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LIVRO 4.

O Poder e os Jogos da
Encenação Racional

1
Tomo: Direito e a Economia

2
3
Direito e Economia

& O caráter Interno do Direito sob outra


perspectiva: a natureza do nomos contratual
segundo formas de estipular
cobranças/pagamentos

Entre os filósofos que escreveram grandes


sistemas, Hegel está entre os poucos que
aprofundou o envolvimento reflexivo com a
questão da natureza da norma, até encontrar o seu
fundamento no ideal espiritual que a humanidade
postula para se posicionar historicamente. Quando
pensamos em filósofos do Direito mais próximos
aos capítulos recentes da filosofia, poucos também,
como ele, abordaram a natureza dos contratos por
um ponto de vista coerente com a sua
independência normativa. O pensador observou que
“a classificação dos contratos e o estudo adequado
de suas diferentes espécies devem fundar-se não
em circunstâncias exteriores, mas nas
características próprias à natureza do contrato” (p.
76). De fato, é um lugar-comum a apreciação de
que a solução contratual não depende de uma
circunstância exterior, como o céu limpo, os
augúrios favoráveis, ou a cor da pele dos

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envolvidos. De um ponto de vista ainda empírico e
visível, as condições de cobrança assinadas
documentalmente distinguem a confiança em um
contrato da confiança empírica de que o sol nascerá
amanhã. É simples distinguir entre uma assinatura
pessoal e os sinais atmosféricos, por um lado. Não
tão simples é o passo ulterior dado pela reflexão, de
que o “livre-arbítrio” dos agentes não interfere nas
condições contratuais. Falaremos dessa condição
mais à frente. Por enquanto nos ateremos a que, se
essas condições de contrato se fundamentam em
uma normatividade independente, semelhante à da
lógica frente à psicologia, precisamos de uma
discussão sobre a natureza dessa condição
normativa. Na filosofia do Direito, o trabalho de
Hart colocou em questão a diferença entre o ponto
de vista interno ao direito e ao externo. Usaremos
essa estrutura interrogativa como ponto de partida
da investigação.
Quando um contrato estabelece condições
extrínsecas a si mesmo para sua validade, como
através de normas de reconhecimento isso tem de
ser feito sob uma condição contratual inserida
internamente na validade normativa do consenso.
Por exemplo, se estabelece que apenas indivíduos
com mais de 19 anos podem assinar um testamento,
essa condição só pode ser infringida validamente a
partir do estabelecimento de um novo contrato, que
se inclui na cronologia dos contratos a partir de
uma lógica/nomos interna que independe
completamente da circunstância contingente

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descrita pela idade dos indivíduos assinando
contratos.
Essa coerência interna das condições
contratuais não é um simples “ponto de vista
interno” expresso pelos enunciados de primeira
pessoa dos contratantes, pois o livre-arbítrio dos
que se submetem a um contrato também não tem
poder de violar ou modificar as condições
contratuais internas. Como notado por Hegel, os
casos em que a execução do contrato é vista, de
maneira exógena, como uma condição contratual,
escondem uma condição contratual intrínseca. Por
exemplo, se um contrato estabelece que a coisa só
será transferida a outro se ele “prestar” a sua parte
do contrato: “a minha obrigação só se refere à coisa
na medida em que a retenho na minha posse, como
acontece nas dívidas...” (p. 76). Vê-se, portanto,
que não é a execução externa ou liquidação da
outra parte que é necessária à validade do contrato,
mas sim a estipulação de que a sua parte da posse é
dada somente a aluguel. Retenho a posse apenas
em “documento” (uma vez que o uso é feito por
outro). O direito permanece, assim, internamente
coerente e os contratos são válidos e inválidos sem
referência às condições externas, mas se reportando
apenas à narrativa documental que substitui a
execução por arranjos convenientes: com o aluguel,
que condiciona o uso a uma existência sem posse
através de um arranjo documental.
Alguém observando a situação de fora,
como um positivista inveterado insistindo em

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definir o Direito pelo que acontece externamente,
verá apenas 1. o objeto passando de mão em mão
somado a 2. uma promessa subjetiva de um
devolver ao outro e pagar por cada mês em que o
utilizar. Apenas observando essas duas condições,
jamais poderia inferir a relação de direito que ali
existe. Pois 1. e 2. somados não compõe a relação
social do aluguel. Esse não depende nem da
promessa do livre-arbítrio, nem da posição tempo-
espacial do objeto.
Um positivista mais industrioso, instigado
por doses de persistência e fidelidade teórica,
poderia ir além da psicologia banal das promessas e
dizer que o aluguel pode ser descrito externamente
ao serem descritas as circunstâncias de dependência
financeiras de um lado da negociação, ou as
características de sua reputação, sua
vulnerabilidade, etc. Mas, nesse caso, notem: esse
positivista estaria arquitetando um doce romance
com uma narrativa da situação dramatúrgica do
indivíduo. Poderia dar uma bela história com o
objetivo de nos convencer sobre uma situação de
vulnerabilidade e de carência do indivíduo que
recorreu ao contrato de aluguel. Sem saber, esse
homem positivo já teria mudado de time: assumido
a nossa camisa pós-psicológica. Ao tentar
descrever as relações de direito a partir de uma
narrativa externa, ele irá, inevitavelmente, acabar
descrevendo as relações dramatúrgicas internas que
fundamentam o direito. O indivíduo contratante
sequer seria visto como meramente muscular ou
psicológico: seria definido pela sua condição pré-
7
reflexiva de desejo, que justificaria a sua posição
em dimensões contratuais como as que o tornam
refém do aluguel como arranjo de pagamento para
utilizar uma posse.
Por isso também, Hegel se nega a aceitar
que a diferença entre contratos reais e consensuais
seja relevante para o direito: “há muito é tempo de
abandonar a rotina das divisões em contratos reais e
consensuais, implícitos, etc., em favor da
classificação racional (p. 77). E diz que, se
houvesse uma dimensão contratual externa ao
próprio contrato seria impossível (a contragosto do
positivista jurídico mais radical) distinguir o
“contrato formal do real, a propriedade e o uso da
posse, o valor da realidade qualitativa da coisa” (p.
77). E vamos mais além: não seria possível
distinguir entre o uso e o uso marginal, o consumo
e a administração, o objeto e as possibilidades de
colocá-lo em uma escala de preferência, etc. Todas
essas possibilidades econômicas aparentemente
extraídas de regras de prudência só são possíveis na
dimensão ideal do contrato, porque apenas pelo
ponto de vista contratual a ausência do objeto pode
ser documentada como “minha/sua” e aproveitada
através de arranjos econômicos tradicionais: o
investimento, a troca, o aluguel, as dívidas, etc.

& O Documento e o Valor: como a


estipulação subjetiva da Norma cria um quadro de

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cálculo objetivo centrado em um modo de vida e
uma posição econômica

A última digressão ajuda a confirmar um


ponto de vista sobre o Direito que hoje é, senão
incompreensível, altamente impopular. Mas para
um economista, agora mais do que nunca, uma
volta a essa parte do pensamento de Hegel é
fundamental. É necessário, para descrever as
“dívidas” por um ponto de vista normativo
irredutível à mera psicologia caótica dos indivíduos
e suas opiniões arbitrárias. Que existe a suspeita de
que o psicologismo não cobre a questão, está fora
de dúvida. Mas existem outras ameaças, contra as
quais a limitação da matéria continua indefesa.
Assim, todos os outros arranjos econômicos,
mesmo a previdência patrimonial, têm de pressupor
o núcleo dessa dimensão contratual capaz de
converter burocraticamente o objeto em
“documento”. Nosso trabalho precisa dele, além
disso, e o tomará como fundamental à compreensão
do fenômeno iniciado com a descrição das
dramaturgias humanas, que agora começa a mostrar
sua utilidade para dar tratamento justo à dimensão
normativa abstrata e invisível do valor.
Antes de tudo, de fato, tudo o que se passa
dramaturgicamente é estabelecido por pontos de
vista que não são visíveis externamente, e nem
encontráveis em uma psique ou uma caixa de
emoções onde haveriam “assinaturas contratuais

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implícitas” capazes de ser desvendadas pelo
psicólogo ou o técnico competente. Somente a
assinatura juridicamente válida feita na dimensão
contratual – entendida ao modo hegeliano como
uma estratégia de esvaziamento do conteúdo da
expectativa e o emolduramento abstrato em um
documento – pode nos transportar para um ponto
de vista pós-psicológico, onde a ideia abstrata de
valor (a diferença entre uso e sua existência
abstrata no mercado) são descritas pelo ponto de
vista de seu status nomológico próprio, como
formas de realizar arranjos de justiça entre sujeitos
que não tem o benefício de uma escala de
preferência absoluta (um valor material objetivo).

& A Injustiça Jurídica como Injustiça


Econômica: a identidade da ação e as suas
consequências segundo o princípio de
maximização do valor

A economia já é, hoje, o modelo de reflexão


regional com mais potencial de riqueza
especulativa para abordar os problemas relativos à
dramaturgia humana. Podemos explicar essa
hegemonia pelo fato de que a ciência econômica
não pode operar seus instrumentos analíticos senão
sob a pressuposição da ligação de que a ação
humana e os seus resultados não podem estar
dissociados ou associados caoticamente. Isso é, não

10
podem ser ininteligíveis. O idealismo funciona aqui
sem esforço. Se olharmos para trás, veremos que
Hegel refletiu sobre esse assunto ao tratar da
moralidade subjetiva na Filosofia do Direito. Para
ele, o problema da ligação da atividade e seus
resultados é uma espécie de pseudoproblema, pois
“os resultados, como manifestações imanentes da
ação, apenas limitam-se a exprimi-la e nada são de
diferente dela”1. Contudo, tanto o
consequencialismo, que avalia a ação pelo seu
resultado, como o estoicismo, que considera o valor
da ação pela indiferença ascética às recompensas,
cria a aparência de que há aqui uma grande aporia,
justamente pois se permitem pensar a relação da
ação com as consequências como algo desprovido
de inteligência: ou uma sorte gratuita, ou um mérito
ligado contingentemente a uma justiça
compensatória ideológica. A esses pode se juntar o
pensamento heroico, que “aceita a responsabilidade
pela totalidade do ato”2.
Em todos esses casos, o ato é alienado de
suas consequências. Não pretendemos entender
esse fenômeno ao modo marxista como a alienação
do trabalho através da conversão do produto em
salário. Mas sim como uma compreensão abrupta e
descontínua da relação temporal que liga o presente
e o futuro, ou “uma determinação segmentada da
realidade exterior”3. Porém, se no caso do heroísmo
a alienação é uma óbvia intervenção extrajurídica,
1
Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, 1977, p. 105
2
Ibid, p. 106
3
Ibid, p. 107.

11
o empobrecimento da justiça nos casos anteriores é
menos óbvia, e só pode ser completamente
conhecido quando formos capazes de identificar o
elemento subjetivo da moralidade ali considerada.
Em outras palavras, a ausência de justiça nesse
caso só emerge como uma injustiça econômica, na
medida em que o injusto se confunde com o
acréscimo de especulações morais sobre o futuro
desejado, dissociando o ato de sua racionalidade
pela via da superstição.
A existência de arranjos subjetivos através
de contratos se torna uma expressão objetiva de um
mundo de valores que correspondem à ação
humana em seu desenvolvimento formal. Fato e
valor se confundem no isolamento abstrato de um
modelo de razão que fecha, em um efeito
ideológico, uma esfera do normal que governa as
possibilidades de lances legítimos. Esse passo
então dá lugar ao desenrolar do sentido objetivo às
decisões subjetivas, isto é, a ligação da ação às suas
consequências, manifestando um cosmos de
subjetividade que é real e não meramente
documental e simbólico, posto que a sua relação
com os desdobramentos possíveis é mediado pelos
cálculos de segurança que convertem toda minúcia
insignificante em valor e importância, criando um
campo da existência jurídica que existe através do
cálculo maximizador da subjetividade. O Direito e
a validade do reconhecimento pessoal coincide
então com um modo de existir social que tem sua
expressão cultural no cálculo e no postulado do
valor fundamentado no cálculo: o capital.
12
O foco sobre esse terreno de reflexão
contribui para esclarecer a sugestão de Myrdal de
que “a livre concorrência, em bases lógicas e reais,
transforma-se em mais do que uma série de
suposições abstratas, usadas como instrumento na
análise teórica das relações causais de fato”4.
Segundo o célebre economista crítico das
pretensões de neutralidade dos clássicos e
neoclássicos, essas suposições abstratas não se
dissociam sem consequências de premissas de
caráter normativo, e até mesmo “princípios para a
‘correta’, ‘justa’, ou ‘equitativa’ distribuição da
tributação”5. Tomado como objeto de reflexão
independente, a correlação entre a construção de
modelos de cálculo abstratos e um horizonte
normativo não é fortuita. O capitalismo não é senão
a fusão desses dois campos: o capital é ao mesmo
tempo entidade jurídica e econômica. Os
economistas encontram no seu caminho reflexivo a
existência de valores que são abordáveis como
fatos observáveis, não porque possui uma
visionária capacidade de intuição normativa, mas
sim porque o comportamento abstrato do indivíduo
(agindo sob a premissa de que minimizou
racionalmente o impacto de seus erros) coincide
com os limites epistemológicos da própria
economia, de modo que o mundo social e jurídico
apenas se torna visível e interpretável para ele
como mundo econômico.

4
Myrdal, Aspectos Políticos da Teoria Econômica, 1978, p.
28.
5
P. 28.

13
& A independência normativa dos
contratos: salário, juros e lucro como soluções
contratuais para maximizar a racionalidade
defensiva de grupos em diferentes posições de
largada

Tomamos como pressuposto que o cenário


nomológico onde ganham existência os contratos
não tem qualquer dependência externa dos fatos
que ocorrem em paralelo. O reino burocrático da
documentação é independente e expressa a forma
jurídica da relação entre humanos em um estado
onde se torna superficial a presença concreta de
instituições, do estado e outras formas
contingentes, como os tribunais. Em um ponto mais
extremo, independe até mesmo de “documentos”.
O contrato não precisa ser sempre expresso na
forma documental simples. A sua esfera abstrata de
“combinação entre vontades” pode exorbitar o
âmbito da assinatura também, como aconteceu na
passagem das notas promissórias para o papel-
moeda em espécie. A passagem do papel-moeda
para formas de crédito virtual não desmente um
passo ainda ulterior no processo de
desmaterialização do fundamento contratual. Em
todos esses casos, o arranjo estratégico dos agentes
conserva sua natureza contratual, que permite
estipular a partir de “condições de pagamento” uma
lista de possibilidades defensivas que tem seu

14
fundamento em táticas de retenção (aluguel, juros,
etc); condições que, já na origem, estipulam
soluções razoáveis ao problema dramatizado.
Em outras palavras, a prestação ou
execução de um contrato só é uma condição da
execução contratual quando o “problema” (o
drama) que levou a aquela solução contratual é a
combinação de um tipo de pagamento/cobrança. O
aluguel é uma forma engenhosa de contrato em
uma de suas formas mais inteligentes: nele as
vontades estabelecem condições para solucionar o
problema da “transferência de posse” sem
necessidade de transferir o objeto ao outro de
maneira causalmente direta, e nem como simples
promessa (do livre-arbítrio). Naturalmente, a
promessa em si mesma não institui sozinha uma
dimensão contratual, pois o “ato” de prometer está
ainda ligado ao prometido de maneira causal
simples e externa, sem qualquer solução contratual
para o problema de segurança/cobrança que fosse
dramatizado. O lucro do capital, ao contrário, já
não é um mero “ato” de prometer, mas uma solução
contratual para o problema do risco do
investimento. Pelo ponto de vista subjetivo
superficial, o capitalista aceita alienar sua
propriedade em troca de uma responsabilidade
contratual em forma de pagamento como lucro.
Este não se distingue do salário pela mera
quantidade na divisão do preço, mas sim pela
estimativa daquilo que ele paga de acordo com
uma expectativa. Em outro exemplo, quando uma
negociação estipula as condições referentes ao risco
15
de que a execução do contrato não aconteça – os
juros do empréstimo. Em todos esses casos, a
discussão sobre como uma remuneração paga ou
não paga uma expectativa depende do arranjo
contratual – o lucro, o juro, o salário – estruturado
segundo as estratégias defensivas disponíveis aos
indivíduos ou grupos. O salário, por exemplo, é a
paga mais racional – mais capaz de maximizar a
posição defensiva – de um grupo destituído de
propriedade privada. Ironicamente, o mais racional
aqui não previne que ele viva em estado de
privação crônica e até que morra de fome. Do
ponto de vista contratual, a justiça está feita: e do
ponto de vista do cálculo de rendimento e
aproveitamento econômico, também. O cálculo e o
direito coincidem segundo uma mesma encenação
da razão.

& A Natureza interna dos Contratos como


formas de solução que descontam as perturbações
externas: o contrassenso da procura pelo melhor
entre os contratos

A recém mencionada dramaturgia


protojurídica envolvendo o desafio dos
negociadores e suas relações de poder já contém a
semente do consenso; mas é possível dizer que ela
se torna finalmente jurídica pela capacidade dos
indivíduos de documentar seus receios e tomar

16
medidas de precaução através de contratos. A troca
por meio de dinheiro já é uma forma de contrato
em sentido literal, porque, com ou sem assinatura,
ela envolve o que Hegel chama de “formalismo dos
gestos ou da linguagem definida em fórmulas que
valem por si mesmos” (p. 76). O importante no
contrato é a sua existência normativa como uma
entidade capaz de fundamentar uma cobrança. Ele é
a expressão da capacidade individual de representar
a si mesmo a partir de um “crédito” (capacidade de
ser cobrado)6. E isso pode ficar mais claro quando
for esclarecido que os contratos são expressões da
capacidade de anular a instabilidade do arbítrio
subjetivo, do acaso e da inadimplência, limpando
dessa maneira o horizonte de possibilidades
estratégicas dos negociadores; ou os tornando mais
seguros para agir e reagir competitivamente. Isso se
dá pelo efeito de segurança que existe nos
“documentos”. Ao expressar sua vontade
burocraticamente em um documento, o negociador
se integra ao nomos contratual e abdica de sua
posição subjetiva caótica que pode mudar de
opinião a cada instante. A divisão de custos
contratual é estabelecida segundo garantias. A
condição do contratante como “carência de algo” é
convertida em uma avaliação daquilo que “lhe
devem”, se transformando em uma constante
sensibilidade à injustiça. Se protegendo assim da
6
Naturalmente, isso seria inócuo se não fossemos seres
capazes de representar a sua própria vontade a partir de uma
falta, um desafio, ou risco. Por isso, a condição ôntico-
ontológica do homem que negocia está sempre no horizonte
de toda nossa explicação.

17
violência, do acaso e do embuste, ele se torna
vulnerável, no entanto, ao horizonte de possíveis
respostas estipuladas em forma de cobrança,
pagamento, e outras possibilidades de arranjo
delimitadas por uma meta de cobrança justa.
Essa compreensão contratual da capacidade
de defesa individual estabelece condições de
identificação e repulsa à trapaça. Essa capacidade,
própria da presença de uma inteligência jurídica
(primitiva ou não) é o que concentra os jogadores
em um horizonte de interação com visibilidade
mútua, isto é, onde o lance de um pode sempre ser
contrabalançado pelo outro, e onde ambos estão em
posições de cobrança mútua entre si. Só é possível
estudar as relações contratuais como formas de
arranjo consensual que se desenvolvem
autonomamente, a partir de um nomos próprio
imune à trapaça, ao engano, à influência do arbítrio
e qualquer outra perturbação do caminho de
expectativas alinhada. Ou, como diria Joan
Robinson: “se a qualquer momento dado, a posição
real se apresentasse apreciavelmente fora do
caminho, isso significaria que elas (as firmas) não
teriam feito a escolha adequada. Não prevaleceria a
igualdade entre o nível de lucro esperado e o real”
(p. 106). Mas nesse caso, naturalmente, a situação
de incompletude das informações se ajustaria à
posição defensiva das firmas através de um novo
contrato. Se uma firma é ignorante de certas
condições, por exemplo, porque existe em uma
ditadura que tolhe seu acesso à internet,
naturalmente irá aceitar um contrato
18
correspondente, tomando medidas mais ou menos
severas para contrabalançar o que ela não sabe
sobre a sua rival. Dessa maneira sua insensibilidade
externa – que pode ser uma limitação psicológica –
se articula como sensibilidade ao prejuízo estimado
pelo cálculo de uma expectativa que ela mesma se
cobra contratualmente. A pele econômica sente no
bolso.
Não importa quão bom ou mal é o contrato,
mas sim que ele solucione uma questão de
incerteza através de uma meta de justiça baseada
no consentimento mútuo. É um contrassenso
procurar o melhor entre os contratos, isto é, aquele
que reflita mais adequadamente o esclarecimento
dos agentes, porque um contrato existe justamente
para substituir a externalidade das interações –
inclusive as criadas psicologicamente pela
influência da mídia sobre os desejos, medos e
inseguranças – por outra capaz de descrever
internamente o movimento dramatúrgico entre as
vontades, as definindo por uma dimensão
normativa própria onde tudo o que é externo é
descontado. Isso mostra também, colateralmente,
que as estratégias de economia política não podem
se concentrar na simples tarefa de estipular bons,
ou melhores contratos, ou estipular meras equações
que descrevem o cumprimento de expectativas.
Tudo isso é inútil. A única medida de sucesso
competitivo é a capacidade de impor seu jogo,
colonizando o nomos contratual de modo que
propicie uma valorização de seus pontos fortes e
desvalorização dos pontos fortes do rival (e isso é
19
uma tarefa da razão encenadora); e isso não pode
ser controlado por circunstâncias externas como o
nível de informação, a excelência da mídia no
esclarecimento dos cidadãos –justamente porque
essa é apenas a condição de largada que distribui os
pontos fortes e fracos entre os envolvidos.

