como koans. Um exemplo é a resposta do mestre Hui
Neng quando lhe fizeram perguntas sobre uma bandeira
esvoaçando ao vento. Era a bandeira que se movia ou o vento? Hui
Neng respondeu: "Nenhum dos dois. É a mente que se move."
Na presença de um professor habilidoso, uma pergunta assim pode
levar o aluno a sair das particularidades do momento para uma
percepção fora do tempo. Lembramos da nossa natureza original,
do coração sem limites que contém todas as coisas, embora não
seja limitado por elas. Um professor budista aqui do Ocidente
lembra do que lhe aconteceu um dia nas montanhas da Índia.

"Eu me entregava apaixonadamente havia vários anos à meditação.


Uma noite, o professor nos reuniu para cantar, rezar e assistir a
uma palestra. Eu estava sentado na fileira da frente, completamente
atento. No meio da palestra, ouvi o professor dizer: 'Seu rosto é
como uma máscara.' Essa frase foi como um relâmpago num céu
azul e claro: abriu uma fenda no meu mundo. De um instante para o
outro, tudo o que eu pensava que sabia se dissipou. Eu tinha feito
umas cem viagens de ácido antes de ir para a Ásia, mas elas
perderam a importância comparadas a isso. Era uma dimensão
totalmente nova, fora de todos os sentidos. Transcendi meus
sentidos e minha identidade, tudo o que eu pensava que eu era.
Estava além do prazer e da dor, do êxtase e da alegria. Chorei por
um bom tempo, tão belo era aquilo. Isso foi há vinte e seis anos. Em
todos esses anos, é essa realidade por nascer que importa mais do
que qualquer outra coisa. É uma tocha que ilumina tudo. É tudo o
que existe. E, de alguma forma, está presente neste momento."

Várias circunstâncias se juntam num despertar em conjunto. Há a


abertura do aluno, uma sincera disposição para descobrir. Há em
geral um período preparatório de prática e purificação. O
acontecimento acima se deu depois de muitos anos de rígidos
retiros de Vajrayana e Vipassana. Há o respeito e a admiração que
envolvem o mestre. E há o campo de consciência do mestre - a
presença direta de amor, liberdade e vazio que ele consegue
transmitir.
Uma professora de meditação, com vinte anos de prática orientada
por mestres de várias tendências budistas, disse que ainda falta
alguma coisa na sua vida:

"Eu estava fazendo uma peregrinação espiritual pela Ásia. Recebi,


pelo correio, um convite para visitar um mestre para quem eu havia
escrito. Em sua linda carta, ele descrevia o momento em que o
Buda ofereceu uma flor para Maha Kasyapa e o Zen nasceu.
Graças a essa carta, meu amigo e eu acabamos indo para a Índia
para visitar esse guru de cidade pequena, um avô com um punhado
de alunos, escondido em sua casinha numa viela.
Eu me debatia com o barulho e o caos da Índia. Passavam os dias
e eu pensava: 'Não é nada disso, nada está acontecendo.' Como
me parecia que ele dava mais atenção aos homens da sala, eu
pensava: 'Ele não passa de uma machão indiano que não entende
as mulheres.' Todos os dias as pessoas se curvavam diante dele e
eu resmungava para mim mesma: 'Para que tantas reverências?
Estou fora. Sou uma feminista dos Estados Unidos.' Ele nos pedia
para questionar quem pensamos que somos, não com esforço, mas
com abandono. 'Abandonem o que busca e o que é buscado', dizia
ele. Então, uma tarde, ele ficou me olhando nos olhos, sem desviar
o olhar. Eu me senti como um animal acuado. E veio um medo
tremendo, como se algo enorme estivesse para acontecer. Era
como se eu tivesse me desviado dessa coisa por éons - mas agora
tinha sido apanhada e não conseguia fugir. Não podia mais evitá-Ia.
Ele disse algumas palavras, mas quais eram não importava.
Despontou uma tremenda luz e uma amplidão de nada e eu me fui,
para lugar nenhum e para toda parte. E então uma tremenda
alegria, risadas e lágrimas. Tudo na minha vida que tinha levado
àquele momento fez sentido, cada luta e cada medo. E agora tinha
acabado. Eu era tudo e nada e estava completamente livre. Era
isso. Depois daquilo, por mais que eu me atirasse ao chão diante
dele, não seria o bastante, tamanha era minha gratidão. Eu lhe teria
dado qualquer coisa, mas é claro que ele não queria nada. E agora,
no meu trabalho com os alunos, vejo com surpresa que eles
pensam que há alguma coisa a conseguir, alguma coisa a fazer,
quando é tão óbvio que não há nada a fazer - mas mesmo assim
fazemos. Há o fazer que é necessário para chegar a esse lugar de
não-fazer.
Eu tinha uma idéia ingênua sobre a facilidade de levar essa
liberdade para os outros. Você não precisa ir para a Índia para
encontrá-Ia. Basta a intenção sincera. Esteja onde estiver, se você
realmente quer liberdade, o universo vai corresponder. Não tem
outro jeito. O caminho lhe será mostrado."

A DESCOBERTA NA SOLIDÃO

O conhecimento do vazio também nasce na solidão do coração.


Falando de Jesus, o Evangelho de Marcos nos diz:

De madrugada, estando ainda escuro, ele se levantou e retirou-se


para um lugar deserto. E ali orava.

Don José Rios, um venerado xamã dos índios huicholes do México,


visitou os Estados Unidos quando tinha 106 anos. Disse ele:

Sofri muito em meus oitenta anos de treinamento. Muitas vezes fui


sozinho para as montanhas. Mas vocês precisam fazer o mesmo.
Porque não sou eu quem vai ensinar a vocês os caminhos dos
deuses. Essas coisas cada um tem de aprender por si mesmo, na
solidão.

Na solidão, nem sempre encontramos o silêncio. No começo, a


solidão é até barulhenta, cheia dos conflitos do corpo e dos
contínuos comentários da mente, que Chogyam Trungpa chamava
de "falatório subconsciente". As práticas de meditação nos ajudam
a descobrir um caminho para a genuína quietude. Nelas,
descobrimos que há muitos níveis de silêncio. O primeiro é o
silêncio externo, a simples ausência de barulho. O segundo é o
silêncio do corpo, uma quietude física cada vez maior. Aos poucos,
a mente começa a se aquietar. Descobrimos então o silêncio que é
testemunha de todas as coisas e depois vinte outros níveis de
absorção silenciosa na prece e na meditação. Mais no fundo ainda,
chegamos ao indescritível silêncio além da mente, o silêncio que dá
origem a todas as coisas. Penetrar no silêncio é uma viagem, é se
entregar a níveis cada vez mais profundos de quietude até
desaparecer na vastidão.
Bernadette Roberts, uma respeitada mística cristã, foi freira durante
dez anos e agora é mãe de quatro filhos. Em The Experience of No
Self, ela fala de sua jornada para o silêncio, das crises iniciais de
medo; até que finalmente se perdeu no silêncio, saindo de seu
abraço só uma vez ou outra, quando algum pensamento sutil a
puxava de volta. Mas um dia, sentada sozinha numa capela, ela
começou a descobrir para onde levava o silêncio. Essas
experiências foram a primeira parte de um longo processo que a
puxou para o vazio, até sua vida se reunir ao todo. Nas palavras
dela:

"Havia outra vez um silêncio penetrante... mas desta vez não houve
movimento algum. Saí da capela como uma pena flutuando ao
vento... Foi difícil lá fora, porque a todo momento eu voltava para
esse magnífico silêncio. Os dias foram passando e eu comecei a
agir como sempre, mas percebi que faltava alguma coisa, só que eu
não conseguia descobrir o que... Não encontrei explicação nos
escritos de São João da Cruz nem em nenhum outro lugar da
biblioteca. Naquele dia, regressava para casa em meio a uma
paisagem de vales e colinas quando voltei meu olhar para dentro e
o que vi me paralisou. Em vez do costumeiro centro não localizado
de mim mesma, não havia nada ali, estava vazio. Nesse momento
houve uma inundação de pura alegria e eu percebi, finalmente
percebi, o que estava faltando - era o meu 'eu'.
Fisicamente, era como se um grande fardo tivesse sido tirado de
cima de mim, tão leve eu me sentia. Olhei para os pés, para ter a
certeza de que estavam no chão. Mais tarde, pensei na experiência
de São Paulo - 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo
que vive em mim' - e percebi que, a despeito daquele vazio,
ninguém tinha entrado para tomar o 'meu' lugar. Então, decidi que
Cristo era a alegria, o próprio vazio. Ele era tudo o que havia
restado dessa experiência humana. Por vários dias, caminhei com
essa alegria... Não havia mais o 'meu'; só o que era de Cristo."

Outro professor se abriu para o vazio logo no começo do caminho,


o que foi uma surpresa. Depois disso, ele passou trinta anos em
treinamento budista para compreender e integrar esse começo.

"Foi no começo da minha vida espiritual Eu tinha ido a algumas


aulas de meditação. Estava deitado em silêncio, em solidão,
descansando depois de passar muito tempo pensando,
questionando. Minha mente estava num estado claro e aberto:
energizada e viva, mas também absolutamente quieta. Eu não
sabia que esse equilíbrio de vivacidade e sossego era possível.
Peguei um velho texto budista e li algumas linhas:

Embora a Mente exista, ela não tem existência. No seu verdadeiro


estado, a Mente é nua, imaculada, um ser do Vazio, transparente,
eterna, não-composta, não concebível como coisa separada, mas
como a unidade de todas as coisas, sem no entanto ser composta
por elas. Surgindo de si mesmas e sendo naturalmente livres como
as nuvens do céu, todas as coisas que aparecem se dissipam... O
todo do Mundo e do Nirvana como unidade inseparável é a mente
de cada um.
Tudo o que eu sabia sobre o mundo se estilhaçou. Não dá para
dizer o que sobrou, pois nada havia de mim mesmo. Havia o que
está aqui antes de qualquer noção de eu. Percebi de uma vez por
todas que não existe eu, que qualquer experiência de eu é uma
ilusão. Somos vazios como um sonho, uma brincadeira da mente.
Aos poucos, parte do mundo voltou, embora a noção que tinha dele
tivesse se modificado completamente. Não sabia mais como devia
viver. Por várias semanas perambulei numa espécie de choque e
leveza."

O portão do vazio pode se revelar na solidão, na presença de outra


pessoa, na meditação profunda ou nas montanhas. Atento a esse
mistério, o coração pode se abrir diretamente para o vazio que dá
origem a todas as coisas.
Para os taoístas, essa experiência é um ouvir sagrado, não por
meio da compreensão do intelecto, mas o "ouvir do espírito", com
todos os sentidos abertos e vazios. Só então, com o vazio de todas
as faculdades, pode o ser total ouvir e saber o que está bem diante
de nós, aquilo que não dá para ouvir só com o ouvido ou só com a
mente. Essa é a sabedoria daqueles que não sabem mas que,
estando vazios, carregam um coração cheio de luz.
Isaac Newton sabia disso. Ele escreveu:

Para mim, sou apenas uma criança brincando na praia, enquanto


vastos oceanos de verdade se estendem não-descobertos diante de
mim.

Através do portão do vazio, para essa criança, a vastidão


desconhecida não é motivo de terror, mas o campo de sua alegria.
6
QUEM É VOCÊ REALMENTE, VIAJANTE?
SATORI E O PORTÃO DA UNIDADE

Um dia, apaguei todas as noções da minha mente. Abri mão do


desejo. Descartei todas as palavras com as quais pensava e fiquei
em quietude. Eu me senti um tanto estranho - como se estivesse
sendo levado para dentro de alguma coisa, ou como se estivesse
tendo contato com algum poder desconhecido para mim... e Ahhh!
Eu entrei. Perdi os limites do meu corpo físico. Eu tinha a minha
pele, é claro, mas parecia que estava no centro do cosmos. Eu
falava, mas minhas palavras tinham perdido o sentido. Via as
pessoas vindo na minha direção, mas todas eram o mesmo homem.
Todas eram eu! Eu não conhecia esse mundo. Eu acreditava que
tinha sido criado mas agora tinha que mudar de opinião: nunca fui
criado; eu era o cosmos; não existia indivíduo algum.
MESTRE S.

A meta da vida espiritual é se abrir para a realidade que existe além


da nossa estreita noção de eu. Assim como é possível entrar nessa
realidade através do sofrimento ou através do grande vazio, é
possível penetrá-Ia pelo portão da unidade e descobrir o que
podemos chamar de "Despertar como o Divino". Através do portão
da unidade, despertamos para o oceano que há dentro de nós.
Descobrimos, de outra maneira, que os mares em que nadamos
não são separados de tudo o que vive.
Esse portão nos mostra o mistério da conexão divina. Todas as
culturas têm rituais e vozes que nos chamam para essa verdade. Lá
está ela, quando ouvimos uma missa de Handel Ou Mozart e
quando vemos o sol entrando pelos vitrais de uma antiga catedral.
Lá está ela, dançando nos ashrams da Índia e com os dervixes da
Turquia, cantando os nomes do Divino noite a dentro. Lá está ela,
na Dança do Sol dos índios norte-americanos. Quando o espírito
sagrado está presente, só podemos nos prosternar em gratidão.
Como diz um swami americano:
"Uma energia bem-aventurada explodiu dentro de mim, subindo até
o topo da cabeça, e meu coração ficou cheio de amor por tudo e por
todos. Então, muitas vezes eu me prosternei, toquei o chão e disse:
'A terra é a minha testemunha.'"

As mais profundas formas de meditação, de ritual, de prece e de


arte sagrada procuram reabrir os olhos e o coração para a unidade.
Nas palavras de Simeão, um teólogo do século onze:

Despertamos no corpo de Cristo...


eu mexo a mão e - maravilha -
minha mão se toma Cristo...
Mexo o pé e no mesmo instante
ele aparece como um relâmpago...
Porque, se genuinamente o amamos,
despertamos dentro do corpo de Cristo,
pleno, conhecido como adorável e radiante...
Despertamos como o Divino
em todas as partes do corpo.
(Tradução de Stephen Mitchell)

Alguns rituais que nos ajudam a despertar para a unidade foram


desenvolvidos ao longo de muitas gerações. Um professor ocidental
fala de um antigo ritual de união que conheceu quando visitou o
Tibete pela primeira vez:

"Só para chegar ao Tibete, saímos de Katmandu e passamos


quatorze horas num ônibus velho, subindo e descendo desfiladeiros
rochosos e depois subindo a montanha, cada vez mais alto. A
viagem ficou ainda mais cansativa e perigosa quando começamos a
percorrer o platô tibetano, cheio de flores minúsculas e rochas
brilhantes. O céu ficou diferente. Era enorme e escuro, maior do
que a terra, como se o próprio Significado de chão e céu fosse
invertido naquelas montanhas selvagens.
Depois de muito viajar, chegamos a um templo na encosta da
montanha, o famoso mosteiro Drepung, num dia em que peregrinos
de todo o Tibete chegavam para uma festa. O pátio se encheu de
lamparinas de manteiga de iaque e de cantos profundos. Na última
noite, lá pelas quatro horas, a multidão saiu para subir a encosta de
uma colina ali perto e esperar pelo nascer do sol. Embrulhados nos
mantos para se proteger do vento gelado, todos recitavam preces e
mantras sagrados. As cometas de cobre do mosteiro, tão grandes
que era preciso três homens para erguer cada uma delas, soltaram
longas notas pelo vale inteiro, pontuadas pelo bater rítmico dos
címbalos.
Quando o céu começou a clarear, uma pintura gigante do Buda da
Compaixão, com quase um acre, começou a ser desenrolada na
grande parede do mosteiro. Ela tocou o chão de madrugada. As
cometas soaram outra vez.
Então, os primeiros raios de sol atingiram a pintura. O enorme Buda
dourado ficou flamejante e, no mesmo momento, a luz do sol tocou
o meu corpo. Tudo tinha sido preparado para dar a impressão de
que a luz vinha daquele glorioso Buda e eu me senti aquecido pelo
coração do Buda, como se o Buda tivesse penetrado em mim. Eu
me transformei totalmente naquele momento. Sabia que o Buda
estava em mim."

Uma peregrinação assim pode inspirar o despertar, mas o que


importa não é viajar. A meta é descobrir essa experiência por nós
mesmos, seja onde for. Em Returning to the Source, Wilson Van
Dusen, um místico ocidental, conta que experimentou o Divino
inúmeras vezes: num entardecer de verão, nos olhos de uma
criança, no gosto de uma maçã.

Como é ser um místico neste mundo? Em parte, é triste. Às vezes,


os místicos atravessam um longo período tendo experiências de
Deus, mas ainda assim continuam inseguros. Uma vez, depois de
uma palestra numa igreja, uma mulher de idade esperou que as
pessoas saíssem. Veio então até mim e eu vi que ela não tinha
mais muito tempo neste mundo. Muito circunspecta, ela me contou
um sonho em que um incrível sol dourado ia até ela e me perguntou
se esse sol era Deus. Pensei em lhe dar a resposta de sempre: "É
preciso analisar o sonho para descobrir." Mas então o impacto
emocional da situação me atingiu. Essa velhinha estava morrendo e
para ela era importante encontrar Deus pelo menos uma vez na
vida. E eu disse: "Sim, era Deus." E nós dois choramos. Mas que
coisa triste! Ela tinha as características de uma pessoa muito
espiritual, com a vida mergulhada em Deus. E mesmo assim
perguntava com desespero se O tinha encontrado ao menos uma
vez. Para mim, ela representa grande parte da humanidade: já
avançou bastante em seu caminho, mas não reconhece os sinais.

Todas as tradições têm seus místicos e todas as práticas sinceras


podem levar à revelação da unidade. Um rabino conta que esse
conhecimento veio a ele num retiro de verão:

"A experiência que abriu o meu mundo interior aconteceu no meio


de uma semana de prece e recolhimento. Era uma manhã tranqüila
e eu me sentei para rezar. Primeiro, eu me cobri com o talite e
ajustei as filacteras na testa e nos braços. ('Tu as atarás também à
tua mão como um sinal'). Fechei os olhos e, enquanto rezava, uma
luz transcendente começou a brilhar à minha volta, como se
brilhasse no mundo inteiro. Ela atravessou os pergaminhos e as
caixas e incidiu diretamente no meu corpo. Essa luminosidade
atravessou as três filacteras e imprimiu a grande oração em minhas
células, na essência do meu ser. A grande oração é: 'Ouve, Israel, o
Senhor é um', que significa que em todas as coisas HÁ UM SÓ
DEUS. Naquele momento compreendi por que a tradição mística é
tão cuidadosa com as orações escritas, que devem ser perfeitas,
sem nenhuma letra rasurada. Em vez de dizer a oração, eu a
habitava. Essa foi a maravilhosa experiência de ser uma oração.
Sei que a nossa vida e o nosso corpo são uma oração.
A partir desse momento, eu lia os salmos e as orações, de Davi ao
Talmud, e tudo se abria. Quando falavam, os grandes sábios do
passado estavam claramente num estado transformado de
consciência."

Há uma história sobre um eremita taoísta que transmite com humor


a verdade da unidade. Uma delegação formal do templo confuciano
resolveu visitar esse eremita e pedir seu conselho. Chegando sem
aviso à sua cabana, ficaram escandalizados ao vê-lo totalmente nu.
"Por que está meditando na sua cabana sem as calças?",
perguntaram. "O mundo inteiro é a minha cabana", disse ele.
"Minhas calças são esta sala. Eu é que quero saber o que vocês
estão fazendo nas minhas calças."

Essa é a verdade que já conhecemos intuitivamente. Uma


personagem dos romances de Alice Walker a descreve da seguinte
maneira:

Um dia, eu estava sentada em silêncio e me sentindo como uma


criança sem mãe, o que era verdade, quando me veio aquela
sensação de ser parte de tudo. Eu sabia que, se cortasse uma
árvore, o meu braço sangraria. E eu ri, chorei e corri pela casa. Eu
sabia o que era aquilo. Na verdade, quando acontece, não dá para
não perceber.

O mundo é a nossa cabana. Sabemos que dividimos o ar que


respiramos com os carvalhos e pinheiros das florestas, que a água
que bebemos desce das nuvens, em forma de chuva, antes de
entrar em nossas células. Tudo o que somos e possuímos é um
presente que nos foi dado pela totalidade da qual viemos e para a
qual voltamos. A mente e o corpo não são separados. Graças à
compaixão natural e ao senso de justiça que os vislumbres da
unidade despertam, começamos a tratar as outras partes de nós
mesmos - tudo o que existe - com sabedoria. Despertando para a
unidade, descobrimos que temos o mesmo sobrenome das
montanhas, dos córregos e das sequóias.
Uma experiência plena dessa verdade é chamada "satori" - a
primeira manifestação da iluminação. Todos nós somos candidatos
ao satori, à recordação do nosso verdadeiro nome - temos apenas
que aprender a nos soltar. Um mestre zen europeu fala do seu
primeiro satori, aos trinta e sete anos. Quando estudante, ele tinha
iniciado a vida espiritual para fugir da dor e da confusão de sua
família e também para entrar numa realidade maior, o que ele sabia
que era possível. Começou a seguir uma disciplina que não se
limitava às práticas tradicionais do Zen: combinava análise dos
sonhos, cura e terapia, práticas que o ajudavam a esclarecer e a se
livrar das tristezas e defesas do passado. Enquanto isso, continuou
a fazer o seu zazen.

"Minha primeira experiência de satori veio no meio. de um


treinamento zen, mas só depois de nove anos de cura psicológica e
de meditação intensiva. Então, foi como se bastasse tanta
preparação e purificação - eu estava maduro. Uma noite, sonhei
com santuários de antigos santos no sopé de uma montanha
sagrada, que só alguns poucos conseguiam enxergar. Comecei a
escalar a montanha chupando um enorme sorvete de casquinha,
enquanto todas as crianças do mundo desciam do topo da
montanha. As crianças desciam alegres para o mundo, mas eu
tinha o sorvete e ria. Éramos todos alegres e inocentes - tudo tão
diferente da minha infância real. Foi como se novas possibilidades
se abrissem dentro de mim.
Fui para o retiro de primavera pouco depois desse sonho. Depois
de uma meditação muito profunda, achei que estava começando a
encontrar o que buscava - mas, como já soubesse alguma coisa,
não me agarrei a essa idéia e continuei meditando. Então, no quarto
dia, minha mente entrou em caos e eu pensei: 'Eu me enganei'.
Mas em vez de usar a concentração como uma espada para
eliminar a confusão e deixar apenas a base luminosa, eu acolhi o
caos com todo o meu coração. Então, corpo, mente e mundo
começaram a se abrir. Foi como uma grande onda se abrindo sobre
mim. Fiquei cheio de alegria e claridade. Estava ao mesmo tempo
vazio e pleno, frio como o inverno e quente como a primavera. Senti
que podia compreender qualquer coisa.
Isso durou dias, semanas. Lembro que no período de meditação da
tarde todos estavam sempre cansados e cheios de dores, mas eu
estava sempre feliz. Quando o mestre zen fazia suas perguntas
impossíveis, eu sorria para mim mesmo. 'Eu sei a resposta.' Mas
continuava a meditar. A energia crescia cada vez mais. Finalmente,
procurei o mestre e ele me perguntou um dos koans mais antigos,
pontuado com um pequeno gesto de mão. Com esse gesto, a sala
desapareceu. Tudo se foi - o vento, as estrelas, os cachorros lá
fora. Todos nós desaparecemos na mesma vastidão. Havia tudo e
nada. E eu ri de tanto assombro. Eu sabia o que ia na mente do
professor, eu sabia a idade do mundo. Meu corpo estava
transparente, o sopro do vento era minha respiração, meus passos
eram a terra se movendo. Depois disso, a vida ficou alegre, viva e
meus mais antigos medos desapareceram. Finalmente eu estava
vivo de verdade. Mas, embora eu tenha ficado meses sorrindo, foi
estranho. Não contei a ninguém da comunidade o que estava
acontecendo porque senti que as pessoas se sentiriam excluídas.
Dessa forma, tomei consciência das dolorosas limitações deste
mundo: até na mais completa abertura, as limitações devem ser
absolutamente respeitadas."

O despertar muda o nosso senso de identidade. Abandonamos a


estreita noção do eu e entramos na consciência ilimitada da qual
viemos. Descobrimos com absoluta certeza que não somos nem
nunca fomos separados do mundo. É como se nosso coração,
nosso saber, se expandisse mais e mais, até conter tudo, até
sermos o mundo.
Outro professor descreve a simplicidade desse saber:

"Eu estava comendo. Foi durante o treinamento intensivo de outono


e fazia vários dias que eu meditava com muito afinco. Estava
determinado a derrubar todas as barreiras e a descobrir tudo -
quem sou eu, o que é esta prática. Ergui minha tigela e de repente
entendi: tudo está certo exatamente como está! O mundo é
totalmente, profundamente pleno. Eu não precisava fazer nada. Não
precisava me esforçar tanto. Parece tão prosaico dizer isso agora
em palavras, mas foi uma revelação enorme, assombrosa, que
trivializou todas as minhas questões e me livrou das mil maneiras
com que eu tentava modificar o mundo e a mim mesmo. Isso tinha
também uma surpreendente dimensão física. Meu corpo
desapareceu, a concha ou recipiente de mim mesmo sumiu, o fundo
do mundo se foi. Minha forma não era mais distinta do mundo. Toda
a minha maneira de ser foi se modificando nos meses seguintes, a
ponto de as pessoas começarem a me perguntar o que havia
acontecido."
Essa abertura para todas as coisas pode acontecer em qualquer
circunstância, como a experiência de Edmund, de Eugene O'Neill,
nos mares da Argentina.

Eu estava deitado na ponta da proa, com a água espumando lá


embaixo, os mastros muito altos com as velas brancas de luar.
Fiquei bêbado com a beleza e com aquele ritmo cantante, e por um
momento eu me perdi - perdi efetivamente minha vida. Fui
libertado... eu me dissolvi no mar, eu me transformei nas velas
brancas e nos respingos, eu me transformei na beleza, no ritmo e
no céu ofuscante de estrelas... eu pertencia, na unidade e na
alegria, à própria vida.
Por um segundo você vê e, ao ver o segredo, você é o segredo.
Para os sufis, isso é "tomar-se uma coisa só com o Divino". O saber
que buscávamos nos ilumina o corpo e o coração, como aconteceu
a uma freira dominicana que pertence à ordem há quarenta e dois
anos.

"Na infância, eu já tinha uma relação muito pessoal com Jesus. já


freira e sabendo mais sobre oração, costumava perguntar: 'Onde
está Jesus agora?' Estávamos sempre rezando, servindo e
purificando o coração para recebê-lo. Mas eu sabia que era mais do
que isso. À noite, Jesus vinha a mim, um espírito forte e consolador.
Ele entrava no meu corpo. Em muitas ocasiões, um êxtase
espiritual percorria como um amante, durante horas, todas as partes
do meu corpo. Ficava acordada durante horas. Não conseguia falar
disso, embora me sentisse radiante e profundamente realizada. Ele
enchia meu coração de amor. Comecei a ver Jesus em toda parte -
nas pessoas que lutavam, nos pobres, na mais ínfima de Suas
criaturas, em minhas irmãs, nos ricos. Eu servia a todos com amor,
como 'Cristo em Seu disfarce desolador'. Para alguns pode parecer
heresia, mas Jesus está entre nós, em cada ser humano, em cada
pedra, em cada ato, em cada sucesso e em cada erro. Sua glória
está no damasqueiro do jardim, no presente que dou à minha
sobrinha, em minhas mãos e nos meus olhos. Eu O sinto neste
corpo que me foi dado. Que belo reino para se despertar, a
presença divina no mundo."
Quando a nossa identidade se expande para incluir todas as coisas,
ficamos em paz com a dança do mundo. O oceano da vida sobe e
desce dentro de nós - nascimento e morte, alegria e dor, tudo nos
pertence e nosso coração está cheio e vazio, tão grande que acolhe
tudo.
7
A PASSAGEM SEM PORTÃO:
O PORTÃO DO ETERNO PRESENTE

Na verdade, não há nenhum ensinamento real para você ficar


remoendo. Mas, como você não acredita em si mesmo, você pega
sua bagagem e vai de casa em casa procurando o Zen, procurando
o Tao, procurando os mistérios, procurando o despertar, procurando
Budas, procurando mestres, procurando professores. Você acha
que essa é a busca suprema e faz disso a sua religião. Mas isso é
como correr às cegas. Quanto mais corre, mais longe você vai
parar. Você só se cansa e, no fim, de que adianta?
MESTRE ZEN FOYAN

Um jovem monge perguntou ao Mestre:


"O que faço para me emancipar?"
O Mestre respondeu:
"E quem o pôs no cativeiro?"
ENSINAMENTOS ADVAITA

Às vezes, conhecemos sábios que nunca foram a um lugar em


especial, nunca tiveram uma prática espiritual sistemática, nem
experiências místicas. É a generosa funcionária da creche, o sábio
que trabalha na biblioteca, a avó boazinha que todos adoram. Tais
pessoas emanam sabedoria, proximidade, bondade e liberdade de
coração. Elas não têm medo de abrir mão das coisas, de amar e de
viver.
Quando falamos de caminho espiritual, a existência de tais pessoas
coloca uma questão: e as que praticam anos e anos, aprofundam
sua sabedoria mas nunca têm uma experiência extraordinária de
graça, satori ou despertar? Isso também é muito comum. Por quê?
Examinar esses exemplos nos ajuda a desfazer uma confusão que
os últimos capítulos podem ter criado. Assim como é perigoso para
uma cultura ignorar o processo de iniciação e a experiência de
satori, graça e iluminação, é perigoso descrevê-los com muitos
detalhes: podemos glamurizar essas histórias e superestimar sua
importância, achando que são uma necessidade na vida espiritual.
Mas, estabelecendo como meta uma determinada experiência,
corremos o risco de passar anos e anos buscando fora de nós uma
coisa que sempre esteve dentro de nós. Ou de começar a duvidar
de nós mesmos e das nossas experiências, insatisfeitos com o
coração e a vida espiritual que temos.
Quando voltei para o meu professor Ajahn Chah depois de um
longo período de treinamentos intensivos nos mosteiros, eu lhe falei
das minhas descobertas e experiências. Ele me ouviu com atenção
e depois falou: "Agora você tem que abrir mão disso também, não
é?"
Não podemos esquecer que o lugar para onde estamos indo é aqui,
que qualquer prática é apenas uma forma de abrir o coração para o
que está bem diante de nós. Onde estamos agora é o caminho e a
meta.
Uma vez, pedi a um lama que me falasse de sua realização e ele
me falou da sabedoria contida na total trivialidade de tudo o que
fazia. Seus longos retiros e seu treinamento tradicional eram o "seu
trabalho", assim como o trabalho do padeiro é fazer pão. Quando
eu lhe pedi que falasse de um momento de iluminação, ele riu e
respondeu:

"Estamos sempre tentando fazer alguma coisa especial, maior,


melhor do que o que já existe. Qualquer descoberta que eu tenha
feito foi apenas uma confirmação do que já existe. Os rumores e os
ensinamentos são verdadeiros: somos seres luminosos e o
despertar é a nossa natureza. Mas, se você faz questão que eu
conte uma história, posso contar que um dia eu estava
descansando à vontade quando um monge entrou. Ele olhou para
mim e disse: 'Estou vendo que aconteceu alguma coisa.' Relaxado
e presente, eu tinha tido um momento eterno, ou horas - quem
sabe? - de perfeita plenitude e paz. Eu mal tinha notado esse
momento, mas o monge notou e seus olhos o refletiram para mim.
Comecei a ver esse reflexo em toda parte e nele eu estava
completamente relaxado. Eu não precisava fazer nem ser coisa
alguma. Estava tudo como sempre, mas ao mesmo tempo estava
tudo muito claro - despertar para esse momento agora é tudo."
Quando lhe perguntaram sobre o caminho da prática, o Buda
explicou que há quatro maneiras de a vida espiritual se
desenvolver. A primeira é rapidamente e com prazer. Nesse
caminho, o desabrochar vem naturalmente, como num parto fácil,
acompanhado de alegria e arrebatamento. A segunda é a maneira
rápida mas dolorosa. É nesse caminho que estão as experiências
de quase-morte, os acidentes ou perdas insuportáveis. Ele
atravessa um portão flamejante para nos ensinar a deixar tudo
seguir seu curso. A terceira forma de avanço espiritual é gradual e
acompanhada de prazer. Nesse caso, o desabrochar ocorre ao
longo dos anos, em geral com facilidade e prazer. O quarto
caminho, o mais comum, é também lento e gradual, mas nele
predomina o sofrimento. A dificuldade e a luta são um tema
recorrente e é através delas que aos poucos aprendemos a
despertar.
Nessa questão não temos escolha. Nós nos desenvolvemos de
acordo com os padrões da nossa vida, chamados às vezes de
"destino" ou "karma". Seja qual for a velocidade aparente, temos
que nos entregar ao processo. Na verdade, não dá para medir o
progresso. É como estar no meio do oceano num barquinho a remo.
Remamos, mas há também uma corrente maior: podemos seguir
sempre para o leste, mas sem saber que distância percorremos. É
só no começo que surge a questão da distância e do tempo. Pouco
importa a distância que achamos que percorremos. É a disposição
a nos abrir agora, radicalmente e repetidamente, que caracteriza
essa jornada.
Seria mais exato acrescentar um quinto caminho aos quatro
caminhos de desenvolvimento espiritual descritos por Buda. É um
caminho sem esforço, sem velocidade, sem jornada. Em vez de
passar pelo portão da unidade ou pelo portão da tristeza, passamos
pela passagem sem portão, onde a idéia de jornada e esforço é
uma ilusão. O lugar para onde estamos indo é aqui.
Para melhor compreender esse caminho, é preciso perceber que há
duas maneiras complementares de chegar ao despertar e à
iluminação. Uma é o caminho do esforço; a outra, o caminho do
não-esforço. No caminho do esforço, nós nos purificamos, lutamos
para eliminar o que nos impede de estar presentes, ficamos tão
concentrados no despertar e na iluminação que o resto desaparece.
Finalmente, somos forçados a deixar para lá esse resto de
sofreguidão, o desejo de atingir a iluminação. Nesse último ato de
desapego, tudo fica claro. Mas no caminho do não-esforço, não há
luta. Nós nos abrimos à realidade do presente. A única exigência é
manter o senso de naturalidade. É daí que vem a compreensão e a
compaixão.
Na verdade, esses dois caminhos fazem parte da jornada de todos
nós. Ambos nos levam ao desapego. Como diria Dipama, um dos
meus professores: "Os dois caminhos são o melhor." O esforço com
sabedoria é importante. Mas, por mais árduo que seja o caminho,
por maior que seja o esforço, o despertar do coração acaba sendo
um ato de graça, um vento de primavera que varre as
preocupações e os medos e refresca o coração.
Meditar, rezar e ouvir é como abrir as portas e as janelas. Não dá
para planejar a brisa. Como diz Suzuki Roshi: "Não dá para marcar
um encontro com a iluminação." Há uma frase que diz mais ou
menos a mesma coisa:
"Atingir a iluminação é um acidente. A prática espiritual só nos toma
propensos a ele."
A avidez nos faz perder o momento, que é agora. Há a história do
estudante zen muito afoito que chega ao templo e diz: "Quero entrar
para a comunidade e trabalhar para atingir a iluminação. Quanto
tempo vai levar?" "Dez anos", responde o mestre. "E se eu trabalhar
muito e duplicar os meus esforços?" "Vinte anos." "Ei, espere um
pouco. Isso não é justo! Por que o tempo dobrou?" E o mestre diz:
"No seu caso, acho que vai levar trinta anos."
Um mestre sufi conta que seu desabrochar foi um processo
contínuo e não numa única experiência de transformação.

"Eu me lembro, é claro, de várias descobertas e revelações, mas no


geral minha vida espiritual tem sido um processo de anos e anos de
abertura da consciência. Esse processo tem que ser respeitado e
favorecido. Ele se intensifica quando dou atenção ao que está
acontecendo dentro de mim, ao que está querendo se abrir. E a
cada nova capacidade que percebo em mim, descubro também o
que está impedindo que eu me abra. Percebo, por exemplo, que
minha compaixão aumentou, mas percebo também que tenho
dúvidas e resistências que me impedem de viver em compaixão.
Identificar essas coisas é o passo seguinte do processo de
abertura.
Conhecemos a verdade, mas temos que superar o apego e as
crenças que nos limitam. É preciso estar atento para que o
processo de abertura não pare. Mas atingimos um ponto em que ele
avança por si mesmo. Não há como voltar quando sabemos o que é
repousar no Verdadeiro Ser, o que é confiar, embora às vezes a
resistência volte. Sabendo que é isso que somos, a compreensão
não desaparece."

Em vez de buscar a iluminação como se ela fosse um estado


distante, aprendemos a reconhecer que ela está, como o Zen nos
ensina, "mais perto do que perto". Na passagem sem portão, esse
despertar natural é um direito de nascença.
Ajahn Chah, em meio a uma cultura budista que superenfatiza a
longa jornada para a iluminação, dizia sempre a seus monges e
freiras que o despertar é natural e está bem à mão. Segundo ele,
quem não sente o jorro da iluminação nos primeiros seis meses no
mosteiro está perdendo tempo. Ele dizia que a iluminação é um
estado inerente, que podemos aprender a confiar no coração,
naturalmente silencioso e livre, independentemente das condições
que se modificam à nossa volta.

Em si mesma, a mente é eterna, naturalmente em paz, imóvel.


Repouse nesse estado natural. Inconstantes, as impressões
sensoriais fazem com que a mente se esqueça de si mesma, fique
iludida e confusa. Pois sua prática é enxergar esse processo e
voltar à mente original.
Ajahn Chah observa que, através da reflexão cuidadosa e da
meditação aplicada, podemos enxergar essa realidade sempre que
ficamos em silêncio. Todas as experiências são sem eu, sem
existência independente. Elas surgem e passam como o vento, de
acordo com certas condições. Ele ensina que, nos momentos de
silêncio em que enxergamos essa verdade, saímos das condições
que chamamos de "eu" e atingimos o saber eterno, incondicional.
Assim, a prática é conhecer o mundo inconstante e não se perder
nele.
Nesse ensinamento, a perspectiva da nossa experiência se inverte.
A iluminação é o estado verdadeiro e a prática espiritual nos ajuda a
desfazer a confusão e a viver na realidade do presente. Nós somos
a meta.
Uma mestra de meditação budista fala que sua vida se transformou
sem que houvesse um acontecimento notável ou satori: só o fluxo
sem fim do próprio despertar.

"Cá estou eu, professora de centenas e centenas de alunos,


inclusive de alguns que tiveram importantes experiências de
abertura na meditação. Mas não foi esse o meu caminho. Por muito
tempo, foi duro para mim aceitar que 'nada acontecia'. Não sou uma
pessoa de grandes experiências dramáticas. Há trinta anos eu me
limito a praticar, sem sucumbir às minhas próprias idéias de
desânimo ou sucesso. Às vezes, faço meses de treinamento
intensivo, mas sem nenhuma experiência espetacular. Nos dez
primeiros anos foi difícil, mas pelo menos nunca caí no engodo de
achar que era uma pessoa especial.
No entanto, alguma coisa mudou. O que mais me transformou
foram as infindáveis horas de atenção total ao que estava fazendo.
Eu percebi que jamais abandonaria os fardos interiores de uma só
vez, mas muitas e muitas vezes. Aos poucos, fui largando o fardo
dos julgamentos, do medo, da desconfiança em relação a mim
mesma, da rigidez do corpo e da mente. Descobri que a rigidez e a
avidez despontam automaticamente e, com essa descoberta,
comecei a me abandonar, a me abrir, a apreciar a vida, a ter
sossego. Os ensinamentos tradicionais começaram a fazer sentido:
não há ir nem vir; desde os primórdios do ser, nada aconteceu nem
vai acontecer. Essa descoberta foi uma confirmação do que eu já
sabia. Fiquei menos séria, menos preocupada comigo mesma.
Minha bondade ficou mais profunda e alguns amigos dizem que eu
fui ficando cada vez mais igual a mim mesma. Dizem que houve
uma grande mudança em mim, mas nenhum acontecimento
especial a causou. Ela é o fruto das vezes sem conta em que estive
presente. É simples assim."
É fácil cair no engodo de que existe uma meta, um estado, um lugar
especial a ser atingido na vida espiritual. Às vezes, ouvindo relatos
de experiências extraordinárias, criamos uma idéia de como deveria
ser a nossa vida, começamos a nos comparar com os outros. No
Tibete, um famoso yogue vivia havia anos praticando numa cabana
na montanha, sustentado pelos habitantes do vilarejo próximo.
Então, num dia de festa, ele ficou sabendo que seus vizinhos e
benfeitores iam visitá-lo. O yogue varreu a cabana, poliu as tigelas
do altar, fez uma oferenda especial e lavou suas roupas. Depois se
sentou para esperar, mas começou a ficar apreensivo. Estava
tentando ser o quê? Levantou, pegou a poeira do chão e a espalhou
de novo no altar. Esses punhados de poeira foram a sua maior
oferenda espiritual.
Quando transpomos a passagem sem portão, chegamos ao fim da
busca. Já percorremos muitos caminhos na tentativa de atingir a
iluminação ou de ser alguma coisa especial. Finalmente, entramos
no portão do eterno presente e descobrimos que não estamos indo
a lugar algum. Aqui é o lugar, o único lugar de perfeita paciência,
paz, liberdade e compaixão. O poeta zen Ryokan trata essa
verdade como o ápice de sua vida em busca da sabedoria:

Minha vida pode parecer melancólica,


Mas viajando por este mundo
Eu me entreguei ao Céu.
N o meu saco, três quartos de arroz;
Junto ao fogão, uma pilha de lenha.
Se alguém perguntar qual é a marca da
iluminação ou ilusão
eu não sei dizer - fortuna e honra não passam de poeira.
Quando a chuva da noite cai, eu me sento no meu retiro
E me espreguiço em resposta.
(Tradução de John Stevens)

Ryokan repousa no coração compreensivo. Sem buscar mais nada


no mundo, ele confia no Tao. A iluminação é a sua própria presença
e a sua reação ao mundo é benevolente e natural.
Uma mística cristã, com uma vida espiritual ativa há trinta anos,
conta a sua história:

"Sempre fui inspirada por místicos como Santa Teresa de Ávila e


São João da Cruz. Quando passei uma temporada num convento,
depois do fracasso de um relacionamento e de problemas de
família, li seus escritos vezes sem fim. Eu tinha a idéia romântica de
que estava atravessando a noite escura da alma. Só que ela não
teve um fim, não houve uma grande experiência, não houve uma
iluminação mística no final. Quando saí do convento e me tomei
assistente social, mantive a prática de orações e contemplação,
mas minha vida continuou comum e escura por muitos anos. Agora
percebo que eu estava deprimida e solitária - nada de muito místico.
Então, há dez anos, fiz um retiro com o Padre Bede Griffiths, um
velho monge católico que tem um ashram na Índia. Ele usava
roupas de cor laranja de yogue, tinha os cabelos brancos e uma
profunda alegria irradiava do seu ser como narcisos brilhando
depois de um longo inverno. Conversamos e ele me disse que eu
havia criado uma história, uma imagem ideal da jornada espiritual.
Então ele segurou meu rosto nas mãos e, com muito amor, disse:
'Por que não ser o seu eu que é único? É só isso que Deus quer de
você.' E eu chorei e dancei e ri de tudo o que eu sempre tentei ser.
Minha vida de oração e contemplação continuou como sempre, mas
eu não estou deprimida e passei a gostar da minha vida. Não tive
nenhuma grande experiência, mas quando comecei a gostar de
mim, tudo mudou."

A tradição zen é cheia de relatos assim. Um discípulo do Mestre


Zen Kassan vivia com o mestre mas, achando que os ensinamentos
não lhe serviam, saiu em peregrinação. Mas ouvia em toda parte
elogios a seu mestre, considerado o melhor dos professores.
Finalmente, voltou. Saudando o velho mestre, perguntou: "Por que
não revelou sua profunda compreensão para mim?" O mestre
respondeu com um sorriso: "Quando você cozinhava o arroz, eu
não acendia o fogo? Quando você me oferecia comida, eu não
estendia a tigela? Quando foi que eu o traí?" Com isso, o monge
ficou iluminado.
A perfeição sagrada que buscamos está aqui. Sempre esteve.
Julian da Noruega situa essa perfeição no centro de suas orações:
"E tudo vai dar certo, o curso das coisas está certo." Reconhecer a
perfeição das "coisas como elas são" é uma abertura radical do
coração, uma reverência à sagrada plenitude que é a base de tudo.
Essa perfeição está sempre conosco e podemos despertar para ela
em qualquer situação.
Cabe perguntar: "Por que nunca tive uma amostra da iluminação ou
da perfeição?" A verdade é que isso deve ter acontecido, só que
nós não percebemos. É como o ar invisível que nos envolve e
sustenta a vida.
Ajahn Buddhadasa, cujo mosteiro ficava numa floresta da Malásia,
chamou os alunos para o frescor das árvores. Então, ensinou-os a
procurar o Nírvana nas coisas mais simples, em momentos do
cotidiano. Disse ele: "O Nirvana é o frescor do abandono, o prazer
de experimentar sem sofreguidão nem resistência à vida."

Qualquer um percebe que, se a avidez e a aversão fossem


constantes, ninguém as suportaria. Nessas circunstâncias, as
coisas vivas morreriam ou ficariam loucas. Sobrevivemos porque há
períodos naturais de frescor, de plenitude e sossego. Na verdade,
esses períodos duram mais do que os fogos da avidez e do medo.
É o que nos sustenta. Os períodos de repouso nos deixam
renovados, vivos, nos deixam bem. Por que não somos gratos por
esse Nirvana de todos os dias?
Conhecemos o abandono - nós nos abandonamos todas as noites
quando vamos dormir. Esse abandono, como uma boa noite de
sono, é delicioso. Abrindo-nos assim, conseguimos viver na
realidade da nossa plenitude. Quem se abandona um pouco tem
um pouco de paz, quem se abandona mais tem uma paz maior. Ao
transpor a passagem sem portão, começamos a valorizar os
momentos de plenitude. Começamos a confiar no ritmo natural do
mundo assim como confiamos no sono e na maneira da respiração
se respirar.
Num retiro, um psicólogo que tinha devotado quinze anos à prática
espiritual estava mais uma vez às voltas com a questão dos
relacionamentos. A saudade, a avidez e a culpa não o deixavam em
paz. Conversamos e eu sugeri que, durante alguns dias, ele
dirigisse a si mesmo uma meditação de amor-bondade. No começo
ele não quis. Como quase todo mundo, ele não se sentiu à vontade
com a idéia de se concentrar em si mesmo. Era estranho dirigir a si
mesmo a intenção de amor-bondade durante dias a fio. Mas o retiro
continuou e seu coração foi amolecendo. Ele começou a perdoar os
outros e a si mesmo.
O mundo começou a ficar mais bonito. E então veio a
compreensão:

"Eu é que preciso me amar. Ninguém pode fazer com que eu me


sinta pleno. Só eu posso dar esse amor. Agora eu sei que a
plenitude está ao meu alcance e ao alcance de todos os seres em
toda parte. Esse saber me permite viver com uma nova
tranqüilidade e bondade em relação a mim mesmo e aos outros. Da
maneira mais simples, ele mudou toda a minha vida."

A prática espiritual não nos dá conhecimento, mas afeta a nossa


maneira de amar. Amamos o que nos é dado, amamos em meio a
tudo, amamos nós mesmos e os outros? Enxergamos a luz que o
sol nos dá todos os dias? Se não, o que fazer- no corpo, no coração
e na mente - para nos abrir, para nos abandonar, para repousar na
perfeição natural? a portão está aberto: o que buscamos está diante
de nós. É assim hoje e todos os dias.
a professor de meditação Larry Rosenberg foi praticar na Coréia
com o Mestre Zen Seung Sahn. Nessa viagem, foi visitar outros
templos e outros mestres e, numa estrada remota, descobriu um
santuário budista de grande elegância na base de uma montanha.
Junto a ele havia uma placa - "Caminho para o mais Belo Buda de
Toda a Coréia" - e uma seta apontando para um caminho de mil
degraus montanha acima. Larry resolveu subir os degraus e,
finalmente, chegou ao topo. A paisagem era de tirar o fôlego e havia
um templo de pedra tão elegante quanto o da estrada. Só que no
altar, no lugar no Buda, não havia nada, só o espaço vazio e a
maravilhosa paisagem. Quando chegou mais perto, viu uma placa
sobre o altar: "Se você não consegue enxergar o Buda aqui, é
melhor descer e praticar mais um pouco."
TERCEIRA PARTE
NÃO EXISTE
APOSENTADORIA ILUMINADA
8
PARA ALÉM DO SATORI:
OS MAPAS DO DESPERTAR

A filha de um pastor perguntou-lhe de onde vinham as idéias para


seus sermões.
"De Deus", respondeu ele. "Então, por que você sempre apaga uns
pedaços?", perguntou a menina.
PADRE ANTHONY DE MELLO

Uma pessoa claramente iluminada cai no poço. Como é isso?


KOAN ZEN TRADICIONAL

Como saber o que está além do despertar? Quando Sócrates


estava na prisão à espera da execução, ouviu outro preso cantando
complicados versos líricos do poeta Estesicoro. Ele implorou que o
outro lhe ensinasse o poema: "Mas para quê?", perguntou o preso.
Sócrates respondeu: "Para eu morrer sabendo mais uma coisa."
A vida espiritual é a mesma coisa. Ela envolve um amadurecimento
da compreensão, um desabrochar continuo. É a sabedoria "pós-
iluminação". Como disse o mestre chinês Hsu Yun aos 120 anos,
pouco antes de morrer: "Há muitos satoris menores antes de um
satori maior, e muitos satoris maiores nó caminho do verdadeiro
despertar."
Místicos de todas as tradições ensinam que, por mais poderoso que
seja o despertar, a capacidade de viver nessa realidade acaba
passando. No começo não parece. O satori desperta em nós uma
compreensão e uma liberdade tão arrebatadoras que é difícil aceitar
que são apenas o primeiro passo. Mas em todos os caminhos
espirituais há mapas ou descrições de um processo de despertar
continuo.
Às vezes, esse desenrolar é passar a níveis de visão mais
elevados. O místico cristão São João da Cruz conta que, das altas
encostas do Monte Carmelo,conseguiu ver com mais clareza do
que nunca. Às vezes é estabilizar a compreensão inicial, o que os
mestres tibetanos Dzogchen consideram necessário. Na última
cena da série de pinturas zen sobre a doma do boi, o monge e o boi
voltam juntos ao mercado dando graças - embora sua viagem
esteja longe do fim. Na verdade, a aventura mal começou. Cada
tradição tem uma imagem para mostrar que a vida continua depois
do despertar do coração, mas todas ensinam que o primeiro
desabrochar é apenas o começo.

