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JACK KORNFIELD
Tradução
CARLOS A. L. SALUN
ANA LUCIA FRANCO
EDITORA CULTRIX
São Paulo
Dedicado ao Venerando Ajahn Chah, a seu irmão no Dharma o
Venerando Ajahn Buddhadasa e à linhagem dos Anciãos da floresta
UMA PROSTERNAÇÃO INICIAL
Há mais de trinta anos, quando praticava num mosteiro de uma
floresta da Tailândia para ser monge budista, tive que aprender a
me prosternar. Era esquisito no início. Quando entrávamos na sala
de meditação, tínhamos que cair de joelhos e tocar três vezes o
chão de pedra com a cabeça. Era um ato de reverência e atenção,
uma forma de reverenciar com um gesto do corpo a submissão ao
caminho do monge: simplicidade, compaixão e consciência. Nós
nos prosternávamos todas as vezes que íamos treinar com o
mestre.
Eu estava no mosteiro havia umas duas semanas quando um dos
monges mais antigos me chamou para me dar instruções. "Neste
mosteiro nós não nos prosternamos apenas para entrar na sala de
meditação ou para receber ensinamentos do mestre, mas também
diante dos superiores." Como único ocidental do mosteiro, eu queria
agir corretamente. Perguntei, então, quem eram os meus
superiores. "Segundo a tradição, todos os que se ordenaram antes
de você são seus superiores." Levei um momento para perceber
que ele se referia a todo mundo.
Assim, comecei a me prosternar diante de todos. Às vezes estava
certo: havia sábios na comunidade. Mas às vezes era ridículo.
Encontrava um monge de vinte e um anos, cheio de arrogância, que
estava ali só para agradar os pais ou para comer melhor do que em
casa. E tinha que me prosternar porque eu havia sido ordenado
uma semana depois dele. Ou tinha que me prosternar diante de um
velho agricultor babaca que estava no mosteiro para gozar a
aposentadoria e vivia mascando folhas de bétele, sem nunca ter
meditado um único dia na vida. Era duro me prosternar diante
desses companheiros da floresta como se eles fossem grandes
mestres.
Mas lá estava eu me prosternando e, por estar em conflito,
procurava um jeito de fazer a prática valer a pena. Assim, enquanto
me preparava para mais um dia de prosternações, comecei a
buscar méritos em cada um de meus "superiores". E assim passei a
me prosternar diante das rugas no rosto do velho agricultor, das
dificuldades que ele tinha enfrentado e vencido; diante da vitalidade
e da jovialidade dos jovens monges, das incríveis possibilidades
que ainda tinham pela frente.
Comecei a gostar de me prosternar. Eu me prosternava diante de
meus superiores, antes de entrar e antes de sair do salão de
refeições. Eu me prosternava antes de entrar na minha cabana na
floresta e antes do banho, diante do poço. Depois de algum tempo,
a prosternação começou a fazer parte de mim. Eu me prosternava
diante de tudo.
É o espírito da prosternação que informa este livro. A verdadeira
tarefa da vida espiritual não está em locais distantes ou em estados
incomuns de consciência: está aqui, no presente. Ela exige espírito
aberto para saudar com coração sábio, respeitoso e gentil tudo o
que a vida nos dá. Podemos nos prosternar diante da beleza, do
sofrimento, da nossa confusão, do nosso medo e das injustiças do
mundo. Reverenciar assim a verdade é o caminho para a liberdade.
Prosternar-se diante do que é e não de algum ideal não é fácil mas,
por mais difícil que seja, é uma das práticas mais proveitosas e
mais nobres.
Prosternar-se diante das dores e traições da vida é aceitá-Ias.
Através desse gesto profundo, descobrimos que tudo na vida vale a
pena. Aprendendo a nos prosternar, descobrimos que temos no
coração mais liberdade e compaixão do que imaginávamos.
O poeta persa Rumi diz o seguinte:
DENTRO DO BOSQUE
OS MENSAGEIROS DO SOFRIMENTO
"Eu estava em Hong Kong. Meu casamento ia mal, fazia dois anos
que minha filha mais nova tinha morri do ainda bebê e, no geral, eu
não estava feliz. De volta à América, vi um anúncio de aulas de tai
chi na Stanford Business School. Eu me inscrevi e a prática
começou a acalmar o meu corpo, mas o meu coração continuava
triste e confuso. Eu me separei da minha mulher e experimentei
várias formas de meditação para me acalmar. Então, uma amiga
me apresentou ao seu professor de meditação, que me convidou
para um retiro. A sala era formal e silenciosa e ficamos sentados
por várias horas. Na segunda manhã, eu de repente me vi jogando
uma pá de terra vermelha no túmulo da minha filha. Vieram as
lágrimas e eu soltei um gemido. Aos sussurros, os outros alunos me
mandaram calar a boca, mas o mestre pediu que ficassem quietos e
me abraçou. Eu chorei durante a manhã inteira, cheio de dor. Foi
assim que começou, Agora, trinta anos depois, sou eu que abraço
os que choram."
VOLTA À INOCÊNCIA
Por mais difícil que pareça, as forças que nos atraem para o bosque
têm outro lado. Uma beleza nos chama, uma totalidade que
sabemos que existe. Segundo os sufis, é "a voz do bem-amado".
Nascemos neste mundo com a canção nos ouvidos, mas é pela
ausência dela que em geral a conhecemos.