& A necessidade de Soluções Contratuais a


conflitos dramatúrgicos: o dinheiro como
expressão de um contrato latente

A estupefação diante da capacidade


monetária de ser criada pelos bancos a partir do
puro crédito é um desses escândalos que trai a
natureza provinciana de alguns dos mais velhos de
nossos cientistas sociais e economistas. Nada disso
seria chocante se fosse dada atenção à natureza
dramatúrgica do envolvimento dos indivíduos nas
negociações de mercado. Não haveria necessidade
de cisão entre a ciência social e a econômica se
fosse entendido, sem as amarras de um
materialismo bruto, que o que está em questão na
troca abstrata – envolvendo dinheiro – não é a
execução de uma meta de subsistência, mas sim um
intrincado conjunto de problemas (dramatúrgicos)
que se articulam no discurso dos envolvidos através
de arranjos contratuais que esvaziam as diferenças
entre eles, reduzindo suas vontades a expectativas
cobertas por margens de previsibilidade prévias.

20
Na verdade, todos os debates históricos
sobre se o dinheiro deve ser fixado a uma base de
valor capaz de corrigir desequilíbrios de
contabilidade, estabilizar a inflação e reformar o
alinhamento cambial, ou se deve ser tratado
nominalmente como simples nota de crédito
inocente, uma vez que ela não pode gerar
gratuitamente os preconceitos e os estados de
confiança e desconfiança a ela subjacentes, são
tematizações artificiais que cometem uma petição
de princípio: pressupõe que já se sabe qual a
medida para o valor. Perdem de vista o fato de que
o dinheiro age como um contrato cuja existência
mesma existe para solucionar o problema da
medida para o valor, estabilizando uma margem de
previsibilidade de pagamentos. Tentar explicar a
natureza do dinheiro pela questão do valor é
pressupor resolvido o problema para cuja solução
ele existe. A instituição do dinheiro já é sempre
uma concepção econômica. Que uma nota
monetária forte estabiliza crises econômicas é
apenas um truísmo, pois isso apenas significa que a
racionalidade de sua função contratual é vigente.
Ao invocar o cenário normativo instaurado pelo
meio pecuniário, inferimos que qualquer solução
que venha a ser esboçada pelo dinheiro - ou pelo
sua expressão normativa ulterior: o capital –
sempre expressam os arranjos e equilíbrios
improvisados contratualmente para questões como
“qual a compensação que me é devida pelo
sacrifício que estou fazendo?”. Assim, a criação do
dinheiro não é nenhum parto milagroso ou ato de

21
falsificação mafioso. É a expressão de um contrato
de dívida estipulado para solucionar o problema de
conectar o futuro ao presente quando nos falta a
clarividência dos anjos: ele expressa a tolerância
dos indivíduos a um estado de escassez capaz de
ser uma falta compensada, remunerada, indenizada.
Como não há limites de subsistência à
autoestima defensiva de um ser capaz de se
representar em abstrato com uma simples
“assinatura” – capaz de se colocar perante o mundo
a partir de um vazio pré-reflexivo que se articula
através de desafios – a solução para esses
problemas tampouco pode ser dada por fórmulas
técnicas ou uma quantidade de dinheiro fixa que
aos bancos fosse permitido parir. Assim, por
exemplo, um indivíduo que se prostitui elabora
uma condição contratual para não sair perdendo em
uma transação que envolve o seu corpo; mas não há
um preço técnico para isso, pois nos jogos de amor
essa solução pode ser improvisada
dramaturgicamente, por outros meios: por exemplo,
a capacidade do outro lado intimidá-lo a se achar
feio, o tornando inseguro a respeito de sua
pretensão de valor. Um vendedor habilidoso tem o
talento de jogar sobre o comprador a sensação de
que ele está perdendo algo por não estar comprando
seu produto. Como o que está em questão é o modo
como a carência pessoal dos indivíduos se
expressa, aumentando o preço por sua própria
confiança, e assim reajustando as expectativas
contratuais latentes, inferimos que o que está “em
trânsito” diante de uma troca monetária não é o
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índice para representar um objeto, mas sim o índice
para expressar o preço da tolerância pessoal de um
ao outro – que é negociado pela avaliação de quem
precisa mais do outro, ou está em uma posição de
maior dependência na negociação.
A princípio, essas são as questões que
vemos articulados em romances e novelas. Mas
veremos que esses problemas são jurídicos em sua
raiz, na medida em que apenas aceitam soluções
contratuais. Na verdade, em nenhum momento o
dinheiro – como solução contratual para uma
medida de segurança e justiça – se desconecta da
sua origem dramatúrgica, posto que é a força da
conexão de sua integração social que dá
manutenção a seu funcionamento. A imagem da
humanidade que temos de nós mesmos é a única
coisa que realmente temos, mais o modo como ela
se reflete dramaturgicamente nas nossas
instituições, direitos e seus progressos históricos.
Por isso também o liberalismo econômico,
entendido em sentido simplificado como conjunto
de fórmulas abstratas para calcular os custos do
curso da livre concorrência, não pode ser instalado
fora de sua circunstância histórica, como mera
técnica, violência, doutrina ou dissociado da forma
humana específica que ele pretende refletir – isso
também seria pressupor resolvido o problema para
cuja resolução os cálculos de maximização
existem.
Começaremos a explorar essa abordagem a
seguir, mas em todo caso, podemos antecipar que a

23
proposta monetária é uma solução para a incerteza
e hesitação dramatúrgica envolvendo o ego e o
desejo, e isso ocorre por causa de sua natureza
contratual: isto é, porque permite ao indivíduo uma
reivindicação de justiça latentemente presa a 1.
suas condições de pagamento e 2. Seu engajamento
na negociação como credor ou endividado. Essas
duas condições são interdependentes e expressam a
capacidade de anexar a reivindicação de justiça.
Sem essa, a solução teria de ser a força ou a
violência, ou alguma técnica simulada.
Contra o provincianismo psicologista de
uma fração dos economistas, portanto, podemos
dizer que o que acontece com o dinheiro
externamente, isto é, se perde valor, se os preços
sobem, se deixa de estar calibrado ao ritmo da
economia, etc., são sintomas extra-jurídicos (uma
relação de poder não limitada nomologicamente)
que tentam avisar o lado mais prejudicado,
estabelecendo “visibilidade (reconhecimento)
informacional aproximativo” sobre o outro e
improvisando uma integração ao nomos social,
mesmo que não seja abrigado por um direito
institucional maduro. Isso não garante uma
artificial paridade do poder de compra, mas sim o
reequilíbrio da balança de pressão mútua da
negociação, possibilitando que a troca funcione
com sua função ótima: reajustar as expectativas
contratuais e aprimorar as posições estratégicas dos

24
dois lados7. O dinheiro, portanto, funciona como
instituição capaz de estruturar o nomos social
mesmo onde falta um sistema de punição Estatal
maduro.

& A Riqueza abordada pelo ponto de vista


dos contratos

A escassez afeta cada sensibilidade


particular de uma maneira dramatúrgica distinta,
uma como sede, a outra como prejuízo, ainda outra
como desespero; mas todas são sensibilizadas
racionalmente por meio do modo particular como
seus cálculos de previdência se expressam. Essas
formas particulares de sensibilidade são diferentes
expressões da razão que fala pelos seus canais
sensíveis. O mesmo vale para situações sem
escassez onde todos aplicam a razão, isto é,
maximizam os seus interesses, embora para alguns
o resultado esperado seja o lucro e para outros
apenas sobreviver até o dia seguinte. Isso mostra a
seguinte peculiaridade da racionalidade econômica:
o tipo de pagamento esperado pelo comportamento
racional não é uniforme, isto é, na atividade
racional calculista o futuro é ligado ao presente a
7
Mesmo que um fique por cima no final. Esse reequilíbrio
acontece mesmo que o lado que fica por cima possa continuar
explorando a resignação necessária do oponente ao menos
pior, distinguindo poderes e chances que podem se tornar o
fundamento para a existência de classes ou estamentos.

25
partir da projeção de uma meta contratual de
divisão de custos que se expressa pelo resultado de
que todos perdem o mínimo possível na
negociação. O futuro é ligado ao presente através
de um princípio de amortecimento das
possibilidades de erro ou prejuízo. Isso pode levar
ao desconcertante fato de que, em uma arranjo
contratual como o aluguel, o mesmo
comportamento maximizador de ambos os
contratantes pode esperar como resultado vantajoso
– em um caso – um juro – e no outro a mera
sobrevivência. A disparidade entre o
aproveitamento do negócio é uniformizada sob a
pressuposição de que ambos perderam o mínimo
que podiam perder, isto é, empobreceram e
enriqueceram o mesmo (embora um tenha lucrado
e o outro apenas sobrevivido). O fato de
racionalidade seja o termo usado pelo economista
neoclássico indiferentemente apenas mostra que
nesse estágio a razão é uma encenação, um retrato
ideológico que é invocado por todos os lados do
conflito econômico, embora ela signifique
diferentes arranjos contratuais de cobrança e
pagamento, em cada caso. A razão, assim
fragmentada, tolera a contradição consigo mesma.
O instinto de beber água, portanto, não é
indiferente e irracional: carrega consigo um
conteúdo, uma vontade com propósito, uma
capacidade de apropriar-se da água e negociá-la, a
incluindo em um horizonte de racionalidade
improvisada, como um modelo artificial da razão
criada pelo homem para amortecer o impacto da
26
surpresa sobre a sua perspectiva limitada do
presente. Isso, com efeito, não o coloca em posição
de prever o futuro. Mas converte o futuro
artificialmente em uma estrutura vazia preenchível
pelas possibilidades prescritas por ele. Nesse
aspecto, é errôneo distinguir a ação prática do
homem previdente do tipo de atividade filosófica
praticada pelo metafísico. Ambos nascem do
mesmo impulso à razão. Essa citação de Hegel no
prefácio aos Princípios da Filosofia do Direito
mostra essa conexão: “Quando a reflexão, o
sentimento e em geral a consciência subjetiva de
qualquer modo consideram o presente como vão, o
ultrapassam e querem saber mais, caem no vazio, e,
porque só no presente têm realidade, eles mesmos
são esse vazio” (Hegel, XXXVI). Esse trecho é
essencial para entender a conexão entre os atos de
previdência que tentam controlar o futuro e um tipo
de racionalidade formal, que Hegel chama de
moralidade subjetiva, e que se caracteriza pela sua
capacidade de fundamentar as expectativas do
futuro através de estruturas de pagamento
contratuais. Um contrato é um modelo vazio da
razão, uma forma de preencher o vazio do futuro
das maneiras mais convenientes e amortecidas aos
sujeitos envolvidos em uma negociação. Mas, por
isso também, os contratos são o reino onde os
resultados, recompensas, pagamentos, cobranças,
se articulam através de um valor vazio, que
exprime uma relação dramatúrgica paralisada em
um retrato ficcional onde a desigualdade é tornada
invisível. A desigualdade é varrida para baixo do

27
tapete enquanto o contrato legitima a troca como
uma divisão de custos benéfica – formamente –
para todos os lados, ainda que, frquentemente, um
lado seja recompensado com a mera sobrevivência
e o outro lado com mil luxos.

O Paradoxo da Riqueza segundo


uma visão Contratual das Interações
Econômicas

& Riqueza e Igualdade: o misticismo


envolvendo o Mercado e os modos diferentes de
considerar a ação da mão invisível

Os economistas clássicos, aliados a outros


mais recentes, fizeram de sua ciência uma
explicação dos modos como a previdência
individual traz benefícios sociais. Tanto a tese de
Adam Smith como a de Bawerk sugere que existem
equilíbrios de compensações conquistadas pela
atuação racional no mercado. E esse equilíbrio é
tanto maior quanto mais consciente ou sensível for
o capital que administra a gestão e aplicação dos
esforços individuais nas direções em que a
informação do mercado orienta sua inteligência.
Nessa dimensão, o que se pode chamar de interesse
28
do capital é benéfico para a sociedade como um
todo. O mercado se torna, nesse pensamento, o
centro organizador de qualquer sociedade, o lugar
onde o cálculo de utilidade marginal – onde o
prejuízo é sempre deslocado para as partes menos
sensíveis do corpo social, sendo repassado de quem
não “sente falta” para quem a sente – atinge sua
expressão mais segura.
O equilíbrio almejado corresponde,
naturalmente, a uma situação artificial em que os
indivíduos, separados entre si por considerações de
cálculo individual, se dividindo em diferentes
espécies de trabalho, encontram uma rede de
conjugação virtual onde as mãos de todos se
auxiliam para descarregar os excessos e administrar
seus prejuízos. De modo que não é incorreto dizer,
como um porta-voz da doutrina marxista, que “por
casual que possa parecer o ato individual ou isolado
da troca, ele só pode ser consumado em massa e de
forma duradoura se permitir a circulação dos bens
sociais” (Hilferding, p. 34). Desde que se tornou
um hábito confrontar a administração capitalista
com uma opção totalitarista ou uma administração
doméstica mais primitiva, onde a tentativa e o erro
é substituída por planos estatais que simulam uma
clareza de projeto, então uma voz com tom
monitorador na economia tem elaborado essa
advertência: em uma sociedade onde a força
integradora se fundamenta na ininterrupta
circulação, a inteligência dos indivíduos é colocada
a serviço de uma consciência fantasma – ideológica
– cuja atenção é direcionada e controlada pelas
29
necessidades dos investidores, que por sua vez são
hipnotizados pelo magnetismo místico de confiança
do capital de mais sucesso entre os competidores.
Por mais supersticiosa que essa voz pareça,
não se deve subestimar a força de verdade –
avaliada holisticamente – de sua expressão
metafórica. Ela mostra o estado pós-psicológico da
interação de mercado, e aponta para o nosso
destino especial: as dramaturgias competitivas
como horizontes de aprendizado feitos através dos
próprios lances. De fato, a mesma informação tem
sido compartilhada por economistas de escolas
rivais com diferentes ênfases explicativas. A visão
do mercado como uma espécie de entidade
anárquica, porém inteligente, onde a troca não é
mais uma simples casualidade subjetiva e
psicológica8, tem sido compartilhada desde que o
pioneiro do liberalismo econômico usou sua
própria liberdade metafórica descrevendo essa
“mão invisível”. A parte inteligente ou auto-
regulatória da suposta anarquia é definida pelos
ajustes instrumentais que garantem o óleo para a
máquina da circulação, cuja parada seria capaz de
afetar a estrutura do enriquecimento social. Desde
então, teóricos marxistas tem usado sua própria
criatividade para descrever como o ato de troca é
tirado do “âmbito do casual, arbitrário e subjetivo e
o eleva ao nível do uniforme (...). ... é isso que o
8
Como seria, ao que tudo indica, para Hiferding, em uma
sociedade socialista: “neste caso, a troca é casual, não
constituindo nenhum objeto eventual de considerações
econômicas” (p. 34).

30
transforma em uma condição da circulação dos
bens sociais e, consequentemente, em uma
necessidade vital para cada indivíduo” (Hilferding,
p. 35).
Além dessas duas correntes de oposição, o
enigma envolvendo a suposta autonomia inteligente
do mercado não é desmentido quando se analisam
os sintomas e as reações da economia. Nesses
momentos de crise, o mercado recua como um
organismo que, com desencadeamentos de inflação
e desemprego, procura aumentar ou diminuir sua
sensibilidade à informação, se posicionando em
posições estratégicas de perspectiva. Como um
organismo acuado, gerindo possibilidades de
rendição, recuo, etc., os capitais produzem reações
imunológicas com o objetivo de criar novos
horizontes estratégicos de resposta. O custo
individual humano, a miséria e a mortalidade, lhe é
indiferente. Tudo faz supor que o mercado tem um
comportamento orgânico, como se fosse
estabelecido na base de um contrato original,
embora sua estrutura seja artificial ou virtual9.
9
O vício do economista político-técnico é o de se
posicionar como médico ou terapeuta, sem atentar para as
dinâmicas de poder presentes na vida saudável da economia
que engatilham os sintomas de suas doenças. E essas
condições somam auxílio ao destino dessa obra: apontar para
os jogos como o horizonte de conflitos estratégicos onde a
inteligência não tem mais um desempenho psicológico ou
mental singular. Nossa primeira meta para aproximar-se do
objetivo será analisar os mecanismos de comunicação usados
por esse mercado nas suas aventuras pós-psicológica de
ganhar informação.

31
Essa é a conversão de todas as necessidades
a uma justificação racional idêntica. A mão
invisível, portanto, não é nenhum deus bom e
romântico: é a forma como a razão se assume
como idêntica em diferentes circunstâncias de
necessidade e vontade individual. Já podemos
recorrer à suspeita, graças ao nosso estudo dos
contratos, que essa dimensão da ação racional é a
que tem expressão concreta plena da formulação
dos consentimentos individuais nos contratos.
Somente contratualmente uma situação de
desequilíbrio drástica como a que um morre e o
outro perde uma casa, enquanto um terceiro lucra
com a perda dos dois anteriores, pode ser expresso
como “justiça”, porque somente um contrato pode
promover uma inteligibilidade racional objetiva ao
que pareceria – fora da dramaturgia que lhe dá
inteligibilidade – um mero modelo subjetivo
arbitrariamente escolhido pelos sujeitos que
contratam. Mas os dois comentários a seguir, onde
será introduzido o conceito de “desigualdade
estratégica”, são imprescindíveis para entender
como essa situação de igualdade econômica se
reflete em uma desigualdade de riscos e custos
capaz de colocar indivíduos em posições de risco e
de custos diametralmente opostos. Esse momento
abstrato da razão subjetiva, portanto, se articulará
de maneira objetiva no momento mesmo que uma
inteligência passa a monitorar essa forma
subjetivamente improvisada de justiça.

32
Comentário:

A ação da mão invisível pode ser melhor


exposta com a ajuda de um estrutura de
pensamento filosófica. O egoísmo individual de
cada agente econômico usa a razão para gerir suas
prioridades de um modo que apenas parece
diferente e divergente para cada agente. Pois tanto
o agente egoísta que racionaliza suas necessidades
através da sua necessidade de moradia concreta,
como o que a racionaliza pensando no quanto a
necessidade de moradia concreta do outro valoriza
as suas moradias de reserva, são sensíveis ao
mesmo “valor” objetivo enquanto esperam
pagamentos racionais diferentes por ele – um, quer
apenas um teto, o outro, quer um juro pelo
empréstimo. Isso mostra que diferentes agentes
econômicos conseguem substituir sua situação de
egoísmo uns pelas dos outros, isto é, conseguem
fazer com que sua necessidade egoica lucre – ou
tenha o menor prejuízo – com a necessidade egoica
do outro, na medida em que podem estipular
diferentes arranjos racionais para compensar suas
perdas e faltas. Mas do fato de que as
desigualdades de patrimônio não seja uma
desigualdade de custo, pois todos perdem em igual
medida, não significa que a riqueza e a pobreza
sejam invisíveis do ponto de vista daquilo que
podemos chamar de “desigualdade estratégica”. A

33
desigualdade estratégica se refere à como aquele
em uma melhor posição econômica está mais apto a
explorar oportunidades causais e possíveis,
enquanto aquele em pior posição econômica está
sempre tentando reajustar a sua cobrança do futuro
com visibilidade estratégica limitada: como o
jogador do cassino que não tem fichas suficientes
para perder e nem para ganhar, não podendo
alavancar assim sua posição econômica. A
desigualdade estratégica é a fonte de toda
desigualdade em uma sociedade. Longe de ser
apenas uma ficção idealista (embora o seja
também), ela reflete o modo como o uso da razão
justifica um lado mais do que o outro na luta por
reconhecimento. Como a sensibilidade é sempre
dependente de um princípio de justificação
racional, aquela que está situada no lado
desvantajoso dos desequilíbrios estratégico se
encontra em um arranjo contratual em que ela
constantemente paga o custo para justificar
racionalmente as especulações do lado vantajoso. A
razão em desvantagem, de fato, financia a razão em
vantagem. Isso pode ser visto de maneira mais
expressiva durante crises econômicas observando
quem paga os seus custos primeiro. Mas o resto da
vida social é regido pela mesma luta por
justificação e reconhecimento, e a desigualdade
estratégica é o fundamento da sensação de pobreza
e riqueza tal como ela se articula na vida real das
pessoas.

34
Comentário 2:

Supomos agora que uma catástrofe destruiu


uma casa para cada proprietário de uma
comunidade. Para alguém que já tem muitas casas,
o cálculo de maximização racional de seus
interesses o “informa” de um prejuízo que pode ser
expresso na mesma unidade de medida (o mesmo
valor) que para aquele que tem apenas uma. A falta
que lhe fará o aluguel que poderia tirar de suas
casas de reserva é, no seu cálculo, idêntica em
valor à casa do homem que passará frio sem teto no
dia seguinte. Em outras palavras, a expectativa
contratual vazia foi preenchida. Do ponto de vista
econômico ambos perderam o mesmo, embora do
ponto de vista estratégico um perdeu mais do que o
outro, isto é, pagou um custo maior para financiar a
posição especulativa econômica vantajosa do outro.
Através de arranjos de pagamento como o aluguel,
o lucro, a renda, entre outras maneiras contratuais
de improvisar a sensibilidade racional à utilidade
dos objetos, o objeto de desejo pode ser negociado
através de um padrão universal comum, mas nessa
ficção monetária/cambial se esconde a entronização
de uma desigualdade estratégica. Com isso não se
chega a um padrão distributivo igualitário, mas sim
a uma situação que só pode ser descrita pelo seu
caráter macabro, pois a maldade é aqui uma
característica da razão: em uma greve que corte o
suprimento de alimento, para o indivíduo que
morre de fome e para o que apenas perde tempo e

35
deixa de lucrar, o infortúnio pessoal é sentido
através de um cálculo da mesma razão. O mal é
racional. Todos raciocinam através da mesma
lógica, embora o pagamento esperado pelo mesmo
raciocínio seja pago em forma de lucro, de renda ou
de mero salário de subsistência. Do ponto de vista
econômico, todos pagam o mesmo, mas do ponto
de vista estratégico, alguns agentes econômicos
arcam com os custos dos outros. Em outras
palavras, a razão econômica não é dada a um lado
mais do que ao outro; mesmo que, afetados pela
mesma circunstância, um esteja no leito de morte
enquanto o outro tenha sofrido um pequeno
desfalque em seu patrimônio. Mas ela justifica um
lado mais do que o outro: o coloca em uma posição
de maior conforto especulativo, onde é mais barato
para si apostar, isto é, o custo de um erro futuro é
mais amortecido para ele. De modo que, a menos
que uma razão mais universal, como a da história,
do destino ou do acaso, lhe tire a vida, os seus
cálculos de previdência racional estarão sempre
mais “justificados” (mais baratos) que o de seu
rival.