O DESPERTAR É SÓ O INÍCIO DE UM PROCESSO

No Budismo, um dos mais conhecidos mapas do despertar vem da


tradição Theravada dos Anciãos do Sudeste Asiático. No mapa dos
Anciãos, a iluminação segue quatro estágios progressivos de
"Nobre Compreensão", sendo que cada um corresponde a um novo
nível de liberdade. O estágio inicial é chamado "Entrar na Corrente".
Entramos na corrente quando sentimos pela primeira vez a
liberdade absoluta da iluminação, uma liberdade do coração que
está além de todas as condições inconstantes do mundo.
Como o satori ou kensho (um profundo despertar) no Zen, a entrada
na corrente modifica a compreensão. Nessa primeira iluminação,
passamos a enxergar além da ilusão do eu separado, deixamos de
nos identificar com o corpo e com a mente e despertamos para a
paz eterna do Nirvana, Com isso, a vida muda de direção para
sempre: a corrente em que entramos nos leva inapelavelmente para
uma liberdade maior, assim como uma corrente impetuosa leva
uma folha para o mar.
Mas, dizem os Anciãos, tendo visto a verdade, temos que nos
purificar ainda mais para transformar o caráter e integrar à vida
essa nova compreensão. Assim, passamos da entrada na corrente
para o segundo estágio: "Voltar De Novo." No fim de um processo
profundo, que em geral leva muitos anos, abandonamos os hábitos
mais grosseiros de avidez e aversão que recriam a tímida e limitada
noção do eu. Nesse estágio, com atenção constante e sincera,
descobrimos que sofremos quando nos agarramos a desejos e
medos, a idéias e ideais. Uma vez compreendidas, essas forças
motrizes da vida humana perdem seu domínio sobre nós. Por fim,
uma profunda realização abate as forças mais poderosas do desejo,
da avidez, da raiva e do medo. Completamos assim o segundo
estágio.
O terceiro estágio é chamado pelos Anciãos de "Sem-Volta". Nele,
estamos irrevogavelmente livres do desejo, da avidez, da raiva e do
medo: nunca mais voltaremos ao seu domínio. Os poucos que
avançam até esse estágio passam antes por um longo processo de
permanência na calma e no vazio. Quando a sabedoria aumenta,
movimentos sutis de apego são abandonados assim que
despontam - e podemos repousar em liberdade. Nesse estágio, a
realidade do presente e a profunda paz do coração raramente são
perturbadas.
Finalmente vem o quarto estágio, o mais extraordinário de todos,
chamado "Grande Despertar". Nele, os últimos sinais de apego - à
alegria, à liberdade e à própria meditação - desaparecem. Agora,
sem a menor identificação com o eu, estamos livres de todos os
vestígios de orgulho, de inquietação e de separação que escondem
o puro ser. A radiância de nossa verdadeira natureza brilha
desimpedida por toda a vida.
Segundo esse mapa dos Anciãos, mesmo quem teve uma
iluminação profunda pode ser apanhado pela avidez, pela raiva e
pela desilusão. Quem entra na corrente tem inspiração para ensinar
muitas coisas relativas à iluminação, mesmo que não as viva. É por
isso que os outros estágios do despertar são essenciais.
Segundo a maioria dos mestres, depois da primeira iluminação
ainda há períodos de medo, de confusão, de perda de direção
espiritual e de conduta inábil. Por mais arrebatadora que seja a
visão, por mais profunda que seja essa primeira sensação de
liberdade e graça, o processo de maturação é essencial. Ao longo
de, tantos anos, não conheci um único ocidental que não precisasse
desse processo, assim como a maioria dos professores asiáticos.
Quem não consegue entender essa verdade está se fazendo de
tolo. Uma vez, uma mulher disse com orgulho a Mullah Nasruddin:
"Meu filho terminou os estudos." Nasruddin respondeu: "Deus vai
lhe mandar mais, sem dúvida." Assim é para todos.
Há uma considerável discordância entre os Anciãos em relação ao
que é entrar na corrente, pois os meios para se atingir esse estágio
variam muito. Numa linhagem, ele é atingido graças à meditação
profunda, que dissolve a solidez do corpo e qualquer identificação
com ele. Em outra, só quando não há mais identificação com a
mente. Alguns mosteiros ensinam que entrar na corrente não
depende da meditação profunda, pois é um estágio natural aos
primeiros meses de prática, quando nos livramos do apego.
Segundo alguns professores, um único encontro com o mestre ou
uma simples alusão à perfeição sempre-presente pode
desencadear a entrada na corrente. Alguns dizem que ela acontece
depois de uma longa luta com um koan. E mesmo os mestres de
um mesmo mosteiro podem não concordar entre si quando se trata
de dizer se um aluno atingiu ou não esse estágio.
Talvez seja melhor respeitar a verdade dos vários caminhos.
Entramos na corrente quando abandonamos a estreita noção de eu
e nos abrimos à liberdade e à confiança. Talvez seja como diz Louis
Armstrong: "Não sei falar sobre jazz - você entende quando ouve."
Depois da entrada na corrente, há ainda menos instruções precisas,
sem ambigüidade, à disposição dos alunos que pretendem seguir o
caminho. Um professor budista, conhecido como um dos mais
fortes praticantes do Ocidente, disse:

"Depois de anos de retiro, fui para Burma. O professor exigiu


empenho total e eu passei por muitos estágios de percepção, que
foram me levando a uma incrível compreensão do dharma - achei
que entrar na corrente era isso e o Sayadaw pareceu confirmar. Foi
um período inspirador e os efeitos daquele nível de consciência
duraram muito tempo. Achei então que seria fácil passar para o
outro estágio da iluminação. No ano seguinte eu me entreguei à
prática, mas fiquei repetindo o que já conhecia, sem que nada de
novo acontecesse. Fiquei frustrado e, quando avancei um pouco
mais, senti como é profundo o nível seguinte do apego.
Perguntei a vários mestres o que era preciso para atingir o estágio
seguinte, mas as respostas foram surpreendentemente vagas e
obscuras. Finalmente, meu Sayadaw disse que, no caso dele, esse
estágio da prática foi uma purificação que levou muitos anos. Por
ora, continuo seguindo a direção do dharma, mas não sei se dá
para saber o quanto avançamos e o quanto temos ainda que
avançar."
A HUMILDADE E A NOITE ESCURA

Nos mapas dos místicos cristãos, os caminhos espirituais


superiores são um processo de crescente humildade e purificação.
São João da Cruz diz que no começo há alguns momentos de
graça, seguidos de longos períodos de dor, em que perdemos o
senso de ligação com o Divino. Segundo ele, essas noites escuras
são estágios necessários da jornada sagrada.
Ele diz que a primeira é a "Noite Escura dos Sentidos", em que as
coisas do mundo perdem o gosto. É um período de perda profunda,
quando tudo o que nos confortava no passado perde seu
Significado. Depois da mais esplêndida das iluminações, entramos
num campo seco e estéril, sem conhecimento claro da estrada do
coração. São João da Cruz diz que esse é um tempo em que o
caráter se purifica do orgulho, da avidez e da ira. É quando
percebemos melhor as tristezas do mundo, que existem porque nos
afastamos do Divino.
Depois da Noite Escura dos Sentidos vem a "Noite Escura da
Alma", que exige purificação e entrega ainda maiores. É um
purgatório de aflição e confusão, como no julgamento de Jó. Desse
período de purificação surge um amor veemente pelo Divino.
Uma grande recompensa aguarda quem respeita as noites escuras
da alma:
São João fala da indizível doçura, da graça que flui para a alma que
se entregou profundamente a essa "esplêndida escuridão". Nessa
longa jornada, é a perseverança humilde que importa. São João diz:
"O amor do coração é a chama que nos leva pela estrada da
escuridão."
Um professor de meditação diz que, no seu caso, a noite escura
veio depois de anos de contemplação e de se abrir para o Divino.

"Depois de muitos anos em comunidades católicas e budistas, foi


num longo retiro solitário que o indescritível aconteceu. A descrição
mais próxima está nas palavras de Santo Agostinho: vi que Deus
estava mais próximo de mim do que eu estava de mim mesmo.
Deus era um vasto oceano e eu era uma fina membrana, flutuando
na superfície, insubstancial, que depois se foi...
Meses depois, quando o êxtase e o divino desabrochar que veio
com essa percepção arrefeceram, caí num estado pesado de medo
profundo. Foi o início de um período infernal. Depois da efusão
emocional, tudo ficou mortiço, sem sentimento, sem significado.
Como eu tinha saído do centro budista e voltado para Ohio para
ficar perto da minha filha, arrumei um emprego sem importância.
Meu corpo desenvolveu urticária e asma. A perda e a dor sem fim
me levaram ao desespero e eu cheguei perto do suicídio ou da
psicose, embora minha aparência fosse normal. Era impossível
rezar e meditar.
Um dia, depois de meses de sofrimento, eu me senti tão derrotado
que me joguei no chão do banheiro pedindo a misericórdia de Deus.
De repente, esse estado torturado saiu de mim, como a água sai de
uma banheira. Durante duas horas, fiquei sentado no chão em
êxtase, alegria e paz. Percebi que as dificuldades eram obra de
Deus e que as tristezas fazem parte do caminho. Lembrei da minha
confiança em Deus. Depois de duas horas de descanso, achei que
dava para agüentar e que, se aquele estado fazia parte da obra de
Deus, eu o queria de volta. Foi inacreditável, pois no mesmo
instante tudo voltou - vindo de baixo, como se a água estivesse
enchendo de novo a banheira. Ficou tudo como antes, doloroso e
terrível, mas esse breve período de misericórdia divina fez toda a
diferença. Eu sabia que dava para agüentar, que eu queria passar
por tudo o que Deus tinha me dado, fosse o que fosse. Senti uma
enorme gratidão pela graça e pela ternura que Deus demonstrou
naquele momento, como a mais terna das mães, que nos ajuda e
nos ampara quando caímos. Foi ali, em meio à pior das dores, que
aprendi que eu não tinha escolha: só me restava viver na graça de
Deus."

São João da Cruz fala de noite escura, mas Santa Teresa usa a
imagem de um "castelo interior" para explicar que o senso de
mistério e humildade tem que crescer "quando a alma se aproxima
do trono de Deus no centro do castelo". Em seu mapa, os anos de
jornada da alma passam por sete estágios ou moradas interiores.
São estágios de purificação que aos poucos nos libertam dos
perigos do medo, da fortuna, da honra e dos "consolos do mundo".
Como São João da Cruz, ela diz que contemplativos
experimentados passam por estágios de solidão, aflição e
decepção, sustentados apenas pelo ardor constante do amor e da
prece. "O importante não é pensar muito, mas amar muito." Ela diz
que, depois de uma longa jornada de amor e graça, entramos num
renascimento espiritual em que a alma se transforma em lagarta no
casulo do Divino: ela morre para seu antigo estado para depois
irromper com asas.
Mas, já despertos e fora do casulo, vemos que ainda há nuvens - só
que mais sutis. O místico anônimo do século quatorze que escreveu
The Cloud of Unknowing diz: "Através da contemplação somos
purificados da tristeza... mas nesta vida nunca atingimos uma
segurança perfeita."

O CAMINHO NÃO É LINEAR MAS CIRCULAR E CONTÍNUO

Essas descrições dos estágios espirituais fazem com que o


caminho pareça simples, linear e progressivo, como se a vida
espiritual se desenrolasse passo a passo ao longo do tempo. De
certa forma, os mapas estão corretos: nos anos de prática
espiritual, nós aos poucos nos purificamos, nos abrimos, nos
libertamos e nos estabilizamos. Só que não é em linha reta. Nem
nos mosteiros de Burma e do Tibete, nem nos relatos de místicos
cristãos, judeus e sufis, há alguém cujo caminho seja linear.
O desabrochar do coração humano é ardiloso e misterioso.
Queremos que o caminho seja ordenado e previsível, mas é só
viajando que descobrimos os caminhos do coração. Não dá para
capturar a liberdade e situá-Ia no tempo. Para o espírito maduro, a
liberdade é a própria jornada. Ela é um labirinto, um círculo, uma
flor se abrindo pétala a pétala, um aprofundamento espiritual, uma
dança em tomo do ponto imóvel, o centro de todas as coisas. Há
sempre ciclos em mutação - um sobe e desce, um abre e fecha, um
despertar para o amor e para a liberdade seguido de novas e sutis
dificuldades. No curso dessa grande espiral, voltamos ao começo
muitas e muitas vezes, mas a cada vez com o coração mais pleno e
mais aberto.
Os místicos judeus dizem que os estados místicos mais exaltados
voltam para a simplicidade das preces de cada dia. Na Kabala, as
mais sublimes meditações de consciência infinita, chamadas
"binah" e "cochma", são vinculadas a um cotidiano de generosidade
e devoção. Os mais elevados estados do Divino nos levam
inevitavelmente de volta à família e às preces de todo dia, ao
acender das velas do shabat semanal e às práticas sagradas de
serviço e perdão. "Assim em cima como embaixo" é a fórmula
mística.
Para Santa Teresa também há um ciclo. A vida interior de ardor e
altruísmo não encontra seu fim na união com o Divino. Ela diz que
voltamos dessa fonte sagrada vezes sem fim para trazer sua
radiância ao mundo, pois "isso nos dá vida nova". "Os benefícios
esplêndidos que o despertar nos propicia" têm que ser
corporificados, o que nos permite viver uma vida sagrada neste
mundo. O fruto da jornada interior "está nas nossas boas obras"; os
mistérios se abrem "para que possamos voltar e ter força para
servir". Como o pastor do boi, voltamos para entrar no mercado com
mãos que abençoam. Voltamos para trazer as bênçãos do coração
desperto para quem encontramos.

MAIS POESIA DO QUE CARTOGRAFIA

O coração desperta como um lótus que se abre: sua beleza e


perfume o impregnam e também perfumam o jardim. Mas é da
natureza das flores abrir-se à luz do dia e se fechar à noite. Como
mapear e descrever esse processo? Sim, há alguns estágios: broto,
botão e flor. Mas essa descrição omite mais do que conta: deixa de
lado a terra que nutre as raízes, a absorção de luz do sol, a
polinização das abelhas, as irmãs e pais da lótus que a cercam e
enchem o mundo com mais beleza. Deixa de lado o crescimento
que ocorre à noite e os botões que se escondem sob a superfície
da água, que ainda não se lembram da luz do sol.
Como o desenrolar da espiral mística é tão ricamente orgânico,
muitas tradições recorrem a poemas para expressar o seu espírito.
A poesia tem um poder misterioso: transmite Significados que o
discurso direto não consegue transmitir. Os escritos zen quase não
trazem descrições literais de estágios de iluminação, só metáforas e
imagens, como a imagem do dedo apontando para a lua ou a
história da doma do boi, que temos acompanhado. Imagens como a
da garça branca na neve ou do corvo negro à meia-noite
transmitem o despertar com mais precisão do que centenas de
páginas de explicação abstrata, desde que os ouvidos de quem
escuta estejam abertos.
O Buda ficou iluminado ao ver a estrela da manhã. Os Anciãos
dizem que suas primeiras palavras foram um poema.

Construtor desta casa de tristeza


você não precisa mais erguer seus esteios...

No Zen, aparece uma imagem diferente mas também poética, que


incluí a conexão.

Com esta estrela, eu


e todas as coisas despertamos.

Kabir, o místico indiano, canta as maravilhas de despertar dentro do


barro deste corpo.

Dentro deste cântaro de barro há desfiladeiros e montanhas


recobertas de pinheiros e aquele que faz os desfiladeiros e
as montanhas recobertas de pinheiros!
Os sete oceanos estão dentro dele, e centenas de milhões
de estrelas.
O ácido que testa o ouro lá está, e aquele que
avalia as jóias.
E a música das cordas que ninguém toca, e
a fonte de toda água.
Se você quer saber a verdade, vou lhe contar a verdade:
Amigo, escute, o Sagrado que eu amo está lá dentro.
(Tradução de Robert Bly)

A linguagem poética dos koans é usada no Zen para favorecer a


iluminação. O praticante repete um poema profundo ou koan vezes
sem fim, investigando-o até que a mente se abra de maneira
radicalmente nova. Então, dezenas de outros koans se seguem,
convidando o praticante a incorporar mais profundamente a
liberdade que descobriu, ou iluminando as direções em que a
compreensão pode se extraviar. Juntos, criam um mapa poético da
prática.
Esses koans e histórias permitem que o aluno integre o mundo da
iluminação com este mundo: "Traga uma pérola do fundo do mar
sem se molhar", pede por exemplo um mestre zen. Ou: "Qual é o
som de uma mão batendo palmas?" Ou ainda: "O que é reto dentro
da curva?"
O aluno não pode ir ao encontro dessas histórias, questões e
poemas apenas com a mente conceitual - qualquer resposta fácil é
firmemente rejeitada. As respostas aos koans só vêm quando
aprofundamos a capacidade de viver na realidade do presente, de
abrir e fechar como o lótus, de entrar na floresta escura e dançar no
mercado. Eles não apontam para um estado ideal, mas para a
flexibilidade do Tao, para a naturalidade da lótus. Eles nos ensinam
a deixar para lá o medo e a autoconsciência, o apego mundano e
espiritual - e assim ficamos livres para ser nós mesmos.
A finalidade suprema dos koans pode ser vislumbrada nesta
história, uma amostra de humor zen moderno a respeito de um
discípulo que mandava ao mestre relatos fiéis de seu progresso
espiritual. No primeiro mês, o aluno escreveu: "Sinto a expansão da
consciência e a unidade com o universo." O mestre deu uma olhada
no bilhete e jogou fora. No mês seguinte, o aluno escreveu:
"Finalmente descobri que o Divino está presente em todas as
coisas." O mestre pareceu desapontado.
Na terceira carta, o discípulo escreveu com entusiasmo: "O mistério
do Um e do muito foi relevado ao meu olhar assombrado." O mestre
bocejou. A carta seguinte dizia: "Ninguém nasce, ninguém vive,
ninguém morre, porque o eu não existe." O mestre ergueu as mãos
em desespero.
Passou um mês, dois, cinco, um ano inteiro. O mestre achou que
era hora de lembrar ao aluno que ele tinha o dever de informá-lo
sobre seu progresso espiritual. O discípulo respondeu: "Estou só
vivendo a vida. E quanto à prática espiritual, de que serve?" O
mestre leu a resposta e exclamou: "Graças a Deus ele entendeu."
Essa história reflete o que o Zen ensina sobre a perfeição das
coisas como são. A garça branca na neve é uma garça branca na
neve; o corvo negro à meia noite é na verdade ele mesmo.

IDEAIS NÃO SÃO REALIDADES

E os mapas sem poesia nem humor, que parecem prescrever um


avanço constante e linear? O risco é tentar galgar seus estágios e
se perder numa nuvem de ideais inatingíveis. Vamos examinar
como um mapa funciona na vida prática tomando como exemplo os
Dez Bhumis do Budismo Tibetano.
Tidos como os dez estágios do despertar para a Natureza Búdica,
os Bhumis são: Estágio Um, "Alegre"; Estágio Dois, "Imaculado";
Estágio Três, "Luminoso"; Estágio Quatro, "Radiante"; e assim por
diante. O nível "Alegre" começa depois da entrada na corrente.
Embora elevado e puro, ele inclui práticas humanas mais comuns,
como promessas de grande generosidade e desejo de levar o
despertar a todos os seres sensientes. No entanto, o praticante que
atingiu o segundo Bhumi tem que ser capaz de enxergar o passado
e o futuro, de dominar cem formas de meditação profunda, de fazer
o corpo se multiplicar e aparecer em muitos lugares e em muitas
formas ao mesmo tempo, de fazer com que cem Budas e
bodhisattvas apareçam à sua volta onde quer que esteja. E os
estágios seguintes falam de poderes ainda mais miraculosos e
notáveis.
Uma vez, perguntei a um velho lama do Tibete se esses dez
estágios fazem mesmo parte da prática. Ele disse: "É claro que
sim." Mas, quando perguntei se em sua tradição havia alguém que
os tivesse atingido, ele respondeu pensativo: "Nestes tempos
difíceis não conheço um único lama que tenha dominado nem
mesmo o segundo estágio."
É claro que nesses estágios há uma verdade arquetípica, que esse
diálogo não leva em conta. Em momentos de graça ou iluminação,
ficamos cercados de Budas - vemos a Natureza Buda em todos os
seres que encontramos. E tomamos nosso corpo multiforme sempre
que sentimos que todos os seres estão interligados a ele, que
somos a rede da vida, como a floresta tropical, a sequóia, o
cogumelo e o mitocôndrio. Em outras palavras: até mesmo os
mapas literais podem ser lidos como se fossem uma espécie de
poema, rico de significados possíveis.
O abade zen Norman Fischer explica do seguinte modo a diferença
entre ideais e realidade:
Os ideais refletem a nossa natureza, que é profundamente religiosa.
Mas, como sabemos, os ideais podem nos envenenar quando são
em excesso ou quando tratados de forma incorreta. Em outras
palavras, quando os tratamos não como ideais, mas como
realidades concretas. Os ideais deveriam nos inspirar a superar a
nós mesmos. Só somos realmente humanos quando queremos nos
superar. Só que nunca conseguimos, justamente porque somos
realmente humanos. Ideais são ferramentas de inspiração, não
realidades em si mesmos. Mas esse é um fato muitas vezes
ignorado, o que explica a triste história da religião na civilização
humana... Quando são compreendidos corretamente, os ideais nos
dão alegria e senso de direção.

DUAS VISÕES DO DESPERTAR

Quando comparamos o caminho linear com o desenvolvimento em


espiral, vemos que são duas concepções muito diferentes de
realização espiritual. O caminho linear tem uma visão idealista do
ser humano perfeito: um Buda, um santo ou um sábio. Nesse
contexto, a avidez, a raiva, o medo, a opinião, a desilusão, o ego
pessoal e o desejo são erradicados para sempre, são totalmente
eliminados. Resta um ser humano absolutamente firme, radiante e
puro, que nunca tem uma dificuldade, um sábio iluminado que
segue apenas a, vontade do Tao ou de Deus e nunca a sua própria
vontade. Se é esse o nosso ideal, temos que admitir que tais seres
são muito raros ou que nem existem na nossa época na terra.
Na visão mais circular de Iluminação, a liberdade é uma mudança
de identidade. Neste caso nós também despertamos para nossa
verdadeira natureza e repousamos numa liberdade de espírito
infinita. Sabemos que a verdadeira realidade está além do corpo e
da mente mas, como vivemos também dentro dos limites do corpo e
da alma, os padrões comuns de vida continuam a existir. Para os
profetas do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo, assim como
para indígenas do mundo inteiro, seres despertos são figuras
complexas que combinam santidade e imperfeição humana. Mas há
uma diferença: as dificuldades passam a ser encaradas de maneira
tranqüila e inofensiva: Como diz o sábio Nisargadatta:

Pode haver dores e dificuldades, até mesmo impaciência e irritação,


mas elas não têm nada a ver comigo. Eu não nasci e nunca vou
morrer...
Embora este corpo e esta mente sejam limitados às circunstâncias,
minha vida é um eterno desenrolar no infinito.

Não importa se preferimos o ideal perfeito ou a liberdade dentro dos


limites da nossa humanidade: o despertar é um mistério que cada
tradição e cada aluno tem que enfrentar. A solução desse mistério é
encontrada no coração, onde os opostos podem ser compreendidos
e reconciliados. Só o coração pode conter tanto nossa perfeição
quanto nossa humanidade.
No fim, deixando mapas e expectativas de lado, temos que voltar o
coração na direção do amor e da consciência. Vivendo de acordo
com o coração desperto, todos nós nos tomamos bodhisattvas,
servos do Divino. Substituímos os níveis de iluminação pela
promessa de despertar a cada minuto, junto com todos os seres.
Esse é o caminho da paciência, da compaixão, da sabedoria e da
generosidade, o caminho da vontade de viver na realidade do
presente. Só aqui podemos encontrar a liberdade e repousar numa
perfeição infinita.
Como diz Suzuki Roshi: "Estritamente falando, não há pessoas
iluminadas, há apenas atividade iluminada." Quando há um eu que
reivindica a iluminação, não há iluminação. Ele diz ainda: "Estamos
falando de iluminação que se dá a cada momento, uma iluminação
depois da outra."
9
NÃO EXISTE APOSENTADORIA
ILUMINADA

Se há em algum lugar da terra um amante de Deus que esteja


sempre seguro, eu não sei, pois não me foi mostrado. Mas isto me
foi mostrado: quando calmos e nos erguemos outra vez, estamos
protegidos nesse mesmo amor precioso.
JULAN DA NORUEGA

Não dá para ficar para sempre no topo. É preciso voltar a descer...


você sobe e vê; desce e não vê mais, mas viu. Há a arte de se
conduzir... pela lembrança do que se viu lá em cima. Quando não
se vê mais, pode-se ao menos saber.
RENE DAUMAL

Na noite da iluminação do Buda, depois de fazer o juramento de


despertar, ele foi atacado pelo exército de Mara, o deus da ilusão e
do mal. Sentado sob a Árvore Bodhi, ele continuou meditando,
indiferente às mais fortes tentações de Mara, de voracidade e
prazer. Então, com compaixão no coração, ele venceu a raiva e a
agressividade deflagradas por Mara, que foi embora derrotado.
Depois disso, o iluminado levantou e, durante quarenta e cinco
anos, ensinou por toda a Índia.
Mas, nas histórias da vida do Buda, vemos que Mara desapareceu
por pouco tempo. Voltou muitas vezes para combater, para tentar
ou para enfraquecer o Buda. Mas todas as vezes foi reconhecido
pelo Buda, que assim não sucumbiu à tentação, nem ao medo nem
à dúvida. "É você de novo, Mara?", perguntava o Buda. Mara fugia
ao ser reconhecido, mas voltava para tentar de novo.
Há textos em que o Buda e Mara ficam amigos. Num deles, o
Abençoado está sentado numa caverna quando Mara reaparece.
Assustados, os discípulos tentam se livrar de Mara, chamando-o de
inimigo do mestre. "O Buda disse que tem inimigos?", replica Mara.
Vendo a inverdade dessas palavras, eles acabam chamando o
Buda, que demonstra muito interesse.
"Ah, o meu velho amigo chegou", diz o Buda. Ele recebe Mara com
satisfação e o convida para o chá. "Como tem passado?" Eles se
sentam para conversar e Mara se queixa, dizendo que é difícil ser
mau o tempo todo. O Buda ouve as histórias de Mara com simpatia
e depois pergunta: "Pensa que é fácil ser um Buda? Sabe o que
fazem com meus ensinamentos, o que fazem em nome do Buda em
alguns dos meus templos? Buda ou Mara, há dificuldades nos dois.
papéis. Ninguém está livre." Num dos textos, a história termina
quando Mara se toma iluminado, ele também um Buda.

TRANSIÇÕES INEVITÁVEIS

Seja qual for a versão, Mara não vai embora. Não existe um estado
de aposentadoria iluminada, nenhuma experiência de despertar que
nos ponha a salvo da verdade da mudança. Tudo respira e gira em
ciclos. A lua, o mercado de ações, o coração, as galáxias, tudo se
expande e se contrai ao ritmo da vida. A vida espiritual alterna
ganho e perda, prazer e dor. Cada um de nós, inclusive o Buda, só
desperta para o que é infinito, para a realidade da liberdade,
quando aceita essa verdade.
Os ciclos de despertar e abertura de quase todos os praticantes são
seguidos de períodos de medo e restrição. As épocas de paz
profunda e de amor recém-descoberto são engolidas por períodos
de perda, medo, e traição, que por sua vez dão lugar à
equanimidade e à alegria. Misteriosamente, o coração é como uma
flor que abre e fecha. É essa a nossa natureza.
Mas essa verdade sempre nos apanha de surpresa. É como se lá
no fundo esperássemos que uma experiência, uma descoberta ou
os anos de dedicação à prática nos elevasse acima do alcance da
vida, das lutas mundanas. Nós nos agarramos à esperança de que
na vida espiritual estaremos a salvo das dores humanas. Queremos
que as experiências durem, mas a permanência não é a verdadeira
liberdade, não é a libertação do coração.
O viajante sábio aprende que não pode ficar no porto, por mais belo
que ele seja. Seria como prender a respiração, como fazer do
passado uma prisão. Como diz um mestre zen:
"A iluminação é só um começo, um passo da jornada. Se você se
agarrar a ela como se fosse uma nova identidade, terá dificuldades.
Você precisa voltar à confusão da vida, se entregar a ela ainda por
muitos anos. Só assim pode completar o que aprendeu. Só assim
vai aprender a perfeita confiança"

Como o monge nas pinturas do boi e do pastor, a maioria tem que


voltar ao mercado para que a realização seja completa. Ao descer a
montanha, ficamos chocados ao ver que os velhos hábitos esperam
por nós como se fossem velhas roupas confortáveis. Mesmo que a
transformação seja grande, mesmo quando nos sentimos firmes e
em paz, a volta é sempre um teste. Ficamos confusos, sem saber o
que fazer da vida, como viver na família e na sociedade. Ficamos
sem saber como encaixar a vida espiritual em nossa maneira
costumeira de ser, em nosso trabalho. Temos vontade de fugir, de
voltar para a simplicidade do retiro ou do templo. Mas alguma coisa
importante nos puxou de volta ao mundo e a transição é parte dela.
Um lama conta:

"Quando voltei, foi como se os meus doze anos de experiências na


Índia e no Tibete fossem um sonho. A lembrança e o valor daquelas
experiências transcendentais pareciam um sonho diante do choque
cultural que foi a volta para a minha família e para meu trabalho no
Ocidente. Velhos hábitos voltaram com rapidez incrível. Fiquei
irritadiço, confuso. Eu não cuidava do corpo, vivia preocupado com
dinheiro e com os relacionamentos. No pior momento, tive medo de
estar perdendo o que havia aprendido. Então, percebi que não dava
para viver numa lembrança iluminada. Ficou claro que a prática
espiritual é o que estamos fazendo agora. O resto é fantasia."

A vida espiritual é uma preparação para a transição de um estado a


outro, de uma circunstância a outra. A capacidade de fazer
transições sábias é a capacidade de conservar a mente de iniciante.
A mudança não é o inimigo. Como Mara, ela volta para fazer com
que o coração fique presente e confiante em níveis cada vez mais
profundos.
Integrar a experiência espiritual é um processo de muitos anos.
Depois de três meses de meditação silenciosa, os participantes do
retiro são avisados de que vão enfrentar uns doze meses de
estados de transição, de alegrias, de frustrações e de novas
descobertas, até que integrem à vida tudo o que viram. Para quem
viveu em mosteiros ou viveu na Ásia, cinco, dez ou quinze anos de
prática correspondem a cinco ou dez anos de transição, até que a
vida se restabeleça de maneira firme e plena.
Uma professora de meditação e de profunda compreensão fala de
ciclos de cinco anos. Depois dos primeiros cinco anos de prática
intensiva, ela se abriu para um vasto mundo interior e para uma
compreensão profunda e libertadora.

"É como se o meu coração precisasse de estabilidade e


fortalecimento antes que eu começasse a ter contato com a dor do
passado. Mas tudo acabou vindo à tona e os cinco anos seguintes
foram o oposto. O poço de dor e agonia foi tão grande quanto o
êxtase dos anos anteriores. Acho que eu tinha que passar pelas
duas coisas."

Num espírito semelhante, uma abadessa cristã passou em estado


de graça seus primeiros tempos no mosteiro, mas depois veio um
ciclo de prática muito difícil.

"A vida da nossa comunidade era simples e saudável e eu me


entreguei a ela com amor e energia. E com uma personalidade
fortemente formada e defendida. A prece e a meditação profunda
me ampararam por muito tempo. Depois de alguns anos, senti que
podia confiar na comunidade e parei para tomar fôlego. Nessa
época, uma das irmãs mais velha morreu. Como tínhamos tido um
contato muito próximo, sua morte desencadeou uma sucessão de
lembranças: a morte de meu irmão gêmeo quando nascemos, a
quase-morte de minha mãe, a distância, o ódio e a perda do meu
pai. Percebi que minha vida era dividida pela mágoa. Percebi que
mesmo na comunidade monástica eu tinha vivido na superfície,
fugindo da aflição e do vazio. Finalmente parei. Essa descoberta
deu início a anos de trabalho de cura para aprender a abrigar no
mesmo coração a aflição, o mosteiro, a dor de minha vida e a dor
do mundo."

IMPACTO E QUEIMADURA

Esses ciclos de abre e fecha são um remédio necessário à


integração do coração. Mas em alguns casos não há apenas ciclos,
há um impacto. Quanto mais alto subimos, maior é o tombo. Esse
impacto faz parte dos mapas da vida espiritual e do grande ciclo, e
temos que aceitá-lo como tal.
O koan zen que abriu o Capítulo 8 é apresentado a alunos que já
tiveram um primeiro despertar: "Uma pessoa claramente iluminada
cai no poço. Como é isso?" Um mestre zen adverte seus alunos:
"Depois de qualquer experiência espiritual poderosa há um declínio
inevitável, uma luta para integrar o que vimos." O poço se forma
quando nos agarramos a experiências ou ideais espirituais ou a
idéias infladas sobre os professores, sobre o caminho e sobre o eu.
Ele pode ser uma questão inacabada da vida psicológica e
emocional - a incapacidade de aceitar a própria sombra, de levar
em conta as necessidades humanas, a dor e as trevas que
trazemos conosco, de ver que temos sempre um pé nas trevas.
Brilhante como é, o universo precisa também se abrir para seu
outro lado.
Uma professora da Ordem Sufi tinha vinte e quatro anos quando
aderiu a uma tradição cheia de louvores a Deus, cânticos e
orações. Ela vendeu tudo o que tinha e viveu numa comunidade sufi
por dez anos, rodeada de êxtase e orações. Foi um período glorioso
de sua vida, que lhe abriu o coração. Então decidiu casar e foi
arrastada de volta para o mundo.

"Tinham me ensinado a ser compreensiva e cheia de amor. Tive


experiências incríveis de êxtase e alegria, comuns naquela vida de
orações. Não sabia o que fazer quando deixei a comunidade e tive
que enfrentar sozinha o ciúme, o medo e a solidão, sem o apoio do
professor ou dos amigos sufis. Sem experiência, não sabia lidar
com a dor e as necessidades. Meu companheiro sufi era ainda pior.
Ele não suportava a frustração e as exigências da vida de chefe de
família. Então ele me deixou. Fiquei sozinha naquela casa. Por mais
alto que eu tivesse chegado, o tombo foi muito maior. A partida dele
inaugurou em mim uma onda de desespero que vinha do tempo em
que minha irmã se afogou e minha mãe abandonou a família - tudo
o que eu tinha pretendido curar com a ajuda dos sufis. Foi difícil.
Não havia luz no fim do túnel. Nomeio dele só havia trevas, fosse
noite, verão ou inverno. Isso durou um ano. Procurava pessoas que
me amparassem e dessem atenção às minhas lágrimas, até que
finalmente consegui ficar comigo mesma. Foi doloroso, mas foi
também um período de cura e integração. Mesmo assim, gostaria
de ter tido mais perspectiva nessa época, ou melhor orientação
espiritual."

Até os professores veteranos às vezes se sentem abalados. Um


americano, engajado na busca havia vinte anos, chegou à plenitude
da liberdade com um guru na Índia. Ficou em êxtase por um ano,
"repousando em perfeição, mergulhado em silêncio e amor".
Quando sua mulher ficou grávida, eles voltaram aos Estados
Unidos e a alegria espiritual que ele havia descoberto começou a
atrair os amigos. Depois de dois anos, ele tinha grupos diários de
meditação, um centro, centenas de alunos. Seu caminho parecia
estar se desenrolando perfeitamente e ele achou que estava a salvo
dos problemas do mundo, até que enfrentou uma crise.

"Eu sempre me preocupei com os alunos, achando a sabedoria


deles muito instável. Depois de descobrir o vazio e a liberdade, a
tendência de muitos era sucumbir outra vez à separação. Mas
então aconteceu comigo! Fiz um curso superintensivo de confusão,
pânico e depressão. Começou quando fiquei muito doente por
causa de parasitas que tinha pego na Índia. Então, sofri uma traição
e perdi todo o dinheiro que havia economizado durante anos e
investido em dois prósperos negócios. De repente, o guru estava
doente e pobre. Fiquei muito assustado. Minha vida familiar virou
um ponto de conflito. Tivemos de mudar de casa, aprender a viver
sem dinheiro, ter as preocupações comuns. Tive problemas com
minha mãe. E enquanto isso eu pensava que não devia estar
sentindo essas coisas - afinal, eu havia estado no ápice. Eu
pensava que conhecia o jogo.
Finalmente, tive que parar de ensinar. Perdi totalmente o controle.
Como uma criança, eu não queria mais entender as coisas: estava
totalmente desestruturado, vivendo um momento depois do outro, e
foi então que comecei a ter uma genuína vida espiritual."

A celebridade não protege contra esse tipo de impacto: pode até


provocá-lo. Bhagawan Das, um yogue de dois metros de altura e
topete loiro, passou sete dias na Índia andando descalço,
meditando em cavernas, cantando em êxtase os nomes de Deus.
Ele apresentou Ram Dass a seu guru, Neem Karoli Baba, uma
história que Ram Dass conta em Be Here Now, um clássico dos
anos sessenta. Depois, Bhagawan Das viajou pelo Ocidente com
Ram Dass, ensinando e cantando em grandes encontros espirituais.

"Voltei para a América e, de repente, estava no palco, diante de


milhares de pessoas, batizando bebês e abençoando pessoas que
se jogavam aos meus pés. Rodeado de benfeitores e estrelas do
cinema, eu me sentia um rei, mas ainda era um garoto, um guru de
vinte e cinco anos que, numa casa em Manhattan, se sentava numa
pele de tigre para meditar.
A Mãe Divina brinca com quem brinca com ela, porque ela é tudo...
Ela é o desejo, a raiva, a luxúria. Ela é tudo. Quem quer nome e
fama, vai ter - a Mãe dá. Mas o que eu tinha atingido na prática veio
através da graça de conviver com santos. É através da bênção dos
santos que se conquista aquele espaço. Quando comecei a ser
indulgente comigo mesmo, interrompi minha verdadeira prática e
perdi tudo.
A vida espiritual não é para sempre: é um processo constante.
Depois de três anos de 'vida espiritual', que na verdade era uma
festa, fiquei doente e fui para casa ficar com os meus filhos. Voltei
ao mundo e comecei a vender carros usados em Santa Cruz; virei
um homem de negócios e fui perdendo o meu senso de divino.
Vinte anos depois, um amigo me levou para ver um santo. Caí em
meditação profunda por três horas. Então ouvi a voz do meu guru e
quis cantar o nome de Deus. E é isso o que tenho feito. Mas desta
vez estou tendo mais Cuidado, vendo bem com quem convivo.
Quem acha que conquistou alguma coisa tem que ter Cuidado,
porque pode perdê-Ia. Tem que manter os compromissos espirituais
e não abandonar a prática. Agora estou tentando ser um ser
humano real e se outros aproveitarem minhas experiências, elas
valeram a pena."

RESPEITO À QUEDA

Ao dizer que não conhece nenhum amante de Deus que esteja a


salvo da queda, a mística cristã Julian da Noruega está dizendo que
o declínio também é vontade de Deus. Tenhamos ou não
conhecimento disso, Mara sempre volta. A queda, a descida e a
subseqüente humildade são outra forma de bênção.
O sucesso, por maior que seja, costuma ser unilateral. Então,
nossos aspectos menos desenvolvidos, a "nossa sombra", como diz
Jung, vêm à luz. São nossos aspectos mais grosseiros, sobre os
quais temos pouco controle. Há certas verdades que só o declínio
ensina, verdades que trazem plenitude e humildade através da
resignação. Em épocas de grande vulnerabilidade do coração,
chegamos perto dos mistérios impessoais da vida. Todos nós
precisamos de momentos fecundos, de um tempo para a terra
descansar, de contato com o húmus da terra. É como se alguma
coisa em nós ficasse mais lenta, nos chamasse de volta. É quando
pode despontar um conhecimento e uma beleza mais profundos.
É o que diz o mito de Orfeu. Como é filho das Musas, Orfeu é capaz
de criar a mais bela música humana que já se ouviu. Mas, pouco
depois do casamento, Eurídice, sua mulher amada, morre.
Desesperado, Orfeu segue seu espírito até o submundo. Diante do
Senhor da Morte, ele pega a lira e canta o amor que não morre,
como conta o poeta Rilke:

Uma mulher tão amada que de uma só lira veio mais lamento do
que de todas as mulheres que lamentam, tão amada que surgiu um
mundo de lamento, onde a natureza inteira reapareceu: floresta e
vale... campo e córrego e animais pesarosos... Tanto ela era
amada.
(Tradução de Stephen Mitchell)

A canção de Orfeu é tão comovente que Hades permite que


Eurídice volte à terra da luz, mas com uma condição: Orfeu não
pode se voltar para vê-Ia durante a longa viagem para casa.
Conduzida por Hermes, o deus mediador entre os dois mundos, ela
segue em silêncio atrás de Orfeu, no lento caminho de volta para o
mundo da luz.
Ele disse a si mesmo, eles tinham que estar logo atrás...
mas seus passos
eram agourentamente suaves. Se ao menos ele pudesse
virar para trás só uma vez...

É próprio do coração, da natureza humana, virar para trás - como


Orfeu acabou fazendo, embora com isso tenha perdido Eurídice
para sempre. Não podemos viver apenas no mundo de luz. O
coração sabe que para desabrochar tem que ter contato com toda a
verdade, com tudo o que somos, mesmo que isso signifique perder
o que amamos. A música de Orfeu tem que incluir a eterna tensão
da perda e da aflição para cantar plenamente a nossa mais
profunda compreensão.
Diz a tradição que, se não honrarmos as tarefas inacabadas, o
karma vai nos fazer lembrar, os conflitos não resolvidos vão
reaparecer. Seremos obrigados a nos voltar para o que não
enfrentamos em nós mesmos. Para simplificar: as circunstâncias da
vida humana vão teimar em chamar a nossa atenção. É preciso
honrar o declínio assim como a ascensão. Às vezes, basta aceitar
esse fato. Como diz um mestre zen:

"Meses de alegria se seguiram a um retiro em que o meu mestre


zen viu em mim um autêntico despertar. Mas depois desses meses
fiquei deprimido. Tempos depois fui a outro retiro, para ter uma
experiência com Toni Packer. Numa das palestras noturnas, ela
disse que, depois de um grande desabrochar, o praticante
geralmente fica deprimido. No momento em que ouvi isso, minha
depressão começou a se dissipar. É como se eu precisasse de
permissão para aceitar o que já estava acontecendo, para que o
ciclo começasse a se mover novamente."

A queda é um convite para a transformação interior e exterior. Às


vezes, uma queda espiritual não se resolve rapidamente: ela pode
levar anos para passar para a fase seguinte. Um monge católico
que deixou sua abadia depois de doze anos para voltar ao mundo
do trabalho e dos relacionamentos conta como foi essa mudança:

"Nossos dias na abadia seguiam um ritmo harmonioso de prece e


silêncio, de solidão e comunhão sagrada. Saí por causa do que
havia de não vivido em mim. Com toda a beleza e êxtase da vida
reclusa, eu tentava incluir plenamente a minha paixão, o meu ser
físico, a minha humanidade. Para alguns isso dava certo, para mim
não funcionou. Quando saí, a euforia inicial foi logo sufocada por
uma noite escura. Eu tinha aprendido a ficar em silêncio, a ouvir, a
confiar na prece. Sob esse aspecto, meu espírito era maduro. Mas
muitas partes da minha vida eram imaturas.
Eu não podia voltar, não conseguia seguir em frente, e assim decidi
servir os outros. Consegui trabalho numa instituição que servia sopa
para os pobres. Arrumei uma namorada e tentamos viver juntos.
Tive que recorrer à força do espírito para superar as dúvidas e a
depressão suicida. Foram os três anos mais duros da minha vida.
Agora percebo que eles foram essenciais para revelar minha
verdadeira vocação espiritual, uma vida de serviço. Foi graças a
eles que aprendi a confiar o que a vida traz. Sou grato agora a tudo
por que passei, pois cheguei mais perto de Deus."

DEIXAR ROLAR

No inevitável sobe e desce, os ciclos de expansão e contração que


acompanham o processo de dar à luz nós mesmos, há momentos
de fazer força, de lutar por uma meta espiritual. Mas, em geral, a
tarefa é deixar rolar, é descobrir um coração benevolente que
respeite as mudanças da vida.
Suzuki Roshi resumiu o ensinamento budista em poucas palavras:
"Nem sempre é assim." As condições sempre mudam. Descemos
do topo. Mara retoma. O respeito à verdade da transitoriedade
permite que a experiência de escuridão e queda seja parte do todo
maior.
Um lama ocidental saiu de sete anos de retiro silencioso para ficar
viajando e ensinando durante mais sete anos.

"Minha maior surpresa foi descobrir que ainda precisava aprender a


confiar. Durante anos eu pensei que a vida espiritual fosse um
estado especial de perfeição ou iluminação. Mas é, na verdade,
minimizar o apego. A vida não depende só do que fazemos. As
grandes ilusões que almejamos, no mundo ou na vida espiritual,
acabam sendo falsas. Quando aprende a deixar que as coisas
rolem, você descobre uma tremenda fé no fundamento de tudo,
naquilo que é verdadeiro antes e depois de nossos planos. Tudo
surge e passa: essa é a verdadeira perfeição. Descobri que dá para
confiar nisso."

Em todas as tradições e práticas de liberdade, descobrimos que a


tarefa do coração é bem simples. A vida nos oferece aquilo que nos
oferece e nossa tarefa é nos curvar diante disso, aceitar o que nos
é oferecido com compreensão e compaixão. Não há louros a
conquistar. Professores carismáticos e conquistas espirituais podem
ser armadilhas de esforço em que perdemos de vista nossa
Natureza Búdica aqui e agora. Ajahn Sumedho, o primeiro abade
americano de um mosteiro budista Theravada, nos adverte contra a
luta para conseguir alguma coisa em especial.

No caso das mentes obcecadas pelo pensamento compulsivo e


pela sofreguidão, as práticas de meditação se resumem a duas
palavras: "deixar rolar". É isso que importa, em não tentar seguir
esta prática e depois desenvolver aquela, atingir isto e começar
aquilo. A mente sôfrega quer ler os suttas, estudar o Achidamma,
aprender pali e sânscrito, depois o Madhyamika e o Prajna
Pararnita, ser ordenado no Hinayana, no Mahayana e no Vajrayana,
escrever livros e tomar-se uma renomada autoridade em Budismo.
Em vez de ser um especialista em Budismo, convidado para
grandes conferências internacionais, por que não "deixar rolar,
deixar rolar e deixar rolar"? Durante anos essa foi a minha prática.
Sempre que eu queria compreender as coisas, eu dizia: "Deixa
rolar, deixa rolar, deixa rolar", até o desejo se dissipar. Agora, estou
simplificando as coisas para você, tentando poupá-lo de muito
sofrimento. Não há nada mais penoso do que ir a conferências
internacionais de Budismo. Alguns querem ser o Buda do momento,
ser Maitreya, irradiar amor pelo mundo. É melhor ser uma minhoca
que sabe apenas duas palavras: "Deixa rolar, deixa rolar, deixa
rolar." Como o nosso caminho é chamado Veículo Menor, o
Hinayana, temos apenas essas práticas miseráveis.

Deixar rolar é a essência desta história sobre o santo e yogue


favorito do Tibete, Milarepa, Muito depois da iluminação, Milarepa
foi pegar lenha perto da caverna onde praticava. Quando voltou,
encontrou na caverna sete demônios de metal com corpos enormes
e olhos do tamanho de xícaras. Alguns estavam moendo cevada e
acendendo o fogo; outros faziam truques de mágica. Quando os viu,
Milarepa ficou assustado. Meditou sobre o Buda, disse um mantra,
mas não conseguiu acalmá-los. Pensou: "Devem ser as divindades
deste lugar. Estou aqui há anos, mas nunca os louvei nem lhes
ofereci nada."
Então, ele cantou uma canção de louvor:

Demônios não-humanos reunidos aqui são estorvos.


Bebam este néctar de amizade e compaixão e vão embora.

Os primeiros três demônios, que faziam truques de mágica, foram


embora. Percebendo que os outros demônios eram estorvos
mágicos, ele cantou esta canção de confiança:

Demônios, é maravilhoso que tenham vindo hoje.


Voltem amanhã.
Precisamos conversar de vez em quando.

Com isso, mais três demônios sumiram como um arco-íris. O que


ficou dançou uma dança majestosa e Milarepa pensou: "Este é mau
e poderoso."
Então cantou outra canção, o ápice da compreensão:

Um demônio como você não me intimida.


Se um demônio como você me intimidasse,
O despontar da mente de compaixão
pouco significaria.

Demônio, se quiser ficar mais tempo, para mim está tudo bem.
Se tiver amigos, traga-os.
Vamos discutir nossas diferenças.

Que o Senhor Vajradhara, o Buda,


Conceda suas bênçãos para que este ser inferior possa
ter completa compaixão.

Então, com amizade e compaixão, sem se preocupar com o corpo,


Milarepa entrou na boca do demônio - mas o demônio não
conseguiu devorá-lo e sumiu.
As práticas tibetanas ensinam que é bom honrar e alimentar os
demônios. Quando eles chegam, temos de reconhecer que eles
fazem parte da dança da vida. Quando ameaçam, só as nossas
ilusões que correm perigo. Prosternando-nos diante das
apavorantes forças em mutação da vida, seremos sábios.
Abraçando-as, elas se transformarão em arco-íris. Todas as cores
brilham no coração desperto.
Como diz Julian da Noruega: "Quando caímos e nos erguemos
outra vez, estamos protegidos nesse mesmo amor precioso." É só
aceitando a mudança que dá para viver em harmonia com as
pessoas à nossa volta e com nossa verdadeira natureza. Seja qual
for a situação, o despertar exige confiança: confiança nos ciclos da
vida, na certeza de que algo novo vai nascer, na perfeição de tudo o
que existe, seja o que for. Quando há sabedoria, deixar rolar não é
alheamento em relação à vida. É o coração abraçando a própria
vida, um desabrochar para a plena realidade do presente.
Essa é a sabedoria do Tao:

Ao agir com precipitação, você fracassa.


Ao tentar agarrar as coisas, você as perde.
Assim, a mestra age deixando que as coisas
sigam o seu curso.
Ela continua tão calma no fim quanto estava no começo.
(Tradução de Stephen Mitchell)

O ABRAÇO SECRETO

Embora pareça simples, deixar rolar é também uma prática


avançada. Ela é necessária nas maiores provações da vida e nos
nossos momentos finais. É então que o coração aprende o segredo:
deixar que as coisas rolem também é abraçar o que é verdadeiro.
Depois de anos de treinamento num mosteiro, uma professora
budista mergulhou numa aflição profunda quando o divórcio e a
morte de um de seus filhos a obrigaram a reexaminar seus anos de
prática.

"Sucumbi à dor. Eu passava dias chorando, incapaz de continuar


vivendo, sem saber o que fazer. Foi um ensinamento que nenhuma
meditação me ajudaria a enfrentar. Eu tinha que encarar o
sofrimento do mundo e o sofrimento da minha mente. Nesses anos,
aprendi a necessidade de deixar rolar, de me abrir para a verdade
fosse ela qual fosse."