Vivendo sem uma iluminação do espírito, acabamos sentindo a
saudade profunda de uma criança perdida, uma saudade sutil,
como se soubéssemos que alguma coisa essencial está faltando,
alguma coisa que dança na orla da nossa visão, que está sempre
conosco, como o ar que só é lembrado quando o vento sopra. No
entanto, é esse espírito indefinível que nos ampara, que nos
alimenta o coração, que nos incita a buscar o que importa na vida.
Somos compelidos a voltar à nossa verdadeira natureza e ao nosso
coração, que é sábio e conhecedor.
Essa saudade sagrada pode surgir pela primeira vez na infância,
como aconteceu com o mestre zen de uma grande comunidade na
Europa.
"Quando criança, eu tinha experiências de deslumbramento e de
identidade com o mundo. Eu me identificava com as colinas que
pareciam dançar e com os rios entre elas. Um dia, eu me imaginei
como parte de uma forte tempestade de verão que varreu a cidade.
Aos doze anos, percebi como é incrível o jogo da vida, maior do que
tudo o que eu conhecia. Depois esquecia de tudo e ia jogar futebol
e brincar com os amigos até acontecer de novo outro momento de
ingênuo desabrochar. Tempos depois, na universidade, ouvi um
swami hindu falar sobre o mundo da natureza e do mistério.
Durante a palestra, ele chorou abertamente. Fiquei muito tocado,
como se estivesse ouvindo a voz de Jesus, e comecei a lembrar da
inocente ligação com a minha infância. Quem percebe o quanto
perdeu tem que sair em busca dos momentos em que o espírito
veio à vida pela primeira vez."
"Eu era a filha do meio de uma família com cinco filhos - e todos se
amavam. Eu ia à missa todos os dias e freqüentava uma escola
católica só para meninas. Rezava com fervor. Oferecia coisas às
almas do purgatório, fazia vários rituais inofensivos para não
esquecer de Jesus e de meu amor por ele. Então eu me casei.
Eram os tumultuados anos sessenta e meu casamento não durou
muito. Vivendo uma vida maior, mais livre e mais assustadora do
que a que eu conhecia, conclui ao mesmo tempo o curso de
administração de empresas em Chicago e uma terapia de vários
anos. Meus trinta anos foram um inferno... lutando contra uma
depressão profunda e prolongada, sem saber quem eu era e o que
esperar da vida. Eu trabalhava dia e noite e, em dez anos, fui a
primeira mulher a se tomar vice-presidente da companhia, numa
cerimônia no salão de festas do Carlton Hotel. No começo, esse
sucesso me subiu à cabeça - e compensou outras perdas. Mas com
o tempo o encanto acabou e minha vida começou a parecer
extremamente egoísta. Vendo que os ricos ficavam cada vez mais
ricos e que os pobres desciam cada vez mais na escala social, eu
percebi que fazia parte do problema - e nem mesmo estava me
divertindo.
Então, dois dos meus amigos mais próximos morreram. Minha mãe
seria a próxima. Pedi demissão da empresa para cuidar dela.
Ajudar meus pais a superar o choque e a aceitar a situação foi a
tarefa mais gratificante da minha vida. Eu me tomei voluntária num
asilo e comecei a meditar.
Enfrentar pela primeira vez o persistente demônio do vazio foi como
voltar para casa. Parece mentira, mas agora eu me sinto mais eu
quando estou sentada em silêncio, ouvindo. Reencontrei meu
coração depois de todos esses anos e, com a ajuda de meus
amigos, a coragem de segui-Ia."
CHAMADOS DO ALÉM
"Sempre tive interesse pelas leis da mente. Foi por isso que me
interessei pela matemática. Um dia, meu colega de quarto me deu
uma omelete cheia de cogumelos psicodélicos e, depois de comê-
la, os sons e as cores se intensificaram a um ponto até então
desconhecido. Meu coração se derreteu, se abriu, e eu consegui
sentir o mundo, amá-lo de verdade. Percebi que o amor liga todas
as coisas.
Subi até o Cloisters, o velho mosteiro em Fort Tryon Park, e as
pedras cantavam para mim. Fui visitar Merton. Desde esse dia vivo
num mosteiro trapista. Já faz vinte e um anos."
"Com dezenove anos, fui para a Índia por terra, quase sem dinheiro.
Foi difícil. Numa cidade fui jogado na prisão sob suspeita de ser um
espião paquistanês. Seguindo o Ganges, encontrei, acima da
cidade encantada de Gangotri, um sábio extraordinário numa
caverna de gelo. Esse sábio disse que a nascente dos rios Ganges
e Jamuna era um segredo e me indicou uma geleira além de
Jamnotri, já na encosta dos Himalaias.
Segui a trilha. Já distante dos últimos seres humanos, vi pegadas
na neve. Como eram muito grandes, fiquei com medo, pensando
que fosse um urso. Segui essas pegadas por algumas horas e
finalmente cheguei a uma caverna. Na entrada, sentado como um
rei, estava um fantástico rishi. Ele me fez um sinal e entendi que era
para eu não entrar.
Então sentei na neve de pernas cruzadas, fechei os olhos e,
quando voltei a abrí-los, ele estava sorrindo. Ele sabia que eu falava
inglês, pois disse: 'Por que veio tão longe para ver quem você
deveria ser?' Respondi: 'É maravilhoso me ver em você.' Então ele
disse: 'Você não precisa de um guru.' Respondi: 'Meu guru é o meu
pai. Não estou procurando um guru.' Ele disse: 'Bom, se não está
procurando um guru, entre.'
O rishi disse: 'Há outra caverna ali para você.' Então ele me ensinou
uma prática: olhar para meu coração com o terceiro olho até sentir
ele se abrir como uma lótus. E assim eu fiz. Então ele disse:
'Descanse na luz, não na luz física nem na imagem reflexa. Vá para
a verdadeira luz. É só isso que importa.'