& A maximização econômica como


capacidade de eleger arranjos contratuais: a
formalidade vazia dos contratos

36
Nos Princípios da Filosofia do Direito,
Hegel trata dos contratos no capítulo sobre o
Direito Abstrato, na etapa de sua investigação
dedicada a abordar a integração subjetiva
observada sob uma regra de interação independente
da compreensão dos indivíduos como
personalidades. A personalidade é definida pela
capacidade de expressar a individualidade do eu
segundo uma regra abstrata que representa uma
capacidade de invocar um protesto, uma
indignação, um sentimento de ultraje sempre que
ela é ofendida: “a necessidade deste direito limita-
se (sempre por causa de sua abstração) a algo de
negativo: não ofender a personalidade e tudo o que
lhe é consequente” (p. 41). Para não nos
fidelizarmos demasiado com a terminologia do
filósofo, podemos dizer que essa capacidade
coincide com a compreensão de si mesmo segundo
uma regra de exclusão do que não lhe convém, isto
é, do que não se integra ao cálculo de sua própria
razão, e isso se articula na sua relação com o outro
por uma espécie de “voz de justiça” que pode
cobrar o outro sempre que o ofende, que tira algo
seu ou desrespeita um trato feito sob consentimento
mútuo. Os contratos são vistos sob o último ponto
de vista.
O motivo da importância de um resgate da
inteligência hegeliana, e uma recaída ao horizonte
datado da sua filosofia, é o seguinte: essa visão da
existência contratual revela o caráter formal e
abstrato dos arranjos interpessoais, isto é, o fato de
que as diferentes personalidades entram em
37
contratos como estrangeiros completamente
alienados uns dos outros, cuja única certeza é, em
cada caso, que o outro lhe deve respeitar os limites
e contornos pessoais. Essa certeza, que não é,
portanto de modo algum relacionado com uma
confiança justificada em casos concretos, é uma
certeza e uma confiança vazia. O vazio é um
elemento indispensável dela. No fundo, o contrato
não é senão a formalização de uma situação de
incerteza, a neutralização das possibilidades de
surpresa através de seu esvaziamento, ou a sua
representação emoldurada em um mero estado
burocrático de “possibilidades
carimbadas/legalizadas”. O que o contrato diz é
apenas: não importa o que aconteça. A recepção do
futuro será feita nos termos pré-adaptados pelo
arranjo presente. A vigência dessa mágica é o que
caracteriza o mistério da abstração.
Como as individualidades interagem aqui
sob uma expectativa completamente vazia, onde
não esperam mais do que uma neutralização vazia
do impacto da surpresa e do futuro sobre si, e como
se contentam a isso, é que “no contrato real cada
contratante conserva a mesma idêntica propriedade
no que adquire e no que cede (...) constituindo as
coisas exteriores como objetos de troca” (p. 73). E
é exatamente essa relação contratual burocrática
que emoldura um estado racional improvisado pela
construção de um “vazio formal”, uma forma de
lidar com o futuro que o neutraliza e o adapta a um
formato prévio. Todos os cálculos de maximização
econômica não passam de expressões de
38
radicalização do princípio da personalidade, que
fundamenta a confiança intersubjetiva na
pressuposição de que o outro é mais previsível em
sua dimensão egoísta do que nas suas superstições.
Isto é uma expressão do fato de que o indivíduo,
incapaz de saber o que se passa na cabeça do outro,
e incapaz de prever o futuro, formaliza a sua
relação com ambos, improvisando um canal de
assimilação informativa capaz de manter a relação
com o futuro e com outro dentro de uma margem
de previsibilidade tolerável à sua própria
sensibilidade. Essa margem tolerável é tudo o que
há de racional no cálculo econômico, e é também
uma expressão da racionalidade vazia e artificial. A
ilusão do equilíbrio econômico é fundamentada sob
a premissa de que os resultados das trocas caem
sempre sob a cobertura de uma margem previsível,
sendo que essa é fundada contratualmente, como
um arranjo artificial, e não como uma relação
concreta entre o eu e o outro ou o eu e o futuro.

Comentário:

Vimos acima, inspirados por Hegel, que os


contratos permitem uma expressão da razão em
termos arbitrariamente escolhidos pelos sujeitos
contratantes para solucionar o problema da
insegurança mútua estipulando uma margem de
previsibilidade tolerável. Engajados no propósito

39
comum de perder o mínimo, instalam um horizonte
abstrato de valor objetivo, uma meta imaginária
que passa a guiar suas ações em direções
homogêneas e criar os preços para expectativas.
Institui-se assim a realidade fetichizada final do
capital: o juros. Essa estipulação adquire uma força
interna e autômata na medida em que alinha o
futuro a um diálogo com o presente através de
condições de reajuste e de pagamento: “a fórmula
da estipulação não é uma fórmula qualquer: contém
a vontade comum que nela se realiza e ultrapassa a
arbitrariedade das íntimas disposições” (Hegel, p.
75). Assim, os interesses individuais podem
improvisar uma expressão racional arbitrária
através do poder moral de seu consentimento e
assinatura, formando um princípio de racionalidade
cujo funcionamento depende do comprometimento
normativo dos indivíduos a não se excetuarem à
coerência contratual. É essa normatividade que
fundamenta a dinâmica da recompensa
proporcional ao risco. E é dentro dessa dimensão
contratual que é possível alavancar posições
estratégicas de aproveitamento de oportunidades
econômicas. Esse aproveitamento maximizador em
abstrato não é, naturalmente, igualitário no
conteúdo. Dentro do jogo, cada estratégia
maximizadora espera recompensas desiguais, ou se
adapta contratualmente a recompensas desiguais
através de uma margem de previsibilidade que
esvazia – por exemplo, formulando
burocraticamente um consentimento formal entre
patrão/empregado – o peso dessa desigualdade.

40
& Acentuando o paradoxo da riqueza:
como as tentativas de eliminar o paradoxo
acentuam o seu caráter absurdo

Frequentemente, os paradoxos são apenas


formulações compreensivas improvisadas, usadas
para dar expressão a um fenômeno difícil de
compreender de outra maneira. No caso do
paradoxo da riqueza, vemos o problema de
determinar com uma explicação satisfatória para
explicar porque o acúmulo de disposição de bens
sem utilidade econômica também acarreta que
esses bens perdem seu valor de riqueza. Carl
Merger ofereceu uma resposta que nada responde,
afirmando que a riqueza é apenas “a totalidade dos
bens disponíveis a um indivíduo que desenvolve
atividades econômicas, bens cuja quantidade é
inferior à demanda dos mesmos” (p. 68). Isso
certamente dá uma solução provisória ao paradoxo.
É um postulado semântico, que define riqueza
como disposição econômica. Com o acréscimo da
condição da demanda econômica racional, fica
definido que “a riqueza é o critério para medir o
grau de plenitude no qual uma pessoa consegue
satisfazer suas necessidades, em comparação com
outras pessoas que desenvolvem atividades
econômicas em situações iguais” (p. 69).

41
Essa aparente clarificação do paradoxo,
contudo, transfere o enigma para o conceito de
“riqueza”, que agora é definida de maneira grotesca
e não satisfaz nenhuma dúvida a respeito de sua
natureza. Afinal, o que é a riqueza? Que espécie de
coisa incompreensível é essa que é acumulada
apenas por referência à cobiça dos outros homens,
e que é perdida quando os motivos econômicos
para retê-la – isto é, o seu uso como arma
competitiva – desaparece? Do ponto de vista
científico isento, o enigma em que somos deixados
não compensa o paradoxo solucionado. Uma
maneira mais dramática de expressar o paradoxo da
riqueza que não perde o caráter absurdo, é
observando como a explicação neoclássica o
acentua: uma pessoa que perde a vida em virtude
de um cálculo previdente – por exemplo,
economizando para sua prole – estará
empobrecendo tanto quanto, do ponto de vista
econômico, um indivíduo que perde um vigésimo
de seu patrimônio em virtude de um cálculo
econômico idêntico. A idealização econômica em
termos de “riqueza” encobre a mais-valia que
desiquilibra a relação. A maximização dos seus
interesses, do ponto de vista econômico, leva a
perderem em quantidades homogêneas. Isto é,
todos pagam o mesmo preço econômico cobrado
por uma mão invisível. De modo que o preço em
"valor de riqueza" para uma troca ou negociação
pode ser para uma pessoa a morte e para outra uma
inconveniência.

42
Ora, vimos nas reflexões anteriores que a
racionalidade de um homem sem moradia e a de
um homem com cinco casas é a mesma, embora
para um a falta do resultado esperado de sua
estimativa racional seja ficar sem teto, enquanto
para outro a falta de resultado seria ficar sem um
Iate. O valor da ausência de Iate e da ausência de
teto, contudo, é exatamente a mesma do ponto de
vista econômico porque esse é a expressão de uma
inteligibilidade dramatúrgica onde a única condição
para o sucesso e o fracasso é o Outro. Isto é, do
ponto de vista econômico o homem que morreu de
frio perdeu em termos de “unidade de riqueza” o
mesmo que o homem que deixou de alugar uma de
suas cinco casas. Mas essa inteligibilidade
dramatúrgica não significa que desaparece o
elemento paradoxal dessa relação.
Esse aparente paradoxo só pode ficar
explicado se entendermos que a dimensão onde
essa razão se expressa é a dimensão da
“racionalidade fragmentada” através de arranjos de
consentimento, sacrifício e compensação dos
contratos. De fato, um contrato, mesmo que um
contrato apenas feito entre o indivíduo e ele mesmo
(no futuro) – situação análoga à economia de
previdência patrimonial sem trocas – é a criação de
uma medida de segurança que estipula o
pagamento futuro de uma cobrança presente. Essas
medidas podem ser as indenizações, as
remunerações, as compensações, o aluguel, o lucro,
a renda, etc. A divisão de custos, ou a
compensação, oferecida nos termos contratuais é
43
passível de ser expressa em uma razão comum,
motivo pelo qual – em um contrato entre o
assalariado e o patrão – o assalariado que maximiza
seu interesse a partir de um cálculo idêntico ao de
seu patrão (supondo que ambos têm o mesmo
talento administrativo nativo) tem de esperar
recompensas diferentes das dele. A fome de um e o
prejuízo ocasional de outro são expressos como
uma “perda de riqueza” idêntica.

& O paradoxo da riqueza como expressão


de uma solução contratual: os arranjos de
pagamento para suprir os custos da incerteza
futura

O importante em uma situação contratual é


que ela se fundamenta em uma validade interna,
que é a margem de previsibilidade artificialmente
criada para tolerar a incerteza (não saber o futuro, e
não saber o que o outro esconde). Essa margem
vazia de previsibilidade é estabelecida através de
cláusulas burocráticas que dão expressão às
medidas defensivas de cada indivíduo para a
criação de uma prótese de segurança. O contrato
tem de manter uma linha de diálogo entre o futuro e
o presente. A maneira mais simples de fazer isso é
através de condições de pagamento. Assim, aquilo
que cai fora de sua estimativa interna de cobrança
não lhe diz respeito: os bens e as sobras que não
fazem parte do planejamento formal do contrato
44
não tem validade de pagamento. Eles não pagam,
não cobrem uma situação de carência, não são
reconhecidos como valor, não cobrem uma margem
de previsibilidade. Em termos burocráticos, isso
significa que não é possível documentar o valor
acrescido; e isso seria uma solução improvisada
para ditar porque não funcionam como “riqueza”.
Mas essa ficção aparente revela algo de
mais objetivo do que a mera existência de um papel
burocrático com valor social tácito e arbitrário. A
riqueza e o valor não são convenções frágeis,
apesar de dependerem de uma validade contratual.
A rigor, o contrato vem sempre carregado com as
condições mesmas de sua realização, e ele é sempre
estabelecido de maneira autorreferente, de modo a
poder prever inclusive as circunstâncias de seu
cancelamento. O contrato garante, portanto, uma
posição estratégica de previsão. Já observamos
alguns detalhes dessa característica acima,
atentando à afirmação de Hegel de que não há no
contrato nenhuma condição externa. Chamaremos
essa de característica autorreguladora dos contratos,
para acentuar sua capacidade de ditar obrigações
normativas ao futuro. De outra forma, pode-se
dizer que o problema de insegurança que o
contrato projeta solucionar é solucionado não por
referência a um conhecimento onisciente do futuro,
ou da previsibilidade empírica das vontades, ou boa
vontade moral dos contratantes, mas sim pela sua
capacidade de – burocraticamente – conter em si
mesmo as condições de seu reajuste às
circunstâncias e surpresas acidentais.
45
Em termos práticos, a estratégia de
previdência é inteligente, não empobrece o
indivíduo, porque representa uma solução
contratual – o quanto ele cobra de juros por seu
empréstimo, por exemplo – que estabelece uma
margem de previsibilidade estratégica. A cobrança
de juros, tanto quanto a cobrança de indenizações,
só existe na dimensão interna dessa margem de
previsibilidade, e é essa autorregulação interna que
lhe dá o caráter racional10.
Assim, se uma meta de previdência
econômica, entendida agora como investimento
contratual dos bens de um indivíduo dentro de uma
expectativa de retorno que justifique seu ciclo de
reposições, não é satisfeita, isto é, se não ocorre o
pagamento das condições enunciadas, a natureza
mesma de um contrato inteligente automatiza um
reajuste dos custos de maneira a reduzir o impacto
do dano ao mínimo. Esse reajuste do contrato a si
mesmo é como um diálogo entre o presente e o
futuro feito através de uma estrutura formal que
estipula condições de reação a diferentes tipos de
surpresa. Não é de natureza heterogênea a um
planejamento estratégico de um general em batalha,
com a diferença de que no planejamento contratual
mais vontades estão envolvidas no consentimento,
produzindo um efeito coletivo capaz de se
autojustificar, redistribuindo os custos da surpresa

10

46
entre todos os contratantes, que assim se imaginam
em uma realidade racional mais distante da natural.
A riqueza, assim, tem aparência tão
enigmática porque, quando explicada fora da
dimensão contratual onde ela tem “valor de
riqueza”, ela não é explicável em absoluto. Ao falar
de riqueza não é por acaso que corremos sempre o
risco de se perder em dicotomias improvisadas
entre prosperidade e predação, produtividade e
desperdício, trabalho e esmola. O próprio conceito
só existe enquanto for possível traçar essas
distinções, que na verdade exprimem um estado de
coisas a posteriori: o vencedor falando de sua
vitória pela perspectiva da inevitabilidade, como se
entre ele e o perdedor houvesse uma diferença
absoluta e intransponível de método e mérito. A
riqueza nada mais é do que a consequência dos
resultados de previdência capazes de pagar a si
mesmos contratualmente; isto é, capazes de
proteger-se do rombo e do prejuízo prevendo um
reajuste de custos para o caso do acidente, da
tragédia ou do conflito e desentendimento
intersubjetivo. O contrato do investidor industrial é
um exemplo típico de capacidade de enriquecer
porque ele tira do trabalho um pagamento especial,
da mesma classe do lucro do investidor comercial,
que não corresponde à satisfação de uma
necessidade natural, mas sim a uma satisfação
legal do capitalista que usa esse arranjo como
medida de segurança contratual sem a qual ele não
assinaria o negócio. A ruptura com o incentivo de
colaboração capitalista seria um sintoma de crise
47
econômica mais acentuado. É importante perceber
que a racionalidade econômica, portanto, nada mais
é do que a capacidade de reajuste bem sucedida de
seu arranjo contratual. Enquanto a margem de
reajuste pode ser feita, a desigualdade externa é
coberta e não afeta a capacidade competitiva da
economia como um todo. A capacidade de se
manter competitiva indica se a linha estratégica
definida pela margem contratual explora as forças
de integração social que dão conteúdo objetivo ao
rito de maneira bem ou mal sucedida.

Comentário:

A natureza econômica da riqueza coincide


com a sua possibilidade de permanecer válida
enquanto objeto de vontade universal, como valor,
e não como simples fetiche individual. As medidas
contratuais para proteger o patrimônio, o mantendo
sempre “reutilizável” como “valor abstrato”, ou
passível de ser negociado em abstrato como
acúmulo pecuniário, etc., e, assim, ainda estimado
como riqueza, não depende, por isso, da cobiça
psicológica de um rival, nem da contingência da
escassez material que bombearia mecanicamente o
valor da fortuna. Essa reutilização em abstrato é
um produto da capacidade de reciclagem
contratual, que prevê reajustes para absorver o
impacto dos custos. Isso significa que toda

48
estratégia econômica de alocação de recursos, seja
a previdência individual, seja a troca comercial e
divisão do trabalho, são tipos de solução pré-
contratual, que coincidem com a capacidade da
razão humana de esvaziar tanto quanto possa os
efeitos concretos do futuro sobre o presente, o
reduzindo a uma margem aceitável de pagamento.
Esses arranjos encenadores da razão são feitos para
consolidar situações de desigualdade estratégica:
eles documentam sua atividade empreendedora nos
termos de um arranjo satisfatório para justificar seu
risco.

& A Solução Contratual como Fundamento


da Ilusão de Justiça e equilíbrio econômico

Vimos acima como o conceito de riqueza


econômico leva à situação desconcertante onde um
homem que perde a vida e outro apenas uma parte
do patrimônio tiveram “custos idênticos” do ponto
de vista maximizador, isto é, perderam o mesmo do
ponto de vista de tanto quanto podiam fazer
racionalmente até onde vai a sua capacidade de
previdência. Mas essa situação de equilíbrio
romântico é apenas a ponta do iceberg. Na prática,
os rivais em atividades econômicas estipulam
contratos que preveem a sua segurança em
detrimento da segurança do outro, e isso torna
alguns indivíduos mais vulneráveis que outros às

49
consequências acidentais não previstas. Além
disso, os sustos econômicos atingem alguns
indivíduos mais do que outros, e existe uma
hierarquia social fundada, sobretudo na capacidade
de cada indivíduo de ser mais ou menos decisivo
para o rompimento da unidade contratual em um
caso de desventura. Os bancos, hoje, são os agentes
econômicos mais contratualmente protegidos.
Sistemas financeiros inteiros podem ser vítimas da
incapacidade dos indivíduos de encontrar soluções
contratuais satisfatórias de divisão de custos,
fundando contratos normativamente limitados, isto
é, incapazes de conservar sua unidade
autoreguladora em um nomos independente
inquebrantável (a não ser que seja cancelado por
outra negociação contratual).
O exemplo mais típico de pseudo-contratos
desse tipo são os em que há exploração sistemática
de um dos lados, como no sistema escravocrata ou
como ocorreu na relação entre capitalistas e
trabalhadores no clímax da revolução industrial.
Esses contratos, como já vimos, dependeriam de
condições externas, fortuitas ou condicionadas pelo
livre arbítrio, para existir, podendo ser quebrados
igualmente por condições externas, como uma
revolução, uma mudança de opinião ou – no caso
em que a força seja capaz de substituir a legalidade:
o suicídio coletivo dos escravos/proletários.
Um jogador em um cassino tem seus ganhos
estimados em termos de fichas cujo valor
corresponde ao reajuste constante da recompensa

50
conforme o seu risco é maior ou menor. Do ponto
de vista econômico, o resultado de um conjunto de
apostas gera um ganho equilibrado entre todos os
apostadores: quem apostou mais, ganha mais, quem
apostou menos, ganha menos. O reajuste da forma
de pagamento para satisfazer diferentes formas de
risco – em mais ou menos fichas (ou em termos de
aluguel, lucro, salário, etc) – reflete a ilusão da
riqueza exposta no paradoxo acima. O economista
tradicional provavelmente observou essa ficção
quando acreditou que do ponto de vista econômico
tudo se equilibra, isto é, todos pagam preços
proporcionais. Contudo, algo diferente foi ganho
por cada apostador: o que chamamos atrás de
posição estratégica. Mas esse tipo de ganho ainda
não foi completamente explicado pela economia,
mesmo entre aqueles que rejeitaram a explicação
tradicional de que não passam de desequilíbrios
provisórios. O motivo para isso é que a ideia de
equilíbrio é a base da encenação da razão da
ciência econômica, isto é, seu fundamento
ideológico. Sem ele, ela trabalharia com
“exceções”, em uma curiosa forma de ciência que
não trata de um universal.

Comentário:

Alguém poderia legitimamente reclamar


que a ciência econômica, apesar de seus algoritmos

51
fabulosos para retratar cálculos de maximização,
não tem em seus recursos intelectuais um elenco de
conceitos capaz de explicar a desigualdade real.
Para eles essa desigualdade terá de ser sempre um
acidente de curto prazo. Nossa sugestão para
dissolver a perplexidade do paradoxo é explicar,
portanto, a desigualdade através de um conceito,
que já usamos acima nos comentários: a
desigualdade estratégica. Para nós, a uniformidade
de custos econômicas, expressa por uma unidade de
preço homogênea, a saber, o dinheiro perdido –
indiferente a como isso cobra uma vida ou apenas
uma parte ínfima do patrimônio – é apenas uma
forma de fundamentar uma desigualdade
estratégica através de uma margem de
previsibilidade contratual. Esse é aquele tipo de
desigualdade caracterizado pela divergência de
posição vantajosa especulativa. A desigualdade
estratégica dos jogadores reflete como cada um está
melhor posicionado para aproveitar possibilidades
de jogo futuras. Em termos concretos, é mais barato
para ele arriscar, que para o outro com menos
fichas. Esse outro, assim, paga mais do que ele em
termos estratégicos, embora do ponto de vista
econômico – dentro da margem prevista pelo
contrato – tenha enriquecido ou empobrecido o
mesmo.