Quando a queda acontece, temos de nos entregar a ela. A


liberdade do coração só se revelou ao Buda quando ele conseguiu
ter compaixão no contato com o sofrimento de Mara. Esse é um
segredo ensinado nas artes marciais como o aikidô: entrar na
energia do oponente, aceitar a agressão e se movimentar junto com
ele. Nesse abraço, nós nos reconciliamos e fazemos as pazes com
tudo. Nós e o,nosso oponente nos tomamos perfeitos.
Uma frase bem-humorada de Emerson esclarece essa questão:
"Quando um cachorro correr atrás de você, assobie para ele." É
uma verdade do coração que aquilo a que resistimos nos dá medo,
nos toma duros e inflexíveis. Por outro lado, o que abraçamos se
transforma.
Quando honramos Mara, chamando-o pelo nome e convidando-o
para o chá, o medo, a confusão e o conflito da queda se tomam
nossos aliados. A vulnerabilidade e a humildade do coração são a
nossa salvaguarda. É quando se deixa tudo para lá que nasce a
confiança; é quando se abandona a luta que a verdadeira força é
revelada; é no coração compassivo que se realiza o amor por todos
os seres sencientes. Não dá para ficar sempre no topo, mas dá
para encontrar paz e unidade em todas as coisas. Aceitando a
mudança das estações com esse abraço secreto, o lugar em que
estamos se transforma em solo sagrado, na sede da iluminação.
10
A ROUPA SUJA

Em geral, as pessoas acham que, por ser considerado um Buda


vivo, conheço apenas a serenidade, a felicidade perpétua, e que
estou livre das preocupações. Infelizmente, não é assim. Como
lama e encarnação da iluminação, eu é que sei.
KANJU KHUTUSH TULKU RINPOCHE

Não deveríamos ficar comovidos, em vez de desanimados, diante


de um ser humano que nos impressiona pela sua grandeza,
sabendo que ele deve ter chegado a ela através de suas
fraquezas?
LOU ANDREAS-SALOMÉ, BIÓGRAFA DE FREUD

No seu livro recém-publicado, Lives in the Shadow, Radha


Rajagopal Sloss faz um relato dos anos que passou com
Krishnamurti. Ela fala das dádivas de coragem e despertar que ele
trouxe a dezenas de milhares de alunos no mundo inteiro e dos
anos em que foi um segundo pai para ela. Mas fala também do
choque que teve quando soube do romance de vinte anos que
Krishnamurti tinha tido com a mãe dela, ainda no tempo em que seu
pai administrava os negócios dele e era um de seus amigos mais
próximos. Além disso, ela conta que ele tinha necessidade
compulsiva de outras mulheres, fala de abortos abafados, de
desculpas fingidas, do crescente apego à luxúria, da arrogância e
da rigidez que provocaram prolongadas batalhas legais com a sua
equipe. Outras pessoas que o conheceram bem contam essas
mesmas histórias. Mas, quando Radha quis conversar com ele
sobre tudo isso, ele lhe respondeu zangado: "Eu não tenho ego."
O que concluir dessa história e de tantos outros casos
semelhantes? Será que são casos isolados ou será que há certas
dinâmicas quase arquetípicas que podemos detectar, o que nos
ajudaria a navegar com mais consciência nesse aspecto do
caminho espiritual?
COMO REAGIR COM SABEDORIA: A SABEDORIA PERSPICAZ

Antes de fazer um inventário de nossas falhas e das falhas alheias,


é bom examinar os olhos e o coração, para ter a certeza de entrar
nesse terreno com espírito aberto e cuidadoso e não cheio de raiva,
comparações e auto-justificativas. Nesse momento, precisamos do
espírito de sabedoria perspicaz.
No sutra Kalama, o Buda ensina o praticante a considerar com
honestidade o que é sábio e saudável e o que não é sábio e
saudável, independentemente de qualquer texto, ensinamento ou
autoridade. Esse "corajoso inventário moral", como é chamado nos
Alcoólicos Anônimos, é uma prática necessária e frutífera para
alunos e professores.
Sabedoria perspicaz significa ver com clareza. Assim como
percebemos quando a roupa está suja e precisa ser lavada, o
primeiro passo para resolver qualquer problema é uma avaliação
honesta. Nas dificuldades espirituais coletivas, temos que ter a
coragem de questionar nossas opiniões, nossa comunidade, nosso
professor e nós mesmos. Temos de pôr fim ao isolamento para
enxergar a verdade e falar dela com os outros, mas sempre com
compaixão e cientes da interligação. Por si só esse estágio tem um
enorme poder de cura, embora assuste um pouco no começo.
Temos de aprender que é possível confiar na verdade e que ela
leva à liberdade.
A sabedoria perspicaz, por mais destemida que seja, tem de ser
baseada na compaixão. Além dos problemas, ela vê as causas e as
intenções equivocadas que os precedem. Como vê sem fazer
julgamentos severos, ela consegue separar o que é certo do que é
equivocado. Mais do que isso: a sabedoria perspicaz sabe que cada
tradição e cada professor tem seus pontos fortes e seus pontos
fracos. Assim, consegue ficar com o que é bom e deixar o resto de
lado.
Há modéstia e bondade na sabedoria perspicaz: ela não espera
perfeição, mas está sempre disposta a ver os dois lados, a aprender
com cada situação, a detectar as dificuldades e a compreender
suas causas. Vamos agora examinar esse caminho generoso em
algumas das áreas em que surgem mais problemas entre professor
e comunidade ao longo da jornada espiritual.

QUATRO ÁREAS EM QUE AS DITICULDADES SÃO MUITAS

Uma área de perigo nas comunidades espirituais é o mau uso do


poder. Em geral, isso acontece quando o professor ou mestre
detém todo o poder na comunidade. Quando os desejos do mestre
são soberanos, quando cada palavra sua é atendida, quando não
há troca e o questionamento não é bem-vindo, é possível que o
professor comece a controlar a vida dos alunos, alegando que é
para o seu bem. Aos poucos, a embriaguez inconsciente que o
poder provoca substitui a sabedoria e o amor se transforma em
recompensa, distribuída conforme a vontade do mestre. O mau uso
do poder produz sectarismo e rivalidade. Há os "salvos" e os
perdidos ou castigados. Há panelinhas, grupinhos, segredos e lutas
pelo poder. Quando atinge seu ponto mais doloroso, o mau uso do
poder gera paranóia, cultos e outros horrores.
Uma segunda área problemática para professores e comunidades é
o mau uso do dinheiro. A graça encontrada na vida espiritual inspira
generosidade e, quando uma comunidade dá certo, o dinheiro
começa a entrar: para Deus, para o templo, para custear o trabalho
sagrado do líder. Como a maior parte das tradições religiosas estão
impregnadas de Simplicidade, seus professores não são treinados
para lidar com dinheiro. Sem uma dedicação contínua à essência
da prática, nesta sociedade materialista é comum que professores
sucumbam, em nome do espírito, ao dinheiro, à segurança ou à
ganância. Há até casos em que o uso fraudulento dos donativos
reverte em contas bancárias secretas e num alto estilo de vida,
enquanto outros membros da comunidade são exortados a viver
com austeridade e a trabalhar sem remuneração.
Uma terceira área de perigo é o mau uso da sexualidade. No caso
das comunidades espirituais, o abuso da energia sexual, que
infelizmente é comum na nossa época, traz problemas quando o
professor não tem muita consciência. Suas necessidades,
combinadas à negação da sexualidade e a ambivalência em relação
a ela, o que é comum na maior parte dos ensinamentos espirituais,
acabam levando a amores secretos e à exploração sexual de
alunos "em nome do tantra" ou em troca de acesso ao professor.
Esses relacionamentos provocam um sofrimento desnecessário. Há
casos extremos de má conduta sexual: haréns secretos, abuso de
crianças e até mesmo transmissão do HIV por um professor que
disse aos alunos que seus poderes especiais serviam de proteção.
Uma quarta área problemática é o mau uso de álcool e drogas. Os
vícios da cultura moderna atingem as comunidades espirituais.
Certas tradições espirituais celebram a embriaguez como metáfora
da transformação espiritual. Tomada ao pé da letra, essa idéia
serve de desculpa para vícios declarados ou secretos. Professores
viciados já causaram a ruína de comunidades inteiras e muito
sofrimento na vida de alunos que acabaram vítimas da
dependência.

O MOTIVO DAS DIFICULDADES

Por que há tantos problemas em comunidades de pessoas bem-


intencionadas? É óbvio que alguma coisa está errada. Para
compreender esses desvios de uma perspectiva mais ampla, vamos
recorrer ao mundo do mito.
A mitologia grega é rica em histórias de ascensão e queda e do que
acontece com quem esquece qual é o seu lugar. Uma das mais
instrutivas é a de Ícaro, filho de Dédalo, que era considerado o mais
engenhoso de todos os artistas e artesãos. Original de Atenas,
Dédalo foi para Creta para projetar o assombroso labirinto onde o
Rei Minas ficou cativo do terrível Minotauro.
Mas Dédalo caiu em desgraça aos olhos do rei e foi preso com
Ícaro, primeiro no próprio labirinto e depois numa torre de pedra na
praia. Não demorou para Dédalo imaginar uma forma de fugir. Pai e
filho começaram a juntar migalhas de comida para atrair gaivotas.
Com muita paciência, foram juntando suas penas e acumulando a
cera que pingava das velas. Assim, Dédalo fez um par de asas,
fixando as penas com cera e barbante. Ele aprendeu a voar e
depois fez asas para Ícaro.
Finalmente, eles podiam partir para a liberdade. Enquanto amarrava
as asas ao corpo do filho, Dédalo lhe disse para não voar muito
alto, pois o sol derreteria a cera. Quando saíram voando da ilha, os
pescadores e os pastores pensaram que fossem deuses.
Vendo Creta desaparecer atrás de si, Ícaro alegrou-se com o
embalo do bater das asas. Começou a subir cada vez mais,
entregando-se à liberdade do vôo. Sentindo que podia tocar o céu,
foi chegando mais perto do sol. O calor derreteu a cera e as penas
começaram a se soltar. Gritando por socorro, Ícaro caiu como uma
folha e se afogou no mar, deixando algumas penas boiando. Com o
coração cheio de dor e desespero, Dédalo voltou para a sua terra,
pendurou as asas no templo de Apolo e nunca mais tentou voar.
Como Dédalo, nós também podemos ficar presos numa vida
labiríntica que nós mesmos criamos. Através de uma prática longa e
paciente, divisamos meios que nos permitem escapar. A parte de
nós que conhece suas limitações consegue navegar em meio aos
perigos do vôo da libertação. Mas quando esquecemos que somos
humanos, quando uma parte de nós pensa que pode voar sem
limites, então o próprio vôo nos abandona e somos inevitavelmente
lançados no mar escuro.

EMBRIAGUEZ E IDENTIFICAÇÃO COM OS DEUSES

Como mostra o mito de Ícaro, voar é coisa do domínio dos deuses e


não do domínio dos homens. Durante a prática, nossa consciência
pode se identificar com os deuses, com um arquétipo: a
possibilidade ideal. Isso tem seu valor, mas só quando sabemos o
que acarreta. Quem "se identifica com um arquétipo tenta ser um
ser perfeito; um Buda, um Cristo, um mestre totalmente puro. O
mundo dos deuses é tentador - quando provamos os frutos da
liberdade, as experiências podem nos arrebatar. O problema é
acreditar que dá para ficar por lá, sem precisar voltar para a
realidade do tempo, da terra, da vida humana.
Em geral, os professores que praticam abusos não são
propriamente desonestos. Cercados por discípulos que querem
acreditar em sua perfeição, eles começam a acreditar na própria
propaganda, a se identificar com a autoridade do papel de mestre.
Cresce então a embriaguez coletiva, criada tanto pelo professor
como pelos alunos, em geral com a melhor das intenções. Mas
nesse clima de expectativas irreais, o professor começa a se isolar,
a se sentir como Ícaro, achando que pode voar para sempre.

ISOLAMENTO E NEGAÇÃO

Quando unia comunidade se isola do mundo ou tende ao


alheamento próprio dos cultos, não há possibilidade de uma troca
saudável. Da mesma forma, quando é posto num pedestal e
considerado perfeito, o professor corre o risco de ficar isolado e
distante dos companheiros e amigos espirituais honestos. Nessa
situação, os membros da comunidade podem não perceber o que
está acontecendo. O professor que vive cercado de alunos que o
adoram, e não de pessoas que se relacionam com ele de igual para
igual, pode ser vitimado pela solidão e pela necessidade não
satisfeita de intimidade ou, pior ainda, pela autoconfiança cega, pela
arrogância e pela intolerância. Nesse caso, o isolamento é solo fértil
para o delírio, para o controle de idéias e para a transformação da
prática em culto.
Há forças culturais que contribuem para esses problemas. Nas
culturas patriarcais, somos condicionados a seguir a autoridade, a
desconfiar do corpo e dos sentimentos, a obedecer aos que "sabem
mais". Não somos estimulados a pensar por nós mesmos. A
vontade de ser salvo, de encontrar alguém que conheça a verdade
neste mundo confuso, é a base de muitas comunidades de
seguidores cegos.
A idealização e o isolamento levam à cultura da negação. A
idealização nos deixa cegos para a evidência dos próprios olhos e,
graças ao isolamento, não há ninguém para apontar os fatos. Às
vezes, é chocante o nível de negação das comunidades espirituais,
ainda mais para quem vê de fora com os olhos abertos: a
comunidade nega que seus ensinamentos tendem ao culto e que
seus membros estão perdidos no sistema espiritual, esquecidos da
própria sabedoria inata.
Eu soube da história de um mestre carismático de uma antiga
linhagem que segredava a um sem-número de mulheres casadas
que elas eram, cada uma, o seu amor secreto. Ele lhes dizia para
passar óleo no corpo e aguardar suas visitas e seus
"ensinamentos". Soube também de um rabino famoso, que somava
às suas canções inebriantes a embriaguez do álcool e vivia
passando a mão em mulheres e meninas.
A negação e o isolamento levam a um sofrimento que pode durar
muitos anos, como no caso do guru arrogante que tiranizava e
controlava a vida dos alunos para "destruir seu egotismo"; dos
padres pedófilos que encobriram por muito tempo sua prática; do
professor birmanês que acabou sendo espancado pelos monges
depois de anos de abuso.
Quase todas as tradições advertem contra o mau uso do papel de
professor. Mas os seguidores nunca acreditam que as advertências
se aplicam ao seu caso. São como Ícaro, que no embalo de voar
ignorou as palavras do pai. A capacidade de enganar a nós
mesmos é quase tão vasta quanto a capacidade de despertar.
Como questionar o professor nos põe em contato com a nossa
sombra, os alunos negam os abusos a despeito dos fatos. Mesmo
quando há denúncias nacionais de cultos ou de casos de abuso de
poder, dinheiro ou sexualidade num movimento espiritual, os alunos
não acreditam. Enquanto isso, professores iludidos buscam
explicações elaboradas para justificar o que estão fazendo: "Eu
estava usando o dinheiro, o poder, para o bem de todos." "Não se
trata de sexo, mas de ensinamentos tântricos." "Ajudo tantas
pessoas que preciso de um pouco de amparo e conforto." É difícil
resistir ao fascínio do vôo.

CONFUSÃO ENTRE CARISMA E SABEDORIA

Outra fonte de equívoco espiritual é a confusão entre carisma e


sabedoria. Alguns lideres espirituais têm a capacidade de evocar
estados extraordinários. Aumentamos as nossas esperanças, os
sentimentos de êxtase e a transcendência florescem em tomo
desses carismáticos pastores, padres, mestres zen, místicos,
rabinos e gurus. É fácil confundir esses poderes espirituais com
sinais de sabedoria, iluminação ou amor divino. Esquecemos que o
poder e o carisma não passam de poder e carisma, que essas
energias servem também aos demagogos, aos políticos e aos
entertainers.
É possível ser carismático sem ser sábio. E nem sempre a
sabedoria é brilhante e poderosa - ela pode se manifestar num
coração humilde e numa vida aparentemente comum. Nas
comunidades em que o poder espiritual é altamente valorizado, os
alunos têm que tomar ainda mais cuidado: quando se recorre a
conhecimentos secretos ou linhagens antigas; quando, entre todos
os grupos do mundo, um único grupo é escolhido para ser salvo, é
sinal que a comunidade espiritual está se transformando em culto.
Não é a regra geral, mas é um risco, principalmente no domínio
ofuscante do carisma. Algumas tradições se protegem contra esse
abuso criando uma rede de professores antigos e respeitados,
capazes de zelar pela conduta espiritual dos outros.

AS TENTAÇÕES DO PODER MUNDANO

Das Cruzadas à guerra santa, de santos corruptos e bispos


tirânicos à venda de favores, é bem conhecida a história do abuso
de poder nas religiões organizadas do Ocidente. Por outro lado, há
quem imagine que as religiões e tradições de meditação do Oriente
são imunes a essa forma de corrupção. Mas a história religiosa da
Coréia, do Japão, do Sri Lanka, da China, do Tibete e de Burma
estão cheias de episódios de abuso de poder. Em Zen of War, Brian
Victoria conta que carismáticos mestres zen do Japão, como
Sawaki Kodo Roshi e Harada Daiun Roshi, deturparam os
ensinamentos zen durante a Segunda Guerra Mundial para
fomentar a guerra e o extermínio. Durante muitos séculos, houve
professores zen que, em nome do Budismo, incitavam os
praticantes a aderir ao extermínio militar de não-japoneses, uma
forma de "guerra caridosa". O extermínio militar era visto como uma
expressão da iluminação e templos importantes forneciam
soldados, dinheiro para comprar armas e bênçãos para as
campanhas militares. Há também casos de guerra e luta pelo poder
entre mosteiros.
As guerras entre seitas, monges e mosteiros fazem parte da história
tibetana. Tsipon Shuguba, antigo ministro das finanças do Tibete e
autor de In the Presence of My Enemies, descreve as lutas pelo
poder durante as décadas que precederam a ocupação do Tibete
pela China Comunista. Mosteiros importantes, lamas como Reting
Rinpoche (regente do Dalai Lama) e centenas de monges lançaram
mão de cavalos, armas e canhões em batalhas que mataram
inúmeros monges-soldados. No exílio, o sectarismo e as lutas pelo
poder continuaram a assolar a comunidade tibetana, sempre em
nome da prática religiosa "correta".
Muitas hierarquias religiosas estabelecidas possuem grandes
propriedades, tesouros artísticos, grande influência internacional e
influência moral. A tarefa é descobrir como administrar tudo isso
sem sucumbir ao seu fascínio. Um líder espiritual sábio tem o
coração livre e o espírito simples, quer use brocados e fale com
reis, quer use trapos e viva na solidão do deserto. O amor
verdadeiro por todos os seres sabe que o poder político é sem valor
e inútil comparado com a fortuna que é viver em meio à verdade.

A NÃO INCLUSÃO PLENA DA NOSSA HUMANIDADE

A negação dos anseios humanos mais comuns é uma forma de


idealização tão difundida nas tradições espirituais do mundo inteiro
que vale a pena examinar suas razões. Algumas tradições
espirituais, do Oriente e do Ocidente, ensinam que o melhor é não
ter desejos nem necessidades pessoais. Esse ideal de perfeição
sobrenatural não reconhece o valor de relacionamentos e
necessidades comuns, achando que ter uma vida fora das estreitas
funções religiosas é nocivo para seres espirituais. Espera-se que
professores, abades e mestres estejam acima do mundo, vivendo
em simplicidade santa e pureza ascética.
A opção pela simplicidade tem muito valor, mas não se pode
confundir vida ascética com negação. O ascetismo é a escolha
consciente de um caminho de Simplicidade. A Simplicidade na
alimentação, no vestuário e no modo de agir é um caminho que
ensina a renúncia interior e a liberdade em relação às atrações do
mundo. Assim como o celibato, que também é uma expressão de
renúncia e Simplicidade.
Ao se afastar da esfera dos relacionamentos sexuais, a freira, o
padre e o monge adotam uma vida inteiramente devotada à prece,
ao serviço e à comunidade. Nesse contexto, é válido escolher o
caminho do celibato e do ascetismo. Quem faz uma opção saudável
pela pureza não suprime as próprias necessidades nem nega a sua
existência, mas aceita Eros, a intimidade humana e todo o espectro
de emoções, que passam a fazer parte de uma rica vida espiritual.
O problema é quando a negação do que é humano é parte
integrante da visão espiritual. No caso dos alunos, isso significa se
isolar da própria experiência de maneira puritana e medrosa. No
caso dos professores, a expectativa de altruísmo e pureza sem
pecado pode se traduzir em repressão ou ignorância da própria
sombra.
Os líderes espirituais que sucumbem a essa falsa idealização
costumam ignorar as necessidades humanas, a sexualidade, a
aflição e a vulnerabilidade. Os sistemas espirituais idealistas não
oferecem muita orientação nem ajuda quando se trata de lidar com
essas realidades. Mas, mesmo quando se atinge um estado puro e
sublime, as necessidades humanas não satisfeitas costumam
reaparecer. O corpo de Ícaro tem peso humano e Mara sempre
volta para nos fazer uma visita.
Quando desprezadas as necessidades do corpo e da natureza
humana tendem a ser demonizadas e projetadas nos outros,
alimentando a paranóia, a caça às bruxas e as inquisições. É o
caso de comunidades que temem muitos aspectos da vida. Uma
abadessa católica, conhecida por sua sabedoria e santidade,
fundou uma comunidade contemplativa há várias décadas. Ela
sabia que suas freiras e postulantes precisavam cuidar da energia
do corpo e das emoções. Mas foi punida por isso. As autoridades
da Igreja fecharam a abadia quando houve rumores de "outras
práticas", como meditação, trabalho respiratório e terapia, que
complementavam a rotina diária de preces e silêncio sagrado. Disse
a abadessa: "Nossa comunidade foi tratada de forma inacreditável
porque incluía o corpo e a respiração no que é sagrado." No
entanto, Thomas Merton começou a praticar meditação budista com
a permissão de seu diretor espiritual. A visão e a compreensão das
"autoridades" espirituais, como de qualquer outra, variam muito.
Encontramos uma abordagem mais humilde à plenitude da natureza
humana na vida do professor Dainan Katagiri Roshi, que vivia com
a família em Minneapolis, no centro de uma grande comunidade
zen. Quando ele recebeu o diagnóstico de câncer terminal, os
alunos correram para ajudar, embora estivessem assustados e
confusos com a idéia de o professor estar sujeito à fragilidade
humana como todos nós. Um dia, ele chamou os alunos ao seu
quarto. "Vejo que estão me observando. Querem ver como um
mestre zen morre. Vou lhes mostrar." Começou a agitar as pernas e
os braços, gritando: "Não quero morrer, não quero morrer!" Então
parou e olhou para eles. "Não sei como vou morrer. Talvez sinta
medo e dor. Lembrem que não existe uma maneira que seja a
certa." Esse é um professor que não se alheou da vida dos outros,
sabendo que o momento traz o que traz.
Aceitando abertamente as necessidades e emoções humanas, o
professor e a comunidade têm mais facilidade para lidar com essas
questões. Os problemas que surgem são aceitos como problemas
comuns, que todos enfrentam mais cedo ou mais tarde. Mas
quando o espírito da comunidade é de reprovação e medo, a
hipocrisia se instala. Só que a fachada sobre-humana acaba
desmoronando e então o dano é muito maior. Isso pode acontecer
em comunidades que adotam o celibato, mas acontece também
quando a prática espiritual é feita em meio à vida familiar comum -
ninguém, monge ou leigo, está imune às tempestades que as
emoções e os relacionamentos trazem. Essas tempestades fazem
parte do rico domínio da prática.

CONFUSÃO INTERCULTURAL

As tradições ocidentais de origem asiática enfrentam outra


dificuldade: a confusão intercultural. Professores acostumados à
modéstia no vestir e à separação estrita dos sexos podem perder a
noção do que é certo e errado ao mergulhar de repente na cultura
americana. Mas, na situação inversa, alunos ocidentais também
podem ficar confusos. A história do venerável Kalu Rinpoche, um
velho lama do Tibete, sábio e respeitado, serve de aviso. Ele era
um excelente professor, mas causou muito sofrimento na vida de
June Campbell, sua aluna e tradutora, quando fez dela sua parceira
sexual. No livro Traveler in Space, ela conta que lutou vinte anos
para resolver a confusão, a dor e o que via como um aviltamento
geral do feminino no Budismo Tibetano.
Uma professora ocidental, seguidora do Budismo Tibetano, tentou
chegar a uma compreensão intercultural da relação professor/aluno,
mas acabou fiel à própria sabedoria.

"Como tenho uma história de abuso sexual na infância e sempre


lutei pelos direitos das mulheres, eu não conseguia entender. Como
podia esse velho lama, um mestre das supremas práticas Vajrayana
de Maha Mudra, escolher todos os anos uma freira de treze ou
quatorze anos para ser sua parceira sexual? O que pensava a
mulher do lama? Eu sei que a Índia e o Tibete são um mundo
diferente. Eu soube que ter uma parceira jovem era uma prática
antiga para dar força ao lama. Homens poderosos sempre
acreditaram nisso, e figuras políticas e religiosas da Ásia seguem
essa prática.
Soube também que numa sociedade como o Tibete - ainda feudal -
isso era uma honra para a família das meninas. Famílias pobres,
passavam a fazer parte da corte do lama, o que lhes trazia algumas
vantagens. Mas, pensava eu, e as meninas? E elas?
Falei com algumas mulheres ocidentais que tinham dormido com
seus lamas. Algumas gostaram e se sentiram especiais. Algumas
se sentiram usadas e deixaram a prática. Outras disseram que
tiveram com o lama uma relação maternal. Mas nenhuma disse que
tinha sido um ensinamento: nada havia de tântrico nessa prática. O
sexo era para o lama, não para elas."

Na nossa época, a sexualidade é um terreno complexo. Não dá


para julgar uma cultura antiga usando critérios contemporâneos
ocidentais. Da mesma forma, professores de outras culturas que
vêm para o Ocidente não podem esperar que os alunos lhes
prestem serviços sexuais. É preciso haver mais consciência nessa
área para acabar com a dor e o sofrimento.

TRANSFORMAÇÃO DE DIFICULDADES EM CURA


Nas lendas arturianas, o jovem cavaleiro Parsifal junta-se aos
Cavaleiros da Távola Redonda para sair em busca do Santo Graal.
Seu mentor, Gournamond, diz a ele que, para continuar honrado,
deve seguir duas regras: primeira, não seduzir nem ser seduzido.
Segunda, chegando ao Castelo do Santo Graal, fazer a pergunta:
"A quem serve o Santo Graal?" Durante a viagem, Parsifal vê sinais
de sofrimento e conturbação em toda parte. Mas quando chega ao
Castelo do Graal, fica inebriado pela vida na corte. É levado à
presença do Rei Pescador, que está doente, e é-lhe oferecido um
banquete mágico, com tudo o que alguém pode desejar. Assim, ele
esquece do seu objetivo, e não faz a pergunta essencial. Ao
acordar na manhã seguinte, o castelo e o reino haviam sumido.
Parsifal passa anos vagando e sofrendo e só consegue voltar ao
castelo depois de, a duras penas, conquistar a maturidade. Dessa
vez ele se lembra de fazer a pergunta: "A quem serve o Graal?" O
Rei Pescador responde: "O Santo Graal serve ao Rei do Graal." (O
Rei do Graal é Deus.) Ao se lembrar dessa verdade sagrada, o Rei
Pescador fica curado. Com isso, desaparece tudo o que apodreceu
nos campos, toda a desarmonia do pais e todo o sofrimento do
remo - e volta a reinar a paz e o bem-estar.
A jornada para a iluminação se resolve quando percebemos que
sofrimento e despertar servem a um bem superior. Quando não
estamos a serviço do Divino, nossas necessidades não satisfeitas
se misturam à busca e nossas experiências espirituais servem
apenas para criar uma forma mais expandida de ego. Um professor
que se identifica demais com a energia espiritual pode começar a
acreditar que é ele que tem que ser servido, por ser o detentor dos
ensinamentos. É melhor desconfiar quando o professor vive
cercado por uma corte que dá mais importância à pessoa do que à
sabedoria da linhagem. Quando o Rei Pescador esquece a serviço
de quem está, a abundância do país acaba e todos sofrem por
causa de sua doença espiritual.

UM HUMILDE RECONHECIMENTO DA VERDADE

O coração sábio reconhece que a energia espiritual que


descobrimos não é nossa, mas é confiada a nós. Os votos do
bodhisattva e a prece de São Francisco nos aconselham a usar
para o bem dos outros as bênçãos que recebemos. O coração
sábio reconhece também que há dias em que estamos mais
próximos das bênçãos do despertar e dias em que estamos mais
distantes.
Há vários anos, eu estava na Indonésia visitando xamãs e mestres
da cura. Meu tradutor me contou que seu tio tinha sido um agente
de cura famoso, mas que tinha deixado de praticar. Quando
perguntei por que, ele explicou:

"Meu tio era um plantador de arroz que aprendeu a curar meditando


e entrando em transe. No primeiro dia em que começou a praticar a
cura, sentiu que a energia dos deuses o ajudava a ver a doença nos
pacientes. Eles lhe mostravam que ervas usar e onde tocar.
Durante vinte anos os deuses vieram, mas um dia pararam de
aparecer. Então, meu tio disse às pessoas que não podia mais
curar e voltou a plantar arroz."

Há nisso uma assombrosa integridade. É difícil imaginar um


terapeuta, médico ou professor espiritual admitindo que, em
determinados dias, os deuses não estão à sua disposição. No
entanto, todos sabem que isso acontece.

INTEGRIDADE E FUNDAMENTOS ÉTICOS

Em geral, as religiões reconhecem que a vida espiritual precisa de


uma base de virtude, honestidade e integridade. Podemos seguir os
preceitos budistas, os Yamas e Niyamas hindus ou os
mandamentos muçulmanos ou judeu-cristãos, mas o cuidado que
tomamos com a nossa conduta serve de base ao desenvolvimento
espiritual. Não se trata apenas de ser difícil meditar ou rezar depois
de um dia matando, mentindo e roubando, mas de não haver
possibilidade de liberdade quando sucumbimos à raiva e aos
desejos a ponto de mentir, matar e roubar.
Embora a virtude e a compaixão sejam naturais à consciência, os
preceitos éticos são essenciais à saúde de qualquer comunidade.
Esses preceitos devem se aplicar tanto ao professor quanto aos
alunos, pois o mestre que se coloca acima da virtude está destinado
a gerar sofrimento, como aconteceu com o Rei Pescador. Mesmo
as tradições zen e tântrica, que foram criadas para libertar os
alunos da rigidez das regras espirituais, reconhecem que o
comportamento virtuoso é necessário. Senão, o caminho que
ensinam seria uma impostura.
As tradições espirituais que chegam ao Ocidente vindas de outras
culturas costumam ter regras e preceitos tácitos que regem a
conduta do professor. Os limites para professores e alunos são
salvaguardados pela comunidade, cujo apoio é essencial para os
praticantes. Mas no Ocidente, numa cultura que enfatiza o dinheiro,
o sexo, o poder, a bebida e as drogas, essas velhas regras
parecem perder sua importância. Por isso, certos professores
estrangeiros confundem cultura popular com convite ao excesso e
acham que na América não há necessidade de regras.
Para evitar problemas, aconselhava o Buda, as comunidades
espirituais têm de estabelecer preceitos éticos claros para todos os
membros, incluindo os líderes. Muitas já adotam essa prática. Caso
contrário, os alunos têm a responsabilidade de pedir uma
declaração de princípios explícita. Criar uma comunidade espiritual
sem princípios éticos claros é um convite à traição. Os valores de
compaixão e amor que fundamentam todas as grandes tradições
repousam no compromisso com a virtude.

TRAIÇÃO COMO INICIAÇÃO VIOLENTA

Começamos esta investigação no espírito da sabedoria perspicaz.


O objetivo da reflexão sobre erros passados é buscar uma
compreensão que favoreça a cura e a redenção, e não a culpa.
Mas, a despeito das advertências, a traição ainda acontece - é um
tema assombrosamente comum na jornada. Metade das pessoas
com quem conversei sobre vida espiritual mencionaram algum tipo
de traição significativa. A traição é um portão difícil de transpor, um
exterminador da ilusão e da inocência. Funciona como uma
iniciação forçada à complexa verdade da humanidade, às sombras
lançadas pela luz. As lições da traição espiritual, assim como a dor
que provoca, podem durar anos.
Uma mulher aprendeu o que é traição no ashram onde praticava
yoga, quando teve um aborto espontâneo. Desolada, ela perguntou
ao guru se a dura rotina do ashram no calor do verão poderia ter
contribuído para a perda do bebê. Furioso, achando que seus
ensinamentos estavam sendo questionados, o mestre fez com que
ela se levantasse no meio de centenas de alunos e disse: "Ela abriu
as pernas para o marido e agora quer implicar a yoga na perda da
criança. Vai ver, ela simplesmente não serve para ser mãe." Nesse
momento, os anos de fé não questionada ficaram abalados. Ela
deixou o ashram. Depois de um longo processo de aflição, raiva,
reflexão e trabalho interior, ela compreendeu que a maior traição
era ter aberto mão da própria autoridade.
Em 1993, no primeiro grande encontro de professores budistas
americanos, que contou com a presença de 120 lideres budistas,
vários professores falaram sobre traição e mau uso do poder. Como
esse assunto tinha sido tabu por muito tempo, muitas lágrimas
rolaram. Alguns buscaram a cura e o perdão durante anos - e
outros ainda buscavam a cura. Não é a traição dos professores que
nos deixa chocados e que nos faz acordar - é perceber que traímos
a nós mesmos. Fingimos não ver a sombra mesmo quando ela é
plenamente visível. Levados pela necessidade e pelo idealismo,
abandonamos a sabedoria do coração, a nossa verdadeira
natureza.
Seja para dizer a verdade, seja para deixar como está e perdoar,
precisamos do apoio dos amigos espirituais e da força da nossa
prática. Temos que descobrir nossa própria autoridade e a
grandeza do nosso coração. "Seja você mesmo uma candeia, faça
de você mesmo uma luz", foram as últimas palavras do Buda.
Nenhum professor ou autoridade pode nos dar ou tirar a verdade.
No fim, vamos descobrir que a sabedoria simples e a compaixão
inabalável que buscamos estão em nosso coração.
A própria traição se transforma em professor. Temos que nos
prosternar diante da traição, pois ela nos leva de volta à verdade.
Graças a ela, somos obrigados a usar de sabedoria perspicaz, a
falar honestamente, a examinar ideais e defeitos e a enfrentar o
perdão. Poucas tarefas são tão ricas em seus ensinamentos.
Em 1994, quando a comunidade do yogue Amrit Desai se dissolveu,
a sensação de traição arrasou seus discípulos. A desilusão foi
grande quando o mestre foi acusado publicamente de manter casos
secretos e de manipular dinheiro e poder havia mais de vinte anos.
No entanto, como ele era também um professor sábio e criativo, os
alunos conseguiram administrar a perda graças às práticas que
tinham aprendido com ele: questionamento, equilíbrio e compaixão.
Depois de meses de penosas reuniões, o mestre foi convidado a se
retirar e os estudantes ficaram às voltas com sua confusão e
desespero. Depois disso, a comunidade se refez, dedicada aos
princípios de yoga e de espiritualidade saudável que a crise
ensinou. E o mestre também diz que, graças a tudo isso, aprendeu
lições importantes.
O Mestre Zen Dogen disse que a vida de um mestre zen é um erro
continuo - ou seja, uma oportunidade para aprender atrás da outra,
um erro atrás do outro. A traição e o mau uso do poder revelam
falhas que pertencem ao território do que é humano. Diante desses
problemas, podemos deixar ou não a comunidade, mas o
importante é aprender a prática da sabedoria e da compaixão.
Não se deve fazer julgamentos apressados quando se lava a roupa
suja. As forças impessoais do idealismo e da pretensão vazia, as
profundezas da ilusão e do medo, as sutilezas do auto-engano e da
ambição fazem parte da natureza humana. As peças gregas, os
Vedas indianos, os mitos tribais africanos e os koans zen lutam com
essas forças, que moldam o destino humano desde os tempos
antigos. Acreditar numa vida espiritual sem sombras, sem as visitas
de Mara, é imaginar um céu onde o sol está sempre a pino.
Costumam dizer na Índia que nem mesmo um santo de noventa
anos está a salvo. Enquanto vivemos somos vulneráveis. O grande
mestre zen Hui Neng fala da rapidez com que a mente pode mudar:

Quanto à Natureza Búdica, não há diferença entre um pecador e


um sábio... um pensamento iluminado e somos um Buda; um
pensamento tolo e somos novamente uma pessoa comum.

A disposição para compreender a roupa suja da prática espiritual é


também um convite à verdade. Assim como o despertar pode
sucumbir à desilusão, a compreensão e a redenção podem
ressurgir de um momento para o outro, mesmo que estejamos
perdidos. Num momento de verdade podemos recompor o que está
aos pedaços, podemos começar a curar nossos erros. Num só
momento de verdade podemos perceber que estamos perdidos e
que é possível melhorar. Nossos erros e nossa fragilidade trazem
algumas das lições mais profundas. Numa conversa sincera, num
momento quieto de avaliação, até mesmo no leito de morte, a
liberdade nos aguarda. Aceitando o nosso sofrimento e as nossas
traições, o sofrimento e as traições dos outros, conseguimos
despertar de verdade para o grande coração cheio de compaixão.
QUARTA PARTE
O DESPERTAR
NA LAVANDERIA
11
A MANDALA DO DESPERTAR:

O QUE EU ESTOU EXCLUINDO?

E tendo entrado na Corrente do Dharma, o praticante examina


regularmente seu coração e vê: esta é a liberdade conquistada e
esses são os grilhões, as complicações que ainda precisam ser
resolvidas em mim.
BUDA

Um velho monge trapista, Frei Theophane, conta a história de um


Mosteiro Mágico, onde as verdadeiras dádivas da vida espiritual
podem ser encontradas:

Eu sabia que havia muitos pontos de vista interessantes, mas não


queria mais as respostas pequenas; queria a grande resposta.
Então, pedi ao mestre que me levasse diretamente à Casa de Deus.
Eu me sentei, disposto a esperar pela grande resposta. Fiquei em
silêncio o dia inteiro e boa parte da noite. Eu O olhei nos olhos e
acho que Ele estava me olhando nos olhos. Tarde da noite, achei
que tinha ouvido uma voz: "O que você está excluindo?" Olhei à
minha volta e ouvi de novo: "O que você está excluindo?" Seria a
minha imaginação? A voz parecia estar em toda parte, sussurrando,
rugindo: "O que você está excluindo?"

Eu estaria ficando louco? Levantei e corri para a porta. Eu precisava


do conforto de um rosto humano ou de uma voz humana. Lá perto
havia um corredor onde viviam alguns monges. Bati numa das
celas.
"O que você quer?", perguntou uma voz sonolenta.
"O que eu estou excluindo?"
"A mim", ele respondeu.
Bati na outra porta.
"O que você quer?"
"O que estou excluindo?"
"A mim."
Bati na terceira cela, na quarta, tudo a mesma coisa.
Pensei: "Eles só pensam em si mesmos." Saí do prédio,
desgostoso. O sol estava nascendo. Eu nunca havia falado com o
sol, mas perguntei: "O que eu estou excluindo?"
"A mim", foi o que o sol também respondeu. Isso me liquidou.
Eu me joguei ao chão. E a terra disse: "E a mim também."

A história de Frei Theophane chama a atenção para o maior desafio


da maturidade espiritual: se queremos abrir o coração para o
mundo inteiro, nada pode ser excluído. A liberdade e o despertar
estão exatamente onde nós estamos. Se queremos amar a Deus,
temos que aprender a amar todas as Suas criaturas - inclusive nós
mesmos, com toda a nossa complexidade e imperfeição. Esse
espírito que tudo abrange cria uma mandala ou círculo de despertar
em que nos abrimos para a realidade do presente, em que
incluímos todas as dimensões da vida.

A MANDALA DO TODO

Uma "mandala" é uma imagem, em geral complexa, que representa


o grande círculo da existência, a totalidade sagrada, um mundo
completo. O objetivo da vida espiritual madura é descobrir e
incorporar esse todo sagrado à nossa vida.
Há dois princípios centrais para despertar para essa totalidade.
Primeiro: para que a liberdade floresça, todas as áreas importantes
da nossa experiência na terra têm que ser incluídas na vida
espiritual. Nenhuma dimensão significativa pode ser excluída da
consciência. Os Anciãos Budistas falam dos quatro fundamentos da
consciência sagrada, que é preciso cultivar: o corpo, os
sentimentos, a mente e os princípios dominantes da vida. Mas seus
ensinamentos dão a mesma atenção à família, à comunidade, à
subsistência e à relação com o mundo em geral. É a atenção a
cada uma dessas áreas· que nos conduz ao despertar. Elas serão
discutidas nos capítulos seguintes.
O segundo princípio é o seguinte: a consciência em uma área da
vida não se transfere necessariamente para as outras. Há atletas
olímpicos fisicamente conscientes que são emocionalmente
imaturos ou mentalmente pouco desenvolvidos. Por outro lado, há
intelectuais brilhantes que sofrem por ignorância ou descaso em
relação ao corpo e às emoções. Há também pessoas conscientes
de seus sentimentos e peritas em relacionamentos humanos, que
não têm consciência alguma dos pensamentos e pontos de vista
que as limitam.
Na vida espiritual não é diferente. Mestres da meditação, peritos em
navegar por estados expansivos de consciência, podem ficar
perdidos no domínio das emoções e dos relacionamentos. Freiras e
monges devotados, que se relacionam muito bem com Deus, têm
às vezes uma relação conturbada e até destrutiva com a família - ou
com o próprio corpo. Yogues e gurus com assombrosa destreza
física, e incrível controle sobre o corpo e sobre a mente, têm às
vezes pontos de vista não trabalhados que causam sofrimento para
quem está à volta deles. Quase todos os monges, freiras, mestres
de meditação e adeptos espirituais já veteranos acabam
descobrindo áreas inteiras da vida de que não tinham consciência.
No caso de muitos professores, é o próprio treinamento espiritual
que ensina a negligenciar ou a negar as necessidades humanas
básicas. E os que nunca chegam a incluir esses aspectos da vida
em sua prática acabam sofrendo, sem necessidade, de saúde
precária a problemas emocionais. Qualquer área que continue
inconsciente traz com ela sofrimento, conflito e limitação. Como diz
Gandhi: "Não dá para acertar num departamento da vida e
continuar errando em outro. A vida é um todo indivisível."
Em geral, o exame de áreas espiritualmente não trabalhadas da
vida revela opiniões e medos ocultos. Acreditamos, por exemplo,
que o corpo - os relacionamentos, o planejamento do futuro, o
dinheiro, a sexualidade, a família, a comunidade ou a política - é
"não-espiritual", perigoso, feio, uma cilada. Esse medo ergue
muros, isola o coração e divide o mundo em partes sagradas e
partes que não são sagradas. Compartimentalizadas, as
experiências de realização não se desenvolvem: como as árvores
bonsai, são belas mas atrofiadas.
Mas é preciso dissolver essas fronteiras interiores. Como mostra a
história de Frei Theophane, é ouvindo honestamente o que nos
causa medo ou o que excluímos que vamos encontrar a liberdade.
Se não quisermos ver, aquilo que foi negligenciado virá atrás de
nós. As partes perdidas de nós mesmos vão bater à nossa porta se
não quisermos ouvir seus gritos. No fim, vamos ser obrigados a
ouvir sua voz no divórcio, na depressão, na doença ou em algum
estranho fracasso. Mas quando ouvimos e aceitamos todas as
partes do eu, elas enriquecem nosso jardim como o adubo, como o
alimento da vida.
Há uma unidade fundamental em todas as coisas - e o coração
sabe disso, assim como conhece os movimentos da respiração.
Todas as coisas fazem parte do todo sagrado em que existimos - e
são profundamente confiáveis. Não é preciso temer as energias
deste mundo nem de nenhum outro, só a nossa confusão em
relação a elas. O Mestre Zen Rinzai diz que o ser realmente sábio é
aquele que "entra no fogo sem se queimar, entra na água sem se
afogar, brinca nos três infernos mais profundos como se fossem
uma área de lazer, entra no mundo dos fantasmas e dos animais
sem ser perturbado por eles". Nenhum dos domínios da existência é
excluído da nossa prática.
Vimala Thakar, mestre de meditação, diz: "Como amante da vida,
como posso ficar fora de qualquer área da vida?" No espírito de
Gandhi, sua comunidade trabalha numa das vilas mais pobres de
Gujarat, na Índia, cavando poços, viabilizando a irrigação e novas
culturas. No espírito do seu amigo e professor Krishnamurti, ela
ensina em retiros do mundo inteiro. Sua meditação e suas preces
não separam a vida espiritual da política, a compaixão da justiça, o
auto conhecimento da subsistência: tudo está incluído no todo.

UMA LINGUAGEM ESPIRITUAL MADURA

No começo do caminho espiritual, falamos muito de superar


obstáculos, do esforço necessário, de purificação, de ardor na
procura de Deus. Mas essa linguagem, embora nos sirva por algum
tempo, acaba ficando muito unilateral, pondo uma coisa contra a
outra: mundanidade contra liberdade, vontade própria contra graça
de Deus, pecado contra redenção. É uma linguagem construída
sobre a exclusão.
Com o despertar da sabedoria, o coração começa a se expandir
para abraçar o pleno paradoxo da vida. Como escreve Walt
Whitman: "Sou grande, contenho multidões." No coração maduro,
desponta uma perfeição mais profunda que não é oposta às coisas
deste mundo, mas as abrange na compaixão. Voltada para a
misericórdia e para a bondade, a vida espiritual abandona as lutas
do eu, as batalhas com o ego ou com o pecado. Nossa canção é
agora o amor corajoso por toda a criação, sem nada excluir.
Participamos do que Zorba, o Grego, chamou de "catástrofe total".
Na psicologia budista, esse amadurecimento é descrito pela
imagem de uma árvore venenosa, que representa o sofrimento do
mundo. Quando descobrimos que uma árvore é venenosa, nosso
primeiro impulso é cortá-Ia e removê-Ia para que não ofereça mais
perigo. Nesse estágio inicial da prática, a linguagem é de conflito:
medo do veneno e da impureza e disposição para erradicar e
destruir o que é perigoso.
Mas, à medida que a compaixão fica mais profunda, percebemos
que a árvore também faz parte da rede da vida. Em vez de destruí-
Ia, passamos a respeitá-Ia - mas construímos uma cerca à volta
dela e dizemos aos outros que é venenosa. Nossa linguagem se
transforma em linguagem de compaixão e respeito, e não de medo.
As dificuldades internas e externas são agora enfrentadas com
clemência. Esse é o segundo estágio da prática.
Finalmente, quando a sabedoria fica mais profunda, percebemos
que os problemas e os venenos são os nossos melhores
professores. Dizem que os seres mais sábios virão à procura dessa
árvore venenosa para usar seus frutos como remédio capaz de
transformar os sofrimentos do mundo. As energias da paixão e do
desejo, da raiva e da confusão, se transformam em ardor, em força
e na clareza que traz o despertar. Compreendemos que a liberdade
e a compaixão mais profundas surgem quando enfrentamos os
sofrimentos do mundo. O que uma vez chamamos de veneno é
agora visto como um aliado da nossa prática.
Essa crescente liberdade do coração traz a coragem de questionar,
de esclarecer e de aprimorar por nós mesmos os ensinamentos que
aceitávamos sem perguntas. A crença em ideais dá lugar à
sabedoria que emerge da experiência. Ganhamos uma
compreensão direta daquilo que alimenta e sustenta a liberdade.
Somos finalmente capazes de ver e de saber por nós mesmos.
A maturidade nos livra da linguagem unilateral do começo.
Deixamos para trás o bom e o ruim, o certo e o errado. O mundo
deixa de ser uma batalha entre preto e branco, entre puro e impuro.
Deixa de ser uma árvore venenosa a ser abatida e removida. Nossa
visão do sagrado passa a ser complexa, paradoxal, irônica e bem-
humorada. Mais claro, agora o coração é capaz de compreender o
mundo em vez de lutar com ele, de colher o fruto da árvore
venenosa em vez de cortá-Ia.
Como nossa clareza é cada vez maior, compreendemos de outra
maneira a linguagem do desapego e da renúncia. "O apego é a
causa do sofrimento", diz o ensinamento budista clássico. "É mais
fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico
entrar no Reino de Deus", disse Jesus. É verdade que o apego e a
ganância causam sofrimento. Mas um ensinamento maduro é mais
completo, reconhecendo que há o apego saudável e o que não é
saudável. A mãe tem um apego natural e profundo pelo filho, que
do contrário ficaria prejudicado e sofreria. O empregador pode ter
um apego saudável pelo bem-estar dos funcionários.
Quando aprendemos a distinguir os tipos de apego, passamos a
compreender melhor o Significado de compromisso. O
compromisso sábio, seja com um relacionamento exclusivo, com a
virtude, com a prece, com a meditação, com Deus ou com um
caminho sagrado, é uma expressão de liberdade interior e não uma
limitação. Renúncia traz liberdade não porque abrimos mão das
coisas (embora isso possa acontecer), mas porque deixamos para
lá a avidez e a possessividade, porque livramos o coração do medo,
da raiva e da ilusão.
Além disso, o desapego e a sabedoria perspicaz se reconciliam. A
sabedoria perspicaz estabelece fronteiras, diz sim ou não, defende
a justiça e age por compaixão. Assim, ela se toma uma expressão
altruísta e corajosa do desapego. A sabedoria perspicaz nos
permite agir sem avidez nem agressividade, nos leva a falar a
verdade e a beneficiar todos os seres.
À medida que avançamos no caminho espiritual, começamos a
compreender de outra maneira o desejo e a paixão. Como escreveu
William Blake: "Os que entram pelos portões do reino dos céus não
são seres sem paixões ou que refrearam as paixões, mas que
cultivaram a compreensão das paixões." Em vez de condenar o
desejo, nós o aceitamos com sabedoria e sensibilidade. Passamos
a ver o mundo como um jogo do desejo, e a diferença entre desejos
aceitáveis e inaceitáveis se toma aparente. Alguns desejos causam
sofrimento. Outros, como a necessidade natural de amor familiar,
alimento e abrigo, são saudáveis. O desejo de aprender, de servir a
Deus, pode nos levar ao despertar. Passamos a respeitar a paixão
e o ardor, sabendo que são energias humanas que podem
favorecer a compulsão e a avidez, mas também a lealdade e a
integridade do ser.
Essas energias deixam de ser pecados mortais e se transformam
em remédio para o despertar. Conseguimos estar no mundo sem
ser engolidos por ele, usando as energias da vida para ensinar e
despertar onde quer que seja. Sócrates, que viveu uma vida
simples e frugal, adorava ir ao mercado. Seus alunos lhe
perguntaram por que e ele respondeu: "Gosto de ver as coisas sem
as quais sou feliz." Os luxos de Atenas não eram o seu inimigo e a
sua sabedoria andava com prazer imperturbável no meio deles.
O coração maduro nos ajuda a lidar até mesmo com as forças da
raiva e do ódio. Aprendemos a distinguir a raiva do ódio, um
sofrimento mais profundo. Compreendemos os dois e sabemos que
são energias poderosas. Shantideva, o sábio budista, nos adverte:
"Mil éons de atos salutares serão destruídos num momento de
raiva." Mas nós não nos limitamos à incondicionalidade dessa
afirmação. Às vezes até a raiva tem seu valor. O Dalai Lama,
apaixonado defensor da não-violência, admite que a raiva é
perigosa, mas diz também que "existe a raiva positiva, moderada
pela compaixão e por um senso de responsabilidade que leva à
ação útil e rápida". Quem odeia e teme a própria raiva continua a
batalha. Nosso teste é compreender e transformar essas energias
em clareza e força.