Ele não era o tipo de pessoa para se bater um papo. Estava
totalmente iluminado, repousando em samadhi. E disse: 'Está
chegando o tempo em que não haverá mais rishis vivendo em
cavernas, como eu. Então, os seres iluminados terão que viver no
mundo entre as pessoas.'
Depois de vários dias, ele disse: 'Você já aprendeu o suficiente.'
Percebi que tinha adquirido auto-suficiência, desapego e
perspectiva. Tinha uma maravilhosa sensação de paz e felicidade e
não queria ir embora, mas sabia que precisava voltar para o mundo.
Esse foi um passo enorme da jornada, que vai durar a vida toda."
Não é só na floresta que Baba Yaga vive: ela vive perto de nós. Ela
é parte de nossa história familiar. Podemos ir para a Índia ou para
Jerusalém - e algumas histórias mágicas dos mestres nos levam a
acreditar que é assim o começo da vida espiritual. Mas ela começa
também quando cuidamos do jardim, quando encontramos a casa
limpa depois de uma viagem, quando ouvimos a execução inspirada
de uma peça musical, na canção de um poema, no vôo de um
pássaro.
Para mim, crescer na costa oeste significou o prazer de ver vaga-
lumes no verão. Mas minha filha, que nasceu na Califórnia, nunca
tinha visto um vaga-lume. Em nossas viagens, descobrimos que
havia vaga-lumes nas noites tropicais de Bali. Uma noite, esperei
que ela dormisse, puxei o mosquiteiro que envolvia sua cama e sai
para pegar vaga-lumes. Quando voltei, ela ainda dormia. Soltei os
vaga-lumes dentro do mosquiteiro e a acordei de mansinho. Ela
ficou maravilhada com aqueles rastros luminosos na noite, até que
deixamos os vaga-lumes sair. Como é fantástico, como é
improvável que haja belos insetos com luzinhas que piscam - mas
não tão fantástico quanto um coração cheio de amor. Nosso
coração brilha como os vaga-lumes, com a mesma luz do sol e da
lua.
Dentro de nós há uma vontade secreta de lembrar dessa luz, de
sair do tempo, de sentir nosso verdadeiro lugar neste mundo
dançante. É onde começamos e para onde vamos voltar.
Podemos vê-lo hoje mesmo ou esperar até o último dia, mas o
chamado para o mistério se apresenta repetidamente aos nossos
olhos e ao nosso coração - como escreveu Mary Oliver.
No empenho para deixar o corpo mais solto e mais aberto, nós nos
deparamos inevitavelmente com a necessidade de abrir e curar o
coração. As escamas do coração aparecem primeiro em forma de
energias inconscientes que provocam contração. Os sufis as
chamam de "Nafs", os budistas e hinduístas falam de obstáculos ao
coração puro, os cristãos lutam com os sete pecados mortais, como
a luxúria e o orgulho. Em todas as jornadas espirituais, temos que
enfrentar diretamente as energias presentes na avidez, na raiva, no
orgulho, no medo, na inquietação e na dúvida - os hábitos que
fecham o coração.
Inicialmente, podemos descobrir como o coração se fecha quando
sucumbimos ao poder de nossa própria avidez. A mente carente ou
a miséria em nós querem mais do que temos agora. E tentamos
usar a experiência externa para suprir a necessidade espiritual.
Depois de trinta anos de prática, uma professora recorda:
"Meus pais eram do tipo espiritualista, mas nos anos sessenta voltei
minha energia para o impulso sexual e para o rock and roll. Eu não
queria me aproximar de Deus sem passar pelos degraus de baixo.
Durante anos vi os homens e a sexualidade como o caminho para a
felicidade.
Eu me tomei uma atriz de sucesso razoável. Finalmente, tive a
minha dose de sexo e percebi que essa não era a resposta. Eu
ainda queria alguma coisa. Minha mãe sempre me convidava para ir
a um retiro de yoga, mas eu nunca quis ir porque tinha medo que
ela prejudicasse meu estilo sexual. Um dia eu fui, e foi exatamente
isso que tive que resolver. Eu tive que enfrentar a carência que me
impulsionava. Foi esse meu primeiro passo na yoga e na
meditação."
AS CAMADAS DA MENTE
Você fala demais com você mesmo. Nisso você não é o único. Todo
mundo faz isso. Sustentamos o nosso mundo com o diálogo interior.
Um homem ou mulher de conhecimento tem consciência de que o
mundo vai mudar totalmente logo que parar de conversar consigo
mesmo.
AS LIÇÕES DE NACHIKETA:
PRIMEIRO, DESENCANTO
PERDÃO E RECONCILIAÇÃO
FOGO INTERIOR
"Eu não pretendia sofrer tanto, mas a dor me deu mais humildade e
honestidade em relação a mim mesmo e à vida espiritual. Fui
obrigado a me tomar mais simples, mais verdadeiro comigo mesmo,
menos afoito ao julgar os outros. Felizmente minha relação com
meus filhos voltou ao normal. E eu que falava de aprender a
compaixão! Foi duro, mas acho que precisava daquilo."
GRAÇAS ETERNAS
"Minha meditação era sempre muito difícil. Tinha muita tensão e dor
no corpo e também no coração. Como ambientalista, lidava havia
anos com o sofrimento do mundo, e uma multidão de imagens e
tristezas afluía quando eu meditava. Era como se eu estivesse no
meio da floresta tropical sendo queimado e devastado. Via a guerra
e a poluição, imagens do que faziam à terra. Eu ficava ali chorando,
mas continuava, mesmo quando era tudo muito forte. Eu não queria
fugir do mundo. Tinha que enfrentá-lo, entrar nele. Então houve
uma mudança.