Comentário 2:

52
Um contrato tem seu fundamento de ajuste
não no arbítrio dos contratantes, mas nas condições
normativas por ele estipuladas. Isto é, ele ajusta seu
pagamento pelo fato de que aquele que aceita seus
resultados vantajosos se compromete
normativamente com seus custos desvantajosos:
essa lógica se expressa no mercado de valores
através do reajuste contínuo das recompensas e
punições como custos normativos das apostas. O
especulador explora as suas possibilidades de
ganho ao se comprometer normativamente com as
perdas possíveis, e esse é o modus operandi mesmo
de sua racionalidade, imitada, portanto, à
racionalidade subjetiva dos contratos. Essa não é
senão uma forma de explorar, com lucro, a
racionalidade interna das promessas, embora a
essas falte ainda a racionalidade normativa. Os
contratos improvisam arranjos de pagamento e são
os meios técnicos mais utilizados para enriquecer
porque estruturam um sistema de reajuste de
custos, onde o futuro pode ser ligado ao presente
por um fio de coerência interno onde nada –
nenhuma decisão individual arbitrária – assusta ou
rompe o ciclo do enriquecimento. O dinheiro
aparece com a aparência de contrato neutro aqui,
isto é, como aquilo que, se for acrescentado em
quantidades iguais a todos os agentes econômicos,
não enriquece e nem empobrece nenhum deles.
Assim, todos que aceitam o dinheiro ou as fichas de
um cassino, ato contínuo aceitam dividir os custos
do futuro nas apostas dos demais. De modo que a
divergência entre patrimônio de dinheiro entre os

53
jogadores será sempre apenas uma expressão de
diferentes pagamentos, sem mudar o fato de que
todos têm custos idênticos proporcionais. Assim, o
dinheiro expressaria uma combinação entre
vontades capaz de se reajustar automaticamente,
pelo simples fato de que ele recompensa e pune
sempre homogeneamente, sem interferência do
arbítrio ou de algo externo que poderia
recompensar um homem em um caso de sucesso e
não puni-lo no caso de insucesso. Em termos
concretos, uma vez com o dinheiro em mãos, todos
serão vítimas da inflação pagando o mesmo custo,
pois nenhum dos que aceitaram o contrato pode
normativamente voltar a trás quando o custo do
futuro é mais alto do que imaginava. Quem lucra
com o dinheiro também está exposto ao prejuízo.
Mas na prática, o homem rico é o último a pagar o
custo. A sua posição estratégica torna sua base
especulativa mais barata. O homem rico, assim,
trabalha para conquistar uma situação vantajosa, e
não de equilíbrio. Isso só ficou obscuro ao
economista tradicional, pois ele foi incapaz de
explicar a posição do homem rico do ponto de vista
da sua melhor posição estratégica. Ao observar a
natureza contratual –e o princípio de justiça
subjacente – das soluções econômicas, o
economista tradicional se encantou para sempre
com a ideia (verdadeira sob um ponto de vista) de
equilíbrio, e a derivou, mesmo sem saber, do
mecanismo mais simples da estrutura contratual:
aqueles que consentem em um contrato estão
expostos à coerência normativa, isto é, serão

54
recompensados em caso de sucesso, mas nem
sempre pagarão os custos no caso inverso.

& As características nomológicas das


negociações monetárias: consequências diretas
das condições contratuais para o sucesso
econômico

Quando dizemos que o que há de racional


em uma troca é a sua dimensão nomológica-
jurídica, que articula a comunicação entre duas
vontades em um esvaziamento de suas expectativas
através de uma margem de possibilidades
toleráveis, isso não deve ser entendido de maneira
excêntrica e filosófica, sem nenhuma consequência
técnica para o administrador que segue receitas
técnicas de economia. A racionalidade de uma
troca é de fato quebrada no momento em que o seu
fundamento jurídico é ignorado, como fica claro
quando observarmos a natureza dos contratos
unilaterais, ou pseudocontratos. Mas podemos
fundamentar essa afirmação de modo ainda mais
profundo. Por exemplo, o indivíduo que segue uma
pista ou segredo para aplicar seu capital, em
preferência a sacrificá-la no momento em que a
concorrência o havia pressionado por uma troca de
informações, agredindo dessa maneira a ligação
normativa de simulação de confiança (mútuo
reconhecimento) que sustenta a negociação, esse

55
indivíduo criará uma situação para o seu capital
onde ele não explora todo seu potencial econômico
de crescimento: isto é, ficará limitado a uma
situação onde suas chances dentro do jogo são
arbitrariamente limitadas. Acontece o que ocorre ao
proprietário que confia no muro que o protege, mas
tira o horizonte de visão estratégico de si mesmo,
que agora está protegido artificialmente, mas em
uma situação defensiva estrategicamente defasada.
Em um jogo dramático, ser enganado não é uma
condição ocupada em exílio, mas uma posição
estratégica específica que precisa saber localizar a
situação do outro no seu horizonte de concorrência.
A única espécie de “consciência” aqui
válida não é construída psicologicamente ou pela
capacidade de intuição do mundo real, mas pela
informação sobre o objeto que ele ganha ao esse
objeto passar pela troca:
as mercadorias também tem que se
juntar para legitimar as mercadorias que, em seu
nome, a cidadania desse mundo outorga”. Esse
processo de outorgamento de crédito, de uma
mercadoria a outra, é feito através da
informação que é passada e repassada ao
mercado conforme se efetuam trocas: “a única
forma das mercadorias se juntarem (informando
uma mercadoria credenciada) é a troca
(Hilferding, p. 37).

Vemos, portanto que todo desentendimento


de mercado – gerando trocas com lesão para um
dos lados – acontece apenas quando o outro não é

56
respeitado em toda a extensão de sua condição
inalienável e suas chances de resposta e cobrança.
Quando o reconhecimento é negado ao outro, ele
contra-ataca criando uma força narcísica de
oposição que se protege em um esconderijo, um
recuo estratégico que é desvantajoso para todos os
envolvidos. Isso se radicaliza ainda mais quando se
tornam inimigos ou são separados por
estratificações sociais muito extremas. Os
oponentes se destacam em linhas de ataque e
contra-ataque menos transparentes uns aos outros,
em uma situação de negociação obscura impossível
de ser abarcada pelo direito e, subsequentemente,
inviável para fundamentar uma linha de visão
transparente em direção ao lucro. É a guerra em seu
estado menos próspero. Vemos também que isso
não é saudável nem para o indivíduo egoísta que
vence. Pois o indivíduo que tenta assegurar para si
posições estratégicas tentando enganar o outro,
fechando seu horizonte de visão ou mesmo o
escravizando, cria uma linha de desenvolvimento
para a prosperidade de seu capital com uma
limitação de perspectiva competitiva, o que o
coloca em desvantagem frente aos capitais mais
amplamente estratégicos e competitivos. Em outras
palavras, seu horizonte de cobrança é mais
limitado.
O importante, para nós, é observar que a
consciência em uma situação de troca não é
informada por uma voz capaz de regular, manipular
ou direcionar a verdade através de segredos ou
outras técnicas para aleijar a capacidade de
57
oposição do outro. Pois aqui mesmo o segredo se
junta ao caminho da informação que o mercado
ajusta para criar chances de reação ao rival ou
competidor. A ilusão e o erro se torna impossível
em escala epistemológica drástica, e a linha da
poesia de Fernando Pessoa – “tudo é verdade e
caminho” – encontra sua aplicação irrevogável. O
mercado, portanto, atua como dramaturgia onde há
a constante pressão e contrapressão dos agentes. E
como dramaturgia, ou 1.obedece as leis de um jogo
que, maturado, assume a forma de Direito, isto é,
uma esfera de limitação legal dos poderes
arbitrários e artificiais dos agentes, ou 2. cai numa
situação de guerra e obscuridade onde os inimigos
não se instruem mutuamente em cada lance,
tornando-se meros “prejuízos” uns aos outros.
Como já foi notado por Hegel, a razão não tem
opção a não ser agir como heroica para proteger o
nomos interativo onde não há o Estado – ou,
podemos acrescentar, onde o Estado não
funciona11. Nessa condição, onde a façanha, a força
física ou o prodígio policial têm de fundamentar a
regularidade consensual para suplementar a razão
e a lei, o direito não terá maturidade para
estabelecer um reino de negociações contratuais
como o reino do mercado.

11
“ou o ser moral já possui uma existência na família e no
Estado, (...), ou só o Estado de natureza existe, estado de
violência absoluta perante o qual a ideia ergue um direito
heroico” (Hegel, p. 84).

58
& As diferentes maneiras de instituir uma
normatividade a partir das soluções contratuais:
outras consequências do nomos das transações
comerciais

É importante notar que o contrato não


soluciona apenas o problema da transferência a
partir de condições de pagamento, cobrança e
validade documental. Ele também institui uma
dimensão de validade interativa e social que inclui
“execuções sem autonomia”, isto é, formas de
intimidação, pressão e até coerção para que a
execução não dependa do arbítrio gratuito dos
participantes. Segundo Hegel: “a fórmula da
estipulação não é uma fórmula qualquer: contém a
vontade comum que nela se realiza e ultrapassa a
arbitrariedade das íntimas disposições e alterações”
(p. 75). Isso significa ainda que a validade do
contrato não depende do futuro, isto é, ele não pode
ser invalidado por um acontecimento futuro, e nem
pode arbitrar dogmaticamente sobre o futuro
(estabelecendo condições para si mesmo mudar
conforme as circunstâncias), se mantendo sempre
isento até que um novo contrato venha a tomar seu
lugar. Uma violação de contrato só pode ser feita
nas condições de um novo contrato e, assim, toda
tentativa de se recusar a um pagamento tem por
consequência uma compreensão contratual nova.
A solução contratual não é uma solução
divina; na verdade, é o improviso de seres não

59
divinos para solucionar seus problemas
dramatúrgicos que não tem medidas perfeitas para
equilibrar a balança da justiça em suas trocas e
transferências, e cujos egos não têm um limite de
reivindicação e nem verão escassas as suas reservas
de paranoia defensiva. Os envolvidos em um
contrato, assim, não podem se livrar de suas
condições conforme o arbítrio futuro de seu livre-
arbítrio, mas podem, alternativamente, pagar suas
obrigações de diferentes maneiras e não apenas de
modo direto – possível apenas aos anjos – através
da “execução” da promessa ou de um equivalente
perfeito ao bem trocado e transferido.
Para repetir o que foi dito: o futuro não está
ligado externamente ao contrato, isto é, por suas
possibilidades de conexão causal direta com o
“prometido”. Assim como a produção causal de
álcool pela fermentação não é o pagamento de uma
promessa, também a promessa arbitrária não tem
condições de pagamento internas, e se conecta ao
prometido de maneira completamente vazia e
abstrata: nesse caso é um simples acidente que
funda a conexão causal entre o presente e o futuro.
Por outro lado, o modo da conexão contratual com
o futuro é interna. E isso significa que suas
condições de segurança e previdência são fundadas
em condições independentes da causalidade do
mundo externo. Assim, o contrato presente (a
cobrança) encontra as condições contratuais futuras
(o pagamento). E se for violado, não o foi por um
“fato do mundo”, mas sim por uma reformulação
ou releitura do âmbito contratual original, ou por
60
um novo contrato. Nada extracontratual é
acrescentado, mesmo no caso de violação. Por esse
mesmo motivo, um contrato que exige de um dos
lados “mais do que ele pode pagar”, ou uma
condição que não pode ser cobrada em forma
abstrata, o colocando em uma condição concreta de
servidão, o escravizando, onde perde sua natureza
contratual e de direito, se tornando uma espécie
mística de obrigação sem risco, como se 1. o
sujeito pudesse alienar sua própria possibilidade de
aceitar o contrato ou 2. pudesse garantir
(divinamente) que irá para sempre estar na mesma
disposição de arbítrio que estava na ocasião do
contrato original, ou ainda 3. como se pudesse fixar
o futuro com certeza absoluta, garantindo não in
abstrato (monetariamente) mas in concreto (com
sua própria liberdade), etc., esse tipo de contrato
não teria validade contratual interna pois se baseia
na mera externalidade da promessa de pagamento,
e a condição de sua realização seria meramente
acidental e externa, dependendo do arbítrio do
escravo, da quantidade de força do senhor, ou da
persuasão psicológica do último – em suma, as
circunstâncias contratuais presentes não
encontrariam as futuras, mas seriam substituídas
por dispositivos externos e extrajurídicos, como a
força, o acaso e o arbítrio.

& A diferença entre o crédito jurídico-


monetário e a credibilidade enquanto estereótipo

61
sócio-cultural: a incapacidade de enganar, ou
explorar a confiança, do nomos contratual

Como o problema para o qual o contrato


presume uma solução não é o futuro ou a execução,
tampouco há no contrato uma preocupação
psicológica ou epistemológica sobre a possibilidade
de se estar sendo “enganado” ou “trapaceado”. Pois
na medida em que ambas as vontades se expressam
no contrato sem pretensão de “conhecer o futuro”,
ambos já estão em uma condição defensiva imune à
possível mudança de posição do outro lado. O
engano, a armadilha, o embuste, são reincluídos na
dimensão do negócio contratado na medida em que
o enganador não pode se tornar operativo sem trair
a confiança que ele próprio depositou; de modo
que, a longo prazo, a sua enganação perde o poder
de enganar e é sempre reincluída no horizonte dos
negócios como uma “perda de crédito”, ou
“probabilidade de inadimplência”. O contrato é
uma maneira de prender a reputação do outro a um
limite estipulado, o forçando a encenar de
determinadas maneiras: a sua assinatura é
sequestrada e usada como refém. Mas isso só pode
ser feito através da racionalização de tipos de
cobrança, que não precisam ser violentas ou
intimidadoras: a prestação de um contrato não
depende da execução forçada por uma entidade
violenta, mas sim do tipo de dívida criada, que tem
uma natureza completamente independente e
autônoma, se movendo no seu âmbito normativo,

62
seu nomos, próprio: os fluxos especulativos. Isso é
importante para nos abrir a cabeça para tipos de
justiça e interação normativas que não dependem
de um sistema de tribunais ou um código penal; o
mercado de valores pune e recompensa a partir de
avaliações de crédito, sem ser um tribunal.
Outra maneira de entender essa
característica passível a punição do “infrator” da
confiança é lembrando que o engano não se
justifica pela aquisição de uma vantagem
superficial futura, pois o que está em questão no
contrato não é a futuro, mas as possibilidades de
conectar o futuro ao presente através de uma meta
de pagamento. E o pagamento estipulado tem o
poder de “cobrar” pelas possibilidades de
inadimplência, como ocorre com um país que paga
pela fuga de seus investidores. A forma psicológica
da reputação é apenas uma maneira superficial de
identificar o que é “punido”, mas isso não significa
que a punição atinge apenas uma face psicológica
do indivíduo. Ele é punido diretamente na sua
posição estratégica racional, perdendo
competitividade. Isso é um modo mais técnico de
dizer que não há enganação gratuita; todo
enganador tem um propósito calculado, que se
torna previsível e tem consequências sobre o
horizonte contratual que ultrapassam as previstas
pelo seu intuito original. Ele é “cobrado”, de uma
maneira ou de outra, pois o contrato é executado de
uma maneira ou de outra: “a execução é uma
consequência sem autonomia” (Hegel, p. 75).

63
Em outras palavras, a relação contratual não
perde tempo se preocupando com a possibilidade
de um de seus membros estar escondendo sua
“verdadeira intenção”, pois o que está em questão
não é a capacidade física ou psicológica de
esconder, mas sim se o pode fazê-lo sem modificar
toda a circunstância inicial que condicionava a
validade do contrato, 1. se autoexcluindo do
universo do consenso contratual objetivo ou 2.
criando o vácuo dramatúrgico para uma nova
condição contratual que substitui a primeira. Nas
palavras de Hegel: “Já não se trata, pois, de saber
se o outro escondeu ou alterou suas disposições
mas de saber se ele tem o direito de o fazer” (p.
75). E se o fizer sem o direito, irá sofrer
consequências não meramente psicológicas ou de
efeito de reputação: ou perderá os benefícios do
Direito, ou será reincluído nela a partir de
condições contratuais desfavoráveis: como
inadimplente, etc.
Pode-se inferir daqui que a mera promessa
pessoal tem uma credibilidade que ainda não é
contratual, e, portanto, só se torna dinheiro (nota
promissória ou papel-moeda) quando envolve
alguma norma de pagamento viável – cuja
viabilidade depende de um balanço de poder entre
credor e endividado – que torne aceitável uma
realização de justiça que preencha um fundo de
carência, diferente de indivíduo para indivíduo
(diferenças de força expressas no contrato original
ou nos tratados de comércio internacional). Temos,
portanto, uma explicação da natureza do dinheiro a
64
partir de seu caráter contratual. Para tanto, é preciso
estar atentos para distinguir o crédito monetário,
que existe em conexão com o nomos do
“pagamento” (e as concepções de justiça pessoal
estipuladas no contrato que cobram tipos diferentes
de pagamento para cada posição de risco e
desconfiança), e a credibilidade psicológica,
entendida como mero estereótipo social ou
diagnóstico médico. No segundo caso, não estamos
diante de um problema jurídico, que envolve a
reivindicação de direito dos participantes, mas de
um problema de acusação exterior ao jogo, que fixa
em uma condição de arbítrio particular uma chaga
eterna.
As tentativas de contratar dessa maneira são
embustes: estipulam as condições de realização do
contrato não no “pagamento viável”, que pode ser
recusado, negociado, transferido, etc. mas em uma
espécie de sacrifício completo da capacidade de se
opor ou encontrar alternativas à realização do
futuro estipulado. São pseudo-contratos os que
estipulam condições de pagamento exorbitantes ou
exigem a previsão do futuro ou a preveem meta-
adaptações convenientes a seus próprios termos,
como o contrato que diz “este contrato não será
válido em caso x”. Não se pode negociar com um
contrato senão a partir de um novo contrato e,
portanto, a sua validade ou invalidade depende do
poder dos contratantes para se recusar a assiná-lo
ou para propor novos termos. Esse poder não pode
ser criado do nada, ou improvisado por decreto,
mas é um efeito da situação de dependência mútua
65
observada no jogo de intimidação dramática e que
tende sempre ao mútuo reconhecimento dos rivais:
e, logo, tende ao direito como o cenário
nomológico do seu desenvolvimento competitivo.
Qualquer tentativa de criar um poder do nada,
forçando uma situação contratual sem direito, pelo
puro arbítrio, é um embuste que tem por
consequência uma integração social pobre,
expressa, por exemplo, em crises econômicas mais
constantes do que períodos de estabilidade. O
mencionado embuste não tem poder de se
solidificar juridicamente embora, historicamente,
possa perdurar inconvenientemente durante
períodos enormes: nos sistemas escravocratas e
outras formas de exploração presentes em variações
de regimes capitalistas. O estudo desses períodos
exige uma análise à parte.

Sensibilidade, Indenização e a
Solução Contratual do Dinheiro

..there is a connection
between money (German Geld),
indemnity or sacrifice (Old
English Geild), tax (Gothic
Gild) and of course, guilt
(Hudson 2004; in: Ingham,
2005, p. 90)

66
& Prelúdio: A complementaridade da
explicação econômica e jurídica e a natureza
normativa do dinheiro e do capital: a dissimulação
das relações jurídicas de acordo com o linguajar
burguês

Entre os paradigmas concorrentes na


procura por uma solução ao problema da natureza
do dinheiro, existe uma tendência, da parte dos
sociólogos, a se precaver contra a naturalização
ideológica das relações sociais (os arranjos
cooperativos e competitivos) que constituem o
dinheiro. Se as relações sociais que constituem a
integração coletiva constituída pelo dinheiro são
puras convenções, não podem ser derivados da
perseguição econômica racional de vantagens
mútuas através da troca. E simples técnicas de
política mercantil não podem solucionar questões
que envolvem intrincadas dinâmicas de poder e
conflitos de interesses. Ingham, que em muitos
aspectos personifica esse resgate sociológico, diz
que "the conception of money worth could not have
originated directly from the exchange of
commodities" (Ingham, 2005, p. 92). Observando
que uma troca realizada com dinheiro envolve
também uma contração de obrigação e a quitação
de uma dívida, o autor afasta do dinheiro a
propriedade de ser mero meio de escambo, e
observa a sua natureza jurídica: “In other words,
money has its origins in law” (2005, p. 93).

67
No entanto, a questão sobre se o valor
monetário deriva de um sistema de trocas ou de um
sistema de indenizações não tem uma resposta que
exclui necessariamente a alternativa. Isso porque o
sistema de trocas, baseado em um cálculo
administrativo, tem uma natureza contratual
implícita. Essa característica protojurídica da troca
não desaparece em estágios de racionalização de
mercado mais avançados. Pelo contrário, ela fica
mais clara nesse estágio, e é apenas o linguajar
burguês que dissimula as dinâmicas contratuais
tácitas em suas operações de troca. Quando
dizemos que o estágio de troca racional torna a
situação jurídica mais clara, isso significa que a
maximização de oportunidades de alocação de
recursos em uma troca converte os utensílios em
propriedade; a racionalidade mercantil permite
estimar o custo ou indenização correspondente à
falta daquele utensílio. E não é senão isso que o
linguajar burguês esconde ao dizer que ele “lucra”
com um cálculo de capital. A sua ação econômica
torna possível estimar o prejuízo, pois torna
possível a sensibilidade ao prejuízo, que de outra
maneira passaria despercebido (em um sentido
hermenêutico radical, pois o mencionado prejuízo
não entraria em jogo para ele). Ele torna assim a
situação jurídica mais claramente abordável: se ele
tivesse que resolver a contenda em um tribunal,
poderia, com mais racionalidade, dizer o quanto
perdeu, e o quanto o outro lhe deve.
O sistema de trocas, portanto, racionaliza a
capacidade individual de arbitrar suas
68
reivindicações de justiça indenizatória e reclamar
quando alguém está tirando proveito de sua
confiança. E isso vale não apenas para a estrutura
do mercantilismo. Outros arranjos de gestão
econômica também refletem uma situação
juridicamente convencionada de relação social. Na
verdade, a própria ideia de gestão e alocação de
recursos, quer seja em um modo patrimonial –
como simples hospitalidade – quer seja como
redistribuição de excessos, são formas de arranjo
vazias se não se baseiam em um ideal de
“pagamento” que é estabelecida através da
sensibilidade dos indivíduos ao dano e suas
possibilidades de protestar o que “é seu”. Isso
justifica o protesto contra a pretensão comunista de
estabelecer um sistema de distribuição de riquezas
sem qualquer visão do horizonte competitivo que é
estabelecido quando indivíduos reclamam a
apropriação de oportunidades e disposições. A
distribuição seria cega, pois não se teria sequer uma
inteligência razoável sobre o que faz falta e o que
sobra. Ou seja, não haveria qualquer sistema de
valorização baseada em uma estimativa de custos
capaz de orientar a alocação das coisas para onde
elas fazem falta, ou onde a sua falta causa mais
sofrimento. O comunismo, nessa acepção
caricaturizada, não teria os recursos para enfrentar
o problema da distribuição que ele mesmo se
coloca: e isso porque a sua teoria do valor se baseia
em uma estimativa onde o valor é o “tempo do
trabalho”. Naturalmente, o tempo de trabalho é
uma forma de sofrimento elementar e, talvez,

69
semanticamente, uma expressão permutável com
todos os outros tipos de sofrimento e de custo. Mas
isso não é o suficiente para uma teoria do valor,
porque seria explicar o que é o “custo” através de
um tipo de “custo” (o trabalho) de maneira circular.
Ademais, o relevante para uma teoria do valor
envolve a consideração dos diferentes níveis de
tolerância a esse sofrimento/custo, que mudam
conforme mudam as linhas estratégicas daquele que
sofre. É a partir dessa capacidade individual de
administrar sua tolerância ao sofrimento/custo, se
resignando, reservando, alocando, etc., que é
estabelecido um horizonte de pagamento de retorno
ou recompensa (ou o “lucro”, no linguajar burguês)
e, a partir dessa referência estratégica, é possível
medir a frustração, o sucesso, a perda e o ganho. O
valor não pode ser estabelecido fora de um contrato
de remuneração e pagamento: não é algo que se
possa encontrar escrito na nossa constituição
biológica/psicológica e social. É algo que surge em
uma dramaturgia. A correlação material simples e
objetiva entre necessidade e utilidade, como foi
demonstrado pelos marginalistas, é um mito.
Mesmo antes de chegar ao nível coletivo, portanto,
o comunismo não conseguiria fazer o indivíduo
enfrentar a dificuldade de organizar suas próprias
prioridades; é uma teoria do valor ainda mais
deficiente do que o psicologismo utilitarista,
porque acredita na leitura biológica da carência do
indivíduo e que, subsequentemente, reservas de
água e de alimento poderiam esgotar a sua vida
econômica.