O CAMINHO DO MEIO

O vocabulário mais amplo da compreensão revela que o coração


está mais flexível e sensível. As qualidades rígidas e dogmáticas do
fervor religioso dão lugar ao caminho do meio, com uma postura
sábia que não é nem indulgente nem medrosa.
Meu professor Ajahn Chah demonstrava essa flexibilidade quando
era incoerente, contradizendo coisas que havia dito antes, retirando
ensinamentos que havia enfatizado. Quando isso lhe foi mostrado
por um aluno frustrado (eu), Ajahn Chah riu: "É assim mesmo. Há
uma estrada que conheço bem, mas ela pode estar nublada ou
escura. Quando vejo que alguém está prestes a cair num buraco ou
a entrar num desvio no lado direito dessa estrada, eu grito 'Vá para
a esquerda'. Se vejo que alguém está prestes a cair num buraco ou
a entrar num desvio no lado esquerdo da estrada, eu grito 'Vá para
a direita'. Ensinar é só isso. Sempre que você é apanhado, eu digo:
'Livre-se disso também'''.
O caminho do meio abrange os opostos. Fica entre eles, aceitando
a verdade dos dois, sem se prender a nenhum. De um ponto de
vista vemos que a vida humana segue sua inevitável cadeia de
perdas e sofrimento, culminando na doença, no envelhecimento e
na morte. Mas, de outro ponto de vista, vemos que ela é uma
dádiva, cheia de graças e bênçãos, uma expressão da beleza
divina. Vemos o próprio sofrimento como a graça que nos leva à
compaixão, à entrega e à humildade.
O despertar dissolve os rótulos que pomos na nossa experiência.
No coração sábio, cada noção de quem somos - seres vis ou
Budas, pecadores ou filhos de Deus - se esclarece. Maduro, o
coração conhece a dimensão do egotismo e do pecado. Mas situa
nossa humanidade numa realidade maior, uma realidade de graça
original e bondade básica. Ele repousa em nossa natureza divina,
em nossa Natureza Búdica.
Essa compreensão nos permite entender melhor os ensinamentos
espirituais que nos instruem a destruir a auto-estima, equilibrando-
os com a necessidade de amar a si mesmo. No Samutta Nikaya,
Buda diz: "Você pode percorrer o universo décuplo e não achar um
único ser mais merecedor de amor e bondade do que você mesmo."
Às vezes, é preciso abrir mão do eu. E às vezes o problema é o
desmerecimento e o ódio de si mesmo. Nesse caso, só é possível
curar e libertar o coração através do amor pelo eu que foi rejeitado.
O coração sábio traz compaixão até para a imperfeição. Na
Stanford University, foi feito um estudo sobre "agentes de cura
magoados": uma comparação entre psicólogos que trabalhavam de
maneira impessoal, sem nada revelar sobre si mesmos, com os que
falavam de suas dificuldades e mágoas. Os "agentes de cura
magoados" conseguiam um maior índice de cura entre seus
pacientes.
O coração sábio está em paz com as coisas como elas são. Como
não ficamos mais perdidos no mundo nem lutamos mais contra ele,
nós podemos descansar. As qualidades sagradas - compreensão,
humildade e cuidado paciente - são nossas dádivas. Nosso corpo,
discurso e mente são como o Tao, "satisfeito com a mudança das
estações". Nós nos tomamos o amor que buscamos. E nesse amor
somos devolvidos a nós mesmos.
O professor zen Edward Espe Brown é o autor de muitos livros de
receitas culinárias de inspiração zen, começando com The
Tassajara Bread Book. Falando de sua prática na cozinha, ele
expõe verdades do coração.

Quando comecei a cozinhar em Tassajara, tive um problema. Meus


biscoitos não ficavam como eu queria. Eu seguia a receita,
experimentava variações, mas não funcionava. Os biscoitos não
davam certo.
Quando eu era criança, costumava fazer dois tipos de biscoito. Um
era Bisquick e o outro Pillsbury. Para fazer os biscoitos Bisquick,
precisava juntar leite à mistura e, depois, pingar a massa na fôrma
com uma colher - nem precisava enrolar. Os biscoitos Pillsbury
vinham em lata. Para abrir, era só dar uma batidinha no canto da
pia. Depois era só girar a tampa e pôr os biscoitos já prontos na
forma para assar. Eu gostava muito desses biscoitos Pillsbury. É
como deveriam ser todos os biscoitos. E os meus não estavam
dando certo.
São incríveis as idéias que temos sobre o gosto que os biscoitos
devem ter ou sobre como deve ser a vida. Comparado com o quê?
Com os biscoitos em lata Pillsbury? Quem experimentava meus
biscoitos exaltava suas virtudes e comia um atrás do outro; mas
para mim eles não prestavam.
Finalmente, tive um estalo, um despertar. "Eles não prestavam"
comparados a quê? Deus meu: eu estava tentando fazer biscoitos
em lata Pillsbury! Então, veio um momento raro em que provei
meus biscoitos sem compará-los a um padrão oculto. Eles eram
consistentes, leves, macios, crocantes, reais. Estavam
incomparavelmente vivos - na verdade, satisfaziam muito mais do
que qualquer lembrança.
Essas ocasiões podem ser libertadoras, momentos em que
percebemos que a vida está muito bem como está, muito obrigado.
Só a insidiosa comparação com um produto belamente embalado,
belamente preparado, fazia com que ela parecesse insatisfatória.
Era frustrante tentar produzir um biscoito - uma vida - sem tigelas
sujas, sem sentimentos confusos, sem depressão e sem raiva.
Depois disso saborear, provar de verdade o momento presente da
experiência - muito mais complexo e multifacetado. Impenetrável.
Quando éramos estudantes, tentávamos encobrir os erros,
esconder as confusões. Sabíamos como era o estudante zen
Bisquick: calmo, generoso, alegre, enérgico, profundo. Nosso lema,
como dizia um dos meus amigos, era: "fazer bonito". Todos nós já
tentamos fazer bonito, parecer um bom marido, uma boa mulher,
um bom pai, uma boa mãe. Todos nós já tentamos atingir a
perfeição. Já tentamos fazer biscoitos Pillsbury.
Que vá tudo para o inferno. Acorde e sinta o cheiro de café. Nada
como um bom café feito em casa, com os biscoitos de hoje.
Quando aceitamos o nosso lugar na mandala do todo, voltamos
para o lugar exato em que estamos. E nele encontramos alegria,
bem-estar, simplicidade, coragem e o que T. S. Eliot chama de
liberdade "para se importar e para não se importar". Os capítulos
seguintes ilustram o flores cimento dessa plenitude, da volta para
nós mesmos.
12
ESTE MESMO CORPO, O BUDA

Neste corpo, que não é tão grande, são encontrados todos os


ensinamentos, é encontrado o sofrimento, a causa do sofrimento e
o fim do sofrimento.
BUDA

É bom lembrar que este corpo que temos, que está aqui neste
momento...
com suas dores e seus prazeres... é exatamente o que precisamos
para ser plenamente humanos, despertos e vivos.
PEMA CHODRON

Antes da iluminação, temos que viver com o nosso corpo. Depois


da iluminação, ainda temos que viver com o nosso corpo. Diz o
Mestre Zen Dainan Katagiri: "Na prática espiritual, o importante não
é tentar escapar da vida, mas enfrentá-Ia - precisa e
completamente." Quando diz isso, ele está se dirigindo a quem está
começando o caminho e também a quem já atingiu o despertar. O
corpo tem que ser incluído na viagem do despertar, seja qual for o
ponto em que estamos.
No entanto, as tradições religiosas orientais e ocidentais não
respeitam essa verdade. Cada uma à sua maneira, todas elas
enfatizam a negação e a aversão ao eu físico, temem o corpo e têm
desdém por seus impulsos. Num mosteiro birmanês em que
pratiquei, havia mestres que proibiam a yoga, os alongamentos e os
exercícios. Segundo eles, os alunos tinham que se entregar a
meses de meditação intensiva e "abandonar qualquer preocupação
com o corpo". Muitos aceitavam esse conselho - como não confiar
nas palavras do professor? Anos depois, lutavam para recuperar a
saúde e, finalmente, viver com sabedoria. No Hinduismo, no
Islamismo e no Cristianismo é comum encontrar professores que
defendem a atitude puritana, que temem e desprezam o corpo.
Uma velha freira ursulina conta como sua comunidade via o corpo:
"Aprendi, desde o começo, a ter vergonha do meu corpo de mulher.
Em meus anos de treinamento na igreja, era obrigada a ignorar
todos os aspectos do meu corpo e a admirar esses santos que
sacrificaram o corpo pecador e morreram como mártires. Era uma
espiritualidade rígida, que reforçava profundamente a minha
vergonha interior."

Há uma história tradicional chinesa que chama a atenção para essa


perda de contato com o corpo. Na antiga China, vivia um viúvo com
duas belas filhas. A filha mais velha morreu e ele ficou com a mais
nova, Sen-jo, que era muito bonita e tinha muitos pretendentes.
Quando Sen-jo chegou à idade de casar, o pai escolheu um marido
próspero para ela. Mas Sen-jo estava há muito tempo apaixonada
por Ochu, que conhecia desde pequena. Certa vez, o pai de Sen-jo
havia dito de brincadeira que eles combinavam e deviam se casar
quando crescessem. Mas eles levaram a brincadeira a sério e
começaram a se amar profundamente.
Quando soube que estava prometida a outro, Sen-jo ficou tão
perturbada que quase desmaiou. Achando que não conseguiria
suportar aquela dor, Ochu resolveu fugir. À meia-noite, desamarrou
seu barquinho do cais da vila e começou a remar rio abaixo. De
repente, viu um vulto saindo dos arbustos e correndo pela margem.
Era Sen-jo. Correram um para o outro, Senjo entrou no barquinho e
os dois seguiram para uma vila remota.
Casaram-se e viveram durante cinco anos nesse lugar, onde
formaram uma plantação e criaram dois filhos. Mas Sen-jo se
preocupava com o pai e se sentia ingrata por ter fugido. Seu
passado não resolvido a assombrava, tingindo de aflição sua
felicidade. Quando falou sobre isso com Ochu, ele disse que
também sentia saudades de casa. Decidiram então voltar e pedir o
perdão da família. Alugaram um barco maior e, com as duas
crianças, remaram rio acima e ancoraram no cais do vilarejo.
Ochu foi até a casa do pai de Sen-jo para pedir perdão, mas teve
uma amarga surpresa. O velho não acreditou que a filha estava no
barco. "Minha filha está deitada na cama, doente demais para
conseguir falar, desde o dia em que você partiu." Ochu ficou
assombrado. "Ela está no barco, meu pai, com dois lindos netos.
Venha ver." Mas o pai não quis ir e mandou o servo. Quando o
homem voltou dizendo que era verdade, ele ficou muito confuso.
Mas foi até o quarto da filha e contou-lhe a história.
No mesmo instante, a Sen-jo doente ficou cheia de energia e
levantou-se da cama sem dizer palavra. Saiu da casa e correu pela
estrada, seguida pelo pai. Quando encontrou a outra Sen-jo com as
crianças, as duas se abraçaram e viraram uma só. Mais tarde, a
Sen-jo reunida disse que durante esse tempo todo, nas duas vidas,
tinha se sentido como se vivesse num sonho.
O que nos ensina essa triste história de uma vida dividida? Sen-jo
teve que cortar fora uma parte de si mesma para continuar vivendo,
e cada uma das metades sofreu à sua maneira. Mas há esperança:
determinada a voltar, Sen-jo inspira a nossa volta. Como ela, muitos
descobrem que vivem parcialmente num mundo de sonhos, alheios
a partes inteiras da vida, do corpo, do passado. Nem sempre foi
assim. Há uma totalidade original: nascemos em unidade com a
nossa mãe e com o nosso corpo. À medida que crescemos e nos
tomamos um indivíduo na sociedade, vamos perdendo essa
totalidade. Enfrentando a falta de respeito e apoio que é típica de
muitas famílias modernas, as opiniões e temores alheios, a
inevitável fragmentação cultural, as frustrações e perdas que
sofremos ao tentar fazer jus às expectativas da sociedade, nós nos
alheamos de nosso corpo sagrado e de nossos mais profundos
sentimentos. Em geral, esse processo é invisível e inconsciente,
acontece no escuro, como Sen-jo correndo para seguir o barco de
Ochu à meia-noite. Sentimos o alheamento, mas não sabemos bem
o que está errado.
James Joyce captou esse dilema ao falar de um personagem: "O
Senhor Duffy vivia a pouca distância do seu corpo." Joan Tollifson,
uma professora zen, conta como foi difícil aceitar a verdade do
próprio corpo. Ela nasceu sem um antebraço e conta que, na
infância, as outras crianças sempre faziam cara de horror. "Algumas
pessoas me diziam que era incrível eu saber amarrar tão bem os
sapatos e, o que era ainda mais mortal, outras fingiam não notar e
ninguém dizia nada." Quando uma outra criança perguntava, num
elevador por exemplo, o que havia acontecido, os pais logo a
faziam parar: "Não fique perguntando. "
Então Joan descobriu a meditação. Durante muitos anos ela
meditava com a única mão formando metade de um mudra circular,
como uma boa estudante zen. Mas ainda não tinha olhado de
verdade para si mesma. "Lembro-me da primeira vez que olhei para
o meu braço. Eu tinha vinte e cinco anos." Ela levou esse tempo
todo para criar coragem de ver o que já existia. Diz ela: "E quando
se consegue, o horror não está no corpo, mas na cabeça."
Pode ser difícil olhar de perto nossos braços e pernas, nossa
barriga e nosso peito, nosso rosto e nossa pele, nossos genitais e
nosso cabelo, mas o preço de não olhar é ainda maior: perdemos a
ligação com nós mesmos, com a terra e com a vida humana;
perdemos a sabedoria inata e instintiva. Mesmo depois de anos de
prática espiritual podemos ser como Sen-jo antes da volta, com a
felicidade oprimida pelas partes abandonadas de nós mesmos.
Um abade budista conta o que aconteceu depois que passou por
uma cirurgia e por um tratamento de câncer.

"Quando voltei, olhei para minha comunidade de um novo ponto de


vista. Vi alunos que estavam lá havia tanto tempo que praticavam
por inércia. Outros nem praticavam: eram dependentes e
precisavam de um lugar para viver. Como tinha feito os votos
bodhisattva, achava que devia cuidar de todos incondicionalmente.
Como bodhisattva, eu queria que todos ficassem. Mas o meu corpo,
que tinha enfrentado a verdade da vida e da morte, não deixou.
Mandei embora metade dos alunos. No fim, fui obrigado a dar
atenção à sabedoria do meu corpo."

Perder o contato com a vida encarnada não é um privilégio


individual. Essa perda é intrínseca à pressa e ao alheamento da
sociedade de consumo moderna. A poeta Adrienne Rich fala da dor
que se esconde na vida apressada:

O problema, até agora calado, é como viver num corpo prejudicado


num mundo onde a dor é amordaçada sem ser curada, sem ser
pranteada. O problema é juntar, sem histeria, a dor do corpo de
cada um com a dor do corpo do mundo.
Um lama tibetano ocidental conta como entrou em contato com
esse problema.

"Conheci o alheamento patológico em mim mesmo e nos outros.


Longos anos de retiro me puseram em contato com muitas coisas,
mas eu fazia parte da velha cultura budista, onde as coisas são
ignoradas, afastadas. Conheci muitos professores de meditação,
lamas e professores Vipassana que tinham problemas de saúde. É
claro que a doença é natural, faz parte da Primeira Nobre Verdade
do Buda. Só que esses professores tinham passado anos sem
cuidar do corpo. E eu? Eu me orgulhava de ser calmo e distante, de
nunca ficar aborrecido nem com raiva, de estar além do stress. Mas
e o meu corpo? Em que órgãos eu guardava aquilo tudo, em
detrimento da minha saúde? Agora, vinte e cinco anos depois,
estou começando a respeitar o meu corpo, a minha necessidade de
descanso, de exercício, para encontrar a sabedoria física perdida
há tanto tempo."

Alice Miller, cujo trabalho se concentra no resgate do nosso ser


autêntico, escreve apaixonadamente sobre o corpo.

A verdade sobre a infância fica armazenada no corpo e podemos


reprimi-Ia, mas nunca alterá-Ia. O intelecto pode ser enganado, os
sentimentos manipulados, as idéias desordenadas, o corpo tapeado
com medicamentos. Mas algum dia o corpo vai apresentar a conta
porque é incorruptível como uma criança que, ainda plena de
espírito, não aceita acordos nem desculpas, não pára de nos
atormentar enquanto fugimos da verdade.

Para atingir a plenitude, temos que resgatar o corpo - aceitando


como nossas até mesmo sua dor e sua limitação. Foi assim no caso
do praticante budista cujos pais eram sobreviventes do holocausto.
Disse ele: "Nasci em meio ao trauma e descobri que passei a vida
prendendo a respiração." Foi assim no caso da professora de yoga
que se esforçava para ter o corpo perfeito. Disse ela: "Percebi que
tinha medo de envelhecer, de perder minha beleza, de aceitar
minha fraqueza e vulnerabilidade. Eu usava a yoga para tentar
controlar minha vida." Uma rabina já tinha avançado bastante na
sua jornada quando compreendeu a necessidade de integrar o
corpo.

"As mulheres têm muitos medos em relação ao corpo. Acho que os


homens também. Em minha vida espiritual, tive de lidar com feridas
profundas nessa área. Os mais sábios ensinamentos do Judaísmo
consideram sagrados a sexualidade e o corpo: abusar do corpo é
abusar do divino. Agora, depois de tantos anos praticando a cura,
comecei a aprender yoga, movimento e danças judaicas. Percebi
que a energia do corpo é a energia de Deus. Temos que valorizá-lo,
Tudo vem através dele."

A ILUMINAÇÃO NO CORPO

Se não for vivida aqui e agora, neste corpo, a iluminação não é


genuína. É no corpo e na mente que encontramos a causa do
sofrimento e o fim do sofrimento. O despertar só é um desabrochar
para a liberdade nesta vida quando tem o corpo como base.
A iluminação no corpo não é sinônimo de acontecimentos
psicofísicos, de domínio das yogas do fogo interior, de realização de
tantras sexuais. Sim, alguns lamas tibetanos ficam sentados sem
roupa numa altitude de 6.000 metros e geram calor suficiente para
derreter a neve num raio de três metros à sua volta. E há santos
católicos com os estigmas de Cristo e milagrosos poderes de cura.
Mas disse o Buda: "Esses poderes não são o verdadeiro milagre.
Despertar para a verdade é o milagre." Iluminação no corpo é viver
com sabedoria no corpo, do jeito que ele é, hoje mesmo, nesta vida
incrível.
A freira e mestra de meditação budista Pema Chodron chama essa
compreensão de "Sabedoria de Não Fugir".

É bom lembrar que estar aqui, sentar-se para meditar, fazer as


coisas simples de todos os dias - trabalhar, andar na rua, falar com
as pessoas, comer, ir ao banheiro - é tudo o de que precisamos
para ser totalmente despertos, vivos, humanos. É bom lembrar que
este corpo, este corpo que está agora nesta sala, este mesmo
corpo que às vezes dói, e a mente que temos neste momento, são
exatamente o que precisamos para ser totalmente despertos, vivos,
humanos. Nossas emoções de agora, negativas e positivas, são o
que precisamos. É como se procurássemos por ai a maior fortuna
que se pode ter para levar uma vida decente, boa, gratificante,
energética e inspirada e a descobríssemos bem aqui.

Não é como ideal que a iluminação floresce, mas na realidade


milagrosa da forma humana, com seus prazeres e dores. Nenhum
mestre escapa dessa verdade e a iluminação não elimina a
vulnerabilidade do corpo. O Buda tinha doenças e dores nas costas.
Sábios como Ramana Maharshi, Karamapa e Suzuki Roshi
morreram de câncer, a despeito de seu conhecimento sagrado.
Esses exemplos mostram que' temos de encontrar o despertar na
doença e na saúde, no prazer e na dor, neste corpo humano como
ele é.
Como ter contato com este corpo de vida, com suas alegrias e
tristezas? A iluminação corporificada não nega nem maltrata o
corpo, mas também não se entrega aos prazeres com insensatez.
Nela, nós nos tomamos presentes para a vida que nos é dada,
respeitando o que os tibetanos chamam de "preciosa forma
humana". Tsong Khapa, o mestre tibetano, ensinou: "Este corpo
humano é mais precioso do que a mais rara gema. Cuidem do
corpo: ele é seu só desta vez... é uma coisa bela que passa." Essa
atitude respeitosa faz com que a vida do corpo seja abençoada. É o
que Galway Kinnell descreve em "São Francisco e a Porca".

O botão
representa todas as coisas,
mesmo as que não florescem,
porque tudo floresce, de dentro, ao abençoar a si mesmo;
embora às vezes seja necessário
reensinar a uma coisa o seu encanto,
pôr a mão na testa
da flor
e recontar a ela, com palavras e toques,
que ela é encantadora
até que volte a florescer de dentro, a abençoar a si mesma;
como São Francisco
pôs a mão na testa enrugada
da porca, e lhe disse com palavras e toques
bênçãos da terra sobre a porca, e a porca
se lembrou, em todo o seu volumoso comprimento,
do focinho enfiado na terra, passando pela
forragem e pela lavagem, até o caracol espiritual do seu rabo...
do longo, perfeito encanto da porca.

Um padre católico fala da gratidão e da bem-aventurança que


aprendeu através do corpo.

"Vim de uma família pobre, em que todos bebiam muito e tinham


uma vida dura; os homens tratavam o corpo como uma carroça que
a gente usa e ignora. Na Igreja piorou. Eu odiava lidar com o meu
corpo. Vivia de café, depois de uísque. Mas, de tanto observar as
pessoas simples que vinham falar comigo, de tanto ver corpos
torturados e almas torturadas, a minha fé e o meu amor superaram
todas as bobagens sobre corpo e pecado. Não precisa ser tão
difícil. Cristo ensinou que devo amar o meu inimigo. O voto de não-
violência que fiz inclui o meu corpo. Minha prática agora é: 'Não se
atormente, não incremente a dor.' É o que ensino aos outros. Adotei
uma prática de gratidão. Levanto de manhã e é cuidando do corpo
que começo. É comovente de tão simples."

Para atingir a sabedoria é preciso compreender a santidade do


corpo. Uma professora espiritual fala da luta que teve com o câncer,
muito depois de sua primeira experiência de despertar.

"Removeram um grande tumor do abdômen, e com ele todas as


certezas que eu tinha na vida. Parei de trabalhar e de ensinar.
Recorri a tudo que pudesse me ajudar a mudar o que tinha me
levado ao câncer, da acupuntura à terapia profunda. Eu me tomei
humilde diante do corpo. Isso foi há quinze anos e posso dizer que
esse foi o momento mais decisivo e o maior despertar. Eu tinha
usado meu corpo para praticar. Agora tinha que habitá-lo, respeitá-
lo e amá-lo com a compreensão, o cuidado e a força feminina que
eu havia desviado para a vida espiritual. Manter o coração no corpo
passou a ser a minha prática, que se tomou gloriosa. Nem mesmo
os primeiros despertares para a perfeição e para a graça tinham me
revelado a alegria de viver no corpo, nos sentidos, em cada
momento. Amo a minha vida de uma nova maneira. Este é o lugar
da liberdade."

NENHUMA PARTE EXCLUÍDA

Como vimos, um dos mais importantes desafios do caminho para a


iluminação no corpo está na área da sexualidade. Em geral, as
tradições religiosas nos advertem contra os perigos do
envolvimento com os sentidos, e é verdade que podemos nos
identificar demais com o corpo e seus prazeres. Nossa cultura
explorou essa possibilidade ao extremo. Mas nos circulas espirituais
é mais comum o perigo oposto: aversão, medo e inconsciência.
Existe, como sugere o Buda, um caminho do meio a ser encontrado
na vida de cada um. Uma professora de yoga parou no meio de um
alongamento difícil que estava ensinando aos alunos: "Os
esforçados, relaxem. Os sensualistas, fiquem direitos."
Jung fala da necessidade de equilíbrio entre nosso corpo animal e
sua ligação através de Eros às formas mais elevadas de espírito.

O instinto erótico é e sempre será questionável, digam o que


disserem as leis sobre o assunto. Ele pertence, por um lado, à
natureza animal do homem, que vai existir enquanto o homem tiver
um corpo animal. Por outro lado, está ligado às mais altas formas
do espírito. Mas floresce apenas quando espírito e instinto estão em
verdadeira harmonia. Quando falta um dos dois aspectos, ocorre o
dano, uma falta unilateral de equilíbrio que escorrega facilmente
para o patológico. O excesso de natureza animal desfigura o ser
humano civilizado, o excesso de cultura produz um animal doente.
As formas mais rígidas de espiritualidade condenam a sexualidade
e ponto final. Quando há mais sabedoria, é o mau uso da
sexualidade que passa a ser considerado como causa do
sofrimento. Os Dez Mandamentos nos ensinam a evitar o adultério.
Os preceitos budistas nos advertem para não causar sofrimento
com o mau uso da sexualidade. Mas o medo de fazer mal pode se
transformar em medo do corpo e da sexualidade em geral. No
entanto, um mestre sufi me disse que sua tradição ensina que "os
mestres ficam mais sexy quando ficam iluminados". E não é apenas
no sentido sexual: eles se tomam mais cheios de corpo, mais
despertos, mais vivos. Jack Engler, professor budista e psicólogo de
Harvard, falando do treinamento que fez com o renomado monge
trapista Thomas Merton, disse: "Thomas Merton era o homem mais
sexy que eu conheci."
No início dos anos oitenta, querendo compreender e respeitar a
sexualidade como parte consciente do caminho espiritual,
entrevistei mestres zen, lamas, swamis e seus alunos mais
adiantados sobre a sexualidade de cada um. Sobre isso, escrevi um
artigo para o Yoga Journal, de onde foi extraído o seguinte texto:

Como qualquer grupo da nossa cultura, suas práticas variavam.


Havia heterossexuais, bissexuais, homossexuais, exibicionistas,
monogamistas e poligamistas. Havia professores celibatários e
felizes e outros celibatários e infelizes, havia os casados e
monogâmicos e os que tinham muitos casos clandestinos; havia
professores promíscuos em relação à sexualidade; havia os que
faziam de relacionamentos conscientes um aspecto da
espiritualidade; e, o que era a maioria, havia professores que não
eram mais iluminados ou conscientes em relação à sexualidade do
que qualquer outra pessoa.
Sabemos que a sexualidade criteriosa traz intimidade, união e
entrega, mas o celibato criterioso e sagrado também. As duas
opções podem expressar amor e consciência. A iluminação
corporificada traz consciência e respeito ao corpo - e assim não nos
perdemos nos extremos da indulgência ou da auto-negação. No
tantra hindu e budista, a sexualidade é um caminho para o
despertar; na tradição judaica e na tradição sufi, ela é divina. Eros e
a sensualidade são honrados e transformados. No mesmo espírito,
o celibato pode ser honrado e transformado na santidade do
coração. É possível conhecer a força vital do corpo através dos dois
caminhos.
Este precioso corpo humano é um tesouro sagrado para a ação e
para o despertar. É sagrado o coração, sagrados os ouvidos,
sagrados os membros, sagrado o peito, sagrados os pés e as
mãos, sagrado o coração e a pele, sagrados os cabelos e os
genitais, o fígado, os pulmões, o sangue, as células mais
minúsculas e o sopro da vida.
O escritor Eduardo Galeano diz o seguinte:

A igreja diz: o corpo é um pecado.


A ciência diz: o corpo é uma máquina.
A propaganda diz: o corpo é um negócio.
O Corpo diz: sou uma festa sagrada.

Quando o precioso corpo humano é bem tratado, sua bondade


transborda para a vida. Cresce em nós o impulso de cuidar, curar,
corporificar o amor e a liberdade. Os mundos que foram separados
em nós se juntam para formar um todo.
Aos oitenta anos, pouco antes de se aposentar, Robert Aitken Roshi
falou a cem professores budistas sobre seu meio século de prática
zen, que começou numa prisão japonesa durante a Segunda
Guerra Mundial. No final, fizemos um pedido a ele: propor um koan
e dar a resposta. Ele então contou esta história: em 1951, quando
estava praticando em Nova York com o Mestre Nyogen Sensaki, o
mestre ergueu uma elegante tigela pintada com uma espiral que ia
da borda ao centro e perguntou: "Esta espiral vai de fora para
dentro ou de dentro para fora?" Esse era o koan, e contemplamos
em silêncio sua solução. Então chegou o momento da resposta. Um
tanto trêmulo, Aitken Roshi levantou da almofada e estendeu os
braços como se fosse um pássaro grande e frágil, reproduzindo a
forma da tigela com o corpo. Primeiro girou numa direção, como se
espiralasse para dentro. Depois na outra, como se espiralasse para
fora. Com todo o seu corpo, com todo o seu ser, por dentro e por
fora, ele se transformou na tigela. Foi essa a resposta.

A SABEDORIA DA ENCARNAÇÃO

Em maio de 1998, no centro de meditação Spirit Rock, organizamos


um evento beneficente para o tratamento médico de Ram Dass, que
tinha sofrido um sério derrame no ano anterior. Depois de quase um
ano de reabilitação, Ram Dass já conseguia falar, mas aos
soquinhos e procurando as palavras. No fim do dia, levaram a
cadeira de rodas para o palco para ele dizer algumas palavras.
Observando, com humor, que tinham lhe avisado que era cafona
falar em beneficio próprio - e era para isso que ele estava ali - Ram
Dass falou de sua difícil situação e da questão da identidade.

"Durante anos pratiquei, como karma yogue, o caminho do serviço.


Os livros que escrevi falam de aprender a servir, de ajudar os
outros. Agora é o inverso. Preciso que me ajudem a levantar e a ir
para a cama. Os outros me alimentam e lavam meu traseiro. E
posso dizer que é mais difícil ser ajudado do que ajudar!
Mas este é apenas um outro estágio. Parece que morri e renasci
muitas vezes. Nos anos sessenta eu era professor em Harvard, e
quando isso chegou ao fim, saí com Tim Leary espalhando a cultura
psicodélica. Nos anos setenta morri para isso e voltei da Índia como
Baba Ram Dass, o guru. Então, nos anos oitenta, passei a servir -
participei da fundação da Seva Foundation, construí hospitais,
trabalhei com refugiados e prisioneiros. Durante todos esses anos,
toquei violoncelo, joguei golfe, dirigi o meu MG. Desde que tive o
derrame, o carro está na garagem, o violoncelo e os tacos de golfe
no armário. Se eu me visse como o cara que não pode mais tocar
violoncelo, nem jogar golfe, nem dirigir e nem trabalhar na Índia, eu
sentiria uma pena terrível de mim mesmo. Mas eu não sou esse
cara. No derrame eu morri de novo e agora tenho uma nova vida
num corpo deficiente. É onde eu estou. É preciso estar aqui agora.
É preciso aceitar o currículo como ele é."
Essa é a sabedoria da encarnação. Nela, entramos de bom grado
na vida, sem medo e sem nos perder, despertos e livres naquilo que
cada momento oferece, seja o que for. Kabir, o poeta místico
indiano, escreve:

Mergulhe na experiência enquanto está vivo... O que você chama


de "salvação" pertence ao tempo antes da morte.

Aceitar a vida exige a compreensão radical de que a santidade,


Deus ou o Nirvana não são alheios à experiência, mas são sua
essência. O que buscamos é o que somos. O Sutra do Coração
ensina essa verdade na frase: "a forma não é diferente do vazio".
Simeon, o místico cristão, fala de "despertar no corpo de Cristo
como Cristo desperta no nosso".
O Buda encontrou a chave para esse coração livre e aberto depois
de anos de luta contra o corpo. Ele vagou pela Índia por seis anos,
jejuando e se entregando a extenuantes práticas ascéticas, na
batalha para vencer todos os desejos e medos corporais.
Finalmente, exausto e perto da morte, ele se deitou na terra. Surgiu
então uma lembrança de quando era menino: estava sentado sob
uma macieira no jardim do pai. Lembrou-se de que, naquela manhã
de primavera, tinha tido sem aviso uma maravilhosa sensação de
totalidade e quietude, o coração em descanso e à vontade no meio
de todas as coisas. Assombrado, ele percebeu que toda a sua
busca espiritual pela liberação tinha sido mal dirigida, tinha sido
uma luta infrutífera contra o corpo e o mundo.
Com essa visão, ele descobriu o caminho do meio, a unidade
interior que não luta contra o mundo e nem se perde no mundo. Ele
abriu o coração para o sofrimento e para a beleza da vida como ela
é. E descansou em paz. Nesse momento apareceu uma jovem que,
vendo o sábio extenuado, lhe deu a tigela de leite de arroz que
trazia. Agradecido, o Buda bebeu, renovado agora no corpo e no
espírito. Voltou então à sua meditação com uma nova compreensão
de seu caminho.
Uma versão moderna dessa história aconteceu na primeira clínica
do Doutor Jon Kabat-Zinn, no porão do centro médico da
Universidade de Massachusetts. Quando ele começou o Programa
de Redução do Stress, baseado na atenção, ele pediu que os
médicos do centro lhe mandassem os pacientes sem esperança,
que já tivessem esgotado todos os recursos terapêuticos, Como ele
me disse: "Podemos oferecer o mais eficiente dos remédios: a
verdade." Assim, pacientes com câncer, pacientes com dor,
pacientes com doenças degenerativas nos ossos e nas
articulações, pacientes com problemas nas costas que tinham
tentado de tudo em sua luta com o corpo - todos foram mandados
para ele. O Doutor Kabat-Zinn ensinou a eles uma atenção
profunda, a aceitar o que era verdade em seu corpo em vez de
tratar a doença como um inimigo a ser derrotado. Essa atenção e
essa aceitação trouxeram resultados notáveis. Alguns pacientes
ficaram curados do stress, da dor e das doenças. Outros, embora
não melhorassem totalmente, aprenderam novas maneiras de estar
com o corpo, que transformaram sua vida. Agora esse programa se
espalhou por centenas de hospitais no mundo inteiro.

CORAGEM CORPORIFICADA

Os frutos da corporificação, da plenitude, da sabedoria e da


compaixão têm um preço. Quando eu tinha sessenta e três anos,
meu professor Ajahn Chah foi internado num hospital com uma
combinação de diabetes, derrame e problemas cardíacos. Ficou
hospitalizado durante nove meses, com muitas dores e às vezes
impossibilitado de falar. Quando saiu, tinha recuperado parte de sua
capacidade e voltou a ensinar, embora de maneira mais limitada.
Fui visitá-lo num templo perto de Bangkok e vi que estava muito
mais velho e mais fraco depois dessa provação. Eu me prosternei
respeitosamente. Conversando, lembrei que ele costumava nos
exortar a refletir sobre a inevitabilidade da 'velhice, da doença e da
morte. Em voz alta, observei que o inevitável estava visivelmente
lhe acontecendo. Ajahn Chah fixou em mim um olhar penetrante e
disse: "Não diga isso com tanta frivolidade!"
A dedicação espiritual não nos torna imunes às alegrias e tristezas
da vida do corpo. Como nós, os mestres espirituais enfrentam a
fadiga, a doença e a morte. Mas a prática dedicada nos dá
ferramentas para despertar a compaixão e a consciência neste
domínio humano, ensina o coração a abraçá-lo.
Cada parte da vida é um campo fértil para a prática. Rachel Naomi
Remen, médica e curadora, fala da doença como uma passagem,
um convite para aprofundar a ligação da alma com a vida. Ela diz
que o objetivo da doença é nos despertar, nos trazer de volta para o
que é importante. Na prática espiritual, é importante não esperar
que a doença ou a morte nos despertem, mas aproveitar a vida e a
saúde que temos agora para trazer paz para o corpo, para o
coração e para a mente.
E quando não temos coragem para entrar plenamente no corpo, a
vida costuma insistir. Marcel Proust diz:

A doença é o mais ouvido dos médicos. Para a bondade e para a


sabedoria, fazemos apenas promessas; à dor nós obedecemos.

Um rabino, que havia anos dava aulas sem parar, acabou ficando
exausto e muito doente. Quando se recuperou, rezou pela bênção
de uma nova vida e jurou dedicar suas preces à santidade do corpo.

"No começo não foi fácil. Eu havia ignorado o corpo por muito
tempo. Mas percebi que o corpo é uma maneira essencial de estar
em contato com Deus. É o que nos foi dado. Todas as manhãs eu
pedia a graça de experimentar a cada momento as sensações
dadas por Deus. Seguia uma rotina de exercícios físicos e
movimentos, mas não era isso que fazia a diferença e sim a
intenção renovada a cada manhã de estar vivo, presente, com a
energia do universo no corpo. Era essa a minha prece e, nos meses
seguintes, o meu corpo se modificou. Através dessa intenção, a
vida mudou e se tornou mais bela e abençoada."

A plena valorização de cada detalhe da encarnação traz a bem-


aventurança. Um mestre zen explica:

"Meu ensinamento zen se aprofundou no sentido de estimular as


pessoas a mergulhar no mundo, na vida. Eu quero que elas
ingressem na vida, que corporifiquem a prática, que a tratem com o
coração. Cuidar da vida, deste corpo, é amá-lo e abençoá-lo.
Temos que encontrar uma forma de abençoar nossas mágoas e a
escuridão em que estamos. É preciso paciência para abençoar a
nossa vulnerabilidade às mágoas porque não nos ensinaram a ter
respeito por ela. Mas, abençoando o corpo, começamos a perceber
o que é melhor para nós. Temos o tipo de dor que é boa para nós,
as alegrias que são nossas, as experiências que conquistamos
honestamente."

Quando ouvimos o corpo, a sabedoria do corpo cresce.


Conseguimos sentir a necessidade que o corpo tem de se
movimentar e respeitar seus ciclos de repouso; conseguimos
meditar e dançar; respeitamos sua necessidade de solidão;
aceitamos seus sentidos; conhecemos seus prazeres e limitações.
Em vez de temer o corpo, suas perdas e estranha vulnerabilidade,
passamos a respeitá-lo. Quando a mandala do despertar inclui o
corpo em vez de excluí-lo, nossos dons florescem e o coração
continua livre.
O Rabino Nachman de Bratzlav disse a seus discípulos:

Para nunca ver a face do inferno, dancem com a toalha da cozinha


todas as noites ao chegar do trabalho. Se tiverem medo de acordar
a família, é só tirar os sapatos.

A coragem corporificada não espera que o espectro da doença e da


morte exija a nossa atenção. Ao contrário: ingressa de boa vontade
na existência do corpo e sacrifica falsos ideais pela realidade do
presente. Ela é tudo o que temos. Há uma história zen sobre um
discípulo ardoroso que perguntou ao mestre qual era a verdade da
iluminação. Apontando duas touceiras de bambu ali perto, o mestre
perguntou: "Está vendo os bambus da esquerda, como são altos? E
os da direita, como são baixos? Essa é a natureza deles." O
discípulo se iluminou. Aceitar a verdade é o portão para o despertar.
Neste momento, qual é a nossa natureza? Podemos aceitá-Ia
também?

CORPORIFICAÇÃO E ROUPA SUJA


Hakuin Zenji diz em sua antiga Canção de Zazen: "Todos os seres
são por natureza Buda, assim como o gelo é por natureza água. É
triste que as pessoas ignorem o que está perto e busquem a
verdade lá longe, como alguém que grita de sede no meio da
água... Na verdade, o que está faltando agora? O Nirvana está bem
aqui, diante de nossos olhos; este mesmo lugar é a pura Terra do
Lótus; este mesmo corpo é o Buda."
Para Hakuin, o portão para a vida no Nirvana é a consciência
corporificada. A santidade vem quando entramos totalmente no
momento, com atenção sincera. Todas as formas externas de
religião - templos, professores, práticas - nos chamam para o eterno
presente, nos convidam a fazer o coração a tocar cada momento.
Há uma fábula chinesa que fala de um jovem que observava um
sábio no poço do vilarejo. O velho descia o balde de madeira numa
corda e depois o puxava devagar, com as mãos. O jovem
desapareceu e voltou com uma carretilha. Chamou o velho e
mostrou como a coisa funcionava. "É só pôr a corda em volta da
roldana e içar a água girando a manivela." O velho resistiu.
"Se eu usar uma engenhoca dessas, minha mente vai se julgar
esperta. Com a mente astuta, não vou mais pôr o coração no que
faço. Logo, logo meus pulsos vão fazer tudo sozinhos. Se o meu
coração e o meu corpo não estiverem no meu trabalho, ele vai ficar
sem alegria. Se o meu trabalho ficar sem alegria, como você acha
que vai ser o gosto da água?"
A água reflete o nosso espírito. O Zen diz que uma única gota de
orvalho reflete a lua e o céu inteiro. Cada coisinha, cada momento
contribui para o todo e é também seu reflexo. Pôr uma criança na
cama, pagar uma conta, ouvir um colega de trabalho, pagar o
frentista no posto de gasolina, escrever uma carta, digitar um
memorando, almoçar com um amigo, planejar um trabalho, regar as
plantas - tudo se transforma na corporificarão do coração desperto.
E mesmo assim esquecemos dessa verdade.
Uma garotinha de seis anos perguntou à mãe o que ela fazia todos
os dias na universidade. "Sou do departamento de arte. Ensino as
pessoas a desenhar e a pintar", respondeu a mãe. Atônita, a
menina perguntou: "Quer dizer que elas esquecem?"
Quando esquecemos, o despertar nos chama para abençoar as
atividades simples de cada momento. Um lama ocidental conta que,
depois de um retiro de três anos no Tibete, foi o trabalho físico que
o ajudou a manter os pés no chão:

"Foi a coisa mais difícil manter viva a vida espiritual na enxurrada de


atividades cotidianas, na complexidade desnecessária da vida
ocidental. Nos primeiros cinco anos foi duro preservar a
Simplicidade no coração no meio de pessoas que só têm
sensibilidade para correr atrás das coisas. No começo eu me sentia
instável, quase louco. Com medo de esquecer o que tinha
aprendido, usava o trabalho físico para estabilizar minha prática e
minha mente. Vivia fazendo limpeza. Acabei me especializando em
limpar, esfregar, lavar a roupa. Como ninguém queria saber desse
trabalho, todos adoravam ter alguém tão disposto a enfrentá-Io.
Em silêncio, eu cantava um mantra de compaixão a cada prato que
lavava, a cada chão que esfregava. Fazia também uma prece para
que todos os pisos e o coração de todos os seres à minha volta
ficassem limpos, purificados e inocentes. O tempo parava como se
eu fosse parte da terra que se purifica na primavera. Era uma linda
maneira de trabalhar. As tarefas físicas mais simples nos ensinam a
ficar neste mundo de maneira sagrada."

Os hindus e os sufis dizem que tudo o que fazemos pode ser feito
em nome do Divino. Com atenção corporificada, dobramos a roupa
limpa como se dobrássemos o manto de Jesus ou de Buda,
servimos a refeição não para nós mesmos ou para a família, mas
para o Sagrado. Quando o corpo faz parte da mandala da prática,
tudo é feito com o coração e não apenas com as mãos. Uma irmã
dominicana dá a isso o nome de "Teologia da Encarnação".

"Aos sessenta anos, voltei às coisas simples que aprendi quando


era jovem. Enquanto corrijo as provas, vou rezando por cada aluno.
Quando estou preocupada com um paciente, rezo o terço.
Adoração, agradecimento, súplica. Procuro gostar de tudo, mesmo
das coisas difíceis, até mesmo de servir diante da injustiça. É isso
que me é dado agora. Essa é a verdade. Minha vida é uma vida de
interligação, as pequenas epifanias de cada momento bem vividas.
Não confio nas grandes, quando meu ego fica todo inchado. É aqui
e agora, ou não é."

Há muitas práticas simples que nos fazem voltar para o corpo, para
o coração, para este momento: uma prece antes de atravessar cada
porta, uma reflexão antes de comer, uma pausa para respirar antes
de atender o telefone. É possível criar uma prece ou verso até para
ver televisão, diz o Mestre Zen Thich Nhat Hanh: "Vendo o noticiário
da noite, sei que é a minha história. Inspirando calmamente,
envolvo todos nós em compaixão." Quando nos lembramos da
respiração, devolvemos todas as coisas ao seu lugar no corpo.
Um estudante zen disse ao mestre: "Faltam só alguns detalhes." E
o mestre respondeu: "Mas só existem detalhes." A presença
corporificada não nos deixa esquecer de estar com uma coisa por
vez. É o que Gandhi chamava de "Monotonia Abençoada",
comparando a rotina de todos os dias ao sol e à lua em suas órbitas
regulares, aos ciclos silenciosos das estrelas e às estações. O Zen
ensina que é como assar pão: fazemos pão muitas vezes e
sentimos o sabor de cada filão. Claude Monet viveu em Giverny
durante trinta e cinco anos, pintando os mesmos nenúfares anos
após ano, à luz de cada novo dia. Olhar com o frescor dos olhos
que enxergam a luz de hoje como se fosse a primeira vez - essa é a
mente de iniciante.
Essa intimidade simples do serviço físico, real, estava no centro do
trabalho de Madre Teresa.

Eu não considero as massas responsabilidade minha; eu considero


o indivíduo. Só consigo amar uma pessoa por vez - só, uma, uma,
uma. É assim que começa. Eu comecei - escolhi uma pessoa. Se
eu não tivesse escolhido essa pessoa, talvez não tivesse escolhido
quarenta e cinco mil. O trabalho é só uma gota no oceano. Mas se
eu não pusesse a gota dentro dele, o oceano teria uma gota a
menos. Isso vale para você, é assim na sua família, é assim na sua
igreja, é assim na sua comunidade. Comece - uma, uma, uma.
Místicos, adeptos e professores dizem que é no trivial que
despertamos para o sagrado. Como diz Thomas Merton: "A vida é
simples: vivemos num mundo absolutamente transparente e o brilho
do Divino o atravessa o tempo inteiro. Essa não é apenas uma
história bonita ou uma fábula. É a verdade."
Há uma história do Oriente Médio sobre um homem que foi
confundido com um criminoso e posto na prisão. Um amigo foi
visitá-lo e lhe deu um tapete de orações. Zangado, o prisioneiro
voltou para a sua cela. Esperava ganhar uma serra ou uma faca e
tinham lhe dado aquele tapete. Mas, como era tudo o que tinha,
achou que devia usá-lo, Assim, começou a se prosternar sobre o
tapete para rezar. A cada dia que passava ele ficava mais
acostumado com o padrão do tecido, até que começou a ver ali
uma imagem interessante: era o diagrama da fechadura. Assim,
conseguiu abrir a cela e fugir.
Não é procurando que encontramos a liberdade do coração - ela
está bem aqui, tecida em cores sob nossos pés.
13
EMOÇÕES DESPERTAS E
PERFEIÇÃO COMUM

Monges, é preciso ter consciência dos sentimentos agradáveis, dos


sentimentos neutros e dos sentimentos desagradáveis; é preciso
incluir nos sentimentos a atenção dos sentimentos.
SUTRA SATIPATIHANA

Um aluno perguntou a Suzuki Roshi: "Você nos ensina a meditar só


quando meditamos, a comer só quando comemos. Será que um
mestre zen consegue ficar zangado desse mesmo jeito?" Suzuki
Roshi disse: "Quer dizer ficar zangado como uma tempestade e
pronto, passou? Ah! Quisera eu!"
SHUNRYU SUZUKI ROSHI

Em geral sou muito corajoso, só que hoje eu estou com dor de


cabeça.
TWEEDLEDUM

Como é a vida emocional depois que o despertar começa?


Segundo algumas tradições, o coração desperto é totalmente
inabalável. No Anguttara Nikaya, o Buda diz: "Assim como uma
rocha sólida não se move com o vento, nem impressões sensoriais
nem contatos de qualquer tipo, agradáveis ou desagradáveis,
desejados ou não desejados, conseguem abalar o coração de quem
realmente despertou." Isso me foi ensinado de várias maneiras.
Certa vez, a mestra de meditação Dipama Barua me viu chorando
na meditação e disse que aquela aflição era desnecessária para um
yogue. "Professores de meditação não choram", disse ela. Mas o
meu primeiro mestre de meditação, Ajahn Chah, tinha dito o
contrário: "As lágrimas fazem parte da meditação. Se você nunca
chorou profundamente, ainda não começou a meditar."
Em algumas situações, o Buda critica a aflição, dizendo que é
apego desnecessário. Mas, segundo alguns textos budistas, ele
provocava tristeza nos ouvintes "para despertar as lágrimas e a
brandura de seu coração", para que "totalmente abertos e atentos,
possam conhecer as profundezas dos ensinamentos".
Cada linhagem vê as emoções de maneira diferente. Segundo
algumas tradições, os padrões inconscientes de avidez, ódio, ilusão
e medo desaparecem completamente. Segundo outras, eles
permanecem, mas são transformados em experiências de
sabedoria e compaixão. Mas todas as tradições oferecem a
possibilidade de uma profunda liberdade de espírito. Esse espírito
inextinguível, de amor inabalável, é descoberto em meio ao poder
das emoções e tempestades da vida.

VULNERABILIDADE E CORAÇÃO TERNO

Há vários anos, alguns amigos marcaram uma apresentação do


Gyuto Tantric Choir, um famoso coral de monges tibetanos, na
prisão de San Quentin. Em seguida, o San Quentin Gospel Choir, o
coral da prisão, faria a sua apresentação. Mas, à medida que a data
foi se aproximando, os organizadores foram se dando conta da
enorme diferença cultural que teriam que enfrentar.
Os membros do coral da prisão eram todos afro-americanos, na
maioria homens grandes que levantavam pesos. Durante os anos
na prisão, tinham sido tocados pelo espírito de Jesus e nascido de
novo. Assim, suas canções falavam de sofrimento profundo e da luz
do Evangelho que tinha sido despertada neles. Os organizadores
começaram a achar que aqueles cristãos recém-despertos veriam
os monges tibetanos como meros estrangeiros pagãos. Quando os
"monges pagãos" chegaram, o contraste ficou ainda mais aparente:
era um grupo de asiáticos baixinhos usando saias marrons, que
pareciam ainda menores perto dos afro-americanos. A questão era
como superar essa diferença.
Um dos patrocinadores do evento acabou solucionando o problema
com um discurso inspirado. "Quase todos esses tibetanos que nos
visitam hoje passaram anos nas mais duras prisões. Como tiveram
a coragem de expressar suas crenças, foram presos e torturados
pelo exército comunista chinês. Mas alguns conseguiram fugir e
outros foram libertados. Então, para encontrar a liberdade, eles
atravessaram os Himalaias, as mais altas montanhas da terra.
Alguns amarravam trapos nos pés porque não tinham sapatos. Mas
continuam no exílio, forçados a viver longe de casa e da família,
sem saber se alguma vez poderão voltar. São as canções e as
preces que os faz prosseguir em meio a essa luta. É o que eles vão
cantar hoje para vocês."
No mesmo instante, os presos e os monges tibetanos se olharam
com olhos que falavam das profundezas vulneráveis da dor
humana, e encontraram compreensão. Foi de coração que um
grupo cantou para o outro e, quando a música acabou, eles se
abraçaram como irmãos de longa data.
As canções que esses homens cantaram expressavam as emoções
de seu coração. Sua voz transmitiu a luta e a capacidade de resistir,
a esperança e a aspiração pela liberdade. São os sentimentos que
nos unem e que nos põem em contato com a vida. Ser capaz de
sentir é um dos extraordinários dons da humanidade. Não suprimir
os sentimentos e nem ser enredados por eles, mas compreendê-Ios
- essa é a arte.

TRABALHAR COM AS EMOÇÕES DEPOIS DO DESPERTAR

O Buda ensinou que é preciso conhecer e aceitar toda a gama de


sentimentos - sentimentos agradáveis, neutros e desagradáveis.
Disse mais: "Tomando consciência de toda a gama de emoções" e
"vivendo os sentimentos nos sentimentos" encontramos paz no
meio deles e nos tomamos livres. Mas o processo não pára depois
de uma experiência de realização. Uma professora budista fala de
quando estudava com seu mestre zen.

"Eu estava trabalhando com koans. Só que às vezes, quando tinha


uma entrevista com o mestre, não conseguia falar do koan. Tinha
que falar das minhas emoções, de tão centrais que eram na minha
prática. Às vezes eram emoções alegres, mas em geral eram
sentimentos difíceis e conflitos com os meus pais ou no meu
relacionamento. Ele ouvia e se lamentava comigo. Dizia: 'Sei corno
é difícil. Na minha família também é assim.' Antes, eu pensava que
ele não podia dizer esse tipo de coisa. Sua abertura para sentir a
minha vida abriu o meu coração. Ele era muito humano na
disposição para estar exatamente ali."