Eu estava no ashram, praticando com um pequeno grupo de alunos
adiantados. Tinha sentido muita dor física naquelas semanas, mas
fiquei sentado, imóvel, com a mente muito focalizada e muito quieta.
Meus pensamentos diminuíram até quase sumir e minha
consciência desceu ao centro do coração. Os sons, sensações ou
pensamentos que surgiam eram como vibrações sutis atravessando
o espaço do meu coração. Isso era tudo o que eu sentia. Era como
se a quietude do meu coração se expandisse até se transformar no
mundo. As experiências eram pequenas vibrações que passavam
sutilmente por esse vasto coração cheio de paz.
Então, de alguma forma, eu me soltei ainda mais e entrei na mais
profunda paz imaginável, sem qualquer som ou sensação. Eu
estava totalmente silencioso e vazio. Eu não sentia meu corpo nem
minha mente, só pura consciência. Toda minha identidade se
dissipou. Foi assombroso, fantástico, além do êxtase. Percebi que
nunca mais sentiria medo da morte porque só essa consciência
eterna, não-nascida, é real.
Eu senti que no mundo não há nada que se compare a essa paz.
Visões, sons ou pensamentos, por mais agradáveis que sejam, são
perturbações dolorosas diante desse silêncio. Quando voltei,
entendi o sentido de sofrimento para o Buda: cada nascimento leva
à morte, a luta dos opostos - noite e dia, alegria e tristeza, tudo o
que surge e passa - é inerentemente dolorosa.
Logo depois disso, numa estrada da Índia, vi um carneirinho
nascendo. Fiquei pasmo, vendo a luta do nascimento naquele
carneirinho que surgia. Percebi que qualquer identificação com esta
vida - com o processo de nascimento, envelhecimento, morte - é
sofrimento. Fiquei ali parado, chorando pelo sofrimento do mundo:
eu o sentia com compaixão. Eu sabia que jamais esqueceria.
Mas é assombroso também como é forte o desejo, as raízes do
prazer e do estímulo. Depois de alguns meses, voltei ao Ocidente,
atrás de música e vinhos finos. A força do querer e da indulgência
voltou de maneira exorbitante, uma reação ao que eu tinha visto.
Mas continuei a seguir minha prática espiritual, porque uma parte
de nós sabe quando vemos a verdade. Não dá para esquecer."
Quando respeitamos o portão do sofrimento, surge o maravilhoso
poder da compaixão. Essa compaixão é descrita como a reação do
coração à dor de qualquer outro ser. É uma ternura por todas as
formas de vida, por tudo o que nasce e morre, por todas as
criaturas que vivem do nascimento e da morte umas das outras. Às
vezes é compaixão por nós mesmos. A necessidade de tal
compaixão está em cada jornada, budista ou hindu, judaica ou
cristã. A questão do sofrimento humano é central na jornada da
graça e da redenção.
Uma freira relata:
Era assim que Dipama Barua, avó e anciã budista, trabalhava com
seus alunos em Calcutá e em suas visitas aos Estados Unidos. Os
alunos a procuravam com perguntas relativas à meditação, que ela
respondia pacientemente. Depois oferecia um chá e fazia perguntas
interessadas sobre a saúde e a família de todos. Uma vez, um
aluno contou que seus pais estavam muito aborrecidos pelo fato de
ele estar estudando meditação na Índia. A mestra tirou de baixo do
colchão parte de suas economias e entregou a ele, dizendo:
"Compre um presente da Índia para a sua mãe." Quando os alunos
falavam de suas lutas ou estavam tristes por causa das dores do
mundo, ela estimulava a prática. Dizia: "Mas não é só isso que
existe." E os abençoava e os abraçava, fazendo carinho e repetindo
palavras suaves de amor e bondade, até que eles se acalmavam,
como que envoltos na graça de uma grande mãe.
É esse o caminho para a liberdade pelo portão da tristeza. A
compaixão que nele encontramos permite que a plena verdade da
vida e da encarnação, sua dança de agonia e beleza, seja vista e
aceita sem resistência.
Se aceitarmos o que o mestre zen John Tarrant chama de abertura
para as "Lágrimas do Caminho", vai nascer a sabedoria. No livro
The Light lnside the Dark, ele cita o relato de uma praticante que,
tomada por uma aflição inesperada, chorava noite e dia, até que o
choro começou a mudar.
Imagine que uma pessoa que não é cega veja as muitas bolhas do
Ganges que passam com a correnteza e, depois de cuidadoso
exame, descubra que são vazias, irreais, insubstanciais. Da mesma
maneira, é possível examinar impressões sensoriais, percepções,
sentimentos e pensamentos, tudo o que experimentamos, e
descobrir que são vazios e sem um eu.
"Eu estava meditando com o koan MU, fazendo o meu zazen com
os outros. Estava bem relaxada e MU estava se repetindo, tinha
assumido vida própria. Então, eu simplesmente desapareci. Havia o
sentar e o meditar e sons e MU, e era tudo MU. Eu era nada e era
MU e, quando fui ver o mestre, ri muito. Era isso que eu sempre
tinha sido."