70
Mas se a questão sobre a alocação de
recursos, distribuição e sobre as trocas depende da
questão do pagamento, da cobrança e da
indenização, que solidificam a posição de um
objeto de valor em um cálculo de previdência
inteligente, por outro lado, isso significa também
que o sistema de indenizações não é estabelecido à
parte da questão sobre as possibilidades de
previdência e de troca, porque um prejuízo jamais é
estabelecido senão em comparação com todas as
alternativas (imagináveis) que possam repor uma
falta. De modo que ter um mercado à disposição
não institui uma nova maneira de instituir o valor,
mas aumenta a racionalidade da forma antiga. É de
se esperar, portanto, que sistemas proto-jurídicos
sempre amadureceram em paralelo a
sistematizações mercantis, e que sistemas proto-
mercantis sempre amadureceram em paralelo a
sistematizações jurídicas. O dinheiro é apenas o
ponto de convergência mais óbvio dessas duas
abordagens, na medida em que combina as
propriedades de um documento e a capacidade de
medir a sensibilidade ao dano: estimar uma falta ou
prejuízo em uma interação de troca.
Entre outras coisas, isso significa que a
dissimulação econômica de arranjos e relações
sociais de pagamento, remuneração e direitos de
compartilhamento, jamais é completamente bem
sucedida em dissociar-se da dimensão jurídica em
que ela encontra embasamento último. Isto
acontece não porque ela precisa se estruturar, em
última instância na constituição positiva. Mas sim
71
porque a própria negociação individual precisa se
articular através de dispositivos que tem uma
sensibilidade normativa: o dinheiro e o capital. A
sensibilidade normativa do dinheiro e do capital é
a capacidade de cobrar os direitos sobre aquilo
que ele representa: uma reivindicação do
negociador e do investidor. Assim, por exemplo,
quando, para escapar de uma obrigação jurídica, o
patrão escolhe recorrer à terceirização de serviços,
criando uma categoria de pagamento sem a
validade jurídica correspondente, as consequências
desse novo arranjo são sentidas juridicamente no
comportamento normativo do dinheiro e nos modos
de interação entre diferentes ramos de capitalização
derivados do mencionado arranjo. Ambos têm a
capacidade de “cobrar” aquilo que eles
representam. Tanto o dinheiro como o capital não
são meros instrumentos técnicos de acumulação,
mas refletem em seus movimentos de valorização e
engordamento (de mais-valia) as sequelas dos
arranjos sociais respectivos que, com ou sem
constituição positiva, são manifestações de
conflitos de interesses e relações de poder.

& A capacidade jurídica de “cobrança” do


capital: como o valor fetichizado pelo desejo
orienta a inteligência capitalista

72
Essa visão do capitalismo nos leva a uma
nova versão da dinâmica da mão invisível,
adaptada em uma versão pós-psicológica. É a mão
invisível de um dramaturgo. Sabemos que um
capital perde ou ganha massa de uma maneira que
não é proporcional à perda ou ganho de reservas de
valor. Um capital pode lucrar muito e ainda assim
não prosperar. O seu enriquecimento é estimado
não apenas com relação ao ganho, mas com relação
ao prejuízo evitado. E essa medida depende da
sensibilidade à informação disponível e da sua
tomada de posição estratégica: um capital não é
sempre sensível ao prejuízo; ele pode ignorá-lo ou,
como vimos, adotar estratégias ruins para evitar os
desafios. E nesse caso, aquilo que ele ganha em
lucro, mesmo que seja gigante em dimensão, não o
alimenta: não há enriquecimento. O capital que não
explora o melhor curso de informação disponível –
ainda que seja o mais arriscado – perde
competitividade, entrando em um ciclo de
emagrecimento. Como um capital que não aumenta
não é mais do que uma reserva de valor supérflua, é
desculpado destituí-lo do título de capital. Quando
um investimento perde conexão com um fluxo de
competição capaz de reeducá-lo ciclicamente,
perde sensibilidade ao prejuízo, e acaba se tornando
uma mera reserva doméstica com valor provisório
que se deteriora facilmente12.
12
Esse movimento pode se completar com razoável
demora no caso dessa reserva ser feita de provisões úteis e
duráveis, mas quando se trata de dinheiro, a deterioração pode
acontecer em um piscar de olhos por uma movimentação de
desvalorização.

73
O importante para o capital enriquecer,
como também já foi observado, não é o lucro ou a
reserva de bens de consumo, mas que esteja
depositado no lado mais aproximado da
informação, que é também o estado mais
competitivo disponível. E apenas um instrumento
costuma servir de termômetro econômico para isso:
a perspectiva dos horizontes de resposta do outro.
O alinhamento com essa perspectiva pode ser feito
por meio de diversos recursos. O modo como um e
o outro lado respondem uns aos outros no jogo
podem ser previstos ao olhar para a posição
estratégica ocupada pelos rivais, o que pode ser
avaliado através de termômetros, entre eles o
câmbio, a avaliação do poder aquisitivo do
instrumento monetário, etc. Porém, esse olhar
técnico sobre a solução do problema é contingente
e simulado. São as propriedades normativas desses
instrumentos – o dinheiro, notas, etc – que
permitem descortinar as desigualdades de horizonte
e perspectiva estratégicas, muitas vezes
socialmente representadas por desigualdades de
classe, mas que não precisam necessariamente ser
representados nessa relação. A diminuição do
crédito de um país ou do poder aquisitivo de uma
moeda é sempre o reflexo de um jogo de poder –
onde há desejo e drama – que não pode ser
resolvido tecnicamente, mas apenas em uma
dimensão onde o “outro” se articula com
pretensões jurídicas sobre as disponibilidades. Essa
correlação é fiel à descrição de Max Weber no

74
volume I de Economia e Sociedade: “todo cálculo
de capital, em caso de aquisição no mercado, está
orientado pelas oportunidades de preços provindas
da luta (luta de preços e concorrência) e de
compromissos de interesses diversos que ocorrem
no mercado” (p. 57).
No fundo, o que garante uma visibilidade
dos horizontes de resposta do outro é sempre uma
interação contratual, que estabelece tacitamente os
modos como a incerteza – de inadimplência – pode
ser incluída nos termos contratuais em forma de
“pagamento”. Assim, por exemplo, se um capital
ignora as informações disponíveis, ou está
insensível ao horizonte de respostas do rival, o que
está acontecendo não pertence ao âmbito
psicológico da “visão”, mas sim a uma dimensão
que se articula contratualmente; quando, por
exemplo, a interação entre as duas partes não é
capaz de solucionar o problema – a partir de uma
perspectiva de pagamento justo – para o qual ele
foi projetado. É o horizonte dos contratos que deve
ser estudado, ainda mais do que o comportamento
macroeconômico dos documentos normativos – o
dinheiro e o câmbio – para entender a raiz
dramatúrgica da situação.
Seja como for, a estratégia de competição
baseada no vício psicológico e epistemológico que
entende a informação pelo ponto de vista de uma
unidade de cognição fechada – uma inteligência
exterior ao jogo, que subsistiria como mônada –
não é apenas contraproducente; ela ignora o cenário

75
dramático do jogo, embora, em si mesma, funcione
como jogada. Em palavras mais precisas: ela é
dramaturgicamente limitada, pois escolhe suas
preferências se baseando em um valor
artificialmente construído, como uma “utilidade”
ou o “trabalho”. E, no entanto, quando conectado
aos seus bens de capital pelo único canal
disponível, a saber, o desejo e o subsequente
desafio que o inspira, o homem é capaz de se
adaptar ao outro e se mover em uma linha de
perseguição de lucro inteligente, adaptável,
dissimulado, malandro. A dimensão final dessa
inteligência dramatúrgica é a do contrato, onde
cada indivíduo aprende a estabelecer os termos
originais para sua tolerância ao prejuízo possível e
suas condições de pagamento para possíveis
incertezas. O capital, nesse sentido, é um
instrumento contratual que cobra o risco de seu uso
através de uma estimativa de lucro competitivo
tolerável.

& A virtualidade do direito e a história: o


Crédito como forma metafísica do nomos
contratual.

Há certamente uma dimensão das ações


humanas cujo valor está exposto às modificações
estruturais do crédito do agente. As promessas
estão fundadas em um ato, porém o valor desse ato

76
não deriva diretamente de seu cumprimento ou não
cumprimento, pois não existem garantias empíricas
para isso. Esse valor depende do crédito investido
na promessa. Entendido psicologicamente, esse
crédito é uma simples expressão empírica da
avaliação da probabilidade do risco. Mas a
confiança tampouco se limita completamente pelas
consequências da ação. Ela admite gradações
correspondentes às modificações estruturais do
crédito do agente. Assim também, a intimidação, o
abatimento, são caracterizações da confiança que
não estão ligadas às consequências de maneira
contingente: a descrição empírica da relação do ato
com as consequências (a probabilidade) é o
fundamento de uma aposta, um investimento, uma
realidade de esperas e promessas que só se torna
completamente concretas sob um fundamento
contratual que fundamenta a realidade prática de
suas condições possíveis como um universo virtual.
Uma vez absorvidos por uma unidade
contratual, crédito e confiança deixam de ser
particularidades psicológicas e passar a pertencer à
esfera do signo: não são meras formatações de
possibilidades não realizadas, mas existem de fato
em sua esfera não atual paralela fundada no custo
compartilhado ou negociado entre os jogadores.
Pode-se dizer que essa esfera virtual tem uma
realidade independente da mesma maneira que os
contratos estipulam condições de pagamento que
não se deixam abalar pelo risco de não se
realizarem: o aluguel e outras formas de arranjos
pecuniários exprimem condições de uso e
77
pagamento que não dependem da presença atual de
um dono, podendo se articular em um âmbito do
puro valor abstrato despessoalizado.
No entanto, a natureza radicalmente
dissociada da diferença entre cada ramificação do
virtual não permite criar padrões de estimativas de
riscos. Criar a ilusão de que existe um controle de
crédito absoluto, um banco central das ideias, é a
ambição de toda metafísica. A metafísica entende o
fundamento da credibilidade como simples
estimativa de chances de realização de possíveis.
Para chegar a esse fundamento, ela pressupõe, de
maneira retroprojetiva, que o “real” é precedido por
sua própria imagem no “possível”. O possível é a
familiarização do real com o seu passado. Por isso
a metafísica apresenta a realidade como simples
particularização de uma essência, não como uma
singularidade. A ideologia, por fim, deriva da
metafísica e apresenta a realidade como a-histórica,
uma peça de eternidade projetada no presente pela
imaginação. É essa dimensão que temos em mente
quando falamos da dimensão regulada por um
sistema de cobranças contratuais ou direito. De
modo que, em nossa existência jurídica, é
fundamental que vivamos na ilusão, ou, para falar
como Bergson, no falso problema, que consiste em
considerar o real por comparação com um conjunto
familiar de “possibilidades” aceitáveis ou normais:
as possibilidades canonizadas pelo ranqueamento
de crédito bancário, por exemplo. Na voz
explicativa de Deleuze em Bergsonianismo:

78
o ser, a ordem e o existente são a
própria verdade; porém, no falso problema, há
uma ilusão fundamental, um ‘movimento
retrógrado do verdadeiro’, graças ao qual se
supõe que o ser, a ordem e o existente precedam
a si próprios ou precedam o ato criador que os
constitui, pois, nesse movimento, eles
retroprojetam uma imagem de si mesmos em
uma possibilidade, em uma desordem, em um
não-ser supostamente primordiais. (Deleuze,
2008, p. 11)

Um sistema de direito pode ser interpretado


como um conjunto de normas regulando a
negociação dos interesses presentes na
comunicação humana, com vistas a atingir a
justiça, definida agora como uma forma de
equilíbrio compensatório proporcional ao
investimento de cada indivíduo sobre seus próprios
interesses durante sua existência subjetiva. O
direito pressupõe uma maneira de avaliar as dívidas
e estabelecer instrumentos de cobrança, e assim o
seu contexto é a temporalidade dos indivíduos, sua
tradição, ou sua história, isto é, os elementos cuja
influência decidem a sua credibilidade. Essa
temporalidade é criada em um movimento
retrógrado pela metafísica, que retroprojeta o real
sobre uma imagem de possibilidades prévias que
ele atualiza, se autojustificando: é próprio da
história aparecer como a única história, a história
do vencedor, a que tem a vantagem inegável de ter
acontecido. Também isso é o efeito de uma
limpeza: a retroprojeção metafísica “lava” a

79
história, a apresentando sem as suas partes sujas,
sem os atos ignóbeis do vencedor.
A subjetividade sempre se funda em uma
história na medida em que é obrigada a responder
por seu próprio crédito à luz das possibilidades de
estereótipos em que ela cai. É isso que permite aos
envolvidos em um jogo serem incluídos em um
sistema de avaliação de sua previsibilidade, criando
instituições de crédito para empréstimos e
justificando o lucro das seguradoras. A história
estigmatiza a reputação do sujeito conforme ele
usa, se aproveita ou abusa de seu próprio crédito: é
o efeito de uma existência histórica a avaliação das
possibilidades de reivindicação de verdade de cada
subjetividade, distribuindo seus direitos, isto é, suas
possibilidades de usar os dispositivos de um
sistema jurídico para reclamar e se defender,
acusar, responder e pleitear propriedades e
aquisições. 

Comentário:

Cada tradição tem sua própria história,


registrando um mapeamento temporal particular de
responsabilidades e dívidas, derivadas do
retroprojetar metafísico do real sobre um conjunto
de possibilidades familiares à sua realização. Até
em um contexto informal, por exemplo, em uma
comunicação normal entre duas tradições

80
subjetivas individuais (sem o peso de instituições,
como fardas militares ou um cargo público), o
efeito da história se descortina, baseando-se no
histórico da própria comunicação (que é um
comércio de verdades). Assim acontece, por
exemplo, quando alguém acusa o outro de reclamar
demais, diminuindo o seu direito de reclamar da
próxima vez, criando um estigma que diminui o seu
crédito e tem efeitos encadeados ao seu direito. A
distribuição de uma posição de contabilidade
acontece a todo momento nas negociações
humanas, pois o simples uso de um sistema de
comunicação estabelece um histórico de dívidas e
padrões de confiabilidade. Ao negociar com outro é
sempre ao seu currículo histórico que se apresenta.
Isso porque a comunicação pressupõe aquela ilusão
fundamental que confunde o real com uma
gradação de um possível familiar: essa é a base
mesmo dos instrumentos indutivos da ciência que
materializam regiões de realidade ôntica. Toda
linguagem é um instrumento metafísico, e por isso,
é retroprojetora: ela realiza possibilidades
antecipadas por uma forma prévia. Por fim, a
possibilidade intrínseca de toda subjetividade ser
linguisticamente estereotipada – como mulher
grosseira no trânsito, homem branco intolerante, etc
– cria raízes estruturais que se materializam como
nacionalidade, raça, classe, etc, e institui uma rede
de débitos e saldos entre os membros de uma
sociedade que faz parte da construção dos sistemas
de seleção/discriminação que dão perspectiva
dramatúrgica à experiência, instituindo essa sempre

81
como história de um (civilização) contra o outro
(bárbaro).

O Capitalismo e a Filosofia: o
dinheiro como construção das condições
de racionalidade para o sentido da
dramaturgia do desejo

& A conquista de espaços de alavancagem


através de estratégias de exposição ou reserva:
uma observação da desigualdade estratégica

O dinheiro, entendido pela sua dimensão


jurídica irrevogável, não é uma unidade com valor
informativo constante, que pudesse em cada troca
particular medir a justiça da troca de maneira
técnica. A luta entre os dois lados da negociação
permanece viva, e um instrumento burocrático
artificial apenas ajuda essa luta a tornar clara, de
um para o outro, o quanto cada um está perdendo
ou ganhando com aquela transação. O dinheiro
funciona como a parte do baralho de cartas cedido
à mão de cada negociador, que protege sua
informação do rival e apenas a libera quando é
obrigado a se defender. A unidade informativa
monetária seria inócua se fosse ancorada em uma
unidade de produção correspondente ou uma cesta

82
básica ou o ouro, pois essa informação perderia
potencial defensivo de “cobrança”: as posições de
vantagem ou desvantagem competitiva seriam
fixadas a priori pela posição geográfica ou
tecnológica de cada agente de troca e, nesse caso,
tudo estaria decidido antes de acontecer. O
mercado seria um destino. Não seria uma maneira
dos homens negociarem interesses opostos, ou
cobrarem uns aos outros, mas uma espécie de
transação química perfeita ao estilo de Lavoisier
onde nada se ganha nem se perde: sem riscos, sem
garantias e sem os custos subsequentes desses
riscos e garantias. A mão invisível seria como a
mão de deus.
Nesse caso, seria impossível ajustar as
posições de modo a que os desfavorecidos por uma
posição inicial pudessem se reservar a posições de
desvantagem estratégica, como é a daquele que
pede um empréstimo, ou se expõe à manipulação
monetária, ou à especulação, ou se resigna a
ancorar-se em uma moeda vizinha, comprando
reservas dela, etc. Mas é exatamente para efetuar as
operações acima que o dinheiro existe. Não
precisaria existir se homens fossem elementos
químicos trocando átomos entre si numa perfeita
harmonia. A função do dinheiro tem de envolver o
poder de adotar metas de comunicação reservadas
ou se posicionar de maneiras enganadoras ou
desencaminhadoras, para arquitetar estratégias de
escalada, abrir os olhos para novas perspectivas,
esboçar pulos a bolsões de equilíbrio temporários a
que o mercado não lhe dava acesso anteriormente.
83
Existe uma possibilidade específica do uso
do dinheiro para otimizar chances de troca e
aproveitamento de oportunidades econômicas: o
seu uso como bem de capital. Por si mesmo a
monetização de uma relação social já acrescenta a
essa relação uma maior sensibilidade mútua aos
prejuízos e ganhos de uma troca, colocando todos
em um mesmo rastro de aprendizado inteligente.
Esse rastro inteligente, no linguajar ideológico do
burguês, é o fluxo inevitável ao lucro. Este, por sua
vez, remete à presença de um “capital” que ele
paga. O termômetro de dor que torna um capital
sensível e capaz de reagir, ou sacrificar posições de
vantagem pensando no futuro, no entanto, também
está sujeito a erros: a inteligência do capital tem de
ser capaz de despertar, ou se colocar em uma
posição de sensibilidade, uma vulnerabilidade
tonal, que não é facilmente acessível. É possível se
mover contra o inimigo errado, fazer alianças
incorretas, colocar um alvo limitado que exaure sua
confiança e energia para lidar com o alvo mais
relevante, etc. Seja como for, o seu despertar para
possibilidades tonais é fundamentalmente
defensivo, e somente com referência a um horizonte
de possíveis ataques ele cria condições para se
educar e amadurecer sua experiência.

& Aprofundamento da caracterização da


posição do Dinheiro entendido contratualmente
como meio de encenação da razão: o

84
endividamento como envolvimento pré-reflexivo do
homem com seu horizonte de resposta

O dinheiro, que oferece um código de


garantia que racionaliza a estrutura de mercado,
não é senão um instrumento para calcular a
“confiança” em um processo de troca onde o tempo
e a informação são escassos. A utilidade
contingente mais próxima do uso de dinheiro é a “a
possibilidade de uma separação: a) local, b)
temporal, c) pessoal (...), d) quantitativa entre os
bens oferecidos e os desejados na troca” (WEBER,
2000-9, p. 49). Semelhante separação prevê a
possibilidade de ampliar as possibilidades de troca,
dar uma expressão inequívoca das estratégias de
previdência e determinar o valor a partir de uma
estimativa da sua situação de mercado,
potencializando a racionalidade de uma gestão
econômica. Ademais, se o abastecimento e
distribuição racional das utilidades é o fim da
economia, a melhor maneira de evitar o desperdício
dos excedentes é transformá-los em possibilidades
de troca futura, garantida por um poder ou
convenção que promete e sela sua validade. E para
isso o dinheiro, atuando como código normativo
para um “pagamento”, é o instrumento perfeito.
Mesmo que sejamos abatidos por certa aparência
mística no modo como as leis de mercado
descrevem como se faz dinheiro a partir do
dinheiro, isso se deve a que o fenômeno da
previdência, amparado por cálculos de

85
aproveitamentos de oportunidades, traçam as linhas
de um horizonte de comportamento humano que
não se esgota pela análise psicológica dos
envolvidos. As técnicas de enriquecimento, ou de
produção de prosperidade, parecem receitas de
bruxaria. Na descrição dos movimentos do capital,
a premissa da mão invisível de Adam Smith ainda
tem um magnetismo de atração explicativa robusto,
justamente porque descrevem um horizonte de
ciência em que a simples sedução da economia,
mais do que uma patologia psicológica, é o
fundamento da relação de troca.
Naturalmente, a possibilidade de calcular
em dinheiro oportuniza aos agentes econômicos
não levarem em consideração detalhes
inconvenientes e irrelevantes à troca. Toda a
desinformação é neutralizada: o dinheiro se torna
uma garantia contra o “engano”. Deter dinheiro
gera uma segurança artificial-burocrática, ou
simulada, que é maior ou menor em proporção com
o potencial de cobrança do documento, isto é, a sua
visualização da antecipação de retorno,
indenização, pagamento13 (lucro, no caso do
capital). As vulnerabilidades de cada agente
negociador são repassadas uns aos outros, e as
consequências materiais desse repasse se tornam
visíveis na forma de movimentos de flutuação do
valor da moeda, que se torna mais ou menos aceita,
13
Cuja aproximação pode ser medida através de diversas
estratégias, taxas e sintomas econômicos que refletem
conflitos de interesses econômicos generalizados e expressos
em uma linguagem macro-econômica.