Em 1974, conheci Robert Hall, psiquiatra e professor budista. Um


dos favoritos de Fritz Perls, participou nos anos sessenta da
fundação do Instituto de Gestalt de San Francisco. Depois criou a
Escola Lomi, um dos primeiros treinamentos a combinar trabalho
espiritual com trabalho do corpo e das emoções. Psicólogo recém-
formado, eu lhe disse que estava aprendendo a diagnosticar os
problemas dos pacientes e a decifrar sua história clínica, mas que
ainda não sabia como ajudá-los a mudar. "Eu não faço ninguém
mudar", disse ele. "Não?" perguntei incrédulo. "Não. Eu ajudo cada
um a ser o que é verdade. É dai que vem a cura."

Quem não consegue estar presente nos próprios sentimentos culpa


os outros - individualmente e coletivamente - pelos seus problemas.
Como diz James Baldwin: "Imagino que as pessoas se agarram tão
teimosamente ao ódio porque têm medo de precisar lidar com a
própria dor se o ódio acabar." Quando somos permeáveis ao que é
verdadeiro em nós, a prática avança.
Nos retiros, para chamar a atenção para a riqueza emocional, às
vezes eu lia uma lista de quinhentos sentimentos. Por exemplo:
afetuoso, ambicioso, ambivalente, divertido, antagonista, inquieto,
apático, compreensivo, polêmico, feliz, magoado, calmo, animado,
claustrofóbico, compassivo, concentrado, preocupado, curioso,
deliciado, deprimido, desanimado, compulsivo, efervescente,
temeroso, assustado, odioso, honrado, humilde, histérico, contente,
glutônico, agradecido, sério, ávido, ciumento, jovial, feliz, zangado,
satisfeito, melindrado, triste, tolo, sonolento, sóbrio, arejado,
solidário - e assim por diante.
O coração desperto é capaz de tocar com ternura todas as partes
desta incrível vida-sentimento. Quando começamos a aceitar a
extensão e o ritmo dos sentimentos, nós nos curvamos às "dez mil
alegrias e dez mil tristezas" do Tao. Aceitando as circunstâncias
internas e externas à medida que surgiam, os homens e mulheres
do Tao não "lutavam para viver. Eles aceitavam a vida como ela
era, alegremente... não tentavam, por conta própria, ajudar o Tao".
A MENTE E O CORAÇÃO

"Jóia no Lótus" é a tradução do mantra de compaixão universal "Om


Mani Padme Hum." Embora tenha muitos significados, seu
simbolismo sugere que a compaixão surge quando a jóia da mente
descansa no lótus do coração. A mente desperta tem uma clareza
de diamante. Quando essa percepção clara descansa na tema
compaixão do coração, as duas dimensões -da liberação são
realizadas.
Na psicologia budista, há uma só palavra para mente e coração:
"citta". Essa mente-coração tem muitas dimensões. Ela abrange os
pensamentos, os sentimentos, as emoções, as reações, a intuição,
o temperamento e a própria consciência. Na nossa cultura, quando
falamos da mente nos referimos apenas ao processo racional do
pensamento. Observando esse aspecto da mente, vemos uma
interminável corrente de pensamentos, idéias e histórias. Apesar de
seu valor prático, essa mente perspicaz pode nos separar do
mundo. As idéias criam com facilidade o "nós" e o "eles", o bom e o
mau, o passado e o futuro. Os pensamentos também gostam de
criar problemas imaginários. Como diz Mark Twain: "Minha vida é
cheia de infortúnios terríveis... a maioria dos quais nunca
aconteceu." Ou, nas palavras de um de meus professores, Sri
Nisargadatta: "A mente cria o abismo; o coração o transpõe."
Na psicologia budista, os sentimentos são um aspecto natural da
mente-coração, assim como os pensamentos e os impulsos. No
começo, percebemos que as experiências trazem sentimentos
agradáveis, neutros ou desagradáveis. Observando com atenção,
sem nos ater ao agradável e sem condenar o desagradável,
descobrimos que dos sentimentos básicos se origina uma gama de
emoções. Algumas pessoas acreditam que as emoções são
perigosas. Mas raramente elas são o problema: são as histórias que
criamos sobre as emoções e a pouca consciência que temos delas
que geram o sofrimento. Sem consciência, os sentimentos
dolorosos podem se corromper e se transformar em vício ou em
ódio ou degenerar para o torpor, Assim, acabamos perdendo o
contato não apenas com o que é sentido, mas com a sabedoria
essencial do coração.
Como observou Simone Weil, mística cristã do século XX: "O perigo
não é a alma ficar em dúvida, sem saber se tem pão. O perigo é,
por causa de uma mentira, ela se convencer de que não tem fome."
A primeira mulher com quem me envolvi depois de tirar o hábito de
monge foi uma amiga de faculdade que ensinava em Harvard havia
pouco tempo. No fundo, eu ainda me sentia como um monge sem
preferências, pegando o que punham na tigela de esmolar. Quando
ela me perguntava o que eu queria comer no jantar ou que filme
queria ver, eu respondia: "O que você quiser. Para mim tanto faz."
Quando ela me perguntava se eu queria viajar ou ficar em casa, eu
dizia para ela escolher. Isso a deixava louca. Não era só um sábio
desapego espiritual: ela observou que eu estava com medo do
compromisso e sem contato com o sentimento - e disse que antes
de ir para o mosteiro eu já era assim. Era verdade. Eu não sabia o
que sentia. Ela me deu uma caderneta, sugerindo que todos os dias
escrevesse dez coisas de que eu gostava ou não gostava, até
começar a perceber os meus próprios sentimentos. Recuperar os
meus sentimentos foi um processo longo, para toda a vida.

SENTIMENTOS E TEMPERAMENTO

Despertar para as emoções significa senti-Ias - apenas isso. Não é


preciso mudar os sentimentos - eles mudam sozinhos. Não é
preciso mudar de temperamento. Intuitivos ou filosóficos,
sangüíneos ou melancólicos, vamos provavelmente continuar do
mesmo jeito. Vamos ampliar nossos limites, mas o temperamento e
a personalidade quase sempre continuam iguais. Um professor
budista disse que, no começo, queria despertar para fazer uma
"transformação pessoal", mas que depois descobriu que a
transformação era "impessoal". A transformação é o desabrochar
do coração, e não uma mudança de personalidade. Esse professor
disse ainda:

"Sob vários aspectos, a transformação espiritual das décadas


passadas é diferente do que eu havia imaginado. Sou ainda a
mesma pessoa esquisita, com o mesmo estilo e maneira de ser. Por
fora, não sou aquela pessoa incrivelmente transformada e iluminada
que eu queria ser. Mas por dentro a transformação é grande.
Depois de anos de trabalho, lido de maneira mais branda com meus
sentimentos, com meus esquemas familiares e com meu
temperamento. No esforço para conhecer e aceitar minha vida, ela
se transformou e meu amor ficou maior. Minha vida era como uma
garagem entulhada, onde eu ficava trombando com os móveis e me
julgando. E agora parece que mudei para um hangar de avião que
está sempre com as portas abertas. Tenho ainda as mesmas
coisas, só que elas não me limitam como antes. Sou o mesmo, mas
agora estou livre para me mexer, até mesmo para voar."
Como já vimos, é um erro pensar que podemos fugir do karma, da
nossa história. Foi o que percebi com clareza há vinte anos num
retiro na Suíça, onde ensinei pela primeira vez. Veio gente de toda
a Europa. Quando entrevistei os alunos, procurei me abrir sem
preconceitos, sem levar em conta a cultura ou o país de cada um.
Mas, quando o retiro acabou, descobri que, nas entrevistas, quase
todos os alemães falavam de ódio e de auto-julgamento, enquanto
os franceses se atormentavam com questões existenciais de dúvida
e motivação. Por sua vez, as entrevistas dos italianos eram cheias
de emoção; gesticulando apaixonadamente, eles diziam que o
processo era penoso, belo, difícil, maravilhoso - todos eles. Cada
pessoa era ao mesmo tempo única e condicionada por um todo
cultural maior.
Despertar emocionalmente não é transformar-se numa pessoa
diferente. Somos naturalmente introvertidos ou extrovertidos,
alegres ou impacientes. Dzongsar Khyentsie Rinpoche diz: "Às
vezes, o mestre é um grande professor, mas não é
necessariamente uma grande pessoa. Ele pode ser irascível, de
convivência difícil ou exigente demais." Quando perguntaram a
Ram Dass se os anos de disciplina espiritual tinham transformado
sua personalidade, ele riu. Disse que, pelo contrário, tinha se
tomado um connoisseur das próprias neuroses.
Como o sexo, a cor do cabelo e a altura, a personalidade e o
temperamento nos são dados para toda a vida. Às vezes são
danificados na infância e restaurados pelo trabalho interior, mas
fazem parte da nossa natureza. Na psicologia budista, os tipos de
personalidade continuam iguais depois do despertar, mas são
enobrecidos pela sabedoria e generosidade do coração. Há
temperamentos que tendem ao desejo, à aversão ou à ilusão. Mas,
com o despertar, todos eles ficam mais refinados, passando a
expressar amor pela beleza, pela clareza e pela amplidão. E o
humor não é eliminado. Quando perguntaram ao Mestre Rinzai Zen
Joshu Sasaki Roshi se tinha vindo para o Ocidente para ensinar, ele
respondeu: "Eu não vim para os Estados Unidos para ensinar. Vim
para me divertir. Quero que os americanos aprendam a rir de
verdade."
Aprendemos a temer as emoções, e são muitas as idéias
equivocadas que nos prendem a esse medo. Os traumas, os
julgamentos, o medo e a vergonha que enfrentamos na infância
podem nos limitar terrivelmente. Às vezes, imaginamos que a
quietude espiritual é a melhor resposta - não sentir demais, não
ficar com raiva para não virar o barco da iluminação. A prática
espiritual mistura-se a idéias de passividade e auto-anulação. Uma
cessação da vivacidade impetuosa.
Até mesmo praticantes sinceros podem confundir um falso decoro
exterior com a tranqüilidade da liberdade interior. Há os que
acreditam secretamente que os que se permitem viver os próprios
sentimentos e desejos são vítimas da auto-indulgência, da
agressividade e da indolência. Com isso, confundem sua verdadeira
natureza com os sentimentos de um eu deficiente e pequeno. As
emoções são forças poderosas, mas não são o medo e a repressão
que vão nos libertar de seu controle - consciência é a resposta.
Tememos o poder destruidor das emoções quando não as
conhecemos de verdade. É possível ter consciência delas sem
precisar expressá-Ias em ações. Não se pode confundir as duas
coisas. Mas, para trazer o eu total para a jornada, é preciso saber o
quanto nos identificamos com nossas emoções. Temos que ver a
identidade do "corpo do medo", ver como a mágoa e a frustração da
infância, como as forças da raiva, da avidez, do orgulho e da
carência sexual foram condicionadas em nós. Experimentando
esses sentimentos à medida que entram e saem da consciência,
podemos fazer a cada um deles a pergunta: "É isso o que eu sou?"
Se acatamos os sentimentos num coração corajoso e amplo, os
sentimentos solitários, fracos, malvados e confusos vão surgir de
uma maneira nova, transformados pela aceitação.

BUDA CHOROSO, BUDA IRADO

Blindamos e defendemos o coração não apenas contra o mundo,


mas contra nós mesmos. Alguns temem a tristeza, outros temem a
alegria; alguns temem a fraqueza, outros temem a força. Há um
cartum que mostra dois generais andando pelos salões do
Pentágono. Um está cochichando no ouvido do outro: "Ontem à
noite tive um pesadelo. Sonhei que os humildes tinham herdado a
terra."
Ao contrário do Pentágono, o coração desperto não tem defesas.
Ele aceita a tristeza e a beleza da vida. O lama Chogyam Trungpa
disse: "É este coração temo e aberto que é capaz de transformar o
mundo."
A sociedade que perde a capacidade de sentir dor - de lamentar os
mortos nas batalhas, a vida desperdiçada da juventude nos guetos,
a destruição de florestas virgens e de valores nobres, o racismo que
empilha homens nas prisões - fecha o coração para a esperança.
Quem não consegue se lamentar não consegue entender as lições
do passado e usá-Ias para abrir o coração para um novo amor.
No Japão, o bodhisattva Jizo é uma das manifestações desse
coração aberto. Como São Cristóvão, Jizo protege os viajantes e as
crianças. É o santo da aflição e da renovação. Inspirada na imagem
dele, a professora zen Yvonne Rand adaptou uma cerimônia para
os pais de "bebês da água" - crianças natimortas ou abortadas -
mesmo quando a perda ocorreu num passado distante. Nessa
cerimônia, os pais rezam e fazem pequenos mantos para as
crianças que perderam e depois os oferecem para a imagem infantil
de Jizo no jardim do templo. Muitas lágrimas são derramadas nessa
ocasião, pois em geral os pais nem sabiam o que estava preso em
seu coração.
O Memorial dos Veteranos do Vietnã também é um altar público da
dor e da perda. É um dos poucos lugares da América onde homens
crescidos choram em público. Milhares de oferendas são feitas ali
todos os dias. Esses bilhetes, preces e poemas são coletados pela
Smithsonian Institution e já foram publicados em vários livros. Num
deles aparecem as seguintes notas, que são Um testemunho da
ligação entre a constatação da dor e o início da cura:

Seu nome está num muro negro na Capital. Passa muita gente o
dia inteiro. Dá para perceber quem é veterano... Ficamos ali,
olhando e chorando, sem ligar para quem nos vê chorar.
Que raiva eu tive quando o encontrei aqui, mesmo sabendo que en-
contraria. Quis tanto salvá-Ia. Eu daria minha vida se soubesse que
isso o traria de volta.
Carrego há tanto tempo a angústia da sua morte, mas agora posso
parar de procurar por você. Acho que posso começar a viver (outra
vez)...

Os templos budistas asiáticos são cheios de imagens de Budas


tranqüilos, mas há também Budas chorando e bodhisattvas irados,
imagens com espadas flamejantes que expressam o poder das
emoções depois do despertar. Até mesmo mestres como Thich
Nhat Hanh e o Dalai Lama admitem ter acessos ocasionais de
raiva. Em 1991, quando o bombardeio do Iraque o fez lembrar dos
horrores do Vietnã, Thich Naht Hanh ficou com tanta raiva que
cancelou suas aulas nos Estados Unidos. Ele escreveu que só
alguns dias depois conseguiu respirar, acalmar o coração e
transformar a raiva em tristeza e em compaixão ardente. Depois
disso, foi para os Estados Unidos e falou apaixonadamente sobre a
raiz do problema.
O Dalai Lama escreveu: "Sinto raiva em situações de grande
injustiça, mas depois penso que de nada adianta e, aos poucos,
essa raiva se transforma em compaixão." Seus ensinamentos
reconhecem que é preciso muita força para agir neste mundo, mas
os Budas irados não brandem a espada do ódio mas a de uma forte
compaixão.
No plano individual e no coletivo, há momentos para usar bem essa
espada. Eu vi um mestre zen core ano usar sua força de compaixão
com um aluno avançado que tinha se apaixonado por uma aluna
novata, que o abandonou por outro homem menos de um ano
depois. Durante vários meses, o mestre zen mostrou simpatia pela
aflição do aluno e cuidou de sua dor. Então, o mestre fez uma
viagem de nove meses para a Europa e Coréia. Na volta, conversou
com cada um dos membros da comunidade.
Quando o aluno avançado lhe disse que ainda sofria, o mestre zen
tirou da mala um rosário primorosamente entalhado e lhe deu de
presente. Depositou-o com cuidado nas mãos em concha do aluno,
que o segurou entre as suas. Então, de repente, o mestre ergueu a
mão e estapeou o aluno no rosto, gritando: "Livre-se dela!"
Com isso, o mestre fez uma reverência e saiu. Todos nós ficamos
chocados. Mas o aluno avançado mudou drasticamente depois
desse golpe: ele se livrou da dor e continuou sua vida.
Com força no coração, conseguimos reagir à gama de emoções
humanas sem ter medo dos sentimentos e sem nos identificar com
eles. Quando aceitamos os sentimentos como forças transitórias e
impessoais, ficamos livres para respeitá-los, sem que eles nos
amedrontem nem paralisem. Uma vez, Wilhelm Reich disse para
uma paciente que se esforçava para não sentir: "Você tem uma
máscara." A mulher respondeu: "Mas Doutor Reich, o senhor
também tem uma máscara." E ele disse: "É verdade, mas a
máscara não me tem."
Morrie Schwartz, que ensinava psicologia social em Brandeis, foi o
tema de um livro chamado Tuesday With Morrie, que contém seus
ensinamentos ao amigo Mitch Albom, pouco antes de morrer. Já
agonizante, ele teve uma conversa com seu aluno:

"Agora", continuou ele, com os olhos fechados, "estou me


desligando da experiência."
Desligando?
"É... Sabe o que dizem os budistas? 'Não se agarre às coisas
porque tudo é impermanente'."
Mas, espere aí, disse eu. Você não fala sempre que é preciso
experimentar a vida? Todas as emoções ruins, todas as boas? E
agora está se desligando?
"Mas isso não significa impedir que a experiência penetre em mim.
Pelo contrário, significa deixar que ela penetre em mim totalmente.
É assim que consigo deixá-Ia."
Fico perdido.
"Considere qualquer emoção - amor por uma mulher, dor por um
ente querido ou, o que estou enfrentando agora, dor e medo por
causa de uma doença mortal. Quem segura as emoções - quem
não as vive totalmente - nunca vai se desligar porque fica ocupado
com o medo. Medo da dor, medo da aflição. Medo da
vulnerabilidade que o amor acarreta.
"Mas quem mergulha nas emoções, indo até o fundo, afundando
até a cabeça, as experimenta totalmente. Sabe o que é a dor. Sabe
o que é o amor. Sabe o que é a aflição. E só então pode dizer:
'Muito bem, vivi essa emoção. Reconheço essa emoção. Agora
estou livre para me desligar dela por um momento'...
Eu sei que você acha que isso é só na hora da morte, mas é como
sempre digo. Quem aprende a morrer, aprende a viver."

PERFEIÇÃO COMUM

Na espiritualidade desenvolvida, é preciso encontrar perfeição na


não-perfeição. Seng-Tsan, fundador do Zen, ensina que a
iluminação só se manifesta quando "não temos ansiedade em
relação à não-perfeição". Com o coração, enfrentamos o mundo
como ele é, sem medo de sua beleza e de seus defeitos. Paramos
de nos esforçar para ser outra pessoa, para atingir uma felicidade
imaginada. Comi diz o sábio tibetano Gendun Rinpoche:

É a nossa busca pela felicidade que nos impede de enxergá-Ia. É


como o fim do arco-íris, que você procura mas nunca encontra, ou
como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Embora a paz e
a felicidade não existam como coisa ou lugar real, elas estão
sempre ao seu alcance e o acompanham a cada instante.
Querendo agarrar o inagarrável, você se exaure em vão. Quando
você se abrir e relaxar esse aperto, vai ver um espaço infinito -
aberto, convidativo e confortável.
Faça uso desse espaço, dessa liberdade e desse bem-estar natural.
Não continue procurando. Não se emaranhe na selva à procura do
grande elefante iluminado, pois ele já está descansando
calmamente na sua casa, na frente da sua lareira.
Robert Fulghum, autor de All I Really Need to Know I Learned in
Kindergarten, conta como terminou seu período de prática num
templo Rinzai em Kyoto, em 1969. Na última entrevista que teve
com o abade, o Mestre Zen Kohara Roshi, este não se limitou a
falar da prática da meditação, mas fez questão de frisar que não há
nada a atingir. Então falou da própria vida, do stress de dirigir um
templo tão grande, da má qualidade dos jovens monges, da
dificuldade de levantar fundos e de "lidar com mulher e filhos, que
não são" - ele sorriu - "tão 'santos' quanto eu". Continuou: "Às vezes
me dá vontade de comprar uma casinha no Havaí e ficar jogando
golfe." Sorriu outra vez.
"Eu já era assim antes de me 'iluminar'. E depois da iluminação
continua igual." Fez uma pausa para que Fulghum digerisse suas
palavras e, depois, disse-lhe para voltar para casa, onde tinha sido
"um homem sedento à procura do que beber, embora estivesse no
meio de uma correnteza, com água até os joelhos."
Sem a compreensão da perfeição comum, a espiritualidade pode
nos pôr em desacordo com a vida. Às vezes, as imagens de
perfeição que nos ensinam são destrutivas para nós. É como o
caçador esquimó que perguntou ao missionário: "Se eu nada
soubesse sobre Deus e o pecado, ainda assim iria para o inferno?"
"Não", disse o padre, "se nada soubesse, não iria." Muito sério, o
esquimó perguntou: "Então, por que me contou?"
Ficamos sempre na mesma, como Edward Espe Brown tentando
fazer biscoitos Pillsbury, tentando "fazer bonito" em vez de valorizar
os próprios biscoitos, em vez de despertar para a própria vida.
Uma seguidora do Budismo Tibetano, praticante há trinta anos,
observa:

"Com tantos anos de prática espiritual, eu ainda não me conhecia


direito. Vivia tentando ficar à altura das expectativas dos outros. O
que eu era estava enterrado, invisível. Minha família era muito
social, valorizava muito as coisas externas. Quando criança, me
ensinaram a me comportar socialmente. Foi assim que cheguei à
vida espiritual, procurando ser alguém especial, acertar. Quando
meus lamas viajavam para o Ocidente, eu assumia o papel de
anfitriã e passei dez anos organizando inúmeros retiros e eventos
beneficentes. Eu convidava todo mundo para ficar na minha casa.
Era divertido e eu vivia ocupada. Mas, embora estivesse em contato
com a riqueza espiritual tibetana, comecei a perceber que estava
vivendo a vida de outra pessoa. E comecei a ficar triste e
desapontada, não com os tibetanos, mas comigo mesma. Embora
sentisse que precisava ajudar, eu me cansei. Então comecei a me
afastar para meditar por períodos cada vez maiores. No começo eu
me sentia culpada, mas adorava a solidão. Descobri que tenho uma
natureza muito mais artística e introvertida do que imaginava.
Então, na volta de uma viagem para a Ásia, senti saudades de uma
vida comum. Comecei a dizer não para tudo. Não dava para
continuar. Mudei para o interior e comecei a viver tranqüilamente,
cuidando dos animais e do jardim, tocando piano. Agora, patrocino
sem alarde dois mosteiros em vez de viver correndo por ai na
tentativa de ser especial.
Cuidar da terra de um jeito bem simples: isso é que é natural em
mim. Eu não sabia quem eu era."

Perfeição comum é ser fiel a si mesmo, às coisas como elas são.


Cuidamos do jardim querendo que os amores-perfeitos sejam mais
altos do que os narcisos ou que as rosas não tenham espinhos?
Visitamos um jardim-de-infância querendo que as crianças se
encaixem num modelo de perfeição ou conseguimos ver que a
variedade faz a beleza dos jardins e dos seres humanos, que a
tarefa espiritual não é criar a perfeição, mas despertar para a
perfeição à nossa volta?
Como disse um lama veterano:

"A perfeição deve estar por aqui. Onde? Será que ela é a próxima
experiência ou a outra? Minha verdadeira prática é a paciência, sem
querer que nada de especial ou incomum aconteça. Quando
percebo que estou lutando e alimentando expectativas, sei que
perdi a grande perfeição.
A maior dificuldade que ainda me resta é entender que não dá para
contar com uma situação perfeita no final. Ela não existe.
Fundamentalmente, tudo é inseguro, instável. Isso não é coisa que
se aprenda rapidamente - temos que nos abandonar a essa
perfeição comum muitas e muitas vezes."

Há humildade nessa perfeição humana comum. Cada um de nós


precisa aceitar seus dons e suas fraquezas. Quem não lutou
alguma vez contra a própria humanidade? Em vez de nos
agarrarmos a uma visão de perfeição sobre-humana e inflada,
aprendemos a dar espaço para a bondade. Há beleza no que é
comum. Convidamos o coração a sentar-se na varanda para sentir
as inevitáveis idas e vindas das emoções e dos acontecimentos, as
lutas e sucessos do mundo.
Um mestre sufi diz o seguinte:

"Minha vida é complicada e ainda sofro muito, mas isso não quer
dizer nada. Isso é efêmero, é apenas uma parte da vida. Sinto
também, profundamente, o sofrimento do mundo. Faço o que
posso. No entanto, é claro que as coisas são como são. Para que
tenham alguma utilidade, minhas ações têm que partir do coração
de paz. Essa é a minha meta: revelar a paz em meio a tudo isso."

ALÉM DO LOUVOR E DA CULPA

Segundo o Tao, quem faz o bem faz também o mal; quem faz o
certo, também faz o errado. Por isso, em vez de julgar, "deixe o
coração cansado descansar". Essa é a liberdade do Tao.

Você quer melhorar o mundo?


Acho que não dá.
Se interferir, vai piorá-Ia.
Se o tratar como um objeto, vai perdê-lo.
A mestra vê as coisas como são,
sem tentar controlá-Ias.
Ela as deixa seguir o próprio curso
e reside no centro do círculo.
(Tradução de Stephen Mitchell)
A mente de perfeição comum sabe que o louvor e a culpa, o
sucesso e o fracasso, o orgulho e o auto-julgamento são
impostores, são opiniões de segunda mão sobre a nossa
experiência. Quando superamos a exaltação e a culpa, o alívio é
muito grande. Na liberdade de coração e ação que se segue, muitas
coisas se tomam possíveis.
Eis um exemplo dessa liberdade. Em algumas partes da Índia, onde
há escassez de médicos, os moradores dos vilarejos costumam
fazer vaquinhas para pagar o estudo de jovens dispostos a cursar
escolas médicas. Depois eles voltam e cuidam da comunidade.
Num pobre vilarejo na montanha, há uma tabuleta na frente do
consultório de um médico: "Doutor V. S. Krishna, não-formado,
Calcutta Medical College." Isso significa que o Doutor Krishna foi
para a escola de medicina de Calcutá mas não concluiu o curso.
Mesmo assim, voltou para casa e abriu um consultório: deixava
claro que não tinha se formado, mas mesmo assim oferecia o
conhecimento que tinha. Seu consultório estava sempre cheio.
Talvez todos nós sejamos como o Doutor Krishna - a vida humana é
feita de muitos sucessos e fracassos. Quem está dominado por
sentimentos de vergonha ou orgulho, limita a extensão do que pode
fazer, do que pode ser.
A maioria dos professores espirituais descobriu que ser
independente do louvor e da culpa é um longo processo. No
começo, são só momentos. Com a prática, aumentamos esse
tempo, ficando horas e dias livres do julgamento dos outros ou de
nosso próprio julgamento. Aprendemos a deixar que os julgamentos
se formem e se dissipem sem nos dominar. Percebemos que a vida
é muito maior e mais surpreendente do que imaginávamos. É um
descanso, é uma liberdade sentir a dança da vida sem
pensamentos críticos sobre ela. É como o homem que recebeu a
seguinte carta de uma loja:

Caro Senhor Jones,

O que os seus vizinhos vão pensar se formos obrigados a mandar


um caminhão para pegar de volta a mobília que o senhor ainda não
acabou de pagar?
A loja recebeu a seguinte resposta:

Caros Senhores,

Discuti o assunto com os meus vizinhos para descobrir o que eles


vão pensar. Todos pensam que seria uma sujeira de um mau
fornecedor e que não gostariam de ser seus clientes.

Respeitosamente,
Senhor Jones

Viver sem louvor nem culpa não significa viver sem cometer erros.
Ao setenta e seis anos, Ruth Denison é uma das mais respeitadas
professoras ocidentais de Meditação do Insight. Recentemente, seu
marido, que durante a vida inteira estudou o dharma, começou a
sofrer do mal de Alzheimer, a ponto de sair vagando pelas ruas sem
saber quem era. Para cuidar dele, Ruth saía todos os dias do centro
de meditação e ia para casa, dirigindo quatro horas na ida e mais
quatro na volta. Mesmo assim, um dia ele deixou o forno aceso e
parte da casa pegou fogo.
Nessa época, ela foi convidada a dar uma palestra num retiro em
Portland, Oregon. Exausta, ela entrou na sala com 150 alunos.
Começou a palestra fazendo-os sentir a respiração e o corpo,
atentos à experiência presente. Falou sobre essa atenção e contou
a história da doença do marido e do incêndio.
Continuou a falar sobre atenção. Então disse: "Eu já falei do meu
marido e do incêndio?" E contou tudo de novo. Falou um pouco
mais sobre atenção e, depois de algum tempo, disse: "Não posso
esquecer de falar do meu marido e do incêndio que tivemos." E
começou a contar a história pela terceira vez. Os alunos
começaram a ficar assustados e preocupados com aquela mulher
que, parecia, estava começando a mostrar ela também sinais do
mal de Alzheimer.
Várias pessoas se levantaram para sair. Mas Ruth as chamou de
volta: "Esperem! Para onde estão indo? Quero que examinem suas
expectativas. O que esperavam quando vieram aqui?" Todos
refletiram em silêncio por alguns momentos. Então ela continuou:
"Hoje vocês estão tendo a oportunidade de observar uma coisa
especial: o colapso de uma velha professora do dharma.
Nem sei o que acabei de dizer." Todos voltaram a seus lugares e
Ruth continuou a ensinar: "Vocês conseguem ficar despertos para o
que está acontecendo? Essa é a prática."
Felizmente, Ruth perdeu a memória só naquela noite, por causa da
exaustão. Depois de um descanso, sua memória e sua energia
voltaram com força total. Mas naquela noite ela demonstrou
verdadeira presença - a capacidade de tolerar qualquer coisa, até
mesmo a própria desorientação, tratando-a com consciência e
compaixão.

TORNAR-SE EXCÊNTRICO

Quando as emoções são livres e o coração se expressa sem


preocupação com a opinião dos outros, essa liberdade se estende a
todos os aspectos do caráter. Se vocês conhecessem Ruth
Denison, talvez a considerassem uma velha excêntrica.
Observando honestamente a comunidade dos professores
espirituais, vemos que eles formam um grupo excêntrico. Alguns
são estranhamente solitários, outros são publicamente
extravagantes. Alguns fazem parte do jet set espiritual, outros são
uns chatos. Alguns são conscienciosos, outros apaixonados. Não
existe um modelo. Excentricidade significa singularidade, a
liberdade de pertencer plenamente a si mesmo. Seja qual for sua
aparência, o excêntrico tem a capacidade corajosa de ser a
corporificarão de si mesmo.
O pintor Georges Braque incitou uma vez as pessoas à sua volta:
"Cabe a nós ser verdadeiros excêntricos, sem titubear." Um mestre
zen vê aí o ponto culminante do treinamento zen, sua fruição: "Ser
fiel a si mesmo e à vida."

Por um lado, nós nos centralizamos no Zen para não nos


perdermos na avidez, no ódio e na ignorância. Trata-se de um
processo purificador: aprendemos a deixar as coisas para lá, até
conseguir abrir mão de tudo. Mas depois temos que voltar e ser
autênticos, absolutamente autênticos em relação à nossa vida.
Ajahn Sumedho, o monge ocidental que fundou meia dúzia de
mosteiros a Tailândia e no Ocidente, lembra de seu primeiro
semestre como abade:
"Eu não sabia direito o que estava fazendo, nem como agir. Então,
tentei ser igual ao meu professor e, como o admirava muito, quis
dirigir o mosteiro do jeito dele. Mas não funcionou: foi um desastre,
porque eu não era ele. E então percebi que as pessoas o
admiravam porque ele era ele mesmo. E descobri que era isso que
eu devia fazer: ser eu mesmo."

Como em geral os professores espirituais são carismáticos e as


tradições interessantes, a espiritualidade envolve muita imitação no
começo. Durante algum tempo, esse é um comportamento natural.
Mas pode se tornar rígido. Quem acha que "espiritual" significa ser
calmo e imperturbável pode imitar essas qualidades com uma
atitude suave. Por outro lado, quando o mestre é licencioso e
beberrão, a comunidade pode ficar cheia de alcoólatras e de
discípulos que também querem ostentar licenciosidade. São formas
diferentes de materialismo espiritual.
Infelizmente, o mundo espiritual pode se tornar tão tacanho quanto
o resto de nossa cultura. Parece que todas as comunidades
religiosas ou espirituais têm um "pensamento de grupo"
inconsciente, um comportamento de grupo. A Irmã Claire, uma
velha freira católica, falou com tristeza de seus primeiros anos no
convento: "Minha vida interior pouco interessava para a Igreja; só a
minha fé e o meu decoro." Um aluno que saiu de uma comunidade
hinduísta, onde todos acreditavam que estavam no "melhor"
caminho, comentou: "Queríamos tanto ser hinduístas que
esquecemos de ser nós mesmos." Como diz e.e. cummings:
"Ser você mesmo num mundo que faz o possível para transformá-lo
em qualquer um significa lutar a mais dura batalha humana e nunca
parar de lutar."
Ter liberdade emocional, física e mental não é imitar, mas também
não é o contrário: expressar em ações todos os medos e
necessidades inconscientes. Como Ram Dass, que se tomou um
connoisseur das próprias neuroses, passamos a nos conhecer, mas
sem indulgência nem autopiedade. Quem tem total consciência dos
próprios sentimentos, mas não sucumbe à sua energia, tem sempre
uma escolha. Seja qual for a situação, é livre para seguir a própria
sabedoria. Quem experimentou a verdadeira liberdade abraça a
riqueza da vida como um todo.
É essa a visão ampla das mais sábias histórias humanas, do
Ramayana a Shakespeare, das játacas à Bíblia. Nessa liberdade há
uma alegria inigualável, Trudy Dixon, que editou Zen Mind,
Beginner's Mind, disse o seguinte sobre a liberdade que seu
professor Suzuki Roshi representava:

As qualidades de sua vida são extraordinárias - alegria de viver,


vigor, honestidade, Simplicidade, humildade, serenidade, alegria,
perspicácia fantástica... mas não é o fato de o mestre ser
extraordinário que deixa os alunos perplexos, intrigados e mais
profundos, mas o fato de ele ser totalmente comum. Sendo ele
mesmo, ele é um espelho para os alunos... Na sua presença vemos
o nosso rosto original, e o que vemos de extraordinário é apenas a
nossa verdadeira natureza.

A FELICIDADE DE EXISTIR

O mais amado poeta zen do Japão, Ryokan, era conhecido pela


sua sabedoria e despretensão. Como São Francisco, ele gostava
das coisas simples, das crianças e da natureza. Em seus poemas,
ele fala de suas lágrimas e de sua solidão nas longas noites de
inverno, de seu coração se alegrando com o florir da primavera, das
perdas e remorsos e da profunda confiança que tinha aprendido.
Suas emoções fluíam livremente, como as estações. Quando as
pessoas lhe faziam perguntas sobre a iluminação, ele lhes oferecia
chá. Quando ia ao vilarejo para esmolar comida e oferecer
ensinamentos, acabava brincando com as crianças. Era feliz porque
estava em paz consigo mesmo.

Por hoje acabei de esmolar: nas encruzilhadas


Caminho ao lado do Santuário Budista
Falando com algumas crianças.
No ano passado, um monge tolo.
Neste ano, nada mudou!
(Tradução de John Stevens)

A sabedoria emocional do coração é simples. Quando aceitamos os


sentimentos humanos, a transformação é notável. A ternura e a
sabedoria surgem espontaneamente. Se antes buscávamos ter
mais força que os outros, agora nossa força é só nossa; se antes
procurávamos nos defender, agora rimos. Dar espaço para a
própria dependência e para as próprias necessidades revela uma
totalidade oculta. Quando nos livramos do medo, a felicidade e o
amor despontam naturalmente, efervescentes como a água da
fonte, espalhando-se pelo nosso ser.
Ajahn jumnien, um de meus professores das selvas da Malásia, traz
esse espírito quando vem ensinar na América. Com um coração
luminoso, cheio de vitalidade e bom humor, ele fala só algumas
palavras em inglês. Quando não tem tradutor, seus ensinamentos
são muito simples, "Vazio, vazio!" diz ele. "Feliz, feliz!" Abre os
braços como se abraçasse o mundo inteiro e diz novamente:
"Vazio, vazio! Feliz, feliz!" Ele sabe que todas as coisas surgem e
desaparecem como sonhos, sabe que elas se modificam e que não
dá para tê-Ias. Aceitando essa verdade, ele vive dignamente e é
feliz.
Um professor espiritual conta a história de uma afro-americana que
participou de seu treinamento de um ano. Essa mulher tinha vivido
uma vida de trauma, pobreza, maus-tratos, morte dos pais, racismo
e doença. Divorciada, criava sozinha os dois filhos. Essas
dificuldades transbordaram de sua alma durante o treinamento. Ela
falou da luta para se educar, da luta em busca de justiça, até que
aos poucos encontrou seu caminho. Os outros participantes
também contaram suas histórias cheias de dificuldades, de mágoas,
de desafios e de lutas que cada qual travava à sua maneira.
Finalmente, no último encontro, a mulher disse: "Depois de passar
por tanta coisa, depois de todos os problemas que tive, vou fazer
uma coisa radical. Vou ser feliz."
Quando compreendemos que a liberdade do coração é possível
para nós também, podemos despertar para a nossa própria
felicidade, onde quer que seja.
14
RESPEITO AO KARMA FAMILIAR

Não há profeta sem honra, exceto em sua pátria e em sua casa.


JESUS, NO EVANGELHO DE MATEUS

Por mais que criem comunas e comunidades, a família vai sempre


voltar.
MARGARET MEAD

Uma coisa é rezar para os doentes e para os pobres, ou fazer


meditações de compaixão e amor-bondade para os seres
sencientes em geral. Outra coisa é trazer essas mesmas práticas
para a própria família e para a comunidade mais próxima.
Até mesmo Buda e Jesus tiveram problemas quando voltaram para
casa. As palavras de Jesus forram desrespeitosamente rejeitadas
pela Sua família. Então, quando Sua mãe e irmãos chegaram à
casa onde pregava,Jesus não os deixou entrar e, apontando para
os discípulos, disse: "Aqui estão a minha mãe e os meus irmãos,
porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus,
esse é o meu irmão, irmã e mãe."
Da mesma forma, quando o Buda voltou para casa depois da
iluminação, foi repreendido pelo pai, que achou que ele tinha se
transformado num pedinte inconveniente. Assim, o pai e a madrasta
exigiram que ele deixasse de ser monge, trocasse de roupa e
voltasse aos deveres de príncipe. O Buda tentou esclarecê-los, mas
eles acharam que seus conhecimentos eram inúteis. Ele precisou
fazer um milagre - flutuar no ar soltando fogo e água - para
convencê-los de que tinha aprendido algo de valor.
Como Jesus, o Mestre Zen Bashô adverte: "Não dá para ensinar a
verdade na sua cidade natal. Lá só o conhecem pelos apelidos de
infância." Mas por isso mesmo é importante voltar para casa. Há
lugar melhor para uma genuína prática do coração, a mandala do
todo, do que a própria família e os próprios vizinhos? São eles o
verdadeiro campo de teste para a nossa prática porque nos
consideram sem ideais espirituais, imagem ou reputação. Minha
filha Caroline costuma chamar-me a atenção quando fico zangado,
aborrecido, quando sou descuidado ou como de qualquer jeito.
"Paaai, você não ensina que o que importa é a atenção?" ou "Paaai,
olha só o que fez. Que belo professor de meditação você é!" Às
vezes, quando estou com algum problema, ela diz: "Pai, acho que é
melhor ir meditar."
Como diz um mestre zen:

"O papel de professor espiritual pode nos prender à tarefa de


assistente iluminado: de tanto levar sabedoria e compaixão aos
outros, perdemos as relações humanas comuns. Em geral,
conhecemos os outros como alunos. Corremos o risco de nos
isolar, de nos transformar em monstros sagrados, sem o contrapeso
das relações humanas mais comuns: amigos, família e
relacionamentos. A família proporciona o melhor contrapeso."

Falando com bom humor do marido, um conhecido professor


hinduísta, disse uma devota: "Depois da última visita à Índia, meu
marido voltou para casa num estado incrível. E ficou iluminado por
seis meses, até ir visitar a mãe." Uma professora de Raja Yoga
costumava ensinar o que tinha aprendido com seu guru: "Você não
é o corpo, você não é a mente." Durante muitos anos, ensinou
essas verdades e escreveu sobre elas. Já com uma certa idade,
estava determinada a não depender de ninguém. Assim, depois de
ter uma série de derrames, reuniu os filhos e disse: "Eu não sou o
corpo." E, com a ajuda deles, tomou uma forte dose de morfina para
acabar com a vida. Dias depois, saiu do coma no hospital e, quando
voltou para casa, sua família estava uma bagunça, o que era
compreensível. Para os filhos, participar da tentativa de suicídio
tinha sido uma dura provação, que acabou trazendo à tona
ressentimentos há muito tempo esquecidos. Fiel ao seu
ensinamento - "Você não é o corpo nem a mente" - ela tinha
deixado a desejar como mãe. Passou seu último ano procurando
melhorar nesse sentido, aprendendo a cuidar da família e deixando
a família cuidar dela.
O sofrimento familiar é comum em nossa cultura, e as comunidades
espirituais costumam atrair pessoas com história familiar sofrida.
Elas vêm em busca de liberação, de cura ou de ajuda para superar
os problemas que carregam. E não são só os alunos. No Ocidente,
muitos lideres espirituais, professores de meditação, monges,
freiras e clérigos carregam profundas mágoas familiares. Talvez
esperassem, no começo, que o desapego e a paz espiritual os
eximissem de enfrentar a dor familiar.
Mas um mestre chinês adverte:

"Não confunda desapego e liberdade com fuga. Deixar a família e


os filhos para renunciar ao mundo é como fugir da própria sombra.
É um falso vazio. Não existe um lugar que seja mais ou menos
vazio do que a sua própria casa. É lá que a iluminação sempre
esteve."

Não podemos fugir da influência da família e das mágoas que ela


provoca. Por outro lado, também não dá para impor nossos ideais
espirituais à família. Uma jovem se envolveu na prática budista e
depois voltou para a casa dos pais. Lutou com o fundamentalismo
cristão de sua família por algum tempo, até que conseguiu separar
as coisas. Numa carta que enviou ao mosteiro, ela dizia: "Meus pais
me odeiam quando sou budista, mas me amam quando sou um
Buda." Essa é a nossa tarefa: despertar o Buda ao enfrentar o
karma familiar.
Quando meu pai foi internado com insuficiência cardíaca, fui ficar
com ele na CTI da Escola de Medicina da Universidade da
Pensilvânia. Como ele era biofísico e tinha dado aulas em escolas
de medicina, conhecia o equipamento que monitorava o coração.
Ele estava com muito medo de morrer, especialmente de morrer
dormindo, sem que as enfermeiras percebessem. Por isso, fazia de
tudo para não dormir. Noite após noite, ele dormia durante alguns
minutos, mas logo acordava sobressaltado e olhava ansiosamente
para o monitor para ver se seu coração ainda estava batendo.
Meu pai era um homem brilhante mas violento, dado a abusos
físicos. Todos o consideravam um homem difícil, um paranóico.
Agora, sem dormir havia dias, ele estava ainda mais fora de
controle. Mas eu tinha conseguido fazer as pazes com ele e o
amava.
Fiquei sentado ao lado dele, conversando. Como ele estava muito
ansioso e desatento, pensei em ensiná-lo a meditar. Para se
acalmar, ele tentou se concentrar na respiração e fazer uma
meditação de amor-bondade tendo os netos como foco. Foi inútil.
Quinze minutos de meditação não resolveriam setenta e cinco anos
de paranóia. Quando lhe perguntei o que achava que acontece
quando morremos, ele respondeu: "Nada." Era um cientista e não
acreditava em nada além do físico: a morte era o fim. Eu disse a ele
que, no mundo inteiro, a maioria acredita na vida depois da morte,
como indicam também os estudos sobre experiências de quase-
morte. Eu lhe falei de minha experiência fora do corpo e de
lembranças de vidas passadas, além de lhe explicar os estágios do
processo de morrer e o que ele possivelmente sentiria. Ele ficou em
dúvida. Eu disse: "Espere e vai ver só. Se for verdade, lembre-se do
que eu disse." Ele riu.
Mais tarde, já depois do horário de visitas, disse a ele que precisava
dormir um pouco. "Não vá!", ele pediu. Fiquei sentado ao lado dele
por mais uma hora: todas as vezes que ele dormia alguns minutos,
acordava sobressaltado. "Não consigo dormir. Por favor, não vá."
Fiquei feliz por fazer o que ele queria. Eu tinha aprendido a ficar
sentado e a meditar. Onze, meia-noite, uma, duas, e eu fiquei com
ele noites a fio. Não havia muito a dizer. Segurei sua mão. Ele
estava assustado e não queria saber de meditação. Nem mesmo
queria falar. Queria que eu ficasse sentado ali, sem medo, sem
rejeitar o seu medo e a sua dor, simplesmente segurando a sua
mão. Ele morreu alguns dias depois. Sou grato por ter tido a
oportunidade de ficar sentado ao lado dele nesse momento
extraordinário.
Isso é provavelmente o melhor que podemos fazer: ajudar quando
possível, assistir um ao outro com bondade, oferecer nossa
presença, mostrar a confiança que temos na vida. Na vida
espiritual, o importante não é saber muito, mas amar muito.
Em geral, quem entra na vida espiritual precisa tratar os problemas
familiares. Foram anos de trabalho consciente que me permitiram
ficar à vontade com meu pai. Enterrei meu sofrimento familiar
quando comecei a prática de meditação monástica, concentrado
que estava em ser tranqüilo, vazio e sábio. Mas lá estava ele,
esperando, influenciando a minha maneira de ser. Assim, quando
voltei para a família e para os relacionamentos íntimos, os conflitos
voltaram. E se eu tivesse permanecido na prática do ascetismo, é
provável que tivessem voltado do mesmo jeito.
Foi difícil aceitar o fato de eu ainda estar em conflito com as
emoções. Precisei da ajuda da meditação e da terapia para chegar
aos níveis mais profundos do medo, da raiva e da aflição. O
terapeuta foi essencial: uma testemunha compassiva que me
ajudou a enfrentar as imagens e os medos que carregava no corpo,
tudo o que eu não tinha conseguido enfrentar sozinho. Percebi que
condicionamentos antigos reforçavam minha estreita noção de eu.
Para lidar com o sofrimento de nosso meio familiar, eu e meus
irmãos tínhamos nos tomado deprimidos, zangados, medrosos,
cínicos, carentes ou cautelosos - cada um à sua maneira. Essas
mágoas profundas ainda existem, mas nós nos abrimos para elas e
começamos a minar o seu poder.
Na mandala da totalidade, as dificuldades, incluindo esses
problemas entre gerações, existem até que a dor do passado seja
transformada. Pouco antes de morrer, o lama Chogyam Trungpa fez
um poema dirigido a seus alunos, falando do valor do que havia
ensinado a eles e advertindo: "Eu vou continuar a assombrá-los."
Os condicionamentos familiares também continuam a nos
assombrar depois de anos de prática espiritual. A dependência, o
medo, a auto censura, a indignidade, a raiva ou a depressão que
trazemos conosco podem fazer parte do legado familiar. Essas
antigas feridas precisam ser curadas, seja num relacionamento
terapêutico, seja através da sabedoria crescente do caminho
espiritual. Precisamos ter liberdade de espírito e entender que nós
não somos a nossa história familiar.
Uma freira católica disse:

"Há muita dor e maus-tratos no passado da minha família. Na minha


vida espiritual, quase todas as grandes mudanças tiveram relação
com a vergonha. Cresci numa família de alcoólatras, pelo menos do
meu avô em diante, e a idéia que fazíamos de nós mesmos era
baseada na vergonha. Quando ela vem com força, não há prática
ou prece que funcione. Eu não me sinto bem com nada. Estou
rezando e ouço uma voz: "Você é uma desgraça em comparação
com o que poderia ser. Você não está usando seus dons. Você
deixa a desejar." Sempre deixo a desejar! Antes isso me deixava
muito mal. Mas, com uma boa terapia e muito trabalho interior,
comecei a entender. Agora sei que tenho ciclos de vergonha que
começam e pronto. Sei o que são. "Ah! É outro ciclo de vergonha!"
Chego a dar risada. Essa descoberta foi mais importante para curar
o meu coração do que os anos de esforço para ser santa."

A TOLERÂNCIA GERA A INTIMIDADE

Os ensinamentos tradicionais se concentram tanto no amor e no


seu espírito transformador que chegam a negligenciar um poder
ainda mais básico e fundamental: o coração tolerante.
Depois do êxtase do despertar espiritual, vem a realização cotidiana
na lavanderia da prática contínua. Qualquer experiência de
despertar que nos sustente nesse período traz consigo o aumento
do espírito de tolerância, da aceitação do que existe. Com
tolerância renovada, podemos encontrar a harmonia do coração. As
diferenças humanas são enormes: o ritmo, as preferências do
corpo, o senso estético, as emoções, os medos, o jeito de falar, de
amar, de descansar. São enormes as diferenças de raça, cultura,
classe e valores. Sem tolerância não há chão para nenhum
relacionamento, não há possibilidade de intimidade. Sem tolerância,
a vida familiar se torna insuportável. São drásticas as diferenças de
temperamento e personalidade. Sem tolerância, teríamos uma
sociedade em conflito perpétuo, um mundo de sectarismo e
tribalismo, de guerra e genocídio.
Não temos que gostar daqueles que toleramos, e muito menos que
amá-los. Na verdade, nem todos os professores espirituais gostam
uns dos outros e nem sempre se dão bem. Muitos mestres zen,
swamis, ajahns, sheikes, lamas e rabinos respeitados têm fortes
desentendimentos. Às vezes, um não gosta dos ensinamentos nem
do estilo do outro. Mas os mais sábios têm uma tolerância genuína,
sabendo que as razões dos outros podem ser invisíveis para nós,
que o jeito dos outros é tão digno de respeito quanto o nosso.
Tolerância não significa aceitar o que é nocivo. Assim como
podemos usar o desapego para esconder sentimentos, podemos
usar a tolerância para não enxergar a verdade ou para não tomar a
atitude necessária. Tolerância não significa fechar os olhos ao
abuso. Às vezes é preciso reagir com muita força para impedir
maiores sofrimentos. Mas, quando a ação vem do coração, até
mesmo essa força é combinada à compaixão e à compreensão.
Foi o que observei na maneira de Ajahn Chah lidar com o abade de
um mosteiro ligado ao nosso, um homem chamado Ajahn Som, que
tinha sido valentão de rua e bandido antes de se ordenar. Mesmo
como abade ele tinha a fama de ser duro e difícil, e os monges que
voltavam de seu templo geralmente se queixavam. Um dia,
perguntei a Ajahn Chah por que deixavam uma pessoa assim ser
abade. Ajahn Chah pensou um momento e disse que, embora fosse
um homem dificil, Ajahn Som tinha construído o mosteiro com as
próprias mãos, trabalhando duro numa floresta remota. Sua
dedicação espiritual estava crescendo aos poucos. Talvez nunca
chegasse a ser um monge de gravura, mas se Ajahn Chah lhe
tirasse o mosteiro, ele provavelmente voltaria às ruas. Era isso o
que eu recomendava? .
Julgamos os outros com muita facilidade. Em geral, quanto mais
perto estamos de uma pessoa, mais forte é nosso espírito crítico e
nossa frustração. É por isso que a família é uma das últimas
fronteiras do desenvolvimento espiritual.
Um antigo swami hindu me contou:

"Depois de anos de yoga na Índia, voltei para ensinar e para me


casar. Tempos depois, eu me tomei responsável por um templo.
Minhas experiências de samadhi me revelaram a bem-aventurança
de todas as coisas. Mas, para dizer a verdade, fui ficando muito
ocupado e perdendo de vista essa descoberta. Procurei meditar
mais para recuperá-Ia. No templo havia conflitos. No meu
casamento, havia brigas terríveis. Às vezes eu me perguntava se
não era um erro praticar naquela vida mundana. Nem mesmo a
meditação estava me ajudando.
Um dia, fui visitar minha família e fiquei cuidando do meu sobrinho
de três anos. Foi um dia duro para o swami e para ele. Bagunçamos
a casa. Ele teve uma crise de mau humor. Finalmente, eu o peguei
no colo e cantei melodias sânscritas. Nesse dia, percebei que é isso
que todo mundo quer: um colo, haja o que houver. A bem-
aventurança e o samadhi voltaram assim que abri meu coração."