A DESCOBERTA NA SOLIDÃO
"Havia outra vez um silêncio penetrante... mas desta vez não houve
movimento algum. Saí da capela como uma pena flutuando ao
vento... Foi difícil lá fora, porque a todo momento eu voltava para
esse magnífico silêncio. Os dias foram passando e eu comecei a
agir como sempre, mas percebi que faltava alguma coisa, só que eu
não conseguia descobrir o que... Não encontrei explicação nos
escritos de São João da Cruz nem em nenhum outro lugar da
biblioteca. Naquele dia, regressava para casa em meio a uma
paisagem de vales e colinas quando voltei meu olhar para dentro e
o que vi me paralisou. Em vez do costumeiro centro não localizado
de mim mesma, não havia nada ali, estava vazio. Nesse momento
houve uma inundação de pura alegria e eu percebi, finalmente
percebi, o que estava faltando - era o meu 'eu'.
Fisicamente, era como se um grande fardo tivesse sido tirado de
cima de mim, tão leve eu me sentia. Olhei para os pés, para ter a
certeza de que estavam no chão. Mais tarde, pensei na experiência
de São Paulo - 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo
que vive em mim' - e percebi que, a despeito daquele vazio,
ninguém tinha entrado para tomar o 'meu' lugar. Então, decidi que
Cristo era a alegria, o próprio vazio. Ele era tudo o que havia
restado dessa experiência humana. Por vários dias, caminhei com
essa alegria... Não havia mais o 'meu'; só o que era de Cristo."
São João da Cruz fala de noite escura, mas Santa Teresa usa a
imagem de um "castelo interior" para explicar que o senso de
mistério e humildade tem que crescer "quando a alma se aproxima
do trono de Deus no centro do castelo". Em seu mapa, os anos de
jornada da alma passam por sete estágios ou moradas interiores.
São estágios de purificação que aos poucos nos libertam dos
perigos do medo, da fortuna, da honra e dos "consolos do mundo".
Como São João da Cruz, ela diz que contemplativos
experimentados passam por estágios de solidão, aflição e
decepção, sustentados apenas pelo ardor constante do amor e da
prece. "O importante não é pensar muito, mas amar muito." Ela diz
que, depois de uma longa jornada de amor e graça, entramos num
renascimento espiritual em que a alma se transforma em lagarta no
casulo do Divino: ela morre para seu antigo estado para depois
irromper com asas.
Mas, já despertos e fora do casulo, vemos que ainda há nuvens - só
que mais sutis. O místico anônimo do século quatorze que escreveu
The Cloud of Unknowing diz: "Através da contemplação somos
purificados da tristeza... mas nesta vida nunca atingimos uma
segurança perfeita."
TRANSIÇÕES INEVITÁVEIS
Seja qual for a versão, Mara não vai embora. Não existe um estado
de aposentadoria iluminada, nenhuma experiência de despertar que
nos ponha a salvo da verdade da mudança. Tudo respira e gira em
ciclos. A lua, o mercado de ações, o coração, as galáxias, tudo se
expande e se contrai ao ritmo da vida. A vida espiritual alterna
ganho e perda, prazer e dor. Cada um de nós, inclusive o Buda, só
desperta para o que é infinito, para a realidade da liberdade,
quando aceita essa verdade.
Os ciclos de despertar e abertura de quase todos os praticantes são
seguidos de períodos de medo e restrição. As épocas de paz
profunda e de amor recém-descoberto são engolidas por períodos
de perda, medo, e traição, que por sua vez dão lugar à
equanimidade e à alegria. Misteriosamente, o coração é como uma
flor que abre e fecha. É essa a nossa natureza.
Mas essa verdade sempre nos apanha de surpresa. É como se lá
no fundo esperássemos que uma experiência, uma descoberta ou
os anos de dedicação à prática nos elevasse acima do alcance da
vida, das lutas mundanas. Nós nos agarramos à esperança de que
na vida espiritual estaremos a salvo das dores humanas. Queremos
que as experiências durem, mas a permanência não é a verdadeira
liberdade, não é a libertação do coração.
O viajante sábio aprende que não pode ficar no porto, por mais belo
que ele seja. Seria como prender a respiração, como fazer do
passado uma prisão. Como diz um mestre zen:
"A iluminação é só um começo, um passo da jornada. Se você se
agarrar a ela como se fosse uma nova identidade, terá dificuldades.
Você precisa voltar à confusão da vida, se entregar a ela ainda por
muitos anos. Só assim pode completar o que aprendeu. Só assim
vai aprender a perfeita confiança"
IMPACTO E QUEIMADURA
RESPEITO À QUEDA
Uma mulher tão amada que de uma só lira veio mais lamento do
que de todas as mulheres que lamentam, tão amada que surgiu um
mundo de lamento, onde a natureza inteira reapareceu: floresta e
vale... campo e córrego e animais pesarosos... Tanto ela era
amada.
(Tradução de Stephen Mitchell)
DEIXAR ROLAR
Demônio, se quiser ficar mais tempo, para mim está tudo bem.
Se tiver amigos, traga-os.
Vamos discutir nossas diferenças.
O ABRAÇO SECRETO
ISOLAMENTO E NEGAÇÃO
CONFUSÃO INTERCULTURAL
A MANDALA DO TODO
O CAMINHO DO MEIO
É bom lembrar que este corpo que temos, que está aqui neste
momento...
com suas dores e seus prazeres... é exatamente o que precisamos
para ser plenamente humanos, despertos e vivos.