86
ou mais ou menos imbuída de potencial para cobrar
a indenização de seu risco14. A situação da currency
repercute em índices de previsibilidade capazes de
estruturar hierarquias de crédito e influenciar a
cautela ou impaciência dos negociadores. Nessa
dimensão da negociação, onde o mercado se
reeduca através da informação vazada a cada
negociação, existe uma dramaturgia intrincada, da
qual a mera lei da oferta e procura é uma
esquematização psicológica simplória. Em vez de
expressões limpas da vontade e preferência livre
dos negociadores, a presença de um artigo com
“potencial capitalizador” cria tendências de
poupança e gasto, fluxos migratórios de depósito e
investimento. Esses são movimentos de massa que
não podem ser explicados pela psicologia
tradicional e nem pelo utilitarismo dos
marginalistas; a lei da utilidade marginal apenas a
explica secundariamente, se admitirmos esse
segundo passo: ela explica um movimento
metaindividual – movimentos estratégicos –
ocorrendo na procura por utilidades que servem
como unidades de previdência. Os movimentos de
competição que provocam flutuações do valor da
moeda e influenciam processos de inflação só
podem ser explicados pelo ponto de vista das
características de um jogo, e não como simples
técnica de administração:
So long as it is money (Weber, 1978:
79), its value will depend on a conflict of
14
Em termos técnicos – e fundamentalmente obscuros – é sua
força para impulsionar investimentos (e seu preço em juros).

87
interests; it is these rather than the 'ideas' of the
economic administration that will rule the world
(Weber, 1878: 184; in: Ingham, 2005).

De fato, o conflito de interesses decidido


em uma convenção jurídica para contrato de
débitos expressa o modo como uma sociedade
equilibrou a desconfiança entre os membros de
uma negociação ou troca possível; como
encontraram a estabilidade no auferimento de
mútuas vantagens explorando a confiança dos
demais para avançar os próprios interesses. Os
homens escolhem o engajamento como
sustentáculos parciais do crédito total, se tornando
assim vulneráveis ao erro, e essa escolha é
vantajosa pois se alienassem a si mesmos do jogo
perderiam também a sensibilidade – a capacidade
de cobrar e ser cobrado (dar crédito e se endividar)
– que lhe concede uma inteligência estratégica e
defensiva. Na sua decisão individual, contudo, isso
aparece em seu horizonte de escolha como simples
segurança coletiva. A quantidade de dinheiro
disponível em um cofre individual – Money of
account – reflete a sensibilidade individual, ou o
quanto ele tem a perder, em um nível
metanegociador, isto é, representa a situação
estratégica do indivíduo em uma condição de
regateio onde a sua utilização de bens é avaliada
sempre como possibilidade de lucro ou de prejuízo.
É natural que isso seja expresso em termos do seu
poder total de compra relativamente aos outros
interesses competidores; pois o que está no seu
bolso é o seu novo pathos; o bolso é a

88
universalização de sua sensibilidade, a
sensibilidade racionalizada. No mercado, a
sensibilidade é sempre estimada em termos de
dinheiro perdido. Pois isso equivale a tempo
perdido, cálculo frustrado, menor capacidade de
colonizar o horizonte estratégico, ou,
simplesmente: falta de poder de negociação.
Sem dinheiro, falta o elemento contratual
indispensável ao jogo de blefe realizado para
extrair informações para tomada de posições
estratégicas15. O dinheiro repassa o prejuízo,
descarregando os riscos sobre um terceiro, e
aprimorando desta forma a categoria de “ganho”
exprimida pela categoria do “lucro”, que é a
cobrança feita pelo capital aplicado pelo
investidor. O lucro – o pagamento do capitalista – é
a forma como uma ausência de prejuízo se articula
na consciência administrativa, que cria uma
linguagem autoindulgente para representar sua
situação como “racional”. Essa racionalidade não é
ainda justa em sentido objetivo, mas representa
uma improvisação de justiça expressa
contratualmente por meio de seu consentimento
subjetivo. E isto significa que o ganho lucrativo
pressupõe aquele vácuo estrutural pré-reflexivo que
envolve o investidor – o endividado –
dramaturgicamente nos problemas de
administração que ele enfrenta. De fato, a diferença
15
A falta de dinheiro, por isso, causa mais falta de dinheiro. A
reação em cadeia reflete um movimento de ação que tende a
se perder cada vez mais uma vez que seu ponto de partida é
obscuro.

89
entre lucro e prejuízo não é estimada com relação à
quantidade dos recursos obtidos ou perdidos, mas
na comparação desse ganho ou perda com relação a
uma antecipação de retorno ou “pagamento”
projetado/cobrado. O capital é um instrumento para
antecipação de retorno: ele é uma norma que cria
uma obrigação protojurídica de “cobrança”. Esta
pode ser entendida ampliadamente como um plano
ou projeto prévio onde a referência é o seu nível de
adiantamento ou atraso com relação aos planos e
agendas de “outro”.

Comentário:

Fora da dimensão competitiva e


protojurídica dos contratos, a encenação simulada
pelas trocas financeiras perde o efeito e não há
diferença entre lucro e prejuízo; nessa dimensão
seria impossível improvisar uma razão contratual
através do consentimento subjetivo dos envolvidos.
Seria uma situação pré-contratual de nossa
existência interativa. Da mesma forma, um homem
que não conseguisse representar sua insegurança
temporal nos termos de um cálculo racional de
previdência, projetando uma expectativa (um
contrato ligando o futuro ao presente) perderia todo
horizonte de resposta que o conecta ao fluxo de
cobranças e de pagamentos.

90
& O Capital como Inteligência e
Sensibilidade ao fluxo de Informação

Como vimos, os postulados da teoria


clássica do valor entendeu de forma rudimentar,
que o capital é apenas o nome para o estado do
investimento que precisa de alguma conexão com a
corrente de informações vazada pelo enfrentamento
de forças do mercado, e que usa dessa conexão,
cujo termômetro é o uso do dinheiro, para se
reeducar e persistir em um fluxo de alocação de
recursos que produz um acúmulo, capaz de ser
incorporado ao universo econômico como riqueza.
Nenhum economista engajado em sua engenharia
técnica de soluções para crises de economia
política ignora, hoje, que a boa saúde dos capitais
sociais é imprescindível para causar o efeito do
enriquecimento. E aqueles que preferem enfatizar a
irracionalidade de todo essa dramaturgia,
apontando para a natureza supersticiosa de todo o
movimento, não negam esses pressupostos: apenas
radicalizam o ideal de justiça valorativa pregada
pelos clássicos, a fundamentando em uma
disciplina estatal. Os marxistas pertencem a esse
grupo. Segundo Karl Marx: “A forma-geral do
capital, tal como se manifesta em circulação, é:
comprar para vender mais caro” (O Capital, Seção
Segunda, Cap. IV). Como continua observando: “a
circulação ou troca das mercadorias não cria valor
algum” (p. 66). O autor, desmistificando a
encenação lógica presente nas mediações

91
capitalistas, já havia entendido que a criação da
mais-valia apenas persiste em estado enigmático se
nos ativermos à forma contingente como ele chega
a nós, que é o capital no seu resultado, isto é,
capital como uma fórmula de reprodução da
riqueza. A linguagem do burguês apresenta como
se fosse natural um intrincado jogo de poder e
conflitos de interesses.
Para Marx, o lucro do capitalista depende
da mais-valia engolida pelo capital. Essa mais-valia
não se exibe apenas na forma contingente como
aparece como parte do lucro. Na verdade, essa fase
contingente de sua exibição reflete o momento
político e a correspondente compreensão jurídica
dos meios contemporâneos de obter “remuneração”
ou indenização; É, portanto, o amadurecimento de
uma inteligência jurídica – onde o prejuízo pessoal
é visualizado através de um horizonte de
sensibilidade monetário – que aparece no
fundamento da capacidade do capital de aprender e
diversificar suas posições e pulos estratégicos. A
realidade psicológica, por sua vez, tem de ser
marcada por uma peculiar disposição dos seres
humanos para esperar o lucro de suas antecipações
de custo: “Ele não teria empenho em dar emprego
aos trabalhadores, a não ser que esperasse da venda
do seu trabalho algo mais do que o que é necessário
para reembolsar os recursos por ele antecipados”
(Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Lucro
do Capital, p. 81). E essa realidade está estruturada
juridicamente de tal modo que a ação
empreendedora é sensível ao pagamento apenas na
92
forma de “lucro”, que se distingue do prejuízo
apenas com referência a uma quantia engolida pelo
capital. É o aparecimento dessa sensibilidade que
remunera o investimento16 e, do ponto de vista
jurídico, essa remuneração não passa da cobrança
de indenização por um prejuízo tornado
“relevante”, isto é, valorizado simplesmente porque
a sua “perda” diminui o horizonte de visibilidade
que dá linhas de opção estratégica para novos
empreendimentos e trocas.
A relevância do capital, como um corpo
hiper-sensível, é, assim, um valor puramente social,
construído juridicamente sob a pressuposição de
que qualquer perda no capital repercute no
patrimônio individual de seu possuidor com uma
reação em cadeia. Ao perder capital acontece uma
perda de reputação no seu sentido social mais
primitivo, que só pode ser compensado por uma
indenização correlata, que lhe restitui a
credibilidade ou seu poder de cobrar aquilo que ele
representa normativamente: o risco do investidor,
ou a remuneração ao investimento. Assim como o
investidor tem um tônus afetivo que o coloca em
posição de receber sua remuneração apenas como
16
O fato de que, do ponto de vista psicológico, o
indivíduo não entraria em negociações sob outras condições é
apenas uma paráfrase do fato de que sua sensibilidade não
consegue adquirir vantagens em outra condição de
pagamento. Na verdade, o indivíduo aqui é o simples capital
entendido como termômetro de prejuízo, e sua contribuição
não é individual, mas como agente do capital.

93
“lucro”, o capital, por sua vez, é sensível ao
pagamento apenas na forma de um valor a mais,
criado sob a condição da sua valorização como
centro de alavancagem estratégica para rastrear
possibilidades de mais lucro.
Karl Marx notou, em uma de suas mais
poderosas percepções inovadoras, que o
administrador não trabalha apenas com um cálculo
simples de lucro e prejuízo, mas sua gestão está
sempre impregnada com uma preocupação com a
saúde de uma entidade estranha, sensível de uma
maneira diferente. Ela não ganha e perde no sentido
habitual. Cada ganho e perda ocorre para ela com
um poder de produzir mais ganho ou produzir mais
perda, e não raramente ela pode ter um ganho
presente que repercutirá em perda no futuro. O
capital é baseado em sua conexão com um fluxo de
informações do mercado, e a informação confiável
gera mais informação confiável, enquanto a
desconfiança gera mais desconfiança. Essa
condição é determinada pela sua posição em um
jogo onde o bônus e o ônus sempre se reequilibram.
Ao dizer que o pagamento do capital, portanto, é o
lucro, isto é uma maneira de dizer que o pagamento
do capital é o que pôde ser distinguido do prejuízo
através de uma estimativa cujo horizonte de cálculo
é aberto por referência às possibilidades ou
oportunidades roubadas à concorrência. Isso mostra
que o lucro que engorda o capital não é o lucro
predatório, mas um montante de ganho capaz de se
estabelecer como “indenizável”, capaz de cobrar, e
que se estabiliza como um pagamento que tem para
94
aquele que é pago um caráter de “o que é seu
devido”. O capital endivida. A existência jurídica
do capital é apenas uma consequência de nossa
existência jurídica. Em ambos os casos se trata de
uma potencialização da capacidade de expressar
uma ofensa em forma de protesto, uma forma de
reconhecer a característica tonal de nosso pathos. O
capital apenas mostra as consequências dessa
potencialização em um cenário social concreto.
Essa condição, contudo, não é uma
situação artificial, mas reflete as características da
existência que se dá em jogo. Assim como a jogada
errada em um jogo de cartas pode repercutir em um
histórico de derrotas ulteriores, pois foi revelado
um princípio de informação capaz de ser
capitalizado pelo oponente, também o comerciante
tem de tomar cuidado com algo mais do que seu
cofre material de riquezas privadas. O seu capital
tem uma saúde frágil, e é sensível ao ganho apenas
quando ele se apresenta como uma cobrança
adicional, uma mais-valia passível de ser retirado
não do investimento, mas do modo como esse
investimento antecipa uma estratégia concorrente
se colocando em uma relação jurídica onde aquele
tem uma “dívida” para com ele. O capital, portanto,
usado como título evocativo do mais ambicioso
trabalho de Marx, aparece já agora como algo mais
do que as meras reservas que o investidor usa para
alavancar sua produção, mas como uma espécie de
inteligência independente baseada em estratégias
de extração de “vantagens competitivas”. Como o
capital não se alimenta do montante total de lucro,
95
mas sim ao mesmo tempo do lucro adquirido e o
prejuízo evitado, a sua existência pressupõe uma
espécie de condição estratégica onde o sucesso
traciona mais sucesso e cada passo lucrativo
aumenta a capacidade competitiva, promovendo
mais possibilidades de acumulação, mesmo que o
lucro diminua.
Pensamos nos benefícios desse pensamento,
portanto, por sua compreensão de que a parte do
preço da mercadoria dada ao capitalista não é um
valor independente, mas um reflexo de certas
estratégias de ganho e aquisição que se provaram
bem sucedidas e tendem a se autofecundar 17. O
acréscimo adicionado do capitalista não é algo de
materialmente definível, mas uma possibilidade de
fraude que se tornou psicologicamente aceitável na
medida em que foi criada uma condição tonal, ou
um fundamento patológico para absorver esse valor
pelo canal jurídico de uma cobrança válida. Todos
esses poderes aparentemente mágicos são efeitos da
natureza normativa do capital, ou sua propriedade
de cobrar pelo risco, se tornando o centro
normativo de uma sensibilidade especial que

17
Marx também pensava que esse movimento da
acumulação coincidente com a queda da taxa de lucros,
conduzindo a uma acumulação autovalorizante sem
fundamento no ganho lucrativo presente, era a receita da crise
do capitalismo.

96
funciona como núcleo inteligente de vazamento
informativo ligado à incerteza e ao futuro18.

& As linhas de visibilidade estratégicas do


Capital: como um capital enriquece de acordo com
o aproveitamento de seu horizonte de respostas
rivais
18
Naturalmente, em nossa leitura, Marx percebeu
também que a representação do capital como uma inteligência
independente gera uma fetichização, simbolizada enfim em
sua forma culminante por uma espécie de carga semiótica,
como uma runa cuja decifração depende não de uma técnica,
mas de bons parâmetros estratégicos para colher suas pistas.
Essa runa, na sociedade moderna, é o dinheiro, e suas
propriedades se apresentam, igualmente, com a aparência de
mágica no cotidiano dos indivíduos. No nosso caso,
aprendemos algo parecido por outro caminho: que pensar os
processos de jogo através de descrições de entidades que são
donas das “possibilidades de lance” ou donas de “expectativas
de pagamento”, sejam essas entidades os indivíduos ou o
capital, é um vício da psicologia, a serviço da metafísica. A
meta desse vício é estabelecer ideais de racionalidade. Apesar
de preso na sua própria armadilha a ponto de pensar que seu
sucesso é o fruto de um mecanismo econômico independente,
o capitalista é um agente do jogo caracterizado por suas
estratégias. Eles, assim como os metafísicos, já criaram uma
retórica psicológica para caracterizar as suas práticas e
disfarçar seu jogo, como se fossem sempre racionais. No
cotidiano, tudo se passa para eles como se fosse parte de uma
dramaturgia inevitável: “já produzem em condições mais ou
menos favoráveis, já explorem o trabalho de maneira
capitalista em diversos graus de perspicácia e energia, já
ainda logram enrolar compradores e vendedores de
mercadorias com diferentes graus de sorte e esperteza” (p.
150).

97
Quando entendido pelo ponto de vista
individual do investidor, o capital é a simples
expressão de uma meta de cálculo para o retorno de
investimento de um montante. O mais essencial
para o seu crescimento orgânico é encontrar o
caminho mais aproximado para realização de sua
meta. Depende, para esse fim, da informação.
Como a informação é limitada, o capital tem
apenas uma opção para aprender com os erros:
manter-se ligado a uma fonte de aprendizado capaz
de mantê-lo sensível ao prejuízo, estruturando
arranjos defensivos para amortecer o impacto do
dano. O único movimento do capital é o
crescimento, mas para isso ele tem de acessar o
termômetro econômico capaz de anunciar se está
quente ou frio. E para isso as suas oportunidades
estratégicas são condicionadas pelas suas jogadas.
É importante notar que as condições não
utilitárias do valor antes mencionadas são mais
visíveis no valor do capital: o crescimento do
capital não é limitado às condições de usufruto
concretas de um ou uma classe de consumidores.
Ironicamente, a racionalidade do capital só é
adquirida em seu estado mais robusto quando ela é
fetichizada pelo desejo: pois é somente quando
melindrosamente sensível aos objetos, que o afetam
na qualidade de valores não úteis, mas cerimoniais,
que o indivíduo se torna dramaturgicamente
desafiado pelo outro em um conflito por
reconhecimento. É compreensível que o

98
capitalismo tenha sido associado às possibilidades
de enriquecimento e prosperidade da nação no seu
início, porque observado de longe, ele se assemelha
a uma máquina de previdência e aproveitamento
destituído de vaidade, fetiche ou irracionalidade.
Ele continua crescendo mesmo quando não usufrui
de nada, isto é, na medida em que pode continuar
economizando, ao achar mercados mais baratos e
ao explorar a racionalidade de seus lances. Essa
aparência foi contrabalançada pelo grupo de
oposição a esse regime econômico, que,
enfrentando a mesma observação, decidiu que o
capital cria modos de acumulação cíclica que
existem não apenas para “pagar o investimento” –
com o lucro – mas para pagar a manutenção do
próprio acúmulo, em uma espécie de alimentação
macabra de si mesmo.
O nosso projeto nas presentes páginas não é
assinar o nome em nenhum lado da contenda, mas
oferecer um retrato do fundamento jurídico de que
essas propriedades aparentemente místicas
dependem. A rigor, essa alimentação do capital só
pode ser entendida a partir da sua chave
apropriativa; e se dissociarmos “apropriação” –
entendida como uma condição jurídica capaz de se
dispor em forma de cobrança – de mera disposição
de consumo. Vê-se aqui que o consumo não é
menos apropriação do que o acúmulo. Não há um
meta-limite ou teto para o desejo condicionar a
necessidade: o útil se confunde com o supérfluo, a
margem irrelevante se torna uma medida para
estimar o custo, e o fetiche se torna parte integral
99
da racionalidade interativa. Mais uma vez
entramos em um terreno explicativo que tira
pouquíssimo proveito das premissas dos
marginalistas. E isso mesmo do ponto de vista
técnico: se não consegue conectar a inteligência do
capitalista à sensibilidade a uma falta, entendido
pelo ponto de vista do desejo, e articulada
socialmente em uma dramaturgia ou desafio, o
economista técnico não pode sequer garantir uma
interpretação adequada de vitórias e derrotas
administrativas. Ao manter a ilusão ideológica de
que discorrem sobre o fundamento subjetivo do
valor, como um princípio psicológico ou biológico
independente, permanecerão professores
inadequados; ou terão de recorrer a quem sabe
melhor do que eles, como estrategistas clássicos
que escreveram sob a arte da política ou da guerra.
Já foi notado, e será importante notá-lo
novamente, que o capital, entendido como o
instrumento para investimento e produção de
riqueza, goza da peculiar particularidade de se
movimentar a partir de metas de previdência ou
pela visão do futuro. Isso é evidência de que ele se
orienta por metas baseadas em um conjunto de
informações que não são capazes de independência
cognitiva, como uma mônada eterna e fechada
seria. Ele não representa uma enteléquia com uma
inteligência privada, cuja estratégia de retorno
dependesse apenas da natureza fechada do sistema.
Pelo contrário, sua informação apenas se completa
quando enfrentada pela concorrência e os capitais
de oposição. Ele é o contrário de uma mônada: está
100
fundamentalmente aberto à adulteração pela
influência externa do futuro, isto é, de suas
chances. Em vez de uma inteligência técnica
fechada, o capital segue uma inteligência de
concorrência aberta, uma sagacidade que se
reeduca através de suas jogadas, em vez de ter seus
resultados ligados a suas metas por uma
computação a priori.
Determinamos, portanto, que o potencial
auto-valorizante do capital é uma função de sua
posição de vantagem estratégica. Ele é uma
máquina estrutural de criação de alavancagem e
desigualdade estratégica. Também isso levou uma
fonte – mais vulgar - de opositores do capitalismo a
censurá-lo por ser um regime onde cada lado tenta
tirar proveito, ou vantagem, do outro, valendo a
trapaça e o embuste. No entanto, apesar de haver
um elemento de encenação em toda dramaturgia,
adquirir posições estratégicas não é tão simples
quanto divisar um meio de trapaça. Para falar mais
propriamente, é isso mesmo que está em questão
em cada linha de visibilidade estratégica: a
capacidade de aprender com a trapaça alheia, a
transformando em lance justo na medida mesma
em que os dois lados sabem utilizá-la. O destino da
trapaça é esgotar seu potencial trapaceiro.
Uma das maneiras infalíveis de avaliar a
efetividade estratégica de um capital é investigando
se as jogadas de investimento efetuadas com ele
não protegem, controlam ou dissimulam a
informação de uma maneira que torne essa

101
informação um mero código criptográfico que o
prende a um jogo artificial, impossível de rivalizar
ou aprender com o jogo do oponente. O capital tem
de dissimular, mas sempre de maneira paciente e
até servil, como o escravo que dissimula obediência
para trocar reconhecimento com o senhor.
Vejamos como isso ocorre em alguns
exemplos. Em muitos aspectos, os países com
desvantagens crônicas na competição de mercado
são aqueles cujas estratégias são adiamentos
paliativos do avanço do capital concorrente. Agem
como um indivíduo cansado de perder que,
improvisando uma reação, em vez de estudar o
jogo do oponente, forja um artifício que foge do
jogo, negociando com as regras através de truques.
Isto é, esse artifício permite, a partir de um custo,
compensar a punição, violando a condição
contratual onde o pagamento da recompensa no
caso de sucesso se correlaciona normativamente
com a obrigação de punir no caso de insucesso. De
maneira mais clara, esse indivíduo que procura
exceções à normatividade contratual pode até gozar
de um ganho provisório, mas sabota a si mesmo,
perdendo posição de alavancagem estratégica. É
como o indivíduo que não sabe usar um segredo
para ganhar ou que não sabe a hora de revelar um
segredo para iludir o inimigo. Na verdade, esse
truque pode até adiar sua próxima derrota, mas
também o mantém fora do jogo, deixando ao
adversário uma visão estratégica do conjunto
superior. O indivíduo que, 1. cansado de perder,
decide apelar para uma cláusula política que o
102
permite se abster do jogo a cada momento
inconveniente, ou 2. o indivíduo que constrói
cláusulas privadas que o mantenham no jogo
quando está ganhando, e o resgatem covardemente
quando perdendo, ou ainda 3. aquele que constrói
recursos técnicos que o coloquem em posição de
vitória artificialmente, ou 4. que limitem o
adversário – também por cláusulas – apenas ao
adversário que se conforme à sua zona de conforto
de adversários desejáveis, isto é, aqueles
adversários contra os quais as técnicas do passado
sempre funcionaram, esse indivíduo é, para todos
os efeitos, a representação exemplar do fracasso
competitivo. Pois qualquer desses recursos ou
truques tem sempre um efeito de auto-sabotamento:
ele prende a si mesmo nas limitações de horizonte
que ele criou para prevenir as manobras do
adversário. Ele não deixa o cenário dramatúrgico
desafiá-lo. Ao diminuir a competição para se tornar
mais competitivo, torna-se menos competitivo,
agindo como o boxeador que goza de momentos de
fama apenas enquanto a política ou boa sorte o
permite escolher o adversário. Em todos esses
casos, não é o simples cálculo econômico técnico
que é mal feito: é a dramaturgia do desejo que não
é bem jogada.