É em casa que conquistamos de verdade a tolerância e a aceitação.


Minha mulher e eu temos temperamentos opostos e viemos os dois
de famílias complicadas. Ela é escritora. Muito quieta, tem
necessidade de solidão e de vida interior. Eu, apesar da meditação,
sou mais extrovertido. É enorme minha rede de amigos, colegas e
membros da comunidade dhármica.
Nos nossos primeiros anos juntos, meu sonho era viver no campo,
numa casa grande, com quartos para todos os amigos. Ela sonhava
com uma coisa menor. Um dia, eu reclamei e ela perguntou: "Você
não passou dez anos vivendo no campo, num centro de meditação
que tinha uma biblioteca enorme e uma cozinha ainda maior? Se é
disso que gosta, por que não volta para lá?"
Com muito cuidado e muita terapia, conseguimos superar esse
começo tempestuoso, casamos e tivemos uma bela filha. Mas nem
todas as diferenças desapareceram. Um dia, quando nossa filha era
pequena, passeávamos com ela no jardim de um centro zen. Liana
tinha me dado havia pouco tempo o livro Goddesses in Every
Woman, de Jean Shinoda Bolen, que ela já tinha lido. Sua intenção
era discutir comigo os diferentes aspectos da energia feminina e da
criação de uma filha mulher. Disse a ela que tinha gostado do livro,
especialmente dos capítulos que falavam da força das mulheres
Ártemis e da graça e beleza de Afrodite. Então, contei a ela que não
tinha simpatia especial por Réstia, uma deusa sem templo. É a
deusa do fogão e da casa, sempre presente mas invisível.
Quando eu disse isso, Liana me olhou atordoada, jogou o livro no
chão e começou a chorar. "Mas eu sou assim. Essa deusa descreve
a minha vida! Eu sabia que você nunca me amou de verdade. Eu
sabia!" E ela se virou e foi embora.
Levei alguns momentos para sentir a força de suas palavras, para
me recompor e ir atrás dela. Chocado pela verdade do que ela
havia dito e por uma torrente de descobertas, só consegui dizer:
"Sinto muito dizer que você está certa. Eu a amo, mas sem saber,
esperava que você fosse diferente." Por muito tempo eu tinha
guardado uma esperança secreta, uma idéia de que ela mudaria. E,
é claro, ela percebeu. Mas, diante da necessidade de ver a
realidade dela em vez dos meus desejos, comecei a amá-Ia como
ela é. Juntos, criamos um lar para Réstia. Agora eu saio para
trabalhar com grupos enormes e volto para casa, para uma vida em
família tranqüila e simples. Sou alimentado e protegido por minha
família e a amo como ela é, agradecendo todos os dias pela
sabedoria de minha mulher.
A família é um espelho. Na nossa companheira, nos nossos pais e
filhos, vemos nossos medos, necessidades e esperanças em escala
maior. Os relacionamentos íntimos tocam a nossa história sem
anestesia. A necessidade de carinho e as mágoas que trazemos
ficam expostas e precisam ser respeitadas.
Por isso, dizer que no fundo amamos uns aos outros não é o
suficiente. Temos de ser tolerantes e respeitosos uns com os
outros. Temos de estender à família a mesma grandeza de coração
que praticamos na prece e na consciência não-sentenciosa de
nossos estados interiores.
Uma irmã católica conta o resultado de anos de oração:

"Resultou numa coisa: na vontade de me relacionar continuamente


com o bem e com o mal, de consentir em sofrer conscientemente,
de ser o chão tolerante que recebe as lágrimas do mundo, dos que
estão distantes e dos que estão perto de mim. Minha espiritualidade
não se protege mais da raiva, da paixão ou do conflito. Isso é lixo.
Esses ensinamentos fizeram mais mal do que bem. No fim,
descobri que não existe culpa. Aplico a tudo a não-violência. Não
atormentar, não incrementar a dor em mim mesma nem fora de mim
- essa é a minha principal oração."

A tolerância cresce e a ausência de culpa diminui quando vemos as


notáveis qualidades de cada vida que tocamos. Única e singular,
cada pessoa expressa a própria natureza - mesmo as pessoas mais
difíceis vivem do melhor jeito possível.

PAIS RESPEITOSOS
Essa consideração, louvável entre adultos, é também a base para a
educação dos filhos. Outra palavra para essa tolerância é
"respeito". É o caso da história de um menino de sete anos que foi
jantar fora com os pais e um casal de amigos. A garçonete anotou
seu pedido por último: "O que você vai querer?" Ele não teve
dúvidas: "Quero um hot dog com batatas fritas." A mãe logo se
interpôs. "Ele vai querer carne assada, purê de batatas e cenoura.
E leite." Antes de ir embora, a garçonete perguntou: "Você quer
ketchup e mostarda no hot dog?" O menino olhou para os outros
sorrindo e disse: "Vocês viram? Ela sabe que eu sou de verdade."
Nossos filhos adoram respeito. Até os pequenos querem que suas
necessidades e seus medos sejam respeitados. Com respeito,
namorados, pais, colegas de trabalho, animais e árvores florescem.
O respeito é a base da criação dos filhos e da prática espiritual.
Sem consciência e sem respeito nós nos limitamos a repetir o que
nos fizeram, a agir de maneira condicionada pela criação que
tivemos. Sem respeito damos continuidade aos ciclos de mágoa,
vergonha, indignidade e abandono que possam ter existido no
nosso passado.
Sem visão espiritual, o cuidado que é natural na criação dos filhos
pode ser sobrepujado pela pressa e pelo materialismo da vida
moderna, pelos valores da mídia, pelas normas aceitas de stress e
violência. Sem atenção respeitosa, permitimos que a mídia e as
pressões modernas acelerem o crescimento de nossos filhos,
esquecendo de proteger sua dependência e vulnerabilidade. Nós
nos esquecemos de que as crianças vão ficando independentes no
próprio ritmo, quando chega a hora. Sem dar atenção ao coração,
ficamos como a geração de pais que, confiando em especialistas
leigos, se recusavam a alimentar e a pegar no colo o bebê que
chorava, embora seu instinto e o impulso do seu corpo lhes
dissesse o contrário. Com respeito, é possível oferecer aos filhos
proteção e cuidado e ao mesmo tempo estabelecer limites corretos
de comportamento. É possível transmitir o ensinamento espiritual
não apenas através de palavras, mas através da integridade da vida
diária, que revela os mais profundos valores do coração.
Nunca é tarde demais para oferecer esse respeito. Quando ficamos
adultos, devolvemos esse respeito à família. Uma mulher que vivia
como monja budista em mosteiros da Tailândia e Burma falou das
dificuldades que tinha quando visitava a família, que vivia num
bairro operário de Detroit. No geral, ela tinha se livrado das antigas
mágoas, mas sua família não compreendia nem aceitava aquela
freira de cabeça raspada. E quanto mais ela tentava falar do
dharma, mais cresciam os conflitos e as frustrações. À noite, a
família bebia cerveja e via televisão. Sempre que ela passava uma
semana desagradável com a família, acabava fugindo. Eu lhe fiz
algumas sugestões: "Por que não vai visitar seus pais sem o manto
e sem os ensinamentos? Vá como um simples membro da família e
ame-os como eles são. Pode até tomar uns golinhos de cerveja e
ver um jogo na televisão. E não fique muito tempo: no máximo três
dias." Ela seguiu as minhas sugestões. Quando a encontrei de
novo, ela sorriu: tinha funcionado.
Um mestre sufi diz:

"Para mim, o relacionamento com a família e com os amigos mais


próximos é diferente de todos os outros. Certamente é muito
diferente do papel de professor. Com minha família, tenho que
deixar que o amor e a sinceridade sigam o seu curso. Não estou à
frente nem sou o responsável. Procuro ser quem sou e ser tolerante
com a natureza deles. Há nisso uma inegável paixão, uma carga
inerente entre filhos, pais e irmãos, seja ela positiva ou negativa. Os
conflitos são maiores porque nos tocamos profundamente. Procuro
chegar ao nível do coração, à essência por trás da história."

Para Thomas Merton, tolerância é aprender a ver "a beleza secreta


do coração dos outros" sob todas as expectativas que temos em
relação a eles. Quando vemos a beleza secreta do coração dos
outros, permitimos que nossa verdadeira natureza conduza a
relação e conseguimos enxergar a centelha sagrada que ilumina a
nossa vida.

VOCÊ SERÁ TESTADO


Os mandamentos das grandes religiões do Oriente Médio - judaica,
cristã e islâmica - ensinam que "devemos honrar pai e mãe". Na
tradição chinesa e na tradição indiana, esses ensinamentos são
ainda mais enérgicos: "Nem mesmo se carregasse seus pais nas
costas daria para você retribuir pela vida que eles lhe deram." Essa
obrigação existe em todas as tradições e seu cumprimento não é
necessariamente simples.
Pais idosos, adolescentes infelizes, conflitos entre
irmãos,problemas de dinheiro, doenças na família, vícios - tudo faz
parte da vida familiar como prática contínua. Essas dificuldades são
ainda mais opressivas numa sociedade como a nossa, sem vida
comunitária, onde os idosos são fechados em asilos e onde os
adolescentes, isolados dos mais velhos, buscam a iniciação de
maneira destrutiva. Sob todos esses problemas está uma
necessidade humana essencial: o contato. Alguém disse uma vez:
"É melhor ser procurado pela polícia do que não ser procurado por
ninguém." Bem ou mal, a família é a fonte original desse contato,
oferecendo amor e responsabilidade.
As responsabilidades familiares nunca terminam. Muitos cuidam
dos pais ao longo do longo declínio provocado pelo mal de
Alzheimer, pelo câncer ou por um derrame. Outros convivem com
adolescentes difíceis ou com casos de depressão na família, ou são
obrigados a resolver conflitos conjugais e problemas de divórcio dos
irmãos ou dos filhos. Os sacrifícios impostos pela família são como
os de um mosteiro exigente, urna prática equivalente de renúncia,
paciência, constância e generosidade.
Por isso, ri quando um monge de meia-idade disse que a vida dos
monges é cheia de autodisciplina e sacrifício, enquanto a vida de
um leigo é por natureza uma vida de indulgência. Disse ele: "Não
podemos comer quando queremos, nem vestir o que queremos,
nem ir a festas, nem ter uma sucessão de amantes, nem viver uma
vida descuidada." Eu me perguntei a que vida ele se referia.
Continuando a conversa, descobri que ele tinha se ordenado com
vinte e um anos, guardando da vida dos leigos a visão de seus anos
de adolescente. Ele não compreendia que o trabalho, o casamento,
a criação dos filhos e a cidadania são formas de disciplina.
Gary Snider, professor zen, poeta e pai, escreve:
Todos nós aprendemos com o mesmo professor - a realidade... pôr
as crianças na perua escolar todas as manhãs é tão difícil quanto
cantar os sutras no salão do Buda nas manhãs frias. Uma coisa não
é melhor do que a outra, as duas podem ser muito aborrecidas e
ambas têm a virtuosa qualidade da repetição. A repetição e seus
bons resultados transformam as atividades da vida no caminho.

A vida familiar exige muito do coração e testa a nossa força mais do


que qualquer outra coisa. Uma professora me disse:

"Quando jovem, minha inspiração eram os santos. Eu queria


trabalhar com Madre Teresa na Índia, mas minha vida acabou não
sendo tão glamorosa. Depois da faculdade, fui lecionar numa escola
primária. Mas minha mãe teve um derrame e eu parei de trabalhar
para cuidar dela: durante dois anos eu lhe dei banho, cuidei das
escaras, cozinhei, paguei as contas, dirigi a casa. Às vezes eu tinha
vontade de abandonar aquelas responsabilidades e voltar à vida
espiritual. Então, numa manhã descobri que estava fazendo o
trabalho de madre Teresa, e na minha própria casa."

Em casa ou no templo, é a mesma coisa. Segundo um relato antigo,


um dia o Buda encontrou um de seus monges doente e sozinho,
enquanto os outros meditavam. O próprio Buda cuidou do monge e
depois chamou os outros para castigá-los e instruí-los. "Se vocês
não cuidam uns dos outros como uma família, quem vai fazer isso?
Monges, aqueles que estão a serviço do Buda, que estejam a
serviço dos doentes." Quinhentos anos depois, Jesus disse a seus
discípulos: "Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um
desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes." Esse
amor sabe que somos uma família e é dele que vêm todos os
outros amores da nossa vida.
Robert Johnson, analista junguiano e escritor, fala de sua primeira
viagem à Índia, há alguns anos. Tinham lhe avisado que encontraria
caos, sujeira e pobreza, mas teve uma surpresa: "Ninguém me
preparou para a imensa felicidade de quase todos os indianos." Ele
disse que na Índia o senso de realidade se amplia para abraçar
outros aspectos da vida: o sofrimento e a magnífica convivência.
Apesar das imensas dificuldades, ele se sentiu envolvido pela
amizade imediata da comunidade indiana. Seus amigos lhe
mostraram um novo sentido do amor familiar.

Se quiser ficar amigo de um indiano, pare ao lado dele - de alguém


do mesmo sexo, não se faz isso com o sexo oposto - e espere. Se
ele consentir, não sairá dali. Vai ficar parado ali e, depois de um
tempo que parece terrivelmente longo, um dos dois vai dizer ou
fazer alguma coisa, e então serão amigos pelo tempo que
quiserem, provavelmente pela vida inteira.
Assim, na Índia fiz amigos com assombrosa rapidez. Um dia fiquei
doente. Fui para um hospital indiano - um pesadelo. Eles me
disseram que era um hospital moderno, ocidentalizado. Tinham um
termômetro, que todos os pacientes usavam, um por vez. Eu objetei
e eles disseram: "Pode usar, foi lavado na torneira." Mas eu
sobrevivi.
Estou contando essa história para falar de um amigo indiano que
me considerava seu irmão de sangue - ignoro a razão, é inútil
perguntar. Uma noite, ele foi ao hospital e me disse: "Não vou
deixá-lo sozinho." E dormiu embaixo da minha cama. E noite após
noite, ou ele ou alguém que ele mandava dormia embaixo da minha
cama de hospital. Se eu estivesse num hospital da América,
ninguém poderia dormir embaixo da minha cama: seria impossível.
Um dia, eu estava com febre muito alta e meio fora de mim. Então,
Amba Shankar - era esse o nome dele - ficou de pé ao meu lado e
me contou a história de Baba.
Baba tinha um amigo. Uma vez, o amigo ficou doente e parecia que
ia morrer. Então Baba lhe disse: "Quero morrer por você: é só me
pedir que eu morro para que você possa viver. Esse é o meu
desejo, essa é a minha amizade, é assim que ela é." O amigo
concordou, Baba foi embora e morreu e o amigo continuou a viver.
Ao ouvir essa história, que parecia saída das Mil e Uma Noites, eu
voltei a mim. E ouvi Amba Shankar dizendo: "É só pedir que eu
morro e você fica bom." Fiquei sem fala. Eu não entendo coisas
assim. Mas consegui dizer: "Amba, acho que não estou tão doente
assim. Não faça nada drástico, por favor. Acho que nós dois vamos
sobreviver." E de fato sobrevivemos. Mas aquele homem tinha me
oferecido um presente sem preço - a vida dele.

Quando ouvi a história de Robert Johnson, tive saudades dessa


união, de viver sob a guarda da comunidade e das amizades do
coração. Como vivi nas antigas culturas da Índia e da Ásia, conheci
essa realidade, que se perdeu nos tempos modernos.
Mas a essência da união familiar não pode se perder. Não duvide
de seu poder. Esse amor de pais e filhos, irmãos e irmãs gera as
histórias mais incríveis: a mãe que levanta com as mãos o carro
que acabou de atropelar seu filho; o pai paraplégico que, de cadeira
de rodas, se atira na piscina e salva o filho de dois anos.
Na Argentina, a terrível ditadura militar nos anos setenta torturou,
matou e fez com que "desaparecessem" milhares de oponentes.
Sebastian Rotella fala sobre o movimento das mães, que
começaram a protestar a despeito de todos os perigos, ficando
conhecidas como as Mães da Praça de Maio.

Há vinte anos, as mães foram para a praça na frente do palácio


presidencial e enfrentaram a burocracia do horror.
As mães estavam cansadas das visitas inúteis aos capelães
militares, que usavam botas de exército sob as sotainas, e ao
"departamento de queixas", onde a ditadura proibia qualquer
pergunta sobre as pessoas que sistematicamente prendia, torturava
e matava.
Quando as mulheres se juntaram na praça, a polícia mandou que
"circulassem". Assim, as quatorze mães começaram a andar em
círculos pela praça. Continuaram a se reunir para protestar,
enfrentando cassetetes, cães policiais e os espiões, que se
infiltraram no grupo e mataram três líderes.
"Dizem que as Mães da Praça de Maio eram corajosas", disse
Maria Adela Antokolez, agora com oitenta e cinco anos, andando
com passos incertos e enorme dignidade, "mas morríamos de
medo. Aprendemos a andar com medo, a viver com medo.
Tínhamos a obrigação de encontrar nossos filhos."
As mães ainda marcham todas as quintas-feiras à tarde, pedindo
justiça. O ritual leva os transeuntes às lágrimas e aos aplausos.
Hoje, essas mulheres são idosas e frágeis. Andam de braços
dados, curvadas sob a brancura dos lenços de cabeça, um símbolo
da luta internacional pelos direitos humanos.
"Nunca encontramos nossos filhos", disse Maria Adela. "Mas na
praça fomos à escola. Contamos nossa história cinqüenta vezes.
Choramos juntas. Foi a nossa faculdade. A praça nos salvou do
hospício." Às 3h25 a praça estava deserta. E cinco minutos depois
as mães apareciam, saindo das estações do metrô, das ruas
transversais. As pessoas se aproximavam perguntando: "Quem são
vocês? Professoras, pensionistas? Por que estão protestando?" E a
notícia foi se espalhando. Cortázar estava em Paris quando ficou
sabendo do protesto das mães. E disse: "As mães estão nas ruas,
os militares já perderam."

MAIS MISERICÓRDIA NO CORAÇÃO

Enfrentar o sofrimento na família e na comunidade nos traz uma


grande tarefa: ser fiel aos nossos valores mais profundos e ainda
assim continuar abertos e vulneráveis. Tudo o que endurece e
fecha o coração nos deixa rígidos, assustados, insensíveis. Os
rancores e os medos nos tomam cada vez mais defensivos. Corno
manter o coração aberto sem perder a força e o senso de justiça?
Para isso, ternos que deixar que o coração fique forte de outra
maneira: enfrentando de boa vontade o sofrimento do mundo,
deixamos que ele aumente a nossa compaixão. Nos inevitáveis
conflitos, dores e traições, descobrimos que é possível abraçar o
poder do amor. Em meio à dificuldade, podemos parar quantas
vezes for preciso e retomar ao coração, recuperar o contato com a
força da compaixão e com a nossa vulnerabilidade.
Falando de prática da prece e da meditação, um professor sufi diz:

"Minha prática mais importante é parar e ouvir o coração. É corno


um momento de silêncio quaker. Mesmo que não consiga ficar
quieto, eu paro por dentro, saio do drama, reconheço a dor, a
agitação, a desorientação. Respiro e volto. Com minha família ou
com meus alunos, procuro voltar ao coração antes de falar, procuro
perceber o que está precisando de atenção dentro de mim. Então
eu os incluo nesse espaço do coração. Isso cria uma presença
forte, uma conexão."

Quando o momento é difícil e não conseguimos fazer isso sozinhos,


precisamos que outra pessoa nos ajude a voltar para essa verdade.
É essa a base da verdadeira amizade espiritual e da boa terapia.
Um mestre zen conta que precisou dessa ajuda quando começou a
ensinar. Ele já praticava havia trinta anos quando se tomou
formalmente um roshi. Meses depois, começou a ficar perdido e
inseguro, o que já tinha lhe acontecido uma vez.

"Desesperado, procurei um mestre zen da minha linhagem. Estava


com medo que ele condenasse a minha insegurança. Mas ele me
aceitou e me amou e expressou total confiança em mim. Ele me
ajudou a tratar o meu sofrimento e a minha confusão com firmeza e
fé. Minha mente relaxou e meu ensinamento se transformou."

Quando estamos confusos ou sofrendo, podemos achar que "não


somos espirituais". Mas o coração desperto não julga - não julga a
família, o amor, a dor, a confusão, a paixão e nem a raiva. "Muito
mal se fez por causa desse equivoco", disse um monge católico.

"Na espiritualidade desenvolvida, estamos dispostos a ter um


diálogo com a dor, com o mal e a contemplá-los nas orações. Em
situações de grande dor, é preciso sofrer conscientemente o
impacto, é preciso se tomar o chão onde as mágoas são
retrabalhadas. Isso pode ser feito com graça. Mas não pode ser
fingido. Alguém que tenha 99 por cento de boa vontade, mas ainda
está preso a 1 por cento de raiva, vai sentir apenas a raiva, que
impede a reconciliação. O coração tem que abraçar de boa vontade
a totalidade do sofrimento, para que este se transforme."

No Zen, há textos que falam de "comer a culpa", uma forma de


abraçar o sofrimento. É o que ilustra a história do cozinheiro que fez
para os monges uma sopa de tartaruga, com uma tartaruga fresca,
trazida por pescadores. Quando a sopa foi servida nas tigelas, o
roshi gritou chamando o cozinheiro. A cabeça da tartaruga, que
deveria ter sido removida, boiava na tigela do mestre. O cozinheiro
fez uma reverência para o mestre, olhou dentro da tigela, viu o
problema e, movendo os hashi com habilidade, pegou a cabeça da
tartaruga e a engoliu. Fez outra reverência para o mestre, o mestre
fez uma reverência para ele, e o cozinheiro voltou para a cozinha.
Comer a culpa exige força e compaixão. É o caso do pai que está
se divorciando e, em meio ao litígio, concede mais do que é
legalmente necessário só para poupar ao filho o sofrimento que
uma batalha legal traria. "Mesmo que seja injusto, eu quero que
esse sofrimento pare", disse um pai. "Prefiro me sacrificar agora do
que deixar que meus filhos sejam sacrificados."
A verdade é que, na vida espiritual, a consciência do sofrimento
aumenta com os anos. Vendo e conhecendo com mais clareza as
dores do mundo, não conseguimos mais ignorá-Ias. Com esse
conhecimento, vem uma compaixão cada vez mais profunda.
Por mais extremas que sejam as circunstâncias, a compaixão
sempre é possível. Uma vez, no trem de Washington para a
Filadélfia, eu me sentei ao lado de um afro-americano que havia
deixado o emprego que tinha na Índia, no Departamento de Estado,
para dirigir um centro de reabilitação para infratores juvenis no
Distrito de Colúmbia. Quase todos os jovens com quem ele
trabalhava pertenciam a gangues e tinham cometido homicídio.
Um deles, um menino de quatorze anos, matara um garoto inocente
só para fazer bonito entre os membros da gangue. No julgamento, a
mãe da vítima ficou em silêncio até o fim, quando o jovem foi
condenado pelo assassinato. Depois do veredicto, ela levantou,
olhou diretamente para ele e disse: "Vou matá-lo." Então, o jovem
foi levado para cumprir a pena de três anos numa prisão juvenil.
Depois de seis meses, a mãe do garoto assassinado foi visitar o
assassino. Como antes ele vivia nas ruas, ela foi a única visita que
ele teve. Conversaram um pouco e, antes de ir embora, ela lhe deu
dinheiro para comprar cigarros. Depois disso, ela começou a visitá-
lo cada vez com mais regularidade, levando-lhe comida e alguns
presentes. Quando a pena estava chegando ao fim, ela lhe
perguntou o que ele pretendia fazer quando saísse. Ele não tinha
idéia e ela se ofereceu para lhe arrumar um emprego na empresa
de um amigo. Então perguntou onde ele pretendia morar e, como
ele não tivesse família, ela lhe ofereceu um quarto em sua casa.
Ele morou nesse quarto durante oito meses, comeu a comida que
ela fazia e trabalhou no emprego. Então, numa noite, ela o chamou
à sala para conversar. Ele se sentou à sua frente e, depois de
alguns momentos, ela começou a falar. "Lembra-se de que no
tribunal eu disse que ia matá-lo?" "É claro que lembro", ele
respondeu. "Nunca vou me esquecer daquele momento."
"E foi o que fiz", continuou ela. "Eu não queria que o garoto que
matou meu filho continuasse vivo nesta terra. Queria que ele
morresse. Foi por isso que comecei a visitá-lo e a lhe levar coisas.
Foi por isso que eu lhe consegui o emprego e o trouxe para morar
aqui em casa. Foi assim que comecei a modificá-lo. E aquele outro
menino se foi. Então, agora que meu filho se foi e aquele assassino
se foi, quero lhe perguntar se você quer ficar aqui. Tenho espaço e
gostaria de adotá-lo, se você quiser." E assim ela se tomou a mãe
do assassino do filho, a mãe que ele nunca tinha tido.

PERDÃO E BOA INTENÇÃO

Essa história nos remete à jornada de Nachiketa e ao perdão, seu


primeiro pedido ao Senhor da Morte. Na mandala da totalidade,
somos chamados à pratica do perdão. Temos que encontrar perdão
no coração, especialmente para a família e para as pessoas mais
próximas. Só então é possível trazê-lo ao mundo. Podemos praticar
através da meditação budista ou, como Jesus nos ensinou,
"oferecendo a outra face", ou buscando a "misericórdia de Alá", mas
o importante é aprender a perdoar a nós mesmos e aos outros.
Booker T. Washington enunciou essa idéia com simplicidade: "Não
deixe que eles o humilhem a ponto de odiá-los." Perdão é a
capacidade que o coração tem de se livrar das dores do passado
para seguir em frente.
Há muito a aprender sobre desapego e amor. A família pode ser o
solo onde floresce essa sabedoria. Já ouvi muita gente dizer: "Eu
tinha medo que minha mãe morresse antes que eu conseguisse lhe
dizer o quanto a amo. Finalmente consegui." Ou: "Foram anos de
sofrimento, mas finalmente eu me reconciliei com o meu irmão." O
perdão oferece a misericórdia do coração, que a mágoa e o medo
negaram por tanto tempo.
É na ternura e na tolerância que o nosso caminho fica completo. É
na reconciliação e no amor das pessoas próximas que o espírito da
família humana cresce até abraçar nossa verdadeira família: tudo o
que vive. Despertamos como parte de uma outra família.
Ishi in Two Worlds é o notável relato de um dos últimos índios Yana,
da Califórnia, que teve a ajuda dos antropólogos Theodora e Alfred
Kroeber. Ishi conta histórias da vida do seu povo, que desapareceu
desta terra. Mas uma das histórias mais comoventes não faz parte
do livro. Ishi revelou aos Kroeber inúmeros ensinamentos e canções
a respeito da natureza, mas havia uma canção sagrada que ele
tinha jurado nunca ensinar para ninguém de fora da tribo. Era a
canção cantada para os moribundos, que lhes permitia voltar para a
família, encontrar o caminho para a terra dos ancestrais. Ninguém
de fora podia aprender esse caminho. Mas Ishi estava sozinho no
final da vida; era o último membro da tribo. Precisou, então, ensinar
seu último segredo aos Kroeber, para que eles cantassem e ele
encontrasse o caminho de volta para o seu povo.
No fim, por mais solitária e resguardada que tenha sido a nossa
vida, precisamos uns dos outros como membros de uma família.
Para encontrar o caminho, precisamos do coração e das canções
uns dos outros.
15
MUITOS IRMÃOS E IRMÃS:
AS DÁDIVAS DA COMUNIDADE

A jóia da comunidade, Sangha, deve ser igualada ao Buda e ao


Dharma...
Na verdade, a plenitude da vida sagrada é realizada através da
amizade espiritual.
BUDA

Os santos são o que são, não por causa de sua santidade, mas
porque o dom da santidade permite que admirem todo mundo.
THOMAS MERTON

Você acha que não consegue criar nada de original? Não se


preocupe. Faça uma xícara de barro para que seu irmão possa
beber.
RUMI

Histórias como a de Jesus e do Buda, dos xamãs e dos sábios,


começam em geral com uma busca solitária: sozinhos no deserto
ou na floresta, buscam a compreensão sagrada do dilema humano.
Mas as histórias continuam. Quem supera o eu individual e entra
em contato com a eternidade, volta naturalmente para a
comunidade. É perto dos outros que a realização do coração se
expressa e atinge a maturidade.
No Budismo, o praticante tem o amparo do Tesouro Triplo: Buda,
Dharma e Sangha. O Buda é uma fonte de sustento porque seu
despertar representa o potencial de todos os seres para o
despertar. A segunda fonte é o Dharma, que representa os
ensinamentos e a verdade eterna que trazem a liberação. O terceiro
tesouro, Sangha, é a comunidade de seres despertos e de todos os
que praticam o dharma.
"Sangha" significa comunidade espiritual. É um dos tesouros,
porque sem ele o despertar não se sustenta. Sangha traz os
ensinamentos e reconhece que não podemos despertar sozinhos. O
mundo da prece e da prática espiritual se sustenta através de
professores, de amigos espirituais e da comunidade. Praticando,
participamos do processo que alimenta o despertar dos outros. Os
momentos de compaixão ou compreensão que despertamos
transbordam para nossa família, para nossa comunidade, para
nosso mundo.
No Judaísmo, a comunidade do sagrado é reverenciada no minian,
o número mínimo de judeus necessário para oficiar uma cerimônia.
Ela é a sagrada comunhão dos sufis, o satsang do Hinduísmo, o
amor sagrado dos cristãos:
"Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome... " Tenha a
forma que tiver, a verdadeira comunidade é essencial na vida
espiritual.

DO ISOLAMENTO À COMUNIDADE

Um velho rabino hassidim perguntou a seus pupilos como saber


quando a noite termina e o dia começa, pois essa é a hora de
algumas preces sagradas. Disse um aluno: "É quando dá para
enxergar um animal a distância e saber se é um carneiro ou um
cachorro?" "Não", respondeu o rabino. "É quando dá para enxergar
as linhas da palma da mão?" "É quando dá para saber se uma
árvore distante é uma figueira ou uma pereira?" "Não", respondeu o
rabino. "Então quando é?" perguntaram os pupilos. "É quando
olhamos para o rosto de qualquer homem ou de qualquer mulher e
conseguimos ver que é nosso irmão ou nossa irmã. Até esse
momento ainda é noite."
À medida que a vida espiritual vai amadurecendo, passamos da
sabedoria da transcendência - a iluminação espiritual além do
mundo - para a sabedoria da imanência. Descobrimos que o
sagrado está sempre aqui. Os ciclos naturais da vida espiritual que
nos conduzem à solidão mística acabam nos trazendo de volta para
algum tipo de comunidade. Nos relatos zen, aquele que conseguiu
domar o boi sagrado tem que voltar ao mundo com suas dádivas.
Nem sempre é fácil voltar, principalmente porque nos tempos
atuais, e em nós mesmos, o espírito de verdadeira comunidade se
perdeu. A vida contemporânea é marcada pela atomização: cada
um corre numa direção. Na sociedade moderna, as forças
individualistas são visíveis: uma pessoa em cada carro, casas com
um quarto para cada pessoa, escritórios onde cada um trabalha
num terminal de computador, crianças criadas na frente da
televisão. O moderno individualismo norte-americano acarreta o que
Marian Wright Edelman chama de "sacrifício da comunidade e de
nossas crianças". Como voltar para o mercado com "as mãos
cheias de dádivas", como sugere a história do boi? Não é fácil.
Em geral, ocidentais que passam longos períodos em retiros
budistas ou hindus costumam ficar confusos e isolados. É comum
que participantes de retiros e yogues falem das dificuldades e
conflitos que encontram quando voltam para a complexidade e para
as aflições da vida moderna. A chave para unir esses mundos é a
amizade espiritual. A amizade compassiva é uma das dádivas mais
importantes que podemos oferecer a alguém.
Como diz um professor de meditação:

"Depois de cinco anos de retiro e de incríveis experiências de


meditação, voltei para Seattle. Minha perspectiva tinha mudado,
tornando-se muito diferente da perspectiva das pessoas à minha
volta. No começo, eu achava a cidade divertida mas frenética. Não
sabia como juntar o mundo interior e o exterior. Então, fui ficando
cada vez mais oprimido e sozinho, sentindo-me perdido e um pouco
maluco. Precisava muito de amigos espirituais. Quando os
encontrei, eles me ajudaram a atravessar aquele ano difícil.
Lembre-se disso quando os tempos estiverem difíceis. Não se
esqueça da amizade espiritual - é isso que eu tenho a dizer de mais
importante."

Para sustentar a vida espiritual precisamos dos olhos e do coração


uns dos outros, assim como precisamos de ajuda para produzir
alimento e abrigo. Essa
reflexão não é sem importância. Como diz Adrienne Rich:
"Autenticidade e respeito não são coisas que surgem por si
mesmas: têm que ser criadas entre as pessoas."
Sangha e a amizade espiritual assumem formas surpreendentes.
Ao longo dos anos, participei de uma série de retiros para jovens de
bairros pobres. Em geral, esses jovens são membros de gangues
que estão descobrindo um caminho para voltar desse ambiente de
desespero, racismo, pobreza e violência. É sempre um amigo, um
mentor, um benfeitor que dá início a essa volta. É alguém que, por
um momento que seja, enxerga as possibilidades do jovem: uma
avó, um funcionário da escola, um professor, um tio, um vizinho.
Quando alguém nos enxerga de verdade e nos respeita,
recordamo-nos de quem somos. Não é bom subestimar a
importância do despertar que trazemos uns aos outros.
Não são só os jovens de rua que precisam de companhia no
caminho. Encarregados de centros de retiro dizem que os
participantes em geral são famintos de amizade espiritual, o que faz
que os monges e as freiras se sintam ainda mais gratos pelas suas
comunidades. A comunidade é uma bênção.
Um lama ocidental descreve esse aspecto da prática:

"No retiro de três anos, fomos deixados juntos no centro, os quinze


participantes, como recém-casados abandonados numa região em
guerra. A intensidade foi a mesma. Viver tão perto dos outros
suaviza nossas arestas: não dá para nos enganarmos porque os
outros nos vêem com mais clareza do que nós mesmos. Esse foi
um período que trouxe muita união. De certa forma, a vida coletiva
teve tanto valor quanto as outras meditações. Um momento depois
do outro, ela deu vida aos ensinamentos de compaixão.
Agora, minha prática principal é comungar, reconhecer o espírito
vivo em todos, em tudo, e não apenas nas pessoas de paz. Vemos
a luz brilhando nos olhos de cada pessoa, em cada animal, em
cada folha, em cada flor, em cada gota de orvalho, em cada torrão
de terra. Nos mosteiros, as pessoas não são mais iluminadas do
que no resto do mundo. É igual em toda parte. A espiritualidade não
se limita ao topo das montanhas. Espiritualidade é ver o sagrado
bem aqui, celebrar e afirmar a perfeição bem agora. Quando
reconhecemos a verdade, até mesmo os inimigos nos mostram
como despertar."
A COMUNIDADE TAMBÉM É DIFÍCIL

A comunidade, por mais importante que seja para a plenitude da


vida humana, não é fácil. Viver com outras pessoas traz
dificuldades de todos os tipos. Quando nos aproximamos o
suficiente para oferecer amor e amparo, os condicionamentos
familiares, os medos, as necessidades e as limitações também se
manifestam. Ficam bem ali, diante do nosso nariz. É possível evitar
o conflito nas preces e meditações, mas na comunidade é melhor
nem tentar: o conflito é inevitável.
Ao descrever comunidades espirituais, alguns textos antigos falam
de harmonia, de "viver juntos como leite e água, olhando-se com
olhos bondosos".
Mas os relatos de problemas são mais freqüentes nesses textos
antigos. Contos hassídicos falam de conflitos entre os membros da
comunidade, entre professores e alunos. As antigas histórias cristãs
falam de conflitos e lutas na comunidade e as epístolas de São
Paulo estão cheias de conselhos para resolver esses problemas.
Os primeiros sete volumes das escrituras budistas, dedicados
inteiramente ao tópico da comunidade espiritual, trazem centenas
de relatos de conflitos entre monges e freiras, mesmo durante a
vida do Buda. Houve o primo ciumento do Buda, que tentou
assassiná-lo. Tempos depois, os monges de Kosambi tiveram uma
discussão tão séria que nem deram ouvidos ao Buda, que acabou
desistindo. Ele foi para a floresta e viveu algum tempo entre os
animais, deixando que os monges resolvessem sozinhos seus
problemas.
Uma professora hindu fala de sua relutância, sempre que chegava o
momento de entrar numa comunidade.

"Depois de anos na Índia, voltei e acabei me tomando uma líder de


retiros de yoga muito conhecida. Eu voava de uma cidade para
outra e as pessoas viviam dizendo: 'Vamos fundar uma comunidade
permanente de yoga.' Mas eu nem ouvia. Alguns amigos criaram
um ashram, mas eu continuei a viajar para ensinar. Acabei
entendendo que não queria uma comunidade, ainda mais no papel
de professora. Era uma responsabilidade muito grande, era difícil
demais ficar perto de tantas pessoas. Acho que a idéia evocava a
vida infeliz da minha família. Para mim, a proximidade era uma
coisa penosa e sufocante. Eu não estava preparada."

Querer que na comunidade todos os relacionamentos sejam ideais,


espirituais, amistosos e iluminados, é buscar o que não se pode
esperar nem da própria mente. Não é realista querer a companhia
dos outros sem sofrer. Mas quem evita os relacionamentos
próximos também sofre. Numa boa comunidade espiritual, cada um
aceita as próprias dificuldades e todos se ajudam. Às vezes somos
nós que trazemos a bênção da compreensão e do amor. Mas às
vezes, somos nós que trazemos conflito e transtornos para o grupo.
Isso também é uma dádiva e os outros podem aprender com ela.
Nessa trama desempenhamos os dois papéis, mudando
periodicamente de uni para o outro.
Quem procura uma comunidade espiritual em busca de paz vai
enfrentar o fracasso. Mas quem vê a comunidade como um lugar
para amadurecer a prática da serenidade, da paciência, da
compaixão e da convivência consciente com os outros, encontra
nela um solo fértil para o despertar. Um mestre zen coreano dizia
aos alunos que a prática na comunidade era como ficar girando
uma panela cheia de batatas até gastar as cascas.
Na comunidade, nós nos tomamos espelhos uns dos outros. Como
disse uma velha freira:

"Na minha segunda comunidade, havia apenas doze freiras. De


duas delas eu não gostava. Uma era preguiçosa e a outra absorvida
em si mesma. Um dia, depois de um ano na comunidade, eu estava
na cozinha me queixando para uma amiga, que disse: 'Elas não são
más pessoas. Do que você não gosta?' Eu disse: 'Uma é
preguiçosa e a outra cuida demais de si mesma.' Disse ela: 'E você
devia ser mais preguiçosa e cuidar mais de si mesma!'
Nossa formação espiritual era coletiva, assim como nosso
treinamento. Não tínhamos muito tempo para a prece individual e
nossa vida privada era quase toda submetida à comunidade. Sob
muitos aspectos, isso era uma provação e exigia muita confiança,
pois sacrificava muitos desejos. Não era como os treinos solitários
dos cristãos e budistas, em que cada um fica às voltas consigo
mesmo. Para nós, a comunidade vinha em primeiro lugar. Anos
depois, a pessoa emergiria daquele mundo de prece e dedicação.
Mergulhar no treinamento, aceitar a dificuldade como uma dádiva,
nos trazia o êxtase. Era uma dádiva aproximar-se com outras almas
de uma meta grandiosa.
Ainda gosto de encontrar irmãs que passaram por esse despertar
coletivo. Aprendemos a ficar juntas no nível do coração. Para ter
uma vida espiritual completa, temos de aprender a viver uns com os
outros."

Esses relatos não significam que é necessário abandonar o


emprego ou a família para ir em busca de uma comunidade
monástica. Temos oportunidade de aprender sobre comunidade o
tempo inteiro. Há outras pessoas à nossa volta que podem nos
apontar nossos preconceitos, medos e fixações e nos mostrar o
caminho para um coração aberto.
Um oficial militar que estudava meditação num curso de redução do
stress, fez essa descoberta no supermercado, num dia de grande
movimento. Ele estava na fila, logo atrás de uma mulher que
segurava um bebê. Apesar de ter só um pacotinho na mão, ela se
recusava a passar para a fila do caixa rápido. O oficial, que tinha o
hábito da impaciência, começou a ficar aborrecido com ela. E ficou
ainda mais nervoso quando a moça do caixa começou a brincar
com o bebê. A mulher chegou a dar o bebê para a outra segurar.
Ele foi ficando cada vez mais tenso, com raiva do aparente egoísmo
da mulher. Mas como tinha acabado de sair da aula de meditação,
percebeu o que estava fazendo consigo mesmo e começou a
respirar mais tranqüilamente e a relaxar. Chegou até a notar que o
bebê era bem engraçadinho. Quando chegou a sua vez de pagar, já
estava tão calmo que comentou com a moça do caixa: "Que menino
bonito!" Ela sorriu: "Obrigada. É meu. Sabe? Meu marido era da
força aérea e morreu no ano passado num desastre de avião. Agora
minha mãe toma conta do bebê e o traz aqui uma vez por dia para
me ver."
Julgamos os outros sem saber o que trazem no coração. Para
despertar para a graça e para a presença sagrada, temos que ter
por todos o respeito que teríamos por um grande professor. Os
Budas babacas, zangados, inconvenientes e apressados à nossa
volta podem nos ensinar serenidade, equanimidade e compaixão.
Somos os grãos para os moinhos uns dos outros.
Um grande amigo meu, o psiquiatra e pesquisador da consciência
Stan Grof, conta um caso que se passou pouco depois de sua
chegada aos Estados Unidos. Através do seu trabalho na Johns
Hopkins Medical School, Stan conheceu um psiquiatra de origem
indígena, que o convidou a visitar com outros médicos a sua roda
de peiote, no Kansas.
Quando chegaram, foram levados planície a dentro para conhecer o
chefe que preside as cerimônias da Igreja Americana Nativa. O
chefe já tinha concordado com a visita, mas os outros índios
estranharam a presença dos brancos. Só depois de muita conversa
e em consideração à longa viagem que tinham feito eles puderam
participar. Afinal, o preconceito contra os índios, as perdas
monumentais da cultura indígena e o genocídio nas mãos dos
brancos eram fatos recentes. Apesar de todos terem concordado
com a presença deles, um dos homens continuou agarrado à sua
raiva, achando que os brancos tinham vindo roubar o último tesouro
indígena, seu ouro espiritual. Durante a cerimônia, que durou a
noite inteira, com o estado de espírito acentuado pelo peyote e
pelos tambores, o homem ficou com os olhos fixos em Stan, que
estava sentado à sua frente na roda. Amanheceu e ele ainda não
tinha amolecido, mesmo depois de uma noite inteira de preces.
Parecia que era assim que aquilo ia terminar - num impasse.
Finalmente, na última rodada de bênçãos, o psiquiatra anfitrião
agradeceu à tribo por ter recebido os curadores brancos em seu
meio, especialmente Stan, que vivia no exílio porque os comunistas
não o deixavam voltar para sua casa na Checoslováquia. No
mesmo instante, o rosto do homem zangado mudou. Ele se
levantou, passou pela fogueira e caiu nos braços de Stan,
soluçando. Abraçou Stan e os outros, pedindo desculpas pelo seu
ódio equivocado.
Chorando, foi contando sua história. Ele tinha pilotado um
bombardeiro da força aérea na Segunda Guerra Mundial. Nas
últimas semanas da guerra, já depois da retirada dos nazistas, seu
avião tinha bombardeado sem necessidade a cidade de Pilsen, uma
das mais bonitas da Checoslováquia.
Agora o feitiço tinha virado contra o feiticeiro. Stan e os checos
nunca tinham roubado terra dos índios, mas ele, um índio
Patowatame, tinha contribuído para a destruição da terra natal de
Stan. Ele era o carrasco e o povo de Stan a vitima. Essa descoberta
foi demais para ele. Ele não parava de abraçar Stan, implorando
perdão, pedindo desculpas por sua atitude durante a cerimônia.
Então fez uma pausa para contar o que havia aprendido: "Vejo
agora que não pode haver esperança para o mundo se odiamos o
que os nossos ancestrais fizeram. Agora eu sei que vocês não são
meus inimigos, mas meus irmãos. Tudo o que aconteceu antes
pertence ao tempo dos ancestrais. Quem sabe - naquela época eu
podia estar do outro lado. Somos todos filhos do Grande Espírito.
Nossa Mãe Terra está em dificuldades e, se não trabalharmos
juntos, morreremos."

RECONHECER O BUDA UM NO OUTRO

Segundo a mitologia budista, cada nova era é servida por um Buda,


que traz ensinamentos perfeitos para o momento. Maitreya, o Buda
do Amor, é o nome dado ao próximo Buda que vai aparecer na
terra. Mas o Mestre Zen Thich Nhat Hanh disse que esse Buda
pode não aparecer em forma de uma única pessoa iluminada. Diz
ele que, como compreendemos cada vez melhor a
interdependência, "o próximo Buda pode ser o próprio Sangha".
Isso significa que, coletivamente, vamos ajudar uns aos outros a
despertar.
Um cartom de um jornal de San Francisco mostra um homem
andando na rua com uma tabuleta que diz: ':Jesus está vindo." Meio
quarteirão adiante, um homem de aparência asiática traz outra
tabuleta: "Buda Aqui Agora." Na maturidade espiritual, sabemos que
Buda e Jesus estão aqui agora em todos os que encontramos,
incluindo o homem da outra tabuleta.
Há uma prática tradicional: ver todos os seres como o Buda, ver
Cristo em cada um de nós. O Rabino Hillel dizia que há uma prática
que resume todas
as palavras sagradas: "Ame a Deus amando o próximo." É o que
explica o Mestre Zen Dogen: "Ser iluminado é ser intimo de todas
as coisas."
Completamos o círculo: voltamos à arte da prosternação, do
respeito à vida como ela é. É uma prática para estudantes, abades,
lamas, iniciantes e decanos: ver cada ser como nosso irmão ou
irmã.
A insensatez dos outros, a frustração, a culpa, o conflito, a luta e a
provação podem ser enfrentados com uma prosternação. Essas
coisas vêm a nós como Mara foi ao Buda, despertando-nos mais
uma vez para a compaixão. Disse Mahatma Gandhi: "Os únicos
diabos do mundo são os que circulam no nosso coração. É lá que a
batalha tem que ser travada."
Há vários anos, numa série de aulas que Ram Dass deu em
Oakland, os participantes discutiram a possibilidade de ver o Divino
em todas as pessoas. Depois de algumas semanas, uma mulher
levantou-se e disse que costumava pôr todos os dias algumas
moedas no chapéu de um sem-teto mas que, com as aulas, tinha
percebido que nunca olhara para ele. Essa descoberta a
surpreendeu: "Se eu o olhasse nos olhos, na semana seguinte ele
estaria dormindo no sofá da minha sala. Era disso que eu tinha
medo."
No começo temos medo. Quando nos abrimos para os outros, como
não sucumbir ao seu sofrimento? Parece impossível que caiba tanto
sofrimento no nosso coração. Ou temos medo de precisar abrir mão
de tudo, até de nós mesmos. Mas isso não é necessário. Basta a
nossa atenção e a nossa compaixão, que nos permitem incluir no
coração as alegrias e tristezas de nossos irmãos e irmãs. Quando
vemos o Buda que vive em todos os seres, a reação é sábia e
natural.

OUVIR COM COMPAIXÃO

Ouvir com compaixão é a chave para transformar o mundo. Num


ato diplomático pela paz, Gene Knudson-Hoffman, e outras pessoas
vindas de religiões diferentes, quaker, budista e judaica, fundaram o
Projeto da Atenção Compassiva. Dedicado à paz mundial, o projeto
já enviou emissários a várias partes do mundo na tentativa de
compreender personalidades isoladas e divergentes. Visitaram
Mu'ammar Qaddafi na Líbia, ouviram todos os lados envolvidos nas
revoluções da América Central, ouviram as facções mais fanáticas
da Ásia e do Oriente Médio. Eles acreditam que, dando atenção
profunda às aflições e problemas dos outros, os conflitos vão se
modificar.
No Tao, isso é "ouvir com o coração de maneira a encontrar o
Caminho". Essa compaixão, esse ouvir, abrange também as nossas
lutas. Nós nos entregamos demais só quando esquecemos que o
círculo da compaixão nos inclui também. Com sabedoria e
compaixão, descobrimos o que é certo para os outros e para nós
mesmos. Despertamos no coração a capacidade de compreender
tudo o que é humano. Percebemos que somos uma parte de tudo o
que vive. Essa verdade faz com que o coração compassivo fique
mais forte.
Vários anos depois da violenta insurreição de 1993 em Los
Angeles, eu me juntei a Malidoma Somé, Luis Rodrigues e Michael
Meade para organizar uma série de retiros multiculturais com o
objetivo de tratar da dificuldade de diálogo entre as raças. Nesses
retiros, uma centena de homens das comunidades negras e latinas
de Watts e da região oeste de Los Angeles se reuniram aos
participantes brancos para ouvir os ensinamentos, contar histórias,
falar abertamente e participar de rituais de cura. Nesses retiros, as
práticas das antigas tradições da África Oriental, dos índios norte-
americanos e dos anciãos budistas propiciaram a formação de um
terreno comum para a compreensão. Foi uma semana ardente e
apaixonada.
Um dos momentos mais acalorados foi quando um branco falou do
medo que teve quando o tumulto chegou a poucos quilômetros de
sua casa. O medo tinha sido tanto que ele comprou um revólver
para se proteger. No mesmo instante, alguns afro-americanos se
levantaram. "Quem você vai matar com esse revólver? Você sabe
que comprou essa arma para atirar nos negros!" Disse outro:
"Quem é você para falar de medo? Se quer ficar com medo, meu
irmão, é melhor olhar-se no espelho. Olhe para quem inventou a
metralhadora e as minas explosivas. Olhe para os donos das
fábricas de armas. Olhe para quem construiu as armas nucleares. E
usou essas armas. Olhe para quem trouxe vinte milhões de
pessoas para este país como escravos, para quem provocou as
maiores guerras nos últimos milhares de anos, para quem colonizou
o mundo. Se quer ficar com medo, olhe para os brancos. É melhor
vender o revólver, cara."
Vários brancos se levantaram para apoiar o homem do revólver,
falando aos gritos de defesa pessoal. Outros negros gritaram ainda
mais alto. A tensão foi aumentando. Parecia que a sala ia explodir.
Finalmente, Ralph Steele, um professor budista afro-americano de
dois metros de altura, se levantou. Em sua voz dava para ouvir os
ecos suaves da linguagem crioula de sua infância na Carolina do
Sul.