PEMA CHODRON
A ILUMINAÇÃO NO CORPO
O botão
representa todas as coisas,
mesmo as que não florescem,
porque tudo floresce, de dentro, ao abençoar a si mesmo;
embora às vezes seja necessário
reensinar a uma coisa o seu encanto,
pôr a mão na testa
da flor
e recontar a ela, com palavras e toques,
que ela é encantadora
até que volte a florescer de dentro, a abençoar a si mesma;
como São Francisco
pôs a mão na testa enrugada
da porca, e lhe disse com palavras e toques
bênçãos da terra sobre a porca, e a porca
se lembrou, em todo o seu volumoso comprimento,
do focinho enfiado na terra, passando pela
forragem e pela lavagem, até o caracol espiritual do seu rabo...
do longo, perfeito encanto da porca.
A SABEDORIA DA ENCARNAÇÃO
CORAGEM CORPORIFICADA
Um rabino, que havia anos dava aulas sem parar, acabou ficando
exausto e muito doente. Quando se recuperou, rezou pela bênção
de uma nova vida e jurou dedicar suas preces à santidade do corpo.
"No começo não foi fácil. Eu havia ignorado o corpo por muito
tempo. Mas percebi que o corpo é uma maneira essencial de estar
em contato com Deus. É o que nos foi dado. Todas as manhãs eu
pedia a graça de experimentar a cada momento as sensações
dadas por Deus. Seguia uma rotina de exercícios físicos e
movimentos, mas não era isso que fazia a diferença e sim a
intenção renovada a cada manhã de estar vivo, presente, com a
energia do universo no corpo. Era essa a minha prece e, nos meses
seguintes, o meu corpo se modificou. Através dessa intenção, a
vida mudou e se tornou mais bela e abençoada."
Os hindus e os sufis dizem que tudo o que fazemos pode ser feito
em nome do Divino. Com atenção corporificada, dobramos a roupa
limpa como se dobrássemos o manto de Jesus ou de Buda,
servimos a refeição não para nós mesmos ou para a família, mas
para o Sagrado. Quando o corpo faz parte da mandala da prática,
tudo é feito com o coração e não apenas com as mãos. Uma irmã
dominicana dá a isso o nome de "Teologia da Encarnação".
Há muitas práticas simples que nos fazem voltar para o corpo, para
o coração, para este momento: uma prece antes de atravessar cada
porta, uma reflexão antes de comer, uma pausa para respirar antes
de atender o telefone. É possível criar uma prece ou verso até para
ver televisão, diz o Mestre Zen Thich Nhat Hanh: "Vendo o noticiário
da noite, sei que é a minha história. Inspirando calmamente,
envolvo todos nós em compaixão." Quando nos lembramos da
respiração, devolvemos todas as coisas ao seu lugar no corpo.
Um estudante zen disse ao mestre: "Faltam só alguns detalhes." E
o mestre respondeu: "Mas só existem detalhes." A presença
corporificada não nos deixa esquecer de estar com uma coisa por
vez. É o que Gandhi chamava de "Monotonia Abençoada",
comparando a rotina de todos os dias ao sol e à lua em suas órbitas
regulares, aos ciclos silenciosos das estrelas e às estações. O Zen
ensina que é como assar pão: fazemos pão muitas vezes e
sentimos o sabor de cada filão. Claude Monet viveu em Giverny
durante trinta e cinco anos, pintando os mesmos nenúfares anos
após ano, à luz de cada novo dia. Olhar com o frescor dos olhos
que enxergam a luz de hoje como se fosse a primeira vez - essa é a
mente de iniciante.
Essa intimidade simples do serviço físico, real, estava no centro do
trabalho de Madre Teresa.
SENTIMENTOS E TEMPERAMENTO
Seu nome está num muro negro na Capital. Passa muita gente o
dia inteiro. Dá para perceber quem é veterano... Ficamos ali,
olhando e chorando, sem ligar para quem nos vê chorar.
Que raiva eu tive quando o encontrei aqui, mesmo sabendo que en-
contraria. Quis tanto salvá-Ia. Eu daria minha vida se soubesse que
isso o traria de volta.
Carrego há tanto tempo a angústia da sua morte, mas agora posso
parar de procurar por você. Acho que posso começar a viver (outra
vez)...
PERFEIÇÃO COMUM
"A perfeição deve estar por aqui. Onde? Será que ela é a próxima
experiência ou a outra? Minha verdadeira prática é a paciência, sem
querer que nada de especial ou incomum aconteça. Quando
percebo que estou lutando e alimentando expectativas, sei que
perdi a grande perfeição.
A maior dificuldade que ainda me resta é entender que não dá para
contar com uma situação perfeita no final. Ela não existe.
Fundamentalmente, tudo é inseguro, instável. Isso não é coisa que
se aprenda rapidamente - temos que nos abandonar a essa
perfeição comum muitas e muitas vezes."
"Minha vida é complicada e ainda sofro muito, mas isso não quer
dizer nada. Isso é efêmero, é apenas uma parte da vida. Sinto
também, profundamente, o sofrimento do mundo. Faço o que
posso. No entanto, é claro que as coisas são como são. Para que
tenham alguma utilidade, minhas ações têm que partir do coração
de paz. Essa é a minha meta: revelar a paz em meio a tudo isso."
Segundo o Tao, quem faz o bem faz também o mal; quem faz o
certo, também faz o errado. Por isso, em vez de julgar, "deixe o
coração cansado descansar". Essa é a liberdade do Tao.
Caros Senhores,
Respeitosamente,
Senhor Jones
Viver sem louvor nem culpa não significa viver sem cometer erros.