&

103
& A política econômica não técnica: o
alinhamento com uma inteligência jurídica como
condição para a racionalidade competitiva

& Da descrição psicológica da


racionalidade da desconfiança à expressão das
dinâmicas de vazamento: o código monetário como
forma do desafio que dá racionalidade às
intimações dos lados competidores

Tomo: O Direito e o Poder

104
105
Introdução ou Preâmbulo
Justificativo: explicação para uma
abordagem teórica dissidente

Qualquer discussão sobre a natureza do direito está


fadada a reconhecer a influência irrevogável de J. Bentham
sobre as decisões de enquadramento dos problemas a serem
investigados e solucionados. Ronald Dworkin afirmou, na
segunda metade do século XX, que o filósofo Inglês foi o
último a oferecer uma teoria geral do direito composta de
duas partes: uma teoria conceitual e uma normativa. A
primeira estaria concentrada nos problemas de validade das
proposições jurídicas e a fonte de sua verdade; se, por
exemplo, uma afirmação jurídica reivindica sua validade da
ocorrência fatual de encenações burocráticas correlatas, ou na
observância maquinal da letra da lei; ou se a reivindica de
uma teoria psicológica ou sociológica sobre a natureza
humana e social e suas condições de contrato, negociação e
resolução de conflitos. A parte normativa divide-se por sua
vez em uma teoria da legislação, da decisão judicial e da
observância da lei. 

Cada uma dessas questões normativas depende de


uma resposta aos problemas conceituais paralelamente
discutidos. Se o poder responsável pela redação das leis é
legítimo, ou é porque é empoderado pela letra da lei, ou o é
pela natureza de sua isenção política e moral, ou ainda por
uma espécie de intuição psicológica e moral sobre o que é
justo para os homens. Se a legislação é justa, o tipo de leis

106
que ela contém tem de satisfazer às condições da moralidade
humana, à utilidade social, a uma espécie de “pedigree”? Ou
basta a simples gramática e capacidade de ser lida e
interpretada com o máximo de coesão e coerência interna,
como um homem que soletra bem suas ameaças gera uma
reação normativa correspondente em pessoas com boa
audição? Em uma teoria da decisão judicial, se discute se o
juiz se fixa em um padrão puramente positivo ou a alguma
intuição moral ao enfrentar casos desafiadores. A questão
sobre a competência da jurisdição também precisa responder
perguntas conceituais mais amplas sobre se a autoridade é
adquirida por uma propriedade moral - o equilíbrio e
imparcialidade - ou por um impessoal apontamento
burocrático, etc.  E a observância da lei ou obediência
também é um problema cuja solução busca apoio em uma
concepção mais geral sobre a responsabilidade do indivíduo,
que pode ser vista como moral, ou como a simples capacidade
técnica de ler e entender a lei escrita, ou sobre os benefícios
utilitários de que ele usufrui em troca de sua obediência. 

Pode-se observar que existe uma não supérflua


tendência a essas questões se interseccionarem e pedir apoio
umas às outras, o que justifica a suspeita de que há um único
problema jurídico mais fundamental que elas representam
parcialmente. E, de fato, o que fica exposto em meio a essa
permeabilidade de problemas é a adoção de uma ou outra
teoria conceitual – o positivismo ou a direito natural –
revelam que o direito está se defendendo, em cada caso, de
um limite anti-jurídico que ele tenta afastar através do
diagnóstico de estados anômalos ou desvios. Pretendemos,
assim, que essas discussões se interseccionam no momento
mesmo em que começam a reconhecer que apenas o nosso
caminho as esclarecerá: discutir e analisar a natureza das
dramaturgias e dos rituais de exclusão no seu estado mais
elementar. Com efeito, cada questão normativa acima
colocada corresponde a um problema que o direito coloca a si
mesmo em conformidade com o seu diagnóstico de desvios
de padrão de regularidade. A ideia de desvio de um padrão de
regularidade pede a discussão da questão da “exclusão”, e

107
esta portanto, assombra o universo discursivo da discussão
filosófica sobre o Direito, embora nesse caso os teóricos não
saibam dizer se isso é um fenômeno psicológico ou social, e
pouca atenção têm dado a todas os indícios da filosofia sobre
as novas maneiras de tratar o “homem” e aquilo que para ele é
“não homem”. Portanto, em Bentham a própria ideia de
regularidade apenas begs the question por um motivo. Pois o
essencial é que o direito se confunde com a sua saúde interna
e regular. Dito de outra forma, as questões de jurisprudência,
redação de leis, competência jurisdicional, pressupõem a
“jogabilidade” (fair game) do arbítrio, da obediência, da
autoridade e do conteúdo da lei. Cada um desses aspectos do
direito não pode trair as condições do jogo que os torna
efetivo. Eles o pressupõem, mas não o discutem; ou o
discutem superficialmente.

O mais sagaz dos positivistas jurídicos recentes


conseguiu encontrar o ponto forte do positivismo, naquilo
mesmo que Bentham e seus seguidores falharam em ver. Hart
em O conceito de Direito declara que abordar as normas
jurídicas pelo ponto de vista do comportamento externo que
coincide com a aplicação dessas regras é um obscurecimento
de “certas diferenças essenciais que devem ser compreendidas
para que possamos entender as condições mínimas envolvidas
na existência do fenômeno social complexo que
denominamos sistema jurídico” (p. 148). O filósofo acredita
que seu critério para identificar a existência de um sistema
jurídico viabiliza o estudo e a explicação de estágios do
direito, incluindo os estágios que precedem seu nascimento,
ou em que ele caminha para o seu fim, entre outras formas de
amadurecimento. Segundo ele, “a fórmula Austiana simples –
que postula um hábito geral de obediência às ordens do
soberano – é incapaz de reproduzir, ou distorce, os fatos
complexos que constituem as condições mínimas que uma
sociedade precisa satisfazer para possuir um sistema jurídico”
(p.145). Para ele um “sistema jurídico saudável” é um onde
mesmo os homens sem compromissos jurídicos complexos
são capazes de observar de maneira crítica as suas obrigações
e o vínculo entre eles e as leis. Mas isso não ocorreria, de

108
acordo com o autor, nem se as leis fossem meramente
seguidas graças a uma inclinação moral (a crença do direito
natural), nem se fossem seguidas de maneira fragmentada,
como se fatos contingentes como a obediência regular dos
súditos coincidissem com a lei (a tese do positivismo
clássico).

O ponto forte do positivismo revisado, portanto, é


justamente o seu potencial de afastar do direito as questões
externas, cujas respostas não contribuem em nada para
solucionar o problema da legitimidade das jogadas (o fair
game) que são efetuadas nas danças burocráticas e nos
mecanismos de “coroamento” dos vitoriosos e vencedores de
disputas. A intuição de Hart, de que o positivismo era a
verdade sobre o direito justamente porque a verdade sobre o
direito não está fora do direito, mostra, antes, que o ciclo de
perguntas intelectuais sobre o direito iniciado por Bentham
empresta inadequadamente o formato de questões externas,
seja sobre o fundamento sociológico, seja o psicólogo do
direito. A própria movimentação de resolução para esses
problemas, contudo, mostram algo diferente: que a questão da
justiça inicia uma tendência de autocorreção e auto-
melhoramento feita dentro do próprio jogo do direito, isto é,
na medida mesma em que se pergunta pela justiça: a questão
sobre o justo é performática, e não uma meta-questão. O que
o direito tenta responder a cada questão enquadrada no
formato disciplinar de Bentham é se os seus procedimentos
tem um potencial de jogabilidade maduro, isto é, se suas leis e
aplicações (juízos) o colocam acima das regras de exceção,
juízos de emergência, truques e outros expedientes
justificados externamente, por concepções políticas,
sociológicas ou morais, etc. E isso significa que o que está em
questão em uma discussão sobre o direito jamais se deixa
decidir senão por uma resposta interna sobre o funcionamento
de sua jogabilidade, e sua maturidade a resistir aos resíduos
colaterais e ao recurso a muletas externas que, no limite,
tornam-se instrumentos do totalitarismo. Mas isso significa
apenas que a discussão sobre o direito é sempre a mesma
antiga questão sobre a altura da legalidade em contraste com a

109
baixa estatura de uma condição de guerra, ou a elevada
condição do direito contra a vingança, perseguição política e
enfrentamento passional do crime segundo um ideal heroico.
Além disso, sugerimos uma compreensão do universo do
direito que inclui seus momentos de cisão, amadurecimento,
enfraquecimento, fortalecimento, revisão, entre outros
momentos da vida das leis que não são meramente externas e
envolvem discussões como as feitas por Maquiavel a respeito
das possibilidades de governabilidade de um Príncipe. É a
questão do poder, sempre acompanhando a questão do Direito
de perto, porque a última não pode ser aprofundada sem a
primeira. Essa é a discussão, desde quando Orestes pediu
ajuda a Apolo para resolver uma difícil disputa, passando
pelos teóricos da legitimidade, e hoje presente no confronto
entre Estado de Direito e Estado de Exceção e o fascismo.

É sempre essa discussão que hospeda os problemas


compartimentados de Bentham e, portanto, como quem
prefere atacar as perguntas cujas respostas são mais decisivas,
decidimos abordar ela nesse tomo. Mas isso também se
justifica pela natureza dos nossos objetivos. Assim como no
tomo II não discutimos uma meta-ética, e em nenhum
momento de nossa discussão epistemológica discutimos uma
teoria de meta-ciência, também aqui não estamos
preocupados com uma teoria de meta-direito. O presente
Tomo tem uma contribuição específica na sequência do livro,
pois explora as peculiaridades do aspecto competitivo – ou de
jogo – que fundamenta a racionalidade da prudência
individual, isto é, a linha de contato do homem com sua linha
narcísica de aprendizado com o mundo, gerando a história, ou
vencedor, na figura do detentor do segredo jurídico, ou, nas
palavras de Weber, o poder burocrático. Portanto, a conexão
entre uma crítica da metafísica (tomo I), uma crítica ao
humanismo psicológico (tomo II), uma teoria da Linguagem,
da Informação e da Competição, ficarão claras apenas quando
analisadas segundo o conceito de jogabilidade (fair game)
extraído da discussão sobre a legitimidade do poder que hoje
se refletem no modo como a história é manipulada no limite
da tensão entre a legalidade e o fascismo.

110
Direito e Legitimidade

& Primeiras tentativas de encadear o poder


à legitimidade

& A Objetividade do Direito: a


legitimidade como chave de aplicação do nomos
racional da lei

Essa é a origem da crença na conexão entre


poder e legitimidade, que Rousseau assina
categoricamente em Do Contrato Social: “a força
não produz o direito” e “não se está obrigado a
obedecer senão aos poderes legítimos” (parte II,
cap. III). Indo mais além, é essa mesma crença que
sugere a curiosa impossibilidade de direitos
ilegítimos, como o direito à escravidão. Pois, o
filósofo pergunta, se tudo o que outro homem
“possui me pertence e, que seu direito sendo meu,
este direito meu contra mim mesmo é uma palavra
sem nenhum sentido?” (Rousseau, parte II, cap.
IV). O pensador político Francês percebe uma

111
impossibilidade do próprio poder de se exercer fora
dos limites que o separam de expressar abuso.
Uma negociação onde o poderoso tem de operar
por meio de opressões, se rebaixando, fala contra o
poder mesmo, se autodestrói. Essa concepção é
chave para estabelecer a premissa ainda popular de
que a tirania, ou os diversos modelos de estados de
exceção, não constituem direito; e seu poder é,
portanto, apenas nominal. A própria ideia de estado
civil é excluída, a partir dessa premissa: “trata-se,
se o quisermos, de uma agregação, mas não de uma
associação; não há aí nem bem público, nem corpo
político” (Rousseau, parte II, cap. V).
Tal compreensão, aparentemente intuitiva,
do poder que levou antes Locke a escrever, no
capítulo 2 do livro dois do Dois Tratados Sobre o
Governo: “para compreender corretamente o poder
político e derivá-lo de sua origem, devemos
considerar o estado em que todos os homens se
encontram naturalmente” (Livro II, cap.2, 4). Mais
tarde, no mesmo capítulo, ele completa: “e desse
modo, no estado de natureza, um homem obtém
poder sobre outro; não, porém, um poder absoluto
ou arbitrário”. O filósofo Inglês compreende as
origens do poder político na ideia de correção. O
poder existe apenas como forma de reparação. A
falta de poder decorre apenas do fato de que “o
ofensor declara estar vivendo por outra regra que
não a da razão e equidade comum” (Livro 2 cap. II,
8). O capítulo 3 do mesmo livro coloca as coisas
sob uma luz ainda mais clara. Locke declara que
todos os homens possuem poder sobre um homem
112
que se declara em um estado de guerra, pois esse
“não tendo outra regra a não ser a da força e da
violência, podendo assim ser tratado como animal
de presa, criatura perigosa e nociva que certamente
irá destruí-lo se cair em seu poder” (Livro 2, cap.
III, 16).
O filósofo acrescenta que “aquele que tenta
submeter um outro homem ao seu poder absoluto
põe-se em estado de guerra com ele” (Livro 2, cap.
III, 17). O autor Inglês e Rousseau acessam nesses
trechos intuições muito aparentadas, de fato, como
se pode ver no trecho de O Contrato Social: “todo
malfeitor que agride o direito social se torna por
seus atos rebelde e traidor da pátria, deixa de ser
seu membro ao violar suas leis, colocando-se em
guerra contra ela” (parte I, cap. 5). Há nessa
concepção, que podemos chamar de intuição
comum aos “teóricos da legitimidade”, os
elementos de uma compreensão tradicional e típica
do poder. Ela trabalha a ideia de que alguém se
expõe ou se torna vulnerável ao poder por abusar
do poder. Aquele que se torna vulnerável ao poder
dos homens se comportou como alguém “excluído
dos vínculos da razão comum”. Ele se declarou
inepto para seguir as regras do jogo que todos
seguem. Assim, Locke parece acreditar que o poder
de um homem sobre outro é sempre uma espécie de
represália, reparação, indenização. O poder e o
direito convergem, mas somente porque o primeiro
está sempre envolvido na discussão interna de sua
legitimidade. A legitimidade da força, sua

113
expressão como “justiça”, é vista como um
elemento necessário do poder.
Nessa compreensão existem ainda
elementos importantíssimos da nossa visão política
moderna. A saber, a concepção da liberdade como
poder de responder apenas à razão (no estado de
natureza) e ao Estado (que no estado civil é a
Razão). A liberdade é a propriedade que protege o
homem da vontade arbitrária de outro homem e de
leis ilegitimamente promulgadas ou parciais. A
tentativa de submeter o homem a leis arbitrárias ou
à vontade aleatória é vista também como uma
forma de declaração de guerra ou deslizamento
para a violência.

& O império das leis: a normatividade


como expressão do auto-reconhecimento dos
indivíduos no Ideal do Direito

Vimos acima que de acordo com os teóricos


da legitimidade, o “transgressor” se expôs à
aplicação do poder porque abusou do crédito que
ele mesmo coloca na lei que o protege da
transgressão. Isso acontece objetivamente: pois o
reconhecimento do poder depende de que ele seja
validado publicamente, e não resiste se for mantido
no frio privado de um arbítrio particular. Uma
interpretação subestimada da dialética do escravo e
do senhor hegeliana é que ela não destoa da

114
tradição aqui comentada dos teóricos da
legitimidade. A própria luta entre os homens, em
um estágio pré-histórico, mostraria a objetividade
dessa cobrança de reconhecimento: aquele que
abusa de seu ponto de vista privado, se escondendo
da luta e procurando vencer pelo recuo incessante à
sua convicção interior, acaba, como o covarde,
subjugado. Há aqui mais do que idiossincrasias
teórica. Outros filósofos colocaram em pauta a
discussão do tema. Para Rousseau, o contrato social
de que o abusador se favorece foi transgredido. Já
em Locke a apresentação dessa tese sugere uma
intuição bastante estabelecida, a saber, a de que o
poder é sempre poder legítimo. A rigor, todos esses
autores trabalham a mesma premissa: o direito não
pode ser estabelecido pelo arbítrio, nem pelo ponto
de vista externo e casual das leis mecânicas. A
objetividade do Direito decorre de sua
legitimidade.
Nessa intuição reside a crença comum de
que o poder tem de ser duradouro, sólido, ter apoio,
etc. Semelhante probabilidade tão pouco pode ser
acidental ou meramente fatual; tem de ser baseada
em que o que obedece faz proveito da sua própria
obediência, isto é, o seu ônus existe em direta
correlação com um bônus. Mesmo no caso de não
fazer proveito dela, não pode reclamar, pois ela
deriva de sua própria vontade. Portanto, mais do
que a simples alienação da liberdade ao soberano,
ao modo hobbesiano, existe aqui uma troca no
sentido abstrato e contratual: “é a tal ponto falso
que no contrato social haja da parte dos particulares
115
uma renúncia verdadeira, que a situação deles por
efeito desse contrato se acha realmente preferível
ao que era antes” (Rousseau, parte I, cap. IV). A
discussão aqui presente, assim, corresponde a uma
estratégia filosófica política que é adotada com o
propósito de explicar o poder eliminando sua faceta
injusta, desagradável e desconfortável. Pois se o
poder erra, como pode continuar forte? Se degenera
em violência, não é mais poder.
Esse consumo de ideias similares por parte
dos teóricos situados nesses diferentes momentos
históricos não começa e nem termina com
Rousseau e Locke. Não citaremos mais autores,
mas qualquer um dentre os que colocaram como
pauta de discussão a legitimidade do poder,
também estabeleceram condições para aceitar algo
como poder verdadeiro: a moral, o contrato, etc.
Tanto Locke como Rousseau pressupõem um
entrosamento com a psicologia, que descreve as
condições morais em que a assinatura de um
contrato é válida, isto é, quando os indivíduos são
livres. No entanto, se levarmos em conta a leitura
que Hegel mais tarde fez do ideal político grego, é
o próprio poder objetivo que todos esses filósofos
já miravam quando estabeleceram essas condições
de legitimidade meramente abstratas e
indeterminadas, baseadas na psicologia e na moral.
O poder tem de se exercer, e para isso não pode
fugir de suas condições de publicidade; a
subjetividade não pode ser, portanto, um refúgio
contra a razão, uma ilha de possibilidades
criminosas protegida de julgamento: ela entra no
116
mundo objetivo por sua própria necessidade de ser
reconhecida, seu orgulho de si mesma, sua ambição
de afirmar sua convicção interior como verdade
aceitável: sua competência encenadora. Isso podia
ser visto de maneira notável no ideal do Estado
grego, onde os homens se reconheciam e se
espelhavam nas leis que os subjugavam.
É importante perceber que o que há em
comum em todos esses autores tampouco é original
de seu tempo, e casa com um ideal de
republicanismo que, hoje, é sempre invocado
durante os capítulos de perigo totalitário, mas tem
sua raiz mais profunda no ideal político grego.
Segundo Jaeger, que seguiu cautelosamente a trilha
de uma análise do ideal grego de justiça, “a
gigantesca influência da pólis na vida dos
indivíduos se baseava na idealidade do pensamento
dela”19. O Direito tem, portanto, o aspecto do
autoreconhecimento dos que a ele se submetem ao
seu ideal. Quando, de acordo com os poemas
épicos gregos, Orestes, filho de Agamenon, se
encontrando na ponta de uma cadeia de vingança
inexorável, pede a Apolo o auxílio de um tribunal
para julgá-lo, a sua inspiração corresponde a um
desejo de justiça que envolve a separação entre
mero poder e abuso/violência: o julgamento, por
mais sujeito a erros que esteja, é legítimo por ser
baseado na interpretação da lei, que é a mesma para
todos, enquanto a vingança é mera expressão de
violência ilegítima baseada na narração privada de

19
Jaeger, Werner, 1989, p. 96.

117
uma sensação de injustiçado construída sem ouvir o
outro. Orestes não se contentaria com a vingança:
ela o rebaixaria a covarde, não reconheceria sua
reivindicação interior como objetiva, verdadeira. O
tribunal, assim, nasce da própria necessidade de
santificar a decisão subjetiva, a credenciando, ou
identificando na decisão individual sua necessidade
de validação universal; porém, nesse momento
mesmo essa subjetividade é destruída, entrando em
um reino de negociações objetivas. O desejo de
dominação do tirano não é, assim, separado por
natureza do desejo de diálogo do congresso
democrático. Eles são níveis de desenvolvimento
diferentes do mesmo desejo, na medida em que este
não se contenta na sua forma abstrata e
indeterminada e precisa se projetar ao exterior para
completar o ciclo do autorreconhecimento.
De certa forma, a ideia de “norma” na
filosofia política não é um conceito elementar e
irredutível. O direito só pode ser entendido
mediante o poder que ele modera, controla ou
cancela. A norma é introduzida para explicar ou
justificar esse aparente paradoxo da força
individual que precisa do reconhecimento exterior
para se manter acreditando em si mesma.