"Vivo no interior do Novo México, onde todos têm armas para caçar
e para se proteger. Mas eu não tenho arma. Já chega os tiros que
ouvi quando estava no Vietnã. Saíamos para fazer patrulhas ou
para invadir vilarejos e todos os dias alguém levava um tiro, alguém
que podia ser o meu melhor amigo. Em áreas desconhecidas,
alguns caras se assustavam ao menor movimento e começavam a
atirar. Depois a gente descobria que tinha atirado em mulheres e
crianças. Havia em nossa companhia seres humanos que gostavam
de atirar em outros seres humanos, até mesmo em mulheres e
crianças. Não sabíamos o que fazer com eles. Durante dois anos,
essa foi a minha vida.
Não é bom ter uma arma. Seja você quem for, não é bom ter uma
arma. Não é bom ter os sonhos, os pesadelos de quem usa uma
arma. Nem mesmo é bom ter a lembrança de uma arma na mão.
Depois, vive-se com isso a vida inteira."

Ralph acabou de falar e ficou olhando para a sala. Todos os outros


se sentaram. Ele tinha falado sem raiva e sem ficar na defensiva,
com uma compaixão maior do que a raiva e o medo que enchiam a
sala. Ficamos em silêncio por algum tempo.
Ouvindo com o coração, dando voz à verdade da compaixão, é
possível dirigir a energia do conflito para a paz. Em todas as
comunidades, em todos os relacionamentos, há frustração, culpa,
avidez, raiva e traição. Por mais iluminado que você seja, isso
sempre acontece. É nesse ponto que o contato com a comunidade
pode nos ajudar. Ao comparar Sangha ao Buda, Thich Nhat Hanh
nos lembra do que há de coletivo na sabedoria. Quando nós ou
nossa comunidade não conseguimos encontrar a graça da
compaixão, quem nos traz a verdadeira amizade espiritual pode
abrir os portões do céu.
É esse o poder das reuniões dos A. A., da Reunião Sufi da
Verdade, do Conselho Budista. Na nossa comunidade, conforme a
antiga tradição dos anciãos budistas, chegamos ao consenso
reunindo-nos regularmente em conselho. Acrescentamos ao
conselho o bastão dos índios norte-americanos e incentivamos a
simplicidade e a verdade espontânea. Quando surgem questões
difíceis, como resolver conflitos entre os professores, selecionar
assistentes ou estabelecer uma nova direção para o centro, nós nos
reunimos em conselho. Quem segura o bastão é ouvido sem
interrupções. Depois o bastão vai passando para os outros, para
que cada um tenha a oportunidade de falar tudo o que sente. Desse
ouvir respeitoso vem a cura, o consenso e uma nova direção. Há
anos esse conselho transmite, muito melhor do que qualquer um de
nós, a sabedoria da experiência coletiva.
Mesmo a distância, a amizade espiritual nos ampara. O analista
junguiano James Hillman fala do dissidente chinês Lu Qing, que
passou onze anos na famosa prisão nº 2 de Weinan. Durante dez
horas por dia, Lu era obrigado a ficar sentado, sem se mexer, num
banquinho de vinte centímetros de altura. Se fizesse qualquer
movimento ou falasse com os outros presos, ele apanhava. Ele
podia pôr fim a esse sofrimento: bastava assinar uma declaração
admitindo que suas idéias estavam erradas. Mas ele se recusou.
Mais tarde, quando lhe perguntaram como conseguiu ser tão forte,
Liu disse que não tinha assinado a declaração porque via sempre
diante de si o rosto dos amigos e da família. Sua ligação com essa
comunidade de seres não lhe permitiu traí-los.
O Gyari 14 é um grupo de freiras tibetanas, cuja idade varia entre
quatorze a vinte e um anos, que foram presas e espancadas pelo
exército comunista chinês por recitarem publicamente suas preces
e seus cânticos. Mas, mesmo na prisão, continuaram unidas na
determinação de cantar e de rezar livremente. Elas conseguiram
mandar para fora da prisão uma fita gravada com as preces que
cantavam, tiveram a pena dobrada, mas mesmo assim continuaram
irredutíveis. Escreveram: "Agradecemos o apoio de tantas pessoas
fora da prisão e nunca vamos esquecê-Ias." O mais notável é que
elas não rezavam para si mesmas, mas para o povo de seu pais - e
por seus captores. Num documentário que foi feito sobre sua
resistência, A Prayer for lhe Enemy, elas dizem numa carta
clandestina: "Fomos tratadas de maneira terrível. O que é certo
fazer? O que é possível fazer? Rezamos pelo inimigo."
Em nosso país, na nossa cidade, nos hospitais e nas cadeias há
muitas pessoas que precisam de nossas preces: quem está doente
e quem não está, prisioneiros e guardas. As preces dessas jovens
freiras se une às nossas. Oferecemos nossas orações;
compartilhamos a confiança na cura além de todas as aflições;
expandimos o círculo do nosso coração.

A INTENÇÃO DO CORAÇÃO

Na prática de todos os momentos, tomar consciência da intenção é


uma chave para despertar. Nossa reação a qualquer situação é
sempre precedida por uma intenção interior. A psicologia budista
ensina que a intenção é o que forma o karma. O karma, causa e
resultado de cada ação, vem das intenções do coração que
precedem cada ação. Quando as intenções são boas, o resultado
kármico é um, quando são gananciosas ou agressivas, é outro
muito diferente. Sem consciência, agimos inconscientemente por
hábito ou por medo. Mas, tomando consciência das nossas
intenções, percebemos se elas vêm do corpo de medo ou da
atenção cuidadosa.
Todas as tradições têm preces e meditações para despertar no
coração a melhor das intenções. Às vezes as intenções são gerais.
"Que as palavras da minha boca e a dedicação do meu coração
estejam a Seu serviço, Senhor." "Que cada atividade seja uma
prece." "Que meu coração ofereça amor-bondade e perdão."
"Prometo trazer o despertar para cada ser que eu encontrar em
pensamentos, palavras ou ações." A tradição judaica tem centenas
de preces que fomentam no coração a gratidão e o amor.
Mas às vezes as intenções se referem a um determinado dia ou
situação. "Que eu me lembre da respiração e me centralize todas as
vezes que surgir um conflito no dia de hoje." "Que eu trate todos os
meus colegas com bondade." "Que nesta semana eu consiga
mostrar à minha família o meu amor."
Em momentos de dificuldade, é esse ajuste da bússola do coração
que determina o resultado. Antes de falar ou de agir diante de um
desentendimento em família ou de um conflito na comunidade,
podemos tomar consciência da nossa intenção mais profunda.
Dependendo da intenção, até as palavras mais simples têm efeito
muito diferente. A pergunta "O que você quer dizer com isso?" pode
ser uma acusação ou um ato de humildade.
Observe como isso funciona numa conversa. Falamos movidos por
uma sutil vontade de controlar e de ter razão ou queremos
realmente ouvir e aprender? Quando ajustamos a mente na direção
da liberdade, as boas intenções nos ajudam a deixar para lá o que
nos bloqueia e nos fecha. Quando ajustamos o coração na direção
da compaixão, reafirmamos o amor a despeito das dificuldades.
Em vez de inflamar ainda mais uma situação ruim, descobrimos
como entrar em contato com o que é bom no outro. Sem ignorar a
dor e a injustiça, podemos buscar a sagrada beleza dos outros. A
prática espiritual pode ser muito simples: ver com olhos de
compaixão e agir com a mais sábia das intenções. Isso costuma ter
um efeito surpreendente. A esse respeito, Nelson Mandela disse o
seguinte: "Em geral, pensar bem demais das pessoas faz com que
elas se comportem melhor."
Não duvide da transformação que nasce dessa atenção consciente.
Certa vez, Ananda, ajudante e amigo do Buda, encontrou, num
poço da cidade, uma mulher sem casta. Educadamente, ele lhe
pediu um pouco d'água, mas ela ficou com vergonha e se recusou
para não contaminar com sua impureza um homem santo. Ananda
respondeu: "Eu não quero uma casta, só quero água."
Transformada por essa gentileza, com muita alegria ela seguiu
Ananda até o mosteiro. Lá, o Buda a abençoou e lhe pediu para
aceitar a gentileza de Ananda e preservar sua intenção, "deixando
que as ações de sua vida brilhem como as jóias da realeza".
É nas pequenas coisas que estão as lições do coração. É a partir
das intenções que nossa vida cresce. É quando nos abrimos uns
para os outros que nosso caminho fica completo.

COMUNIDADE É SERVIR AO DEUS AMADO

Madre Teresa "vê Cristo nos pobres e doentes". O poeta Rumi


busca o Divino "na face de tudo o que é separado". E, como sabe
que não existe nada além de Deus, ele ri e diz: "Por que lutar para
abrir uma porta entre nós quando a parede inteira é uma ilusão?" A
cada inspiração, a cada expiração, a cada bocado de comida, a
cada palavra que proferimos, expressamos o nosso interser com
tudo o que vive. Isso se tomou visível graças aos recursos de que a
tecnologia moderna dispõe, da Internet à CNN. O primeiro-ministro
de Israel, Yizak Shamir, gracejou: "A televisão tomou a ditadura
impossível e a democracia intolerável." Estamos todos nessa.
Diz um lama ocidental:

"Depois de treinar na Índia com meu guru, um Rinpoche muito


reverenciado, passei a ter muito respeito pela linhagem, pelo grupo
e pelos mestres que ele representava. Durante séculos, esses
homens tinham mantido no auge a realização budista, até que ele a
levou para fora do Tibete. Num de meus últimos dias com ele, eu
caminhava os seis quilômetros até sua casa, absorto na prática de
dar e receber compaixão, quando de repente minha compreensão
da linhagem se ampliou. A linhagem não era formada apenas por
grandes lamas, mas pelas mulheres devotadas que montavam
barracas ao lado da estrada para alimentar os peregrinos que iam
ver o lama. Pelos velhos pastores e pelos comerciantes tibetanos
que o visitavam e o sustentavam. Pela lavadeira que batia a roupa
no rio, pelo cozinheiro em sua cozinha, pelas ervas que cresciam no
jardim. O mundo estava a serviço do meu lama e ele estava a
serviço do mundo."
Existimos na mandala da totalidade em meio a um mar de Budas.
Para enxergá-los, basta abrir os olhos de amor e sabedoria.
Quando eu era jovem, meu amigo Gil Fronsdal viajou para o
Marrocos e entrou pelo deserto do Saara. Nessa ocasião, ele e um
companheiro foram recebidos numa tribo de beduínos, como era o
costume desses árabes nômades. Durante três dias eles lhes
ofereceram banquetes suntuosos e lhes dispensaram tantos
cuidados que Gil disse: "Eu me senti como se fôssemos reis." Mas
chegou a hora de agradecer e partir. Diz o meu amigo: "Quando
voltei para casa, percebi que eu não tinha entendido direito. Eram
eles a realeza; foram eles que nos mostraram a generosidade dos
reis."
Servir ao Divino é admirar todos os que estão à nossa volta, vê-los
como Buda, recebê-los como Cristo. Um bom exemplo é a maneira
de agir de Ajahn Jumnien, um de meus professores. Ele admira o
Buda em todos que chegam ao templo. Muitos homens tailandeses
são ordenados, e ele recebe cada postulante com admiração. Uma
vez, um campeão de boxe local veio para ser ordenado e Ajahn
Jumnien perguntou se ele queria ser seu guarda-costas. "Eu não
precisava de guarda-costas, mas ele me guardou com tanta
dignidade que acabou se transformando num bom monge." Em
outra ocasião, chegou um homem se vangloriando de sua
habilidade como construtor. Ajahn Jumnien sorriu e disse:
"Excelente. Faz tempo que precisamos de um novo salão de
meditação. O projeto é seu." Nossa nobreza floresce quando somos
admirados e respeitados.
Anos atrás, Ram Dass foi ver seu guru, Neem Karoli Baba, para
perguntar: "Qual é a melhor maneira de ficar iluminado?" O guru
respondeu: "Ame as pessoas." Então ele lhe perguntou qual era o
caminho mais direto para o despertar e o guru respondeu: "Alimente
as pessoas. Ame as pessoas e alimente as pessoas. Sirva o Divino
em cada forma." Kabir, o místico indiano, diz: "Há apenas uma
coisa que satisfaz o meu coração... servir a Ele cada vez que
respiro."
O serviço é a expressão do coração desperto. Mas a quem
servimos? A nós mesmos. Alguém perguntou a Gandhi como ele
conseguia se sacrificar tanto pela Índia e ele respondeu: "Faço isso
por mim mesmo." Quando estamos a serviço dos outros, estamos a
serviço de nós mesmos. Nos Upanishads, isso é "Deus alimentando
Deus".
Uma comunidade espiritual deve estar a serviço de alguma coisa
maior do que ela mesma. Quando as pessoas se juntam para aliviar
o próprio isolamento e a própria solidão, para ter suas necessidades
atendidas pelos outros, elas acabam transformando-se num bando
de crianças necessitadas e a comunidade fracassa. Mas quando
sua visão e sua criatividade estão a serviço do sagrado, de Deus,
do bem comum, a comunidade se toma sábia e saudável.
Diz um mestre Sufi:

"Quando fundamos nossa comunidade, sabíamos que as pessoas


se juntam por necessidades sociais, financeiras e políticas. Mas não
queríamos que essas necessidades fossem o ponto principal da
comunidade. Nós nos juntamos para rezar e servir a Deus, para
crescer de maneira realmente espiritual, para expressar coisas mais
elevadas do que nós mesmos. Queríamos impregnar de santidade
cada parte da vida, trazer essa santidade para brilhar no mundo."

Nos Estados Unidos, as gerações passadas compreendiam essa


atitude de uma forma hoje esquecida. A história do país é cheia de
exemplos de ajuda comunitária, da divisão de comida e sementes
em tempo de fome ao companheirismo espiritual.
Em tempos de tragédia, como a enchente nas Grandes Planícies há
alguns anos, há uma efusão de ajuda mútua que supera todas as
barreiras de raça e de classe. Quando a vida volta ao "normal", as
pessoas têm a esperança de preservar o espírito que as aproximou.
As comunidades de pioneiros e imigrantes sobrevivem em nós
como uma espécie de memória genética que não nos deixa
esquecer do que podemos ser uns para os outros.
Servir uns aos outros expressa a interligação sagrada e redesperta
a unidade perdida. Assim, quando olhamos nos olhos uns dos
outros, podemos ver o Divino que brilha em todas as coisas. Uma
praticante budista que trabalhava em asilos, lembra que era mais
ligada aos pacientes moribundos do que a qualquer outra pessoa.
"No começo, eu pensava que era por serem tão vulneráveis diante
da morte. Mas depois percebi que era porque dedico a eles vários
períodos por dia de meditação de amor-bondade. Quando
oferecemos seguidamente a alguém nossos melhores votos e
nossas orações, nosso coração se modifica. Nós nos
transformamos no amor que oferecemos."

Todos nós servimos a nossos irmãos e irmãs de inúmeras


maneiras. Servimos à família, à comunidade e à terra sempre que
paramos num farol vermelho, sempre que cumprimentamos alguém,
sempre que lavamos a louça, sempre que levamos o lixo para fora.
Seja qual for a nossa função - construtor, comerciante, jardineiro,
artista, professor, agente de cura, secretário ou vendedor - é
possível agir com compaixão, é possível encontrar o espírito de
Sangha e a liberdade.
Diz o mestre indiano Meher Baba:

"A extensão do serviço não se limita a atos heróicos, a grandes


gestos e a grandes doações para instituições públicas. Quem
expressa seu amor em coisas pequenas também presta serviços.
Tanto quanto o sacrifício heróico, é serviço a palavra que anima um
coração ferido ou o sorriso que traz esperança em meio à tristeza. E
também o olhar que apaga a amargura do coração, mesmo que não
haja a intenção de servir. São coisas que parecem pequenas, mas
a vida é feita de muitas coisas pequenas. Se essas coisinhas
fossem ignoradas, a vida, além de feia, ficaria insuportável."

O SERVIÇO CAPAZ VEM DE UM CORAÇÃO CALMO

A intenção sábia e o serviço capaz precisam ser alimentados por


períodos de quietude e prece. Todas as grandes tradições têm
algum tipo de Shabat. No Ocidente, herdamos o Shabat cristão e
judaico. O dia santo dos muçulmanos é a sexta-feira, e os hindus e
budistas renovam seus votos de simplicidade na lua cheia, na lua
nova, no quarto crescente e no quarto minguante. Quando eu era
jovem, o estado de Massachusetts adotava as "Leis Azuis" do
shabat, que determinavam a interrupção de todas as atividades no
domingo. Hoje, uma geração depois, os supermercados e bancos
vinte e quatro horas funcionam sete dias por semana. A sociedade
de consumo exigiu o direito de operar sem restrições. Essa é uma
receita para a destruição total.
O espírito do serviço mútuo precisa de um terreno diferente para
crescer - precisa de momentos de recordação e de oração.
Prestando atenção aos movimentos da respiração e às batidas do
coração, percebemos que há uma pequena pausa entre um
movimento e outro, entre uma batida e outra. Para bater durante a
vida inteira, o coração precisa de quietude para se recuperar antes
de cada batida. A maturidade espiritual também exige esses
períodos de Shabat, quando saímos do tempo comercial para o
eterno.
Temos que nos tomar o santuário que buscamos. Esse processo
pode começar com um dia de Shabat ou com um período diário de
meditação e prece. Às vezes, exige períodos regulares de silêncio
no local de trabalho. Ou significa reavaliar o estilo de vida, buscar a
Simplicidade voluntária, ficar mais tempo junta à natureza ou ir a
retiros periódicos. Ou desligar a CNN e ouvir Mozart. Em certos
momentos de dificuldade ou conflito, significa respirar fundo,
acalmar as batidas do coração, ouvir em silêncio as intenções mais
profundas. Com isso, nós nos lembramos da tarefa do nosso
coração na terra. Um professor e místico cristão conta:

"Vivi muitos anos numa comunidade pequena e bem protegida.


Quando achei que tinha chegado a hora de voltar para a sociedade
e servir, comecei um processo de integração: ia e voltava. Trabalhei
em hospitais para aidéticos e doentes graves. Mas uma vez por
mês eu voltava para a comunidade com o coração cheio de
saudade do silêncio. Eu entrava na fila quando era oferecida a
dádiva da comida e sentia que cada coisa, até a mais comum, tinha
um ar sagrado. Mas é sempre assim; esse é o mistério da graça. Eu
sabia que o importante não era só a prece e a meditação. Era ficar
em silêncio, parar e respirar, abrir o coração, ver que o planeta
inteiro e tudo o que há nele é sagrado. Quero levar essa beleza
comigo para todos com quem tiver contato. Assim, volto
regularmente ao silêncio. Sei que, se parar e me lembrar disso, a
vida vai cumprir sua promessa para mim."

Os momentos de quietude revelam a melhor maneira de amar e de


servir. Parando para ouvir, entramos em contato uns com os outros,
e nasce a verdadeira comunidade.
16
DESPERTAR COM TODOS OS SERES

O verdadeiro trabalho é tomar-se nativo no próprio coração,


compreender que é nele que vivemos, que ele é o continente em
que estamos, que nossa lealdade é a estas montanhas e rios, a
estas zonas de vegetação, a estas criaturas. O verdadeiro trabalho
envolve uma lealdade que tem... bilhões de anos. O verdadeiro
trabalho é aceitar a cidadania na própria terra.
GARY SNYDER

Todas as manhãs eu acordo dividido entre o desejo de salvar o


mundo e a inclinação a saboreá-lo.
E.E. WHITE

A mandala do despertar desata a trama da vida de tal maneira que


conseguimos sentir o fio solitário da nossa respiração em conjunto
com tudo o que vive. Na Índia, isso é "ver a Rede de Indra", que
tem em cada interseção uma jóia. Cada uma dessas jóias reflete
um individuo, que se entrelaça aos outros fios da existência. Cada
vez mais profunda, essa ligação com o mundo natural se transforma
numa realidade inegável, que traz consigo responsabilidade e
alegria. O Chefe Seattle disse: "O que é o homem sem os animais?
Sem eles, os homens morreriam de uma grande solidão do
espírito."
Da mesma forma, podemos perguntar: sem a terra, como faríamos
para andar e dançar? Sem as montanhas, onde reside a neve, onde
o leopardo da neve espreitaria em segredo? Quando abrimos o
coração, a terra inteira e seus seres passam a fazer parte da nossa
prática.

PRATICAR COM AS MONTANHAS E OS RIOS

Depois que viu a estrela da manhã e despertou sob a Árvore do


Conhecimento, o Buda começou a ensinar. Preferiu começar na
floresta, sob as árvores do Parque dos Cervos de Sarnath e não na
Cidade de Benares, a doze quilômetros dali. Foi pelo deserto que
Moisés conduziu seu povo, não em busca de cidades, mas de uma
terra de leite e mel. Jesus também ia para o deserto em busca de
solidão e, embora ensinasse nas cidades, voltava sempre às praias,
aos bosques de oliveiras, aos campos e jardins. Suas palavras
eram entrelaçadas às vidas dos pastores e pescadores, do leão, do
cordeiro e dos lírios. O mundo natural faz parte da sabedoria de
todas as tradições espirituais: é um lugar de refúgio e uma
manifestação da lei sagrada e natural.
Místicos budistas e católicos ainda praticam nas montanhas e
florestas. Ajahn Buddhadasa, que fundou um grande mosteiro na
floresta, diz que o mundo natural é nosso professor.

As partes do corpo - braços, mãos, pulmões, rins - funcionam como


uma cooperativa para sobreviver. Os seres humanos, os animais,
as árvores e a terra se entrelaçam, integrados como uma
cooperativa. O sol, a lua, os planetas e as estrelas são uma
cooperativa gigante. Despertando além do interesse pessoal,
descobrimos uma ecologia natural de mente e natureza, fresca,
aberta, alegre, onde somos organicamente ligados a todas as
coisas.

Não é a primeira vez que desenvolvemos a noção de uma cultura


ecologicamente sólida. Segundo um ensinamento tradicional do
Budismo Indiano, cada pessoa deve plantar uma árvore para cada
cinco anos de vida. Ashoka, imperador da Ásia e um dos
governantes mais sábios da História, criou seu império governado
pelos princípios da interdependência.
Um dia, lamentando uma batalha sanguinária no sul da Índia,
Ashoka viu um monge que caminhava tranqüilo no sangrento
campo de batalha. Observando-o, o imperador pensou: "Eu que
tenho tudo não sou tão feliz e tranqüilo quanto esse homem que
nada tem." Ashoka se tomou discípulo desse monge e o dharma
que aprendeu transformou sua terra num reino de honradez. Os
exércitos passaram a se dedicar à paz e não à guerra. Cresceu a
tolerância religiosa, a responsabilidade moral e a renúncia. O
imperador mandou cavar poços, estimulou o vegetarianismo e a
preservação das florestas, e promulgou leis que visavam o bem-
estar das pessoas e da terra. Pilares de pedra de dois mil anos com
editais de Ashoka ainda são encontrados em muitas partes da Índia.
Infelizmente, a sabedoria, assim como o ambiente, precisa de
cuidados constantes para florescer. Depois de Ashoka, os monges
e freiras da Ásia passaram a ter uma atitude passiva em relação à
interligação com a terra, pouco ligando para o meio ambiente. Nos
vilarejos e mosteiros do sudeste da Ásia, o lixo era jogado em
qualquer lugar. Enquanto eram só cascas de banana, deu para
viver; mas com o plástico começou o pesadelo. Os ensinamentos
dos mestres visavam a mente individual, dando pouca atenção à
responsabilidade pelo mundo natural.
Mas, quando a devastação das florestas da Tailândia, do Laos e de
Burma começou a se generalizar, os monges tiveram que se tomar
ativistas para salvar da ação predatória das madeireiras os últimos
redutos de vida selvagem. Faziam cerimônias em que envolviam as
árvores mais antigas em seus hábitos, ordenando-as abades da
floresta. Hoje em dia os monges são defensores da floresta,
salvadores do meio ambiente. No Ocidente cresce o movimento
ecológico cristão. Seguindo o exemplo de freiras e padres da
América Latina, Igrejas do mundo inteiro estão começando a cuidar
da integridade do mundo natural como parte do caminho de Deus.
Um grupo de freiras fala dessas mudanças em seu convento:

"Vivemos, durante muitas décadas, deliberadamente isoladas dos


problemas do mundo. Ainda hoje não nos envolvemos em política
nem em novidades.
Mas em 1978 começamos a reciclar. Em 1983, paramos de usar
pesticidas. Agora, quase todos os alimentos são orgânicos. E
minimizamos o uso de carros e peruas. O cuidado com a terra se
infiltrou aos poucos em nossas ações e preces. Educamos os que
nos visitam. Temos irmãs que se tomaram ativistas na América
Latina. Não que nossas preces a Deus fossem alheias a tudo, mas
agora as espécies ameaçadas, a floresta tropical e os agricultores
pobres pertencem ao trabalho sagrado como parte de nós."

O domínio humano e o domínio natural não são separados. Seja


estando conscientes da responsabilidade do nosso estilo de vida
pelo aquecimento global e pela poluição dos rios, seja prestando
atenção à origem dos alimentos, temos que ter os olhos abertos
para essa interdependência. Enquanto fazemos compras no
supermercado, podemos pensar nas nuvens de chuva que trazem o
alimento, no solo úmido em que ele foi cultivado e no trabalho
humano envolvido em seu trajeto até a nossa mesa. A poeta Alison
Luterman escreve:

Os morangos são delicados demais para serem colhidos por uma


máquina. Os bem maduros se machucam até com um toque
humano pesado demais... Cada morango que você já comeu - cada
pedaço de fruta - foi colhido por mãos humanas calejadas. Cada
pedaço de torrada com geléia representa os joelhos de alguém, as
costas e os quadris doloridos de alguém, alguém com uma bandana
na cintura para enxugar o suor.

No começo, a vida espiritual costuma se concentrar na


transformação de si mesmo e nos relacionamentos humanos. Mas
tem que haver um desprendimento que nos leve à nossa identidade
com as montanhas. Um professor de yoga faz a seguinte reflexão:

"Nos anos setenta, quando eu vivia na Índia, um de meus gurus


ensinava yoga numa cidade barulhenta, suja e poluída. Ele nos
ensinava a pureza interior mas nunca mencionava a miséria que
existia à nossa volta. Meu outro guru tinha um ashram no campo,
onde aprendíamos yoga, meditação e poderosas práticas
respiratórias para transcender o mundo. Mas também ali o ambiente
era negligenciado. Chocado, percebi que a consciência ecológica e
a yoga eram mundos separados. Achávamos que bastava ser
vegetariano. Agora, levo meus retiros de yoga a locais intocados e
procuro ensinar que a pureza da mente e a pureza dos rios e do ar
são interligadas. Tomou-se necessário viver com mais cuidado e ter
uma yoga-mundo para ligar conscientemente nosso corpo ao corpo
do mundo."
Joanna Macy, ativista e professora budista, observa que é através
de uma revolução espiritual, de uma "grande virada da consciência
humana", que vai haver essa transformação ecológica.

Até os nossos cientistas percebem que não existe aparato


tecnológico, não existe computador nem projétil mágico que consiga
nos salvar da explosão populacional, do desflorestamento, da
desorganização climática, dos venenos da poluição e da extinção
indiscriminada de espécies animais e vegetais. É preciso querer
coisas diferentes, buscar prazeres diferentes, perseguir metas
diferentes daquelas que até hoje impulsionaram a economia global.

Através do despertar espiritual, os valores do consumismo se


revelam cada vez mais superficiais e falsos. A ganância e a cobiça
dão lugar ao amor e à integridade, ao desejo de viver em harmonia
com toda a criação. Nasce a vontade de viver com mais
simplicidade pelo bem do próprio coração e cresce o senso de
responsabilidade pela vida da terra.
Mas essa transformação não é automática. Em todas as áreas da
mandala do despertar, é preciso enfrentar conscientemente os
hábitos e os condicionamentos. Uma professora fala de sua luta
diária:

"O sofrimento do mundo ainda é um violento dilema para mim. Não


passa um dia sem que eu fique chocada pelo tanto que precisa ser
feito. Ensino prática da contemplação há trinta anos e acho que é
no despertar interior que está a raiz, a possibilidade de transformar
a nossa existência centralizada em si mesma em algo belo para o
mundo. Mas às vezes parece que vai tão devagar, embora eu não
espere que essa prática transforme o reino do homem. Na Índia e
no Nepal, nas circunstâncias mais pobres que se possa imaginar, vi
também a total perfeição da vida e a realidade viva da liberdade. Vi
também, e ainda vejo, que há milhões de pessoas famintas, pobres,
doentes e um incrível número de seres necessitados. Eu faço o que
posso para ajudar. Procuro viver com simplicidade. Todos os dias
eu me pergunto se estou apoiando as causas certas, fazendo as
escolhas certas, se o que faço é suficiente."
Infelizmente, os Estados Unidos continuam sendo o maior
fabricante e o maior fornecedor de armas do mundo. E sabemos
que bastaria dez por cento do que o mundo gasta no mercado
milionário das armas para alimentar todas as nossas crianças,
todas as pessoas famintas da Terra. Vimos que a poluição cada vez
maior dos lençóis de água afeta cada um de nós. No estado de
Nova York, por exemplo, uma análise do leite das mães da tribo
indígena Mohawk revelou que o corpo humano tomou-se parte dos
aterros sanitários. O que fazer?
Os valores espirituais não nos obrigam a renunciar a tudo para viver
na simplicidade monástica e nem a voltar a viver da terra.
Precisamos de líderes espirituais na política, na medicina, na
justiça, em Wall Street, nas forças policiais - em todas as áreas da
vida. No Budismo, há a história de um ser iluminado, o bodhisattva
Vimilakirti, que encarnou de propósito como um rico homem de
negócios para levar a sabedoria ao mundo do comércio. Incansável,
ele entrou nos hospitais como paciente para ensinar compaixão aos
médicos e, depois, nos bares e bordéis, sempre levando os
ensinamentos. Nenhum domínio da vida humana estava fora do
alcance da sua compaixão.
Entrar de cabeça na vida para levar a graça a todos é uma idéia
nobre. Mas podemos nos enganar, acreditando que estamos
seguindo o exemplo de Vimilakirti. As riquezas que usufruímos na
moderna sociedade ocidental têm um custo muito alto: a exploração
de outras culturas, a colonização econômica de grande parte do
mundo, a devastação ecológica de habitats e espécies. Cada vez
que andamos de carro contribuímos para a poluição do mundo
inteiro e para o aquecimento global. O preço do combustível que
usamos a cada viagem de avião é assegurado pela política de
opressão no Oriente Médio e pela destruição das pastagens dos
caribus no Alasca. Os alimentos importados que consumimos a
preço tão acessível custam caro para os agricultores e para o solo
da Guatemala e do Brasil.
Em grego antigo, despertar é "alethe". O oposto de despertar não é
mal nem ignorância, mas "lethe", sono. Mesmo depois de algumas
experiências de despertar, podemos continuar cegos às
conseqüências da moderna maneira de viver. É triste, mas a
compreensão ecológica e a interdependência não fazem parte da
maioria dos currículos espirituais tradicionais. Temos que nos
educar para enxergar o custo invisível de nossos atos, até que a
nossa vida exterior esteja em harmonia com os verdadeiros valores
do nosso coração.
Para ter dignidade nos tempos de hoje, temos que estender o
"inventário moral" ao nosso estilo de vida. O Caminho Óctuplo do
Budismo inclui Pensamento Correto, Ação Correta, Fala Correta,
Modo de Vida Correto. Será que a nossa maneira de viver - nosso
trabalho, nossa casa, nossas finanças, nossas viagens, nosso nível
de consumo, nossa participação política e social - está em harmonia
com a compreensão que temos hoje de interdependência? Em que
direção nos leva a preocupação com a terra e a compreensão da
interdependência? Como fazer para mudar, não por culpa, mas por
amor? Começamos a transformação pelo simples fato de fazer
essas perguntas.

VER COM OS ANIMAIS, OUVIR COM OS RIOS

Às vezes temos de sair da consciência que gira em torno do


humano. Com o objetivo de ampliar a consciência de interser, o
ambientalista John Seed criou um grupo de meditação chamado
"Conselho de Todos os Seres". Esses conselhos já se reuniram no
mundo inteiro. Reunidos em locais de grande beleza natural, os
participantes fazem caminhadas procurando entrar em contato com
uma determinada parte da terra - uma montanha, um rio, uma
planta, um animal, uma garça, um pinheiro, um bisão ou uma
esporinha - que tenha algo a dizer. Então, depois de fazer máscaras
ou fantasias que representem a parte da terra que escolheram, eles
voltam a se reunir em conselho.
Cada pessoa fala na voz da espécie ou do lugar que escolheu. "Sou
uma gaivota e falo pelas aves aquáticas." "Sou uma montanha e
falo pelos rios do mundo." Depois de todos se apresentarem,
começam a levar suas preocupações para o conselho. Os seres
humanos são representados por alguns membros do grupo, que
são convidados a sentar no centro e ouvir.
"Como ganso selvagem, quero dizer ao conselho que minhas
longas migrações ficaram difíceis porque os pântanos estão
desaparecendo. E a casca dos meus ovos estão finas e
quebradiças, quebram antes que meus filhotes estejam prontos
para sair. Eu acho que existe algum veneno nos meus ossos." O
conselho reflete sobre isso.
"Humanos! Eu falo como o rio, aquele que traz a vida. Vejam só o
que trago agora que vocês despejaram lixo e venenos em mim...
Agora eu transporto a doença e a morte." O conselho continua a
ouvir.
Depois que todas as outras espécies tiveram a sua vez de falar, os
humanos falam. Em geral, expressam seu pesar pela ganância da
espécie humana, que desencadeou forças agora fora de controle.
As tristezas da terra expressas no conselho reanimam a
preocupação pela sorte de todas as espécies.
Os seres humanos são convidados, então, a pedir ajuda ao vasto
mundo da natureza. Os não-humanos oferecem força e sabedoria:
as montanhas oferecem paz constante, o falcão seus olhos
sagazes, o coiote sua cri atividade brincalhona, a flor do campo um
perfume que evoca a beleza, o velho pinheiro sua persistência
incansável.
Como no conselho, em qualquer lugar é possível aprender com a
natureza. As plantas, os animais e os rios nos trazem sabedoria e
apoio' eles nos trazem o Dharma. O grande professor zen Mestre
Dogen disse uma vez: "Em cada bambu todos os Budas existem."
Mas se fosse transportado de seu país natal para o nosso quintal,
em desrespeito à sua tenacidade e beleza, esse buda-bambu logo
se transformaria no flagelo da vizinhança. Seja transportando
bambus ou represando rios, para viver com sabedoria no mundo
natural temos que respeitar seu poder e integridade, sem achar que
podemos ajustá-lo à nossa conveniência. Os monges que vivem na
floresta de tecas amam a beleza e a sombra dessas árvores, mas
também respeitam a força do tigre, o veneno da cobra e as febres
da malária que o ambiente traz. Todos são seus professores.
O CAPIM E A ÁRVORE COMO PROFESSORES

Os Anciãos da tradição da floresta nos dizem para ficar junto à


natureza. Começamos a transformar o espírito sempre que saímos
para uma caminhada e sentimos o cheiro dos loureiros depois da
chuva, sempre que paramos para admirar os marmeleiros na
primavera, os bordos em fogo no outono, um certo tom de rosa no
crepúsculo, os lírios brotando na varanda do vizinho, os últimos
ruídos dos animais antes do assombroso silêncio da noite que cai
nas montanhas. Renovamos a vida espiritual sempre que voltamos
para o mundo natural e sentimos a beleza que nos gerou e os ciclos
indômitos, muito mais vastos que os nossos planos. Dessa forma, o
cuidado pelo mundo não-humano cresce não por obrigação mas por
amor, gratidão e respeito pela trama da criação, uma incessante
santidade.
Cuidando desta terra, nós nos tomamos parte do seu despertar.
Como escreveu Ralph Emerson: "Apreciar a beleza e descobrir o
que há de melhor nos outros; deixar o mundo um pouco melhor,
seja através de um filho saudável, de um canteiro de jardim, de uma
condição social resgatada; saber que ao menos uma vida respirou
melhor porque você viveu, isso é ter tido sucesso."
Cuidar do mundo natural é uma forma de cuidar do mundo humano.
O Projeto Horta na Prisão, de Cathy Sneed, mostrou que aceitar a
interligação com a totalidade da vida traz benefícios incríveis. Em
1984, preocupada com a morte da alma de homens atrofiados pela
vida na prisão, ela criou um projeto: uma horta que seria cultivada
por todos eles. Assim, os presos da prisão municipal de San
Francisco começaram a cultivar verduras e legumes num canteiro
atrás de um dos pavilhões. Angariando fundos, ela conseguiu
comprar sementes, adubo e ferramentas.
Cultivar uma horta com as próprias mãos, eliminar insetos e pragas
e observar seu crescimento revelou o melhor nessas pessoas
rejeitadas, que viram despertar uma ligação com alguma coisa fora
de si mesmas. (Houve um machão que disse: "Não pise nos meus
bebês.") Os funcionários da prisão mal acreditavam na mudança. A
horta tomou-se tão importante para esses homens que sua vida
começou a girar em tomo dos canteiros que plantavam. De fato:
depois de sair da prisão, alguns cometiam pequenos delitos ou
violavam a condicional só para voltar a cuidar da horta...

O passo seguinte foi inevitável: uma horta para ex-prisioneiros e


hortas comunitárias para desprivilegiados em várias cidades da
região. O próprio projeto se transformou numa horta, em que se
colhiam pessoas. A oportunidade de plantar criou uma comunidade
com uma crescente preocupação pela terra. Esse foi o grande
beneficio. O cuidado dos jardineiros floresceu em seus corações
assim como nos canteiros da horta.
O mundo natural nos ensina a ter uma relação diferente com o
tempo, baseada em ritmos e ciclos diferentes dos nossos planos de
sempre. Alguns insetos vivem um único dia. Algumas plantas
florescem uma só vez num século. A mandala do despertar abrange
essas diferentes estruturas temporais e nos permite honrá-Ias em
nossa prática. Nós nos tomamos guardiões do ciclo da vida.
Os velhos índios norte-americanos ensinam que temos que planejar
"até a sétima geração". Este é um ensinamento que o antropólogo
Gregory Bateson ilustra com a história de um dos prédios da
universidade de Oxford, inaugurado em 1600. Nesse prédio, a
estrutura do telhado do salão principal era feita de enormes vigas
de carvalho, com mais de um metro de largura. Recentemente, os
encarregados da manutenção descobriram que elas estavam
começando a apodrecer. Com isso veio o dilema: como conseguir
vigas iguais nos dias de hoje?
Finalmente, alguém resolveu falar com um dos encarregados da
reserva florestal da universidade. O homem riu da pergunta. "Não
sei por que não nos procuraram antes. O construtor do prédio sabia
que as vigas iam acabar apodrecendo. Então, pediu que nossos
predecessores plantassem um bosque de carvalhos para substituí-
Ias. Essas árvores têm agora trezentos e cinqüenta anos - e troncos
do tamanho exato para as vigas."
Com atenção sincera, esse cuidado se transforma em modo de
vida. Nossos pequenos passos e preocupações se inserem numa
perspectiva mais ampla, pois sabemos que fazemos parte de um
todo incomensurável. Quando a consciência que não se limita à
vida humana, a respiração fica mais fácil, o coração passa a ter
compaixão por todos os seres vivos.

AGIR PELO BEM DE TODOS OS SERES

Na tradição budista, um bodhisattva é um ser dedicado ao despertar


universal, a trazer compaixão e sabedoria para todos os seres
vivos, leve o tempo que levar. É o que se expressa na promessa de
não entrar no domínio do Nirvana antes que a última folha de grama
possa entrar também. Antes de cada meditação, praticantes do
mundo inteiro repetem os votos de bodhisattva, para ter sempre em
mente essa intenção. Os votos começam assim: "Os seres vivos
são em número infinito; prometo servir até que todos estejam
libertados. A ignorância e a ganância são ilimitadas; prometo
transformá-Ias e erradicá-las totalmente."
A promessa de proporcionar despertar e compaixão a inúmeros
seres através dos éons é uma tarefa esmagadora. Os alunos que
fazem esses votos têm que refletir sobre seu Significado, descobrir
como vivê-los. Será que o eu, este "pequeno eu", vai ter que
percorrer o universo salvando todos os seres? Como medir o
sucesso? Como começar?
É simples: os votos de bodhisattva não se referem a uma
realização, mas a uma direção, a um rumo da intenção. Sejam
quais forem as circunstâncias - nascimento ou morte, alegria ou
tristeza - meu corpo, minha fala e minha mente seguem a direção
da compaixão e do despertar. A cada momento, vou plantar
sementes de bondade e liberação para mim e para todos os seres
vivos.
Os votos de bodhisattva não são uma medida mas um compasso,
um guia para o coração seguir. Eles passam a ser a fonte da ação,
a direção de tudo. Eles se tomam o nosso legado. Como disse
Martin Luther King Jr.: "Quero que digam que eu tentei amar e
salvar a humanidade... quero levar uma vida comprometida e leal."
Em meio à terrível tragédia do povo tibetano, o Dalai Lama falou
muitas vezes da importância desses votos. Ao longo de décadas de
dificuldades como político, líder espiritual e exemplo mundial de
não-violência, ele teve que tomar decisões enérgicas pela sua
nação e pelo seu povo. Ele admite que às vezes suas decisões não
foram as melhores, que cometeu erros. Diz ele: "Só posso contar
com minha motivação sincera." Sua motivação é fomentar a
compaixão e a liberação em cada ato. Ele se refugia na semente da
intenção que está por trás dos seus atos. Quando plantamos
sementes de bondade, acaba nascendo uma coisa bela.
Para servir todos o seres, temos de ter em mente uma verdade
essencial: nunca é tarde para começar. A sabedoria transforma a
pesada pressão do tempo, a responsabilidade por todas as coisas.
Adquirimos perspectiva, uma visão mais ampla. O controle não é
nosso. Nos relacionamentos, na comunidade, na terra, é provável
que nem estejamos vivos para ver as mudanças que buscamos -
somos plantadores de sementes. Quando as sementes de nossas
ações são generosas e sinceras, é certo que trarão frutos nutritivos
para todos os seres. O que já passou não importa: podemos
começar de novo. E só dá para começar aqui e agora, e o agora é a
semente de tudo o que está por vir. Responsabilidade e
criatividade: só isso é necessário. A motivação sincera nos leva a
fazer perguntas sábias e a cuidar do que amamos com sabedoria a
longo prazo. É o cuidado de um fazendeiro pelo seu pomar, de um
pai pelo seu filho. É a perspectiva do ancião, do sábio, fruto de uma
vida de dedicação espiritual. Diz um professor de meditação:

"É como se a minha vida espiritual fosse um cavalo lerdo. No


começo, eu tinha muitas ambições. Aqui e na Ásia, tentei praticar
extensivamente, galopar. Eu estava atrás da iluminação. Atingi o
êxtase, a bem-aventurança, estados místicos, descobertas incríveis
- tudo isso aconteceu. Mas só serviu para me despertar para o que
eu precisava fazer. Para ser realmente feliz, tive que diminuir a
marcha do cavalo, descer para a terra e levar a vida de acordo com
meus valores. Depois de muita meditação e trabalho interior, dei
uma virada de cento e oitenta graus: voltei-me para o mundo.
Percebi que as florestas, os oceanos, os paridas e a biosfera
dependem de mim como eu dependo de tudo. Tomei-me um ativista
espiritual e era como tal que ensinava, escrevia, vivia. Tive algum
sucesso, mas precisei diminuir a marcha do cavalo mais uma vez,
porque a ambição tinha voltado de outro jeito.
Agora compreendo melhor a renúncia. Não é preciso viver em
mosteiros e renunciar à vida. Estamos aqui para aprender as lições
desta vida humana. O que importa é a renúncia à ganância e à
ambição, ao caráter autocentrado do nosso tempo. O controle não é
nosso. Temos que ser pacientes, deixar que nossas ações sejam
ditadas por um coração simples e puro e pelas circunstâncias. Tudo
de bom vem disso."

AÇÃO APROPRIADA, QUIETUDE APROPRIADA

O mundo natural nos ensina a fazer e a não fazer. As árvores dão


frutos e hibernam; lontras, ursos e trutas pintadas dormem e
acordam; o dia se alterna com a noite, e o verão com o inverno. Se
não nos esforçamos o tempo todo para realizar as intenções
bodhisattva, achamos que somos preguiçosos. Mas a comunidade
dos seres nos diz que sem os meses frios de hibernação não pode
haver maçãs. A quietude, o não fazer, o ouvir, são tão essenciais
quanto a ação na mandala da vida desperta.
Thomas Merton nos adverte:

Deixar-se levar por um sem-número de preocupações, submeter-se


a exigências demais, comprometer-se com muitos projetos, querer
ajudar tudo e todos já é sucumbir à violência dos nossos tempos.

Às vezes é preciso marchar, às vezes é preciso meditar, rezar. As


duas coisas trazem o coração e o mundo de volta para o equilíbrio.
Para agir com sabedoria, temos de equilibrar compaixão com
equanimidade, a capacidade de deixar que as coisas sejam como
são. Apaixonado, o coração é tocado pelas tristezas do mundo, mas
é preciso lembrar que não temos a responsabilidade de consertar
todos os erros do mundo - só os que podemos consertar. Caso
contrário, seremos tomados pela mania de grandeza, como se
fôssemos os salvadores da humanidade à nossa volta.
A compaixão e a equanimidade entram em harmonia quando
vivemos na realidade do presente. É muito simples. A atenção e a
compaixão são mais eficazes quando se dirigem a uma pessoa por
vez, a um momento por vez. Senão somos esmagados por todos os
problemas que precisam de solução: os dilemas dos parentes e da
comunidade, as injustiças e o sofrimento do mundo inteiro.
A compaixão é mais real nos detalhes, na reação a este momento
imediato. Mesmo em situações globais é assim. É nos detalhes que
a misericórdia do coração se amplia. Seja no caso da doença de um
vizinho ou de uma campanha mundial contra as minas explosivas
ou a destruição das florestas, cada dia, cada passo é como respirar,
uma prática que expande o coração. Nossa verdade floresce a cada
pequeno passo que damos.
Diz um professor de meditação:

"Depois de trinta anos meditando, parece que cinqüenta anos de


prática é pouco tempo. Agora minha perspectiva é mais ampla - vai
além desta vida. Meu compromisso é simples: eu me dedico à
iluminação, que é a mais alta aspiração. O tempo não importa. O
importante é ensinar que a liberdade total é possível, para que cada
ato do cotidiano seja iluminado por essa possibilidade, por essa
verdade."

Cada prece e cada ato consciente contribui para a cura do todo.


Disse Gandhi:

Eu acredito na unidade essencial de tudo o que vive. Acredito,


portanto, que quando uma pessoa avança espiritualmente, o mundo
inteiro avança; quando uma pessoa cai, o mundo cai na mesma
medida.

No domínio da ação, nem todo gesto tem de ser grandioso. Os


pequenos atos também são importantes, como mostra a história do
velho que caminhava numa praia do México depois de uma
tempestade muito forte. As ondas tinham atirado na areia milhares
de estrelas-do-mar, que o velho devolvia ao mar, uma a uma. Um
transeunte que o observava perguntou: "O que você está fazendo?"
"Estou tentando ajudar essas estrelas-do-mar", respondeu o velho.
"Mas a areia está coberta de estrelas; não faz diferença jogar
algumas de volta na água", argumentou o outro. "Faz diferença para
esta aqui", respondeu o velho, jogando outra estrela-do-mar no
oceano.

TESTEMUNHA DA JUSTIÇA

De certa forma, o mais radical dos atos políticos é a mudança no


coração. Para vencer a ganância, o racismo, a exploração, o ódio e
o sofrimento, para harmonizar nossa vida com a terra, temos que
entender que a crise fundamental está na consciência humana. A
cura do mundo não depende apenas de meios políticos e
econômicos. já vimos que os revolucionários de uma geração
podem ser os opressores da geração seguinte, que o poder político
gera ganância e desilusão. Temos que enfrentar de frente as forças
da exclusão, da ganância e do ódio, e aprender a viver em paz, com
o coração livre. Se não, como esperar isso dos outros?
A sabedoria nos diz que a trajetória humana sempre foi feita de
ganhos e perdas, tristeza e alegria, ganância e generosidade, feiúra
e beleza. Mesmo assim, não dá para ignorar os gritos de agora.
Com o coração em paz, aceitamos a responsabilidade de aliviar o
sofrimento, sejam quais forem as circunstâncias. As preces e a
meditação nos dão firmeza, coragem e capacidade de reagir.
Ficamos cada vez mais cientes de que não dá para ser cúmplice
dos abusos do mundo. Como diz William Faulkner:

Há certas coisas que você jamais poderá aceitar. Há certas coisas


que você tem que se recusar a aceitar. Injustiça, abuso, desonra e
humilhação. Por mais jovem ou por mais velho que você seja. Nem
por glória nem por dinheiro na mão. Nem pela foto no jornal nem
por dinheiro no banco. Simplesmente, recuse-se a aceitá-Ias.