Ao setenta e seis anos, Ruth Denison é uma das mais respeitadas
professoras ocidentais de Meditação do Insight. Recentemente, seu
marido, que durante a vida inteira estudou o dharma, começou a
sofrer do mal de Alzheimer, a ponto de sair vagando pelas ruas sem
saber quem era. Para cuidar dele, Ruth saía todos os dias do centro
de meditação e ia para casa, dirigindo quatro horas na ida e mais
quatro na volta. Mesmo assim, um dia ele deixou o forno aceso e
parte da casa pegou fogo.
Nessa época, ela foi convidada a dar uma palestra num retiro em
Portland, Oregon. Exausta, ela entrou na sala com 150 alunos.
Começou a palestra fazendo-os sentir a respiração e o corpo,
atentos à experiência presente. Falou sobre essa atenção e contou
a história da doença do marido e do incêndio.
Continuou a falar sobre atenção. Então disse: "Eu já falei do meu
marido e do incêndio?" E contou tudo de novo. Falou um pouco
mais sobre atenção e, depois de algum tempo, disse: "Não posso
esquecer de falar do meu marido e do incêndio que tivemos." E
começou a contar a história pela terceira vez. Os alunos
começaram a ficar assustados e preocupados com aquela mulher
que, parecia, estava começando a mostrar ela também sinais do
mal de Alzheimer.
Várias pessoas se levantaram para sair. Mas Ruth as chamou de
volta: "Esperem! Para onde estão indo? Quero que examinem suas
expectativas. O que esperavam quando vieram aqui?" Todos
refletiram em silêncio por alguns momentos. Então ela continuou:
"Hoje vocês estão tendo a oportunidade de observar uma coisa
especial: o colapso de uma velha professora do dharma.
Nem sei o que acabei de dizer." Todos voltaram a seus lugares e
Ruth continuou a ensinar: "Vocês conseguem ficar despertos para o
que está acontecendo? Essa é a prática."
Felizmente, Ruth perdeu a memória só naquela noite, por causa da
exaustão. Depois de um descanso, sua memória e sua energia
voltaram com força total. Mas naquela noite ela demonstrou
verdadeira presença - a capacidade de tolerar qualquer coisa, até
mesmo a própria desorientação, tratando-a com consciência e
compaixão.
TORNAR-SE EXCÊNTRICO
A FELICIDADE DE EXISTIR
PAIS RESPEITOSOS
Essa consideração, louvável entre adultos, é também a base para a
educação dos filhos. Outra palavra para essa tolerância é
"respeito". É o caso da história de um menino de sete anos que foi
jantar fora com os pais e um casal de amigos. A garçonete anotou
seu pedido por último: "O que você vai querer?" Ele não teve
dúvidas: "Quero um hot dog com batatas fritas." A mãe logo se
interpôs. "Ele vai querer carne assada, purê de batatas e cenoura.
E leite." Antes de ir embora, a garçonete perguntou: "Você quer
ketchup e mostarda no hot dog?" O menino olhou para os outros
sorrindo e disse: "Vocês viram? Ela sabe que eu sou de verdade."
Nossos filhos adoram respeito. Até os pequenos querem que suas
necessidades e seus medos sejam respeitados. Com respeito,
namorados, pais, colegas de trabalho, animais e árvores florescem.
O respeito é a base da criação dos filhos e da prática espiritual.
Sem consciência e sem respeito nós nos limitamos a repetir o que
nos fizeram, a agir de maneira condicionada pela criação que
tivemos. Sem respeito damos continuidade aos ciclos de mágoa,
vergonha, indignidade e abandono que possam ter existido no
nosso passado.
Sem visão espiritual, o cuidado que é natural na criação dos filhos
pode ser sobrepujado pela pressa e pelo materialismo da vida
moderna, pelos valores da mídia, pelas normas aceitas de stress e
violência. Sem atenção respeitosa, permitimos que a mídia e as
pressões modernas acelerem o crescimento de nossos filhos,
esquecendo de proteger sua dependência e vulnerabilidade. Nós
nos esquecemos de que as crianças vão ficando independentes no
próprio ritmo, quando chega a hora. Sem dar atenção ao coração,
ficamos como a geração de pais que, confiando em especialistas
leigos, se recusavam a alimentar e a pegar no colo o bebê que
chorava, embora seu instinto e o impulso do seu corpo lhes
dissesse o contrário. Com respeito, é possível oferecer aos filhos
proteção e cuidado e ao mesmo tempo estabelecer limites corretos
de comportamento. É possível transmitir o ensinamento espiritual
não apenas através de palavras, mas através da integridade da vida
diária, que revela os mais profundos valores do coração.
Nunca é tarde demais para oferecer esse respeito. Quando ficamos
adultos, devolvemos esse respeito à família. Uma mulher que vivia
como monja budista em mosteiros da Tailândia e Burma falou das
dificuldades que tinha quando visitava a família, que vivia num
bairro operário de Detroit. No geral, ela tinha se livrado das antigas
mágoas, mas sua família não compreendia nem aceitava aquela
freira de cabeça raspada. E quanto mais ela tentava falar do
dharma, mais cresciam os conflitos e as frustrações. À noite, a
família bebia cerveja e via televisão. Sempre que ela passava uma
semana desagradável com a família, acabava fugindo. Eu lhe fiz
algumas sugestões: "Por que não vai visitar seus pais sem o manto
e sem os ensinamentos? Vá como um simples membro da família e
ame-os como eles são. Pode até tomar uns golinhos de cerveja e
ver um jogo na televisão. E não fique muito tempo: no máximo três
dias." Ela seguiu as minhas sugestões. Quando a encontrei de
novo, ela sorriu: tinha funcionado.
Um mestre sufi diz:
Os santos são o que são, não por causa de sua santidade, mas
porque o dom da santidade permite que admirem todo mundo.
THOMAS MERTON
DO ISOLAMENTO À COMUNIDADE
"Vivo no interior do Novo México, onde todos têm armas para caçar
e para se proteger. Mas eu não tenho arma. Já chega os tiros que
ouvi quando estava no Vietnã. Saíamos para fazer patrulhas ou
para invadir vilarejos e todos os dias alguém levava um tiro, alguém
que podia ser o meu melhor amigo. Em áreas desconhecidas,
alguns caras se assustavam ao menor movimento e começavam a
atirar. Depois a gente descobria que tinha atirado em mulheres e
crianças. Havia em nossa companhia seres humanos que gostavam
de atirar em outros seres humanos, até mesmo em mulheres e
crianças. Não sabíamos o que fazer com eles. Durante dois anos,
essa foi a minha vida.
Não é bom ter uma arma. Seja você quem for, não é bom ter uma
arma. Não é bom ter os sonhos, os pesadelos de quem usa uma
arma. Nem mesmo é bom ter a lembrança de uma arma na mão.
Depois, vive-se com isso a vida inteira."
A INTENÇÃO DO CORAÇÃO
TESTEMUNHA DA JUSTIÇA
Walt Whitman
17
O RISO DO SÁBIO
Meu amigo James Baraz conta que viajou para a Índia para passar
um tempo com o guru H. W. L. Poonja. Poonja era conhecido por
sua liberdade de espírito, pela energia que transmitia a seus
discípulos e pela sua risada jovial. James, que praticava meditação
havia vinte anos, era um professor budista muito querido. Querendo
crescer ainda mais e desejoso de ter um contato mais profundo com
o coração da vida espiritual, ele foi para a Índia. Depois de alguns
dias de conversa com o mestre, James explicou que o treinamento
budista tinha lhe dado atenção, compaixão e sabedoria, mas que
não lhe tinha ensinado muita coisa sobre a graça. Estava
desorientado. Como saber se estava recebendo a graça do guru,
como procurá-Ia? Os outros discípulos ouviam com atenção.
O mestre olhou para James e riu, achando graça na pergunta.
"Você ensina numa comunidade dedicada à vida espiritual, tem
uma família saudável na Califórnia, um lugar lindo, está na Índia
cercado de irmãs e irmãos devotados ao caminho. Agora está
meditando, falando com o mestre, e ainda pergunta onde encontrar
a graça?" Riu de novo. "Você está mergulhado na graça até o
pescoço."
Todos nós estamos mergulhados na graça até o pescoço. Estamos
envolvidos pelo calor do sol e pelo abraço brilhante da neve; somos
alimentados pelas águas doces da chuva; estamos vivos no grande
mistério. Em quaisquer circunstâncias, temos capacidade total para
despertar. Com coração aberto e mente aberta, descobrimos uma
grande paz, uma presença amorosa nas coisas como elas são.
Descansando na consciência simples do presente, o coração se
toma íntegro. Quando aceitamos a corrente da vida, a iluminação e
a graça surgem naturalmente. Não é uma conquista; é sabedoria
viva.
Como diz Suzuki Roshi: "Quando compreendemos a verdade
eterna de que 'tudo muda' e nela encontramos serenidade, estamos
no Nirvana." Cada momento desse despertar traz sensibilidade para
a tragédia e para a beleza. Quando precisamos de força, lá está
ela; quando precisamos de flexibilidade e submissão, lá estão elas.
Ficamos à vontade nesta vida incrível.
O REPOUSO NO MISTÉRIO
Sinta que você ainda não nasceu, que está no útero, que é jovem,
que é velho, que morreu, que está no mundo além-túmulo. Capte na
mente tudo isso de uma só vez, todos os tempos e os lugares
expandidos a todas as qualidades e magnitudes juntas, e você
começará a ver o jogo do Divino.
Vida Reversa
A vida é dura,
toma muito do seu tempo,
todos os fins de semana,
e no fim o que você ganha?
A morte, que bela recompensa.
Acho que o ciclo da vida está ao contrário.
Você devia primeiro morrer, ficar livre disso.
Depois viver vinte anos num asilo de velhos.
Ser posto para fora quando ficar jovem demais.
Ganhar um relógio de ouro, ir trabalhar.
Trabalhar quarenta anos até ser
jovem e poder gozar sua aposentadoria.
Ir para a faculdade,
festejar até estar preparado para o colégio.
Então virar criança, brincar,
não ter responsabilidades,
virar um menininho ou uma menininha,
voltar para o útero,
passar seus últimos nove meses flutuando.
E terminar como um brilho nos olhos de alguém.
AS PRÁTICAS DE SABEDORIA
"Quando olho para as irmãs mais velhas, o que mais admiro é o seu
bom coração. Elas servem, trabalham, rezam e ensinam como
quando eram garotas, mas têm agora uma beleza diferente.
Naquela época, estávamos todas cheias de ardor, querendo ser
virtuosas e dignas de Deus, esperando encontrar alguma coisa
especial nesta vida sagrada. Agora rezamos porque gostamos de
rezar, ensinamos e trabalhamos com bondade e amor. É simples e
natural, uma forma de distribuir a alegria de Deus."
Frank Ostaseski, que dirigiu por muitos anos o asilo do Centro Zen
de San Francisco, conta uma história simples que fala de sabedoria
e confiança:
A CRIANÇA DO ESPÍRITO
A RISADA DO SÁBIO
Mesmo em Kyoto,
Ouvindo o canto do cuco
Tenho saudades de Kyoto.
AGRADECIMENTOS