& A normatividade interna como lei


civilizatória ou jogo: a rejeição da lei natural
como explicação da objetividade do Direito

118
Hobbes imaginou extrair a ideia de Direito
da imagem de um estado natural. Os homens
tenderiam naturalmente ao direito para escapar ao
estado de guerra. Diferente de um estado de guerra,
onde cada lado esgota seus recursos para fazer
justiça sem dar chances ao oponente, o estado
normativo de direito não é implacável e nem
infalível: mas a sua falibilidade pode ser explorada
por ambos os lados do jogo, e isso é o que amansa
a disputa, a torna “civilizada”. Seguindo a trilha
deixada por Hegel, essa teoria encontra sua
finalidade em uma explicação mais completa. O
que torna o homem poderoso sempre tendente à
uma expressão normativa e confiável de sua
vontade é a sua percepção de que seu poder estaria
incompleto enquanto não puder se exteriorizar em
uma expressão republicana, um desabrochamento
público. Essa condição não é derivada de regras de
prudência baseadas na percepção de sua
vulnerabilidade pessoal, como sugeria Hobbes, que
imaginou a construção do Estado sob a
pressuposição de um cálculo prudente dos
indivíduos de que extrairiam mais benefícios em
um estado civil do que em um de guerra. A rigor,
não há nada no poder que precise se submeter à
prudência; isso seria, na verdade, um rebaixamento
alheio à sua natureza. Se o poder se submete ao
Estado, não é para moderá-lo, mas porque sua força
se torna mais cheia de si, uma vez reconhecida pela
lei. Não há, assim, um estágio de submissão do
poder. O arrazoado aqui considerado retira a
119
natureza do Estado Civil da própria natureza do
poder presente na ideia de autoconsciência: esta se
deixa controlar pelo Estado, e até submete sua vida
ao Estado, porque na condição de aceitar o tribunal
como válido para o caso em que fosse vitorioso,
deve se aceitá-lo também para o caso em que é
derrotado, deixando de lado suas crenças pessoais
sobre certo e errado, inocência e culpa. O poder
está certo porque é o poder.
Em termos mais diretos e ousados, é
possível dizer que a “lei” deriva de uma convenção
para estabelecer que o poder que controla a
probabilidade de obediência, ou o poder que
fundamenta a governabilidade, mesmo quando
errado, não possa nunca estar injustificado ou dês-
racionalizado. Isso parece contraintuitivo apenas
em um primeiro golpe de vista. Pois a questão não
é mais a impossibilidade acidental do erro, mas a
impossibilidade universal do erro ou da injustiça. O
erro tem de ser aceito como acerto porque todos
investiram a confiança na lei para qualquer que seja
o resultado, em troca do fato de que a lei dá
chances iguais a todos os contendores. A
brutalidade própria ao estado de direito consiste no
vitorioso poder afirmar ao derrotado que qualquer
trapaça feita por ele poderia ter sido replicada pelo
outro. Trata-se daquela violência dissimulada,
disfarçada por protocolos e vestida de ternos caros,
selos, carimbos e cargos públicos condecorados. A
consciência do poder está preocupada com as
imagens: teme ser surpreendida em um estado de
covardia, perdendo seu reconhecimento público.
120
Há um fingimento generalizado que investe
confiança na lei. É, a rigor, a fé na lei que
retroalimenta o poder da lei. Quando desloca o
poder do governo para as leis, o tirando da mera
arbitrariedade de um particular, a filosofia política
opera um truque: ela diz, como Rousseau, “não é
possível ser injusto consigo mesmo”, e como a lei é
a mesma aceita entre todos para que possam dividir
entre si os custos de viver politicamente, pode-se
sempre responder a aquele que se sente injustiçado:
“você tem a opção de sair da comunidade política”.
Por isso Rousseau, ao se perguntar se a vontade
geral pode errar, conclui que não, porque se erra,
erra na medida mesma em que deixa de ser geral,
ou povo, isto é, “quando ocorrem intrigas,
associações parciais, etc” (Parte I, cap. III). E
podemos completar essas conjecturas ao dizer que
para a consciência do poder, sair e recuar da
comunidade política não é uma opção; ou é uma
opção degenerativa, que se furta ao reconhecimento
e procura o refúgio degradante da convicção
particular para compensar a incapacidade de
colocar suas pautas em discussão com os outros. É
a renúncia. A aceitação da indigência histórica.
Responde-se assim ao indignado e rebelde:
reclamar da injustiça da lei não é uma solução
jurídica interna, porque o risco foi assumido por
todos por acordo comum em troca de achar um
árbitro com o máximo de imparcialidade. Apesar
do estado preliminar, o arrazoado de Rousseau e
Locke é a semente da concepção de Direito
objetivo de Hegel, porque esse segue o
121
desenvolvimento daquela premissa, até amadurecer
nessa proposição: o império da lei nunca pode ser
injusto porque o conceito de justiça só faz sentido
no interior do reconhecimento público daqueles
para quem essas leis são inteligíveis (sentidas como
obrigação). Naturalmente, esse reconhecimento
público não pode ser feito pela contingência de um
contrato ou pela prudência natural. É a própria
natureza do poder que despreza suas expressões
privadas, secretas, manhosas, abusivas. A
passagem para o Direito, portanto, não corresponde
a uma consequência natural cuja causalidade
pudesse ser reproduzida em um laboratório
antropológico, convertendo tribos nômades de um
estado pré-jurídico a um Jurídico.

& A condição pós psicológica de uma


abordagem do Direito: o horizonte nomólógico
próprio ao pathos individual.

Vimos anteriormente como a psicologia


destacava o tônus performático do individuo e o
apresentava independente de sua dramaturgia.
Agora podemos ver como isso se reflete em uma
apresentação da performatividade individual
contrária ao Direito. Essa consideração foi avaliada
sabiamente por Hegel: “Data tal concepção daquele
período pre-kantiano em que dominava o

122
sentimentalismo e constitui ela a essência de, por
exemplo, célebres obras dramáticas muito
comoventes" (Hegel, p. 112). Nesse caso, o pathos
que fundamenta um princípio ativo é
artificialmente divorciado do centro nomológico
que lhe confere visibilidade competitiva. Assim
alienado o pathos de seu nomos, o ato encenado
isolado de seu jogo, torna-se a simples expressão
de uma retórica de demarcação arbitrariamente
usada para selecionar o vencedor e o derrotado, o
justo e o injusto, através da prévia avaliação de sua
"boa vontade" interior. É a estipulação de um meta-
vencedor, que existe antes mesmo de qualquer
jogo. O maniqueísmo, o justiceirismo e o heroismo
são pensamentos coerentes com essa posição. É em
fidelidade a esses princípios que aparece a
oportunidade de "em nome das chamadas boas
intenções, nos interessarmos por ações que são
contrárias ao direito” (p. 112).
No caso de um contrato, uma vez divorciada
a sensibilidade do indivíduo de sua inscrição em
um espaço nomológico onde sua performatividade
é representada pela expressão de um crédito, o
cumprimento do mesmo passa a ser visto como
mera questão de boa vontade arbitrária,
estabelecendo-se assim uma relação entre o
presente e o futuro marcada pelo ônus da exigência
de um resultado que, embora não seja mesquinho –
baseado na fortuna e ganho – é ainda assim
"externo" ao direito: a glória, a honra, a consciência
limpa, etc.

123
Na verdade, é apenas porque se separa o
indivíduo e seu centro patológico do horizonte
dramático interno, o representando como simples
ficção romanceada – um personagem de livro – que
ele pode representar a sua própria vontade com ares
de independência arbitrária: como se pudesse se
abstrair de suas dívidas, contratos e deveres e
rediscutir suas obrigações pelo ponto de vista de
sua "boa vontade" ou de suas "intenções puras".
Como esse tipo de pensamento não foi
completamente extirpado de nossos hábitos
jurídicos, e como o positivismo não teve presença o
suficiente para eliminá-lo, promovendo hoje o mal
entendido correspondente a uma leitura da lei que a
toma pelo ponto de vista externo – como um
estatuto que se aplica ao sujeito alienado (não
ligado patologicamente ao nomos do jogo) apenas
pela circunstancia contingente de coincidir a
jurisdição com a situação - e como essa é a origem
dos novos heroísmos jurídicos, é preciso dar
atenção redobrada a esse assunto.

& O positivismo e o romantismo como


soluções anti-jurídicas: o Direito mecânico
vivificado pelo interesse subjetivo

O positivismo – através do mencionado


ponto de vista externo ou exógeno – explora a
normatividade postiça da legislação escrita, que

124
parece representar um progresso apenas porque
recolhe sua autenticidade artificial não mais do
moralismo ou do sentimentalismo. Porém, esse
carimbo autêntico é uma simples coincidência entre
a obediência e a obrigação observada pelos traços
materiais acidentais. Essa não é senão a versão
moderna da consciência limpa romântica que se
pretendia justa independente da – e externamente a
– vigência normativa que se desenvolve no interior
discursivo do direito. Temos aqui o mesmo efeito
produzido por duas causas. O sonho romântico e a
avaliação positiva, apesar de partirem de princípios
aparentemente opostos, tem em comum o
julgamento da ação como uma insignificância a
serviço de algo de externo à própria ação: uma
ideologia utópica, no primeiro caso, a coincidência
semântica entre letra e interpretação, no segundo.
Nos dois casos a ideia de Sujeito jurídica é
destacada de sua própria vida histórica e
apresentada pela fronteira abstrata da convicção
que liga mecanicamente seus atos à sua
responsabilidade, porque, como diz Hegel “fazer
desta ação algo de bom depende apenas do
seguinte: pensar esse aspecto positivo como
intenção minha nessa ação”20.
A forma da justiça romântica e positiva,
assim, só é objetiva por imitação e, com isso, não é
em absoluto objetiva. Enquanto ação reparadora,
ela apenas coincide com um ideal de reparação
contingente, porque não alcança o momento crítico

20
Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, 1977, p.130.

125
que a reconcilia com o crédito prático que legitima
seu poder e direito de indenização. Tomemos como
exemplo um tribunal com a função de julgar uma
ação e agir em resposta a ela. Tomando a
abordagem de Hegel como referência, no tribunal
“deverá fazer-se valer como universal o ato de
reconhecer e realizar o direito no caso particular” 21.
O filósofo reconhece aqui o espírito objetivo do
tribunal como poder imbuído de legitimidade
devido à sua representação do poder público. Nesse
ponto, o filósofo admite sem oposição a força de
Direito do tribunal como direito positivo de aplicar
a legislação. Na sua voz: “só tem capacidade para
obrigar o que for lei positiva”22. Porém, se
explorarmos as consequências da magistratura
positiva até um fundo mais remoto, ela se torna um
simples mecanismo de julgamento, uma imitação
do poder público que só consegue emergir à vida e
ganhar conteúdo humano através da forma real
dada por uma fonte subjetiva interessada e parcial.
O magistrado que hoje decreta sua sentença
por observação da coincidência mencionada (entre
letra e ato) se permite julgar o direito de fora do
direito; e julga em unidade convergente com o
policial militante ou o revolucionário que indulta a
desobediência dissimulando um ideal de justiça
externo e estéril: a moral, o sentimento, a boa
intenção, etc. O simples mecanismo de julgamento
positivo é carente de legitimidade, e só pode

21
Filosofia do Direito, p. 195.
22
Ibid, p. 188.

126
consegui-la por empréstimo de algum dispositivo
ideológico que reintroduz a aplicação concreta da
justiça pela forma da subjetividade, da vingança, do
fanatismo, da violência e da parcialidade. Assim a
lei positiva e o romantismo subjetivo atingem fins
coordenados: uma justiça de inquisição e exceção,
contrária justamente ao império da lei que o
positivismo pretendia substanciar com a
recomendação ingênua de isolar o individuo da lei
e liga-los violentamente por um operador externo: a
coincidência de seus recursos práticos patológicos e
a letra da sanção. Ironicamente, quanto mais se
afirma um escravo da lei positiva, mais o juiz age
como um desobediente, pois ele esvazia a regra de
seu conteúdo dramatúrgico e humano, aplicando a
regra à uma máquina. Quando a referência humana
chega para dar-lhe vida, só pode ser pela forma
unilateral do preconceito e da tendenciosidade.

& A inautenticidade da ação considerada


pela legislação positiva e a Direito considerado
como Armação: a estrutura da cobrança de
confissão como elementos do enquadramento da
ação inautêntica

O alto nível de indulgência que


experimentamos sobre a lei positiva se deve ao
contentamento com o conteúdo de sua promessa de
supressão das paixões, superstições, fanatismos e

127
moralismos. Isso daria a esse modelo de justiça
proteção suficiente contra a convicção subjetiva.
Porém, de acordo com essas premissas, as leis
jurídicas poderiam começar a ser subjugadas às leis
da mecânica ou da fisiologia. Mas apesar da
presença cada vez mais assídua dos médicos e
fisiólogos nos Tribunais, esse não é o efeito prático
real dessa forma de Direito. A arquitetura morta da
lei escrita não passa de um modelo vulnerável ao
sequestro do interesse subjetivo formal, que usa o
mecanismo para converter sua fantasia fanática em
aparência de direito. O efeito desses tipos de justiça
para um código penal que avalia a ação pelo ponto
de vista da sua origem subjetiva atômica, e que
retira de si mesma a convicção de seu valor, devem
ser observados como o fenômeno da armação.
Para entender a armação como dispositivo
de injustiça recorrente é necessário paralelamente
refletir sobre as premissas filosóficas práticas que
suplementam essa particularidade do Direito. A
armação é o enquadramento artificial dos caracteres
externos do ato dentro de uma previsibilidade
social que o torne abrangível pelo Direito. O jurista
que arma mecanismos para enquadrar um ato em
uma lei precisa ignorar a premissa prática anti-
consequencialista – que se desenvolve na tradição
Kant-Hegel-Heideggeriana – de que o conteúdo
prático de uma ação não pode ser julgado pelo
sucesso, efetividade ou pelas consequências
técnicas. A autenticidade da experiência vivida
ativamente é o único valor que está em questão em
uma discussão sobre a responsabilidade prática, e
128
isso depende apenas do crédito de suas próprias
reivindicações de justiça. Ao armar um mecanismo
de enquadramento, contudo, um juiz ou acusador
tem de produzir um milagre, que consiste em
converter magicamente ação em inação através do
enfraquecimento de seu conteúdo autêntico. A
transição desse conteúdo de autenticidade prática
para um conteúdo inautêntico implica a
possibilidade de julgá-lo pelos seus efeitos
técnicos. Assim, ele consegue converter a ação em
um conjunto de fatos que a substituem: os
movimentos dos nervos, a miríade material de
respostas causais, ou a obediência a um
mandamento com força de invocação contingente:
como um código positivo ou uma fórmula
incondicional, etc.
O problema que temos diante de nós
envolve retroceder ainda mais na nossa reflexão
sobre o psicologismo. Tiraremos proveito de
mobilizar todos os recursos reflexivos conquistados
até agora, resgatando a utilidade do que
aprendemos sobre o idealismo ocidental. A
tentativa de suprimir a autenticidade pela armação
jurídica envolve um posicionamento pré-idealista,
ou materialista pré-socrático, posto que envolve o
enquadramento dos resultados da ação pela sua
externalidade, desconsiderando a presença da
racionalidade defendida pela unidade prática da
ação. Não é possível enquadrar uma ação a
destacando da racionalidade que ela defende. A
autenticidade ativa está no modo como esta é capaz
de defender criticamente o valor que ela mesma
129
protege quando age. Para o Direito, isso significa
que o reconhecimento de sua legitimidade é parte
da atitude concreta dos seus membros para com ele,
que não o recebem de maneira passiva e acrítica 23.
O direito que não está envolvido criticamente na
defesa de sua própria racionalidade não é objetivo.
No Processo de Kafka é descrita uma
sociedade onde o Direito precisa da armação. Em
uma nota do capítulo sobre a Moralidade Objetiva,
Hegel retrata modos simples e ingênuos de
armação na tradição jurídica: “Pendurar as leis tão
alto, como fez Denis, o Tirano, que nenhum
cidadão as pode ler, ou enterrá-las debaixo de um
imponente aparato de livros sábios, de coleções de
jurisprudência, opiniões de juristas e costumes” 24.
Naturalmente, a simples simplicidade gramatical na
exposição das leis não é uma garantia de que o
pensamento será capaz de se reconhecer nelas
como em um ideal de civilização. O que marca a
armação não é apenas a complexidade hermética da
lei, mas o fato dela ser projetada para ganhar
autonomia como letra na mesma proporção em que
anula a autenticidade daqueles a quem obriga.

23
Hegel tocou essa verdade de maneira lateral, diz que “não
deverá ela (a ciência positiva) se espantar que lhe
perguntem, após todos os seus raciocínios, se uma regra
jurídica é racional” (p. 189). Esse tema voltou a ser ouvido
nas reflexões sobre os limites do positivismo, feitas por Hart,
que denunciou a pobreza dos fundamentos de um sistema
de direito que não considera regras de reconhecimento que
outorgam poderes jurídicos aos indivíduos.
24
Ibid, p. 191.

130
Funciona, assim, como um boneco de humanidade
postiço falando pela voz de um ventríloquo. Nessa
qualidade, a lei não governa o rito que estrutura a
transição racional da decisão legítima, mas serve
para enquadrar e sentenciar com a carga conclusiva
de um heroísmo despótico. É uma lei que promete
resultados, e por isso ela é antes de tudo uma
abordagem técnica do problema da ação.
Como a ação abordada de maneira técnica
pela armação perde sua racionalidade, a relação
com suas consequências só pode ser avaliada pela
conexão inautêntica e externa com a declaração
clara do sujeito de que teve a intenção de a
executar. Isso, contudo, é o caso-limite a que o
acusador raramente consegue chegar. Premiar a
confissão com o caráter de prostituta das provas é
plausível, se pensarmos que ela joga sobre um
suspeito abstrato a responsabilidade de responder a
uma acusação que não foi capaz de compor o
fundamento da ligação entre ato e consequência
segundo o enquadramento da lei. Ele precisa, por
isso, armar esse enquadramento. Em termos
impróprios, porém mais intuitivos, o suspeito é
intimado a sacrificar ou enfraquecer
voluntariamente seu direito a formular a melhor
defesa possível para si mesmo, quebrando o pacto
racional que garante a juridicialidade do processo.
Isso é inevitável nas circunstâncias consideradas.
Para ser capaz de ligar autor a um crime pela
simples letra da lei, ou pela simples convicção
purista e romântica, o Direito torna-se refém da
exterioridade; isto é, tem de conseguir ligar as
131
minúcias exteriores da ação a um núcleo espiritual
improvisado, através de uma armação
dramatúrgica que dê sentido ao seu caso. O
acusador precisa criar sua própria narrativa e
prender o suspeito no seu interior, o desafiando a
sair. As respostas do interrogatório, assim, fraudam
a decisão, apresentam a conformação com um
modelo prévio de “bem” que pressupõe a conclusão
do processo antes que ele passe pela força objetiva
do rito. A aplicação do Direito passa a depender da
confissão, mas a confiabilidade da confissão
subjetiva é estimada pela conversão da origem
subjetiva com uma meta dramatúrgica copiada de
estereótipos que justifiquem a suspeita de que ela é
a autora do ato. Assim, se o suspeito não confessar,
não estará colaborando com a meta pura, a
convicção moral ou com a gramática das cláusulas
positivas. Será culpado pela obstrução da justiça
heroica que postula o “bem” e o “mal” por
referência à convicção ou à gramática que arma o
resultado. O Sujeito que confessa, ou que se recusa
a colaborar, é um tipo autoral enquadrado por
armação e que é ligado a sua ação não pela sua
própria racionalidade, mas pela razão ideológica de
um estereótipo dramatúrgico cultural que é visto
como bem ou mal previamente.

& Passagem da compreensão do conteúdo


Histórico do Direito: o imigrante como modelo do
ilegal

132
Dentro desse cenário de armação, onde o
culpado é sempre pressuposto, o bandido e o
mocinho aparecem a priori na dramaturgia do
contrato, a pressuposição da inocência é apenas um
adereço romântico usado para embelezar a
canonização retrospectiva da justiça. O mesmo vale
para a “democracia”. Tanto a democracia, quanto o
Estado de Direito, quanto o princípio da inocência,
como notado pelo observador perspicaz, são
expressões de encenação usadas ideologicamente
pelos dois lados da contenda jurídica ou política
que usam a armação para cristalizar um modelo
inautêntico de ação como bem ou mal, pressupondo
a conclusão do Direito antes que a sua
racionalidade seja discutida. De modo que o
vencedor sempre poderá invocá-los como recurso
de santificação retrospectiva de sua vitória. Isso
significa que não existe um momento de guerra,
selvageria, tirania ou servidão, onde estariam
ausentes as condições de racionalidade que seriam
realizadas na democracia, no estado de direito, etc.
Nem nesse segundo momento os impulsos de
justiça objetivos dos casos anteriores são extirpados
por completo.
É preciso entender que a dramaturgia do
desejo e a luta de reconhecimento não é uma
dinâmica civilizatória que cai dos céus, mas uma
fase do processo de