Às vezes, a reação mais eficiente é testemunhar com coragem, o


que por si só isso já inicia a transformação. A professora budista
Joanna Macy fala do trabalho de capacitação que realizou em uma
das cidades mais próximas do reator nuclear de Chernobyl. Antes, a
área em volta de Chernobyl não era conhecida por causa da usina
nuclear mas pelas belas florestas e montanhas. Durante muitos
séculos, as pessoas que lá viviam passeavam pelas montanhas,
faziam piqueniques, colhiam cogumelos, pescavam, caçavam e
cortavam lenha. Agora, em casa e no trabalho, selam janelas e
portas com fita adesiva e não podem sair por causa do risco da
radiação. Tudo o que lhes restou são as fotografias da floresta na
parede.
Num encontro com líderes da comunidade, Joanna perguntou
quando poderiam voltar à floresta. "Nem no tempo dos nossos
tataranetos e nem do tempo dos tataranetos deles!" Levaria
séculos. Fez-se o silêncio.
Então, uma mulher levantou e perguntou, zangada, por que Joanna
e a equipe dela estavam remexendo nessa tristeza. Joanna
continuou em silêncio. Finalmente, um homem falou: "Pelo menos
podemos dizer aos nossos filhos que contamos a verdade." Depois
de outro silêncio, uma mulher disse: "Esses visitantes vieram juntar-
se a nós com um propósito: testemunhar o nosso sofrimento. Agora
vão voltar para suas comunidades e contar a história para que
outros saibam o que aconteceu. Não podemos deixar que esse
envenenamento da terra aconteça em outro lugar, com os filhos de
outras pessoas." Com esse comentário, a amargura de cada um se
transformou no trabalho do bodhisattva.
Uma respeitada psicóloga que conheço trabalha nas Nações
Unidas com refugiados das ditaduras do mundo inteiro. Às vezes
ela não consegue dormir, perseguida pelas histórias de tortura dos
refugiados do Afeganistão, de Uganda, do Haiti, da Guatemala, de
Burundi, da Bósnia e de tantos outros países. É demais para o
coração humano suportar.
Como não dá para suportar sozinha essas tristezas, ela construiu
um altar em seu local de trabalho, com imagens de Kwan Yin, a
deusa da compaixão, de Jesus, de Buda e da Virgem Maria.
Acrescentou imagens de deuses haitianos, um pergaminho árabe
com passagens do Alcorão e imagens de deuses complacentes da
África e da América Latina. Não faltam também algumas flores e
frutas. Todos os dias ela evoca os deuses dos ancestrais de todas
as linhagens da terra. Ela reza para que seus espíritos a amparem
e amparem os que levam seus sofrimentos para ela.
Assim ela sente que não precisa carregar esse fardo sozinha. O
altar expressa não apenas a sua dedicação, mas a dedicação das
grandes forças de compaixão em todo o mundo. A verdade da
interdependência traz responsabilidade, mas traz também
companheirismo e consolo. Não trabalhamos sozinhos pela
mudança: os grandes poderes da existência trabalham conosco.
À medida que o despertar se aprofunda, aumenta a reverência e a
prece. Um altar pode ser a expressão de um coração dedicado. O
ritual de recorrer a um altar já é um profundo ato de rededicação.
Cada vez que nos prosternamos despertamos para a realidade de
que não estamos sozinhos. Cada vez que meditamos e rezamos,
cantamos ou servimos, vamos além da noção estreita de eu,
lembramos que todos os seres despertam juntos. Às vezes, como
bodhisattva, temos que agir com firmeza para deter o sofrimento. Às
vezes, a atitude mais elevada é servir de testemunha; às vezes
nossa intenção traz sucesso; outras vezes temos de testemunhar o
nosso fracasso.
Uma das histórias da vida do Buda fala da hostilidade entre
Kapilivatthu, o pais onde vivia o clã Shakia, o povo do Buda e
Magadha, um pais vizinho.
Quando o povo Shakia percebeu que o rei de Magadha planejava
um ataque, imploraram que o Buda intercedesse. Ele concordou e
fez várias propostas de paz. Mas o rei de Magadha não quis saber:
não conseguiu esfriar a cabeça e resolveu atacar.
Nesse dia, o Buda meditava sozinho sob uma árvore morta ao lado
da estrada que levava a Kapilivatthu. Vindo pela estrada com seu
exército, o rei de Magadha viu o Buda sentado sob a árvore
desfolhada em pleno sol. E perguntou: "Por que você está sentado
embaixo dessa árvore morta?" O Buda respondeu ao rei: "Eu me
sinto bem até mesmo embaixo desta árvore morta porque ela
cresceu no meu belo pais nativo." Essa resposta tocou o coração
do rei. Percebendo a dedicação que os Shakyas tinham pela sua
terra, ele recuou com seu exército. Mas, em outra ocasião, esse
mesmo rei se sentiu provocado e, dessa vez, seu exército destruiu
Kapilivatthu. O Buda ficou de lado e observou.
O fato de nos transformar na paz que buscamos pode mudar uma
situação. Mesmo quando fracassamos, podemos continuar fiéis à
nossa atitude de compaixão. Podemos, como Martin Luther King Jr.,
tomar o partido da verdade.
Eu ainda acredito que tomar o partido da verdade é a maior coisa
do mundo. É o objetivo da vida. O objetivo da vida não é ser feliz. O
objetivo da vida não é buscar o prazer e evitar a dor. O objetivo da
vida é fazer a vontade de Deus, haja o que houver.

Quando dedicamos a vida ao testemunho da verdade, nosso


coração se toma irreprimível. É o que mostra a história de uma
velha freira tibetana, que me foi contada por um fotógrafo. Presa
pelo exército chinês, essa freira ficou quinze anos numa prisão,
sofrendo torturas de todos os tipos. Quando finalmente a soltaram,
ela foi para a Índia. Esse fotógrafo, interessado em retratos de
velhos tibetanos, quis fotografar o rosto enrugado da freira. Ao olhar
pelas lentes da câmera, viu que seus lábios murmuravam orações.
Curioso, ele lhe perguntou como tinha agüentado provações tão
terríveis. Ela respondeu que nunca deixava de dizer suas orações
de compaixão por todos os seres. Quando estava sendo torturada,
rezava pelos torturadores. Quando eles viam que ela estava
mexendo os lábios, colavam sua boca com fita adesiva. Quando
viam a fita se movendo, colavam mais camadas por cima. Mas suas
orações não paravam. E quando terminava a tortura, suas orações
continuavam. Ela rezava pelo bem-estar de todos em qualquer
situação. Essa era a sua verdadeira libertação, o brilho irreprimível
de seu Verdadeiro Ser.

NOSSA DÁDIVA PARA A TERRA

Antes do despertar, nossa alegria é usar as coisas desta terra;


depois da graça do despertar, nossa alegria é prestar serviço às
coisas desta terra. Quanto maior a sabedoria, mais a vida é um ato
criativo, um ato de serviço. Essa compreensão não exclui ninguém.
É essa a sua beleza. Na cultura tradicional de Bali, não há uma
palavra que signifique "artista"; as pessoas "criativas" não são um
grupo específico; não existe a noção de pessoas que servem
opondo-se à de pessoas que não servem. Todos têm de oferecer
seus dons e cada ato está a serviço dos deuses. Tocar uma música
sagrada, dançar, pintar, cantar, contar histórias, entrar em transe
místico e, rezar equivalem a cozinhar uma refeição, fazer uma
plantação, conduzir uma carroça. Tudo é valorizado, todos os seres
têm contato com os deuses.
Cada um de nós tem um dom a oferecer à terra; nós nos
oferecemos à trama da vida o tempo inteiro. Em geral, não
valorizamos as sementes das pequenas contribuições, esquecendo
que vão dar frutos no ambiente maior de tudo o que vive. Com o
despertar, vemos que todas as ações afetam o todo.
Essa visão transforma a nossa vida. Há uma história perene que
capta essa verdade. Em visita a uma pedreira na Europa, um
homem ficou observando os trabalhadores: eles cortavam pedras
que pareciam destinadas às torres de uma enorme construção ali
perto. Ele perguntou a um deles o que estava fazendo. O homem
respondeu, cansado: "Meu trabalho é cortar e retirar as pedras."
Então perguntou ao outro: "O que você está fazendo?" O homem
respondeu: "Sou um cortador de pedras trabalhando para sustentar
minha família." Um terceiro homem, que fazia o mesmo trabalho,
olhou alegremente para ele e disse: "Estou construindo uma
catedral." Quando vemos que a terra é a nossa catedral, nossos
olhos se abrem para uma felicidade secreta em tudo o que
fazemos. Todos os cortadores de pedra contribuíam para uma
grande obra. A única diferença é que um deles sabia disso.
Seja pela ação política, pelo trabalho nas escolas, pela meditação,
seja por passar um ano inteiro nos galhos de uma sequóia - como
fez uma jovem chamada Julia "Butterfly" Hill para impedir o abate
de sequóias centenárias em Humboldt County - temos de contribuir
com a nossa voz, com o nosso jeito de agir. Nossos dons podem se
manifestar na educação de crianças, na lei, no comércio, na
música, na informática ou na jardinagem. Não importa qual seja o
tijolo da construção, mas que a nossa voz, única e singular, esteja
em harmonia com um propósito vivo.
Se não conseguimos lembrar da nossa parte na construção da
catedral, de oferecer nossos dons, de contribuir com a nossa voz, a
vida se toma uma grande tristeza. Quando perde essa visão, o
espírito encolhe e morre. Essa escolha existe até nas tarefas mais
simples. Vi cobradores do pedágio da Ponte Golden Gate evocar o
espírito de São Francisco para dar as boas-vindas a cada carro que
entra na cidade. A expressão de um dom não precisa ser grandiosa.
Quem escreve poesia não precisa escrever dez volumes e ganhar
um prêmio nacional. O agricultor da Ásia que vive da escassa terra
da família pode trabalhar com uma canção nos lábios, pode levar
suas preces inspiradas para a mesquita, pode emprestar sua voz
poética ao vilarejo. Nesse caso, ele também está transformando o
mundo.
Um professor de meditação chama o impacto das pequenas
contribuições de "efeito trim-tab", Quando um transatlântico atinge
certa velocidade, seu impulso é tão grande que não dá para mexer
o leme. Então, é feita uma série de ajustes nas abas da borda do
leme - chamadas trim-tabs. Essas pequenas mudanças vão
alterando a direção do navio até que seja possível mover o leme e
mudar o curso da navegação. Como as trim-tabs, os nossos atos,
por pequenos que sejam, mudam o curso da vida à nossa volta.
Usar a nossa vida para aproximar o mundo da compaixão e afastá-
lo do sofrimento é a única coisa que importa.
Os dons são bênçãos dos ancestrais, dos deuses, da criativa
inteligência da vida. Se estamos abertos, nossos dons nos
escolhem assim como nós os escolhemos. No começo, basta ouvir.
No silêncio, livres do clamor e da sofreguidão da moderna cultura
de consumo, ouvimos o intimo sussurrar do que devemos fazer.
Essa voz nos diz se é para começar um projeto de jardim, escrever
uma carta para a Anistia Internacional, confortar uma criança que
chora, contribuir com mais uma pedra para a catedral que não
vamos chegar a ver terminada.
Há um ditado dos índios Ojibway que diz: "Às vezes eu saio por aí
com pena de mim mesmo, e enquanto isso percorro o céu levado
pelos ventos." Quando despertamos, percebemos que somos
levados por esses ventos, pelo Espírito Santo, pelo Tao, pelo
Dharma, pelo sagrado rio da vida. Percebemos que pertencemos a
esta terra. Somos a pessoa certa e estamos no lugar certo para
despertar, no lugar que nos foi dado para servir.
Essa compreensão traz tranqüilidade e gratidão. São tantas as
bênçãos que recebemos: o alimento da terra, a escuridão do céu
estrelado, o calor da amizade, a criatividade das artes, a mudança
das estações, a capacidade de ter compaixão. Cabe a nós
agradecer pelas dádivas da vida nesta terra linda, protegê-Ia,
celebrá-Ia e oferecer nossos próprios dons.

É isso que você deve fazer: ame a terra, o sol e os animais,


despreze as riquezas, dê esmola a todos os que pedem,
defenda os parcos e os loucos,
devote seus rendimentos e seu trabalho aos outros, odeie os
tiranos,
não discuta a respeito de Deus,
seja tolerante e paciente com as pessoas...
reexamine tudo o que lhe disseram na escola
ou na igreja ou em qualquer livro,
recuse o que insulta a sua alma,
e seu corpo vai se tomar um grande poema.

Walt Whitman
17
O RISO DO SÁBIO

Como tudo é apenas


exatamente como é,
podemos muito bem cair na risada.
LONG CHEN PA

O fim de toda a nossa procura


Vai ser chegar onde começamos
E ver o lugar pela primeira vez.
T. S. ELOT

Meu amigo James Baraz conta que viajou para a Índia para passar
um tempo com o guru H. W. L. Poonja. Poonja era conhecido por
sua liberdade de espírito, pela energia que transmitia a seus
discípulos e pela sua risada jovial. James, que praticava meditação
havia vinte anos, era um professor budista muito querido. Querendo
crescer ainda mais e desejoso de ter um contato mais profundo com
o coração da vida espiritual, ele foi para a Índia. Depois de alguns
dias de conversa com o mestre, James explicou que o treinamento
budista tinha lhe dado atenção, compaixão e sabedoria, mas que
não lhe tinha ensinado muita coisa sobre a graça. Estava
desorientado. Como saber se estava recebendo a graça do guru,
como procurá-Ia? Os outros discípulos ouviam com atenção.
O mestre olhou para James e riu, achando graça na pergunta.
"Você ensina numa comunidade dedicada à vida espiritual, tem
uma família saudável na Califórnia, um lugar lindo, está na Índia
cercado de irmãs e irmãos devotados ao caminho. Agora está
meditando, falando com o mestre, e ainda pergunta onde encontrar
a graça?" Riu de novo. "Você está mergulhado na graça até o
pescoço."
Todos nós estamos mergulhados na graça até o pescoço. Estamos
envolvidos pelo calor do sol e pelo abraço brilhante da neve; somos
alimentados pelas águas doces da chuva; estamos vivos no grande
mistério. Em quaisquer circunstâncias, temos capacidade total para
despertar. Com coração aberto e mente aberta, descobrimos uma
grande paz, uma presença amorosa nas coisas como elas são.
Descansando na consciência simples do presente, o coração se
toma íntegro. Quando aceitamos a corrente da vida, a iluminação e
a graça surgem naturalmente. Não é uma conquista; é sabedoria
viva.
Como diz Suzuki Roshi: "Quando compreendemos a verdade
eterna de que 'tudo muda' e nela encontramos serenidade, estamos
no Nirvana." Cada momento desse despertar traz sensibilidade para
a tragédia e para a beleza. Quando precisamos de força, lá está
ela; quando precisamos de flexibilidade e submissão, lá estão elas.
Ficamos à vontade nesta vida incrível.

O REPOUSO NO MISTÉRIO

Dentro no Grande Mistério que é,


nada possuímos.
O que é então essa rivalidade que sentimos,
antes de passar, um por vez, pelo mesmo portão?
Rumi (Tradução de Moyne e Barks)

O mistério da vida contém a infinita escuridão do céu da noite


iluminada pelas distantes órbitas de fogo, a casca enrugada de uma
laranja que solta sua fragrância ao nosso toque, as profundezas
insondáveis dos olhos da amada. Nenhuma história da criação,
nenhum sistema religioso consegue descrever ou explicar direito
essa riqueza e essa profundidade. O mistério é tal que ninguém
sabe ao certo o que vai acontecer daqui a uma hora.
Do ponto de vista do mistério, não existe um caminho fixo. Na
verdade, nem existe um caminho, pois isso seria situá-lo no domínio
do espaço e do tempo. Mas tempo e espaço também são um
mistério - o passado que desapareceu, o futuro só imaginado, o
presente tão fluido quanto a água. Despertar não é fixar nem
segurar, mas gostar do que está aqui. Essa verdade liberta o
coração da sofreguidão. O mistério que nos gerou se transforma
numa dança.
Os sábios hindus chamam essa dança de "lila", a dança eterna da
vida. Para os místicos cristãos e judeus, ela é a mente de Deus, um
jogo do Divino, enquanto, para os budistas, o nascimento e a morte
são ondas no oceano da consciência: aparecem e logo
desaparecem, como um sonho.
Essa verdade está sempre conosco. Quem entra em contato com
essa realidade eterna, está curado. Isso acontece quando, perdidos
no melodrama da vida, sucumbimos ao medo ou à saudade, ao
amor ou ao ciúme, à raiva ou ao júbilo. De repente, ouvimos uma
voz dizer: "Essa me pegou!" Então, damos uma risada e estamos
livres.
Foi essa a idéia que Ram Dass me passou quando voltou para casa
depois do derrame. Eu lhe telefonei e perguntei como estava. Ainda
falando devagar, ele respondeu: "Foi uma viagem." Ele explicou
que, nas semanas mais difíceis, tinha contado com suas orações e
com seu guru. Então, falando com dificuldade, ele me agradeceu
pelo belo retrato do sábio Ramana Maharshi que eu lhe havia dado
no hospital. Achei que seria uma boa fonte de inspiração, pois
Ramana ensinava principalmente através do silêncio. Como
retribuição, Ram Dass me ofereceu um retrato do seu guru, Neem
Karoli Baba. Então disse devagar: "É como figurinhas de jogadores
de beisebol... eu troco um... um... Neem Karoli Baba... e... um...
Mickey Mantle... por um... Ramana Maharshi... e um Ted Williams."
Ele riu com gosto e eu ri aliviado porque percebi que, apesar de
todas as seqüelas do derrame, Ram Dass estava muito bem.
O sábio Hermes Trismegisto ensina esta meditação como forma de
lembrar da verdade eterna da vida humana:

Sinta que você ainda não nasceu, que está no útero, que é jovem,
que é velho, que morreu, que está no mundo além-túmulo. Capte na
mente tudo isso de uma só vez, todos os tempos e os lugares
expandidos a todas as qualidades e magnitudes juntas, e você
começará a ver o jogo do Divino.

Este poema dá o mesmo recado em forma moderna.

Vida Reversa
A vida é dura,
toma muito do seu tempo,
todos os fins de semana,
e no fim o que você ganha?
A morte, que bela recompensa.
Acho que o ciclo da vida está ao contrário.
Você devia primeiro morrer, ficar livre disso.
Depois viver vinte anos num asilo de velhos.
Ser posto para fora quando ficar jovem demais.
Ganhar um relógio de ouro, ir trabalhar.
Trabalhar quarenta anos até ser
jovem e poder gozar sua aposentadoria.
Ir para a faculdade,
festejar até estar preparado para o colégio.
Então virar criança, brincar,
não ter responsabilidades,
virar um menininho ou uma menininha,
voltar para o útero,
passar seus últimos nove meses flutuando.
E terminar como um brilho nos olhos de alguém.

A religião quer explicar o mistério do nosso nascimento neste


mundo; a meditação e a prece procuram nos abrir para ele. A
sabedoria celebra esse mistério e a compaixão ama isso tudo - o
brilho nos olhos de cada ser.
Quando eu estava na oitava série, meu professor de ciências
perguntou: "Se o nosso sistema solar, do Sol à órbita de Plutão,
fosse do tamanho desta bola de beisebol, de que tamanho seria o
resto da nossa galáxia?" "Do tamanho de uma montanha", disse um
aluno. "Do tamanho da cidade?" arriscou outro. "Não", disse o
professor. "Comparada a esta bola, a galáxia é maior do que o pais
inteiro." Hoje em dia, nossos telescópios conseguem enxergar cem
bilhões de galáxias assim e não temos idéia do que existe além
delas.
O mistério nos cerca num milhão de espécies de insetos, no milagre
da fala, através do qual meus pensamentos fazem vibrar o ar e o
transformam em palavras, batem no seu tímpano e despertam
imagens na sua imaginação. Tudo isso acontece através do
mistério da consciência. A ciência o reconhece, a meditação se
abre para ele, mas ninguém consegue explicá-Ia de verdade.
"Tudo isso é criação da mente", começa o Buda. Rabindranath
Tagore elabora: "Em geral, achamos que a mente é um espelho
que recebe impressões exatas do mundo exterior, sem perceber
que ela é o principal elemento da criação." Senão, como explicar o
resultado do estudo duplo-cego que Randolf Byrd realizou na escola
de medicina da Universidade da Califórnia? Segundo ele, os
pacientes que, sem saber, eram objeto das orações de outras
pessoas, se recuperavam mais depressa do que os outros. A
consciência é a fonte da experiência, o jogo do próprio mistério. A
vida espiritual nos abre para a experiência direta dessa verdade.
O professor budista e diretor de asilo Rodney Smith fala da visita
que dois filhos fizeram ao pai, que estava muito doente e perto da
morte. Eles tinham acabado de saber que seu tio, o irmão mais
novo do pai, morrera num acidente. Deviam contar ao pai? Depois
de alguma consideração, decidiram não perturbar sua morte
tranqüila com notícias trágicas. Entraram juntos no quarto do pai
para ver como ele estava. Depois de alguns minutos, o pai
perguntou: "Vocês não têm uma coisa para me contar?" "Como
assim?" perguntaram os filhos. "Sobre o meu irmão que morreu."
Eles ficaram assombrados. "Como você soube?" "Fiquei
conversando com ele a manhã inteira." Então, passaram algum
momentos juntos, compartilhando seu amor e, logo depois, o pai
morreu.
Histórias assim podem nos dar a certeza de que há vida além do
corpo. Mas temos que tomar cuidado para não explicar o mistério
com tanta facilidade. As imagens do céu cristão, os ensinamentos
hindus sobre a reencarnação ou os domínios tão bem descritos no
Livro Tibetano dos Mortos podem nos levar a acreditar que
compreendemos o mistério da morte. Mas, quando chega, a morte
continua desconhecida.
Stephen Levine, que durante anos fez um trabalho inovador em
asilos, conta a história de uma criança com câncer terminal. Já
perto da morte, o menino começou a flutuar entre os mundos.
Várias vezes sua respiração parou. Voltando de um desses
momentos de quase-morte, ele abriu os olhos brilhantes e, quando
conseguiu falar, disse que tinha visto uma luz e entrado num túnel.
Stephen estava acostumado a ouvir esse tipo de coisa. Mas não
estava acostumado a ouvir o que o menino disse em seguida:
"Então vi Rafael, que quis me ajudar." Não Rafael o arcanjo, mas
Rafael, a Tartaruga Ninja, uma das sábias e benevolentes
Tartarugas Mutantes, famosas na época e importantes para o
menino. Essa figura tinha vindo para conduzi-lo ao além.
Será que isso significa que, perto da morte, vemos apenas ilusões
da nossa mente? Ou será que significa que a luz que nos aguarda
atravessa as imagens de que gostamos, sejam elas quais forem?
Não dá para saber. A morte continua sendo um mistério.
Perguntaram a um mestre zen o que acontece quando morremos, e
ele respondeu: "Não sei." "Mas você não é um mestre zen?"
insistiram. "Sou, mas não um mestre zen morto."
Uma vez, perguntaram a Thoureau o que ele pensava sobre a
morte e o além, e ele respondeu de um jeito bem americano: "Um
mundo de cada vez."

A SABEDORIA DO NÃO SABER

Sabedoria não é saber, mas ser. Os místicos cristãos ensinavam os


buscadores a entrar na Nuvem do Não Saber com o coração
confiante. O coração sábio não é o que compreende tudo, mas o
que consegue tolerar a verdade de não saber. A sabedoria cria vida
na presença do mistério, quando o coração está aberto, sensível,
totalmente receptivo. Dessa simples presença, dessa empatia,
desse amor, dessa receptividade, nascem todas as coisas.
Um professor hindu conta que, com o tempo, passou a confiar, não
no conhecimento, mas no amor.

"Tenho que deixar para lá essa necessidade de saber tanto. O que


dá para saber é tão pouco - a santidade à nossa volta é tão grande.
Agora eu confio na Simplicidade, na simplicidade e no amor."

Meu professor Ajahn Chah costumava reagir às perguntas, planos e


idéias das pessoas com um sorriso. Ele dizia: "Mai neh." Essa frase
significa: "É incerto, não é?" Ele compreendia a sabedoria da
incerteza, a verdade da mudança e se sentia bem em meio a elas.
Um professor sufi me disse:

"O mais maravilhoso do processo do desabrochar espiritual é ser


tão cheio de imprevistos. Estudei os textos sagrados durante anos,
mas nunca soube o que estava para acontecer. Houve experiências
incríveis, fui arrebatado por possibilidades além do meu
conhecimento. E aprendi que a experiência nunca é como
pensamos que será. Saber disso é a verdadeira sabedoria."

A verdade é que não sabemos. Nem o Papa, nem o Rabino de


Jerusalém, nem mesmo a sua mãe sabe o que vai acontecer
amanhã. Nem nós. Simplesmente não sabemos.
O mestre zen coreano Seung Sahn treina seus alunos para viver no
que ele chama de "mente que não sabe". Pergunta a eles: Quem é
você? Onde está a sua mente? O que é consciência? De onde você
veio? Os alunos respondem que não sabem e ele diz: "Pois
guardem essa mente que não sabe." Descansem nela, confiem
nela. Assim como no caso da Nuvem do Desconhecido e do
"desaprender" do Tao, a sabedoria cresce quando nós nos abrimos
para a verdade do não saber.
É um prazer falar com alguém que não sabe tudo, que tem a mente
aberta e vontade de ouvir. Nessa mente há uma presença deliciosa,
há receptividade e humildade. O Terceiro Patriarca zen diz o
seguinte: "Se você quer conhecer a verdade, basta parar de
alimentar opiniões." No mais antigo dos textos budistas, o Sutta
Nipata, o Buda levanta essa questão, terminando com uma bem-
humorada cutucada nos que têm opiniões:

Vendo infelicidade em visões e opiniões, sem adotar nenhuma,


encontrei paz interior e liberdade. Quem é livre não se agarra a
visões nem discute opiniões. Para um sábio, não há superior,
inferior nem igual; não há lugares em que a mente possa se fixar.
Mas os que se prendem a visões e opiniões andam pelo mundo
aborrecendo as pessoas.
Antes eu não entendia o Significado disso. Depois de praticar em
mosteiros, comecei a organizar retiros. Nessa época, eu tinha
muitas idéias. Minha prioridade era ensinar às pessoas princípios
budistas que lhes permitissem superar a avidez, o ódio e a ilusão e
desenvolver a atenção e a compreensão. Eu queria que as pessoas
compreendessem a própria avidez, que se livrassem da ganância,
da raiva, do ódio e da confusão, achando que era isso que traria a
transformação. À medida que amadureci, fui percebendo que é
muito mais simples.
Sobre a avidez e a sofreguidão, sob a necessidade de
compreender, está o que chamamos de "corpo de medo". Na raiz
do sofrimento está um coração pequeno, assustado, com medo de
confiar no rio da mudança, de se abandonar a este mundo em
mutação. Esse coração pequeno e fechado luta sofregamente para
controlar o imprevisível. Mas nunca dá para saber o que vai
acontecer. Com sabedoria, deixamos que esse não saber se
transforme numa forma de confiança. Nós nos apoiamos no que
Jocelyn King, budista veterana, chamou de o "Chão Firme do
Vazio". Chogyam Trungpa fala de abandonar o território do ego e
confiar na ausência de chão, de razão. São João da Cruz diz o
seguinte: "Se um homem quer ter confiança na estrada que trilha,
tem que fechar os olhos e andar no escuro."
Terry Dobson era um dos maiores mestres de arte marcial do
Ocidente. Quando estudava Aikidô em Tóquio, treinou também com
um mestre carpinteiro. Passou um ano varrendo serragem, afiando
ferramentas e observando. Quando recebeu os primeiros pedaços
de madeira para trabalhar, vendaram-lhe os olhos. Levou meses
aprendendo a aplainar, lixar e aparelhar a madeira usando apenas
o tato. Essa foi uma das experiências mais memoráveis de seus
tempos no Japão, um aprendizado do corpo e do coração, que se
integrou não apenas à prática da carpintaria, mas também do
Aikídô.
Sabedoria não é informação, mas uma presença constante, uma
abertura intuitiva do corpo e do coração. Na sabedoria, o corpo de
medo se esvai e o coração descansa. Como o amor, a sabedoria
não precisa de explicação. Como o Tao, traz harmonia e bem-estar.
É por isso que Ryokan, o amado poeta zen, respondia às perguntas
dos visitantes sobre iluminação e sobre a natureza do bem e do mal
dizendo: "Tenho apenas a tranqüilidade do meu eremitério para
oferecer em resposta."

AS PRÁTICAS DE SABEDORIA

Na mandala da totalidade, descobrimos que o coração desperto


está disposto a se abrir a todas as dimensões da vida. Mas, com os
anos, o que acontece com a prática da prece, da contemplação, da
devoção, dos cantos, da meditação ou dos rituais de yoga? De
certa forma, nada acontece. Continuamos a praticar do mesmo jeito
e até com mais cuidado e dedicação: essas práticas continuam
sendo um ingrediente importante da vida sagrada. Por outro lado,
praticamos de maneira radicalmente diferente.
Com a maturidade espiritual, a base dessas práticas deixa de ser a
ambição, o idealismo e o desejo de autotransformação. É como se
o vento mudasse e o cata-vento - ainda centralizado no mesmo
ponto - apontasse agora em outra direção: para este momento. Não
lutamos mais para atingir um destino espiritual nem ansiamos por
um mundo diferente do que temos. Estamos em casa. E, em casa,
varremos o chão, fazemos refeições nutritivas e cuidamos dos
convidados. Depois de compreender as verdades eternas da vida, o
que resta a fazer além de praticar?
Se a nossa prática era a prosternação, continuamos a nos
prosternar, despertos para uma reverência por tudo o que vive. Se
nossa prática era a oração, rezamos agora por amor a todos os
seres. Se nossa prática era a meditação ou a dança sagrada,
meditamos ou dançamos para expressar o coração desperto.
Além disso, a prática constante é necessária. Ainda podemos ficar
perdidos, confusos, presos nas dificuldades da vida moderna. A
prática constante nos purifica, nos dá firmeza, nos faz lembrar do
que é verdadeiro. As práticas diárias nos ajudam a manter o
equilíbrio, a cuidar do corpo, a manter o coração aberto, a fortalecer
a capacidade de oferecer amor. Praticar é como limpar a casa. Não
limpamos a casa uma vez só e pronto: essa é uma tarefa constante.
Mas é também um prazer viver numa casa limpa, que homenageia
quem entra. Mas não somos a casa e, por mais ambiciosa que seja
a limpeza, ela não modifica a natureza da nossa vida. Praticamos
para expressar o despertar, não para atingi-Ia.
Diz uma freira:

"Quando olho para as irmãs mais velhas, o que mais admiro é o seu
bom coração. Elas servem, trabalham, rezam e ensinam como
quando eram garotas, mas têm agora uma beleza diferente.
Naquela época, estávamos todas cheias de ardor, querendo ser
virtuosas e dignas de Deus, esperando encontrar alguma coisa
especial nesta vida sagrada. Agora rezamos porque gostamos de
rezar, ensinamos e trabalhamos com bondade e amor. É simples e
natural, uma forma de distribuir a alegria de Deus."

Frank Ostaseski, que dirigiu por muitos anos o asilo do Centro Zen
de San Francisco, conta uma história simples que fala de sabedoria
e confiança:

Um dia antes de morrer, John estava num coma agitado. O rosto


estava cheio de tensão, a cabeça muito para trás, os músculos da
garganta duros e contraídos. Respirava com muito esforço. Era
claramente um outro estágio da morte, mas parecia que tinha
alguma coisa presa. Um famoso professor com experiência nessas
coisas disse que seu espírito estava tentando deixar o corpo e que
eu tinha que tocar o topo da cabeça dele para indicar o caminho.
Um médico me disse para aumentar a dose de morfina para relaxar
a respiração. Um terapeuta corporal me disse para pressionar
certos pontos dos pés para aliviar a tensão. Fiz tudo isso, mas nada
mudou.
Instintivamente, quis envolvê-lo com o meu corpo. Subi na cama e
aninhei John em meus braços. Fiquei balançando de um lado para
outro e cantar cantigas de ninar para ele. Não do tipo convencional,
elas que a gente vai inventando na hora. Palavras e sons
misturados ao acaso, sem fazer muito sentido - apenas "canções de
amor", costumo dizer. Todos os pais já fizeram isso para um filho
doente assustado.
Enquanto cantava em seu ouvido e beijava-lhe a testa, minhas
mãos descobriram o que fazer, embora eu não tivesse um objetivo
em mente.
Meus dedos acariciaram sua garganta e seu rosto e minha mão
espalmada fez movimentos circulares sobre seu coração. Perdemos
a noção do tempo. Eu senti que ele afundava em mim, meu corpo
amparando o que havia sobrado de sua forma ossuda. Finalmente
sua garganta começou a relaxar e sua cabeça veio mais para a
frente. Seus olhos se abriram. Estavam aliviados.
Depois eu me perguntei se havia agido bem. Talvez tivesse sido
melhor seguir o conselho do professor. Será que eu o tinha trazido
de volta de um estado de quase-morte? Será que eu havia
interrompido algum processo de liberação? Não sei ao certo. Só sei
que, sem ternura no coração, não dá para ser livre.

A CRIANÇA DO ESPÍRITO

Depois de nos fazer passar por muitas aventuras, a jornada


espiritual nos trouxe de volta para onde estamos agora. Rumi e
Nietzsche usam três imagens poéticas para descrever essa jornada:
o camelo, o leão e a criança. Esses estágios do caminho não
passam de aspectos do desabrochar da consciência: a cada
momento, contemos os três. Mas são também passos progressivos
do caminho.
O camelo representa a entrega inicial, a dedicação, a disposição
para ajoelhar, para carregar dignamente o nosso fardo, para
enfrentar a desolação, para viajar para terras distantes. Nos
estágios do camelo, ficamos disponíveis para o espírito através da
humildade, da prece, da repetição e do trabalho braçal. O respeito
por cada passo difícil nos leva a um lugar seguro aqui na terra. A
devoção traz a cura, o coração paciente alimenta a compaixão. O
camelo nos dá a base da dignidade.
Quando descobrimos que o coração consegue enfrentar qualquer
situação, as alegrias e tristezas da existência, despertamos para a
liberdade. Então, o leão dourado se manifesta com um rugido. Da
boca do leão sai a intrépida voz da verdade, a libertação do coração
irrestrito. O reino é nosso. Nesse estágio, deixamos de ser
buscadores: encontramos, para lá do pequeno eu, a certeza da
graça e uma plenitude eterna.
Dizem que o Buda falava com um rugido de leão. O leão ruge com
o corpo inteiro e, até mesmo no zoológico, esse som silencia todos
os outros animais. Depois de vinte anos numa jaula, essa voz ainda
grita: "Não sou um animal de zoológico." O leão, como um rei ou
rainha, vive em bem-aventurança real e total liberdade de coração.
A realeza do leão concede a graça a tudo com o que tem contato.
No último estágio, o leão dá lugar à criança, a uma inocência
original. É a Criança do Espírito, para quem todas as coisas são
novas. Para essa criança divina há admiração, tranqüilidade e um
coração alegre. A criança fica à vontade na realidade do presente,
capaz de usufruir, de reagir, de perdoar e de dividir a graça de estar
viva.
Através da criança, a jornada nos traz de volta para testemunhar
com assombro e amor o desabrochar natural de tudo o que vive. O
Buda declara: "Este mundo e o coração puro que o percebe são
luminosos." Quando nós nos deixamos abrir para a inocência, toda
a existência se toma sagrada.
Thomas Merton descreveu o momento em que abriu os olhos dessa
maneira:

Então, foi como se de repente eu visse a beleza sagrada do


coração de todos, onde nem o pecado nem o desejo chegam, o
âmago de sua realidade, a pessoa que cada um é aos olhos de
Deus. Se ao menos todos se vissem como realmente são. Se ao
menos víssemos uns aos outros dessa maneira, não haveria
guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância... Acho que
haveria só um problema: nós nos lançaríamos por terra para
venerar uns aos outros.

A inocência da visão infantil é celebrada em todas as tradições. Os


hindus tratam do aspecto infantil de Deus nas histórias em que o
Senhor Krishna é uma criança sagrada que toca flauta entre as
ordenhadoras e as flores. O Cristianismo celebra o nascimento de
Cristo Menino perto do solstício do inverno e tem imagens do
Menino Jesus nos braços de Sua mãe. O místico Angelus Silesius
ensina: "Se você fizer no coração uma manjedoura para o Seu
nascimento, então Deus vai se tomar criança nesta terra outra vez."
Todos os anos, os budistas da Tailândia e do Laos jogam água nos
monges do mosteiro, banhando cada um deles como se fosse o
Buda Menino que acabou de nascer.
Ajahn Chah dizia que, para atingir essa inocência, basta confiar na
mente original. Ele ensinava que a Mente Original está sempre aqui
- é o silêncio entre os pensamentos, a consciência fundamental,
clara, desobstruída e pura. É estar aberto antes e depois da
experiência, acatando o sofrimento e a alegria com compaixão
ilimitada. Um koan zen nos põe na direção dessa Mente Original:
"Mostre o rosto que você tinha antes de seus pais nascerem."

VER COM OS OLHOS DO MOMENTO

No coração inocente nada se repete. Quando o filósofo grego


Heráclito disse que não dá para entrar duas vezes no mesmo rio,
ele sabia também que não dá para encontrar duas vezes a mesma
pessoa, que a palavra "pão" não faz justiça à forma e à textura do
pão, ao momento em que passamos manteiga numa fatia para levá-
Ia à boca. Rumi festeja esse frescor:

Senhor, hoje o ar cheira bem, direto dos mistérios


dos pátios internos de Deus.
Uma graça como a de roupas novas atiradas no jardim,
remédios de graça para todos.
As árvores em prece, os pássaros em louvor.

Não dá para prever como a consciência do mistério vai redespertar


em nós, ou em que forma. Há muito tempo, eu vivia com um de
meus primeiros amores e seus filhos, Seth e Chani. Quando as
crianças tinham três e cinco anos, o circo Ringling Brothers chegou
à cidade. Comprei ingressos para nós bem perto do picadeiro, na
segunda fileira.
As crianças gostaram dos palhaços e dos tigres. Os outros números
- a corda bamba, os ilusionistas, os contorcionistas, os cavalos
ensinados - não pareceram tão extraordinários aos olhos delas.
Mas então vieram os elefantes e seus domadores vestidos com
plumas e lantejoulas. Eles deram duas voltas no picadeiro,
chegando bem perto de nós. Então pararam, enquanto o mestre-de-
cerimônias falava. De repente, o grande elefante, bem à nossa
frente, começou a fazer xixi: uma cachoeira jorrou na areia,
formando uma poça gigante. Os olhos das crianças se arregalaram.
E então o elefante começou a fazer cocô. Esferas enormes, do
tamanho de bolas de boliche, caíram pesadamente no chão, uma
por vez, plop, plop, plop. E a cada uma delas a emoção crescia.
As crianças falaram do circo durante muito tempo. E o que
contavam e recontavam era a história do elefante. Foi o número de
circo mais extraordinário de todos.
É a própria vida que é extraordinária, cada momento é único. O Zen
respeita esse mistério como ele é - uma coisa de cada vez. Como
ensina Kodo Rishi: "Você não come para fazer cocô, você não faz
cocô para produzir adubo." Com os mesmos olhos de sabedoria,
não praticamos a meditação ou a prece para criar uma realidade
especial. Comer, andar, falar, ver, respirar, defecar - cada coisa é
extraordinária em si mesma.
Esse coração inocente, a nossa Natureza Búdíca, a Criança do
Espírito, o Sagrado interior nunca se degrada nem se perde. Nunca
nasce e nunca morre. Ver dessa maneira é ver, como diz o Tao,
"com os olhos livres dos anseios". Quando despertamos o coração
inocente, encontramos o nosso verdadeiro lar. À vontade,
celebramos as maravilhas simples de cada dia.
O Mestre Zen Dogen nos diz:

A vida de um dia é suficiente para comemorar. Mesmo que você


viva só um dia, se estiver desperto, esse único dia é imensamente
superior a uma interminável vida de sono... Se numa vida de cem
anos esse dia se perde, será que você vai tocá-lo outra vez com as
mãos?

A RISADA DO SÁBIO

A antiga cidade de Kyoto é o lar dos mais primorosos mosteiros do


Japão. Muitas pessoas vão para lá em peregrinação para sentir os
jardins de pedras, para se prosternar nos templos ou para tomar
chá perto de seus santuários. Um dia, durante uma visita, o poeta
zen Bashô escreveu estas linhas:

Mesmo em Kyoto,
Ouvindo o canto do cuco
Tenho saudades de Kyoto.

Essa saudade sagrada é a de voltar para onde estamos e "ver o


lugar pela primeira vez". Voltamos, então, à nossa verdadeira
natureza. Sri Nisargadatta tinha o costume de rir e perguntar: "Por
que não confia? Você está na sua própria casa." Dizia ainda:
"Pensar em renunciar ao mundo é um erro. Você não precisa
renunciar ao mundo, mas renunciar apenas ao esforço e ao medo.
Você renuncia aos pequenos prazeres pelo prazer maior do Divino."
O I Ching diz: "Uma revolução deve alegrar o coração das
pessoas." Entregar-se ao despertar é um ato revolucionário, uma
transformação do mundo. Mahaghosananda, do Camboja, ensina
que, mesmo em meio ao sofrimento do próprio povo, é possível
manter o coração feliz. Ele explica que o objetivo da prática budista
é despertar no coração a compaixão e a benevolência, haja o que
houver. Se não dá para ser feliz, qual é a utilidade da prática? E é
na sabedoria do coração aberto e sereno que acatamos todas as
formas deste mundo com compaixão e ternura, sabendo que elas
aparecem só uma vez. Repousamos em sua fonte perene, na graça
eterna de onde tudo vem.
Os tibetanos sussurram essa sabedoria sagrada nos ouvidos dos
moribundos: "Lembre-se da luz, da luz pura da qual vem tudo o que
há no universo, para a qual tudo volta, para a natureza original da
sua mente. Essa é a sua verdadeira natureza, é a sua casa."
Essa sabedoria é cantada na prece da unidade do Judaísmo, é
adorada no Espírito Santo do amor cristão, é celebrada no Brahman
eterno pelos hindus e é a essência do Tao.

Se você não conhece a fonte,


você tropeça na confusão e na tristeza.
Se sabe de onde vem,
você se toma naturalmente tolerante,
desinteressado, divertido,
bondoso como uma avó,
digno como um rei.
Mergulhado na maravilha do Tao,
você sabe lidar com tudo o que a vida traz,
e então, quando a morte vem, você está preparado.
(Tradução de Stephen Mitchell)

Quando encamamos essa verdade, a vida se toma uma bênção.


Compaixão, compreensão, uma liberdade alegre toca tudo o que
encontramos. Uma radiância de amor sai de nós como as plantas
que brotam nas frestas do cimento. Ficamos como os antigos bules
de chá chineses. Dizem que quando um bule de chá é usado por
uma família chinesa durante cem anos ou mais, não é mais
necessário pôr chá dentro dele. Basta pôr água, que o bule faz o
chá sozinho.
Como o bule, nós somos a fonte. Deixando de lado a ambição e o
medo, nós voltamos para casa. Sem imitação, nós nos tomamos
quem somos. Nosso ser fica à vontade, nosso coração se abre.
Alegria e liberdade de espírito enchem os nossos dias.
Uma história que tem esse espírito me foi contada por um amigo
que assistiu à palestra do Dalai Lama sobre a Roda do Tempo
Tibetana, no Madison Square Garden. Como essa é uma das
práticas Vajrayana mais elevadas, foi introduzida por um ritual
complexo e respeitoso. Pintaram mandalas de areia.
Montaram para o Dalai Lama um trono muito elegante, coberto com
tapetes e brocados. Quando a multidão se acomodou, um grupo
colorido de lamas e monges começou a entoar cânticos sagrados,
acompanhados pelo som de sinos tibetanos, címbalos e grandes
cometas montanhesas. O Dalai Lama entrou, andou pelo carpete e
subiu para ocupar o lugar do Dharma, no topo do trono. Para deixar
o assento mais confortável, os organizadores tinham empilhado
colchões cobertos de brocado. O Dalai Lama sentou-se, afundou e
pulou. Um sorriso iluminou o rosto dele. Pulou de novo e sorriu mais
ainda. E na frente de milhares de alunos, antes de falar coisas
elevadas sobre a Roda do Tempo e a criação do mundo, o Dalai
Lama ficou pulando nos colchões, feliz como uma criança.
Para terminar este livro, eu reverencio a plenitude de cada um de
vocês, a verdadeira natureza de vocês. Que a jornada os conduza
para casa. Que possam repousar na graça, na compaixão natural e
num coração liberto. Em tempos de alegria ou tristeza, no êxtase ou
lavando a roupa suja, que vocês sejam felizes. Que os que lerem as
palavras deste livro encontrem liberdade e alegria. Que o amor de
vocês traga beneficio a todos os seres. E que, em meio a tudo isso,
vocês se lembrem de pular no colchão.

Quanto a mim, só conheço milagres.


WALT WHIIMAN
AUTORIZAÇÕES
Agradecemos aos seguintes editores e autores pela autorização de
reproduzir partes do excelente conteúdo de seus livros: Open
Secret: Versions of Rumi, traduzido [para o inglês] por Coleman
Barks.
Reproduzido com permissão da Threshold Books, Aptos, Califórnia.
Agradecimentos a Robert Bly e Michael Meade pelas versões orais
de onde foram extraídas as histórias de Baba Yaga e da Princesa
Aris, e a Coleman Barks pelas imagens do camelo, do leão e da
criança, que aparecem em seu livro de traduções de Rumi chamado
Feeling the Shoulder of the Lion, Threshold Books, Aptos,
Califórnia, 1991.
New and Selected Poems, de Mary Oliver. Copyright © Mary Oliver,
1992.
Reproduzido com permissão de Beacon Press, Boston.
The Gold Cell, de Sharon Olds. Copyright © Sharon Olds, 1987.
Reproduzido com permissão de Alfred A. Knopf, uma divisão da
Random House, Inc.
Selected Poems of Rainer Maria Rilke, edição e tradução [para o
inglês] de Robert Bly. Copyright © Robert Bly, 1981. Reproduzido
com permissão de HarperCollins Publishers, Inc.
Teachings of the Buddha, de Jack Kornfield. Trechos de "Fíre
Sermon", de Mahavagga, p. 42; "The Eye of Wisdom", "Sutra of
Forty-Two Sections", p. 132; "Song of Zazen", p. 205. Reproduzido
conforme negociações com Shambhala Publications, Inc., Boston.
Poemas de Symeon o Novo Teólogo e Angelus Silesius em The
Enlightened Heart, de Stephen Mitchell, Copyright © Stephen
Mitchell, 1989. Reproduzido com permissão de HarperCollins
Publishers, Inc.
As linhas de Ernily Dickinson foram reproduzidas com permissão
dos editores e curadores do Arnherst College e extraídas de The
Poems of Emily Dickinson, Ralph W. Franklin, ed., Cambridge,
Mass.: Belknap Press da Harvard Universíty Press. Copyright ©
Presidente e Conselheiros do Harvard College, 1998.
Copyright © Presidente e Conselheiros do Harvard College, 1951,
1955, 1979.
Returning to the Source, de Wilson Van Dusen. Reproduzido com
permissão da Real People Press.
AB linhas "I lay on the bowsprit..." são extraídas de Long Day's
Journey into Night, de Eugene O'Neill. Copyright © 1956. Editado
pela Yale Üníversity Press.
One Robe, One Bowl: The Zen Poetry 01 Ryokan, tradução [para o
inglês] de John Stevens, com permissão de Weatherhill, Inc., Nova
York.
Heart of the Enlightened, de Anthony de Mello. Copyright © The
Center for Spiritual Exchange, 1989. Usado com permissão da
Doubleday, uma divisão da Random House, Inc.
The Kabir Book, de Robert Bly. Copyright © Robert Bly, 1971, 1977.
Reproduzido com permissão da Beacon Press.
Excerto de "The Continuing Adventures of Bhagawan Das", de
Linda Johnson.
Reproduzido em Yoga International, NovembrojDezembro de 1995.
The Selected Poetry of Rainer Maria Rilke, edição e tradução [para
o inglês] de Stephen Mitchell. Copyright © Stephen Mitchell, 1982.
Reproduzido com permissão da Random House, Inc.
Agradecimentos ao Ajahn Sumedho, do Mosteiro Amaravati,
Inglaterra, pela transcrição de Cittaviveka.
A história de Milarepa e os demônios foi extraída de The Jewel in
the Lotus, de Stephen Batchelor. Reproduzido com permissão do
autor.
Agradecimentos a Wendy Johnson do Green Gulch Zen Center por
"Sitting Together Under a Dead Tree".
"Shakespeare in Cyberspace", de Robert H. Bell e William R. Kenan
Jr. Publicado pela Williams Alurnni Review. Reproduzido com
permissão dos autores.
The Experience of No Self, de Bemadette Roberts. Copyright ©
1982. Reproduzido com permissão da autora.
Excertos de Tao Te Ching, tradução de Stephen Mitchell. Copyright
© Stephen Mitechell, 1988. Reproduzido com permissão de
HarperCollins Publishers, Inc.
Tales of a Magic Monastery, de Theophane the Monk. Copyright ©
Theophane the Monk, 1981. Reproduzido com permissão de The
Crossroad Publishing Company.
Tomato Blessings and Radish Teachings, de Edward Espe Brown.
Copyright © 1997. Reproduzido com permissão do autor.
Excerto de "Little Gidding" em Four Quartets, de T. S. Ehot.
Copyright © T. S. Ehot, 1942, renovado em 1970 por Esme Valerie
Ehot. Reproduzido com permissão de Harcourt, Inc.
Same-Sex Love and the Path to Wholeness, de Robert H. Hopcke.
Copyright © 1993. Reproduzido conforme negociações com a
Sharnbhala Publications, Inc., Boston.
The Wisdom of No Escape, de Perna Chõdrõn. Copyright © 1991.
Reproduzido conforme negociações com a Sharnbhala Publications,
Inc., Boston.
"Saint Francis and the Sow" em Three Books, de Galway Kinnell.
Copyright © Galway Kinnell, 1993. Reproduzido com permissão de
Houghton Mifflin Co. Publicado anteriormente em Mortal Acts,
Mortal Words (1980). Todos os direitos reservados.
Walking Words. Copyright © Eduardo Galeano, 1993. Tradução ©
[para o inglês] de Mark Fried, 1995. Publicado por W. W. Norton
and Co., Inc. Reproduzido com permissão de Susan Bergholz
Literary Servíces, Nova York. Todos os direitos reservados.
lt Was on Fire When I Lay Down on lt, de Robert Fulghum.
Copyright © Robert Fulghum, 1988, 1989. Reproduzido com
permissão da Villard Books, uma divisão da Random House, Inc.
"Mothers of the Plaza de Mayo", de Sebastian Rotella. Copyright ©
Los Angeles Times, 1997. Reprodução autorizada.
As linhas "Os morangos são delicados demais... " são extraídas de
"What We Carne For" de Alison Luterman, publicado pela Sun
Magazine. Reproduzido com permissão da autora.
Coming Back to Life: Practices to Reconnect Our Lives, Our World,
de Joanna Macy e Molly Young Brown, 1988, New Society
Publishers, Cabriola Is., BC VOR 1XO, Canadá.
"Reverse Living" me foi passado por um aluno num retiro.
Procuramos por todos os meios identificar o autor, sem sucesso. Se
alguém souber quem é, por favor entre em contato com Jack
Kornfield para que se faça um agradecimento.
Trecho de uma palestra dada por Frank Ostaseski, fundador do Zen
Hospice Project, Com permissão do autor.
Natural Great Perfection, edição do Lama Surya Das. Copyright ©
Snow Lion Publications, 1995. Reproduzido com permissão do
autor.
Agradecimentos a Sarah Wellinghoff por organizar as autorizações.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, uma prosternação de verdadeira gratidão pelos


relatos pessoais de quase uma centena de mestres zen,
professores de meditação, lamas, freiras, monges, padres, rabinos,
swamis e estudantes cujas histórias aparecem neste livro. Essas
histórias, alteradas apenas para preservar a privacidade dos
envolvidos, são todas verdadeiras. Como as entrevistas foram
confidenciais (para que os entrevistados tivessem mais liberdade),
não posso citar nomes, mas o brilho da entrega à jornada espiritual
impregna as palavras. Obrigado a todos, queridos e respeitados
amigos.
Em seguida, minha profunda gratidão a Evelyn Sweeney, que aos
oitenta anos trabalhou durante três meses nestas páginas,
transcrevendo, digitando e editando com imenso cuidado. Sem a
dedicação incansável de Evelyn, este livro não estaria em suas
mãos.
Jane Hirshfield é a editora-chefe deste volume e é uma bênção
trabalhar com ela. É uma poeta de coração e uma mestra que edita
com caneta e espada, agraciando estas páginas com a sua
compreensão clara do Caminho.
Toni Burbank, minha sábia editora da Bantam, esteve sempre
presente com recomendações sensatas e generosas. No mundo
editorial, é um privilégio raro contar com a compreensão e o
incentivo de uma mentora como ela.
Sou grato também por tudo o que aprendi ao longo dos anos com
meus colegas-professores: os dezesseis membros do Conselho de
Professores de Spirit Rock, Ajahn Amara, Guy Armstrong, James
Baraz, Sylvia Boorstein, Eugene Cash, Deborah Chamberlin-Taylor,
Sally Clough, Howard Cohn, Anna Douglas, Gil Fronsdal. Robert
Hall, Phillip Moffitt, Wes Nisker, Mary Orr, John Travis e Julie
Wester. Os meus antigos colegas, Stan e Christina Grof, Michael
Meade, Malidoma Somé e Luis Rodriguez, Joseph Goldstein e
Sharon Salzberg, Ram Dass e Stephen Levine, assim como o
crescente círculo de amigos-professores de todas as linhagens.
E agradeço especialmente à minha mulher e à minha filha, Liana e
Caroline. Seu amor e sabedoria me confortam o tempo inteiro.
Jack Kornfield
Spirit Rock Center
2000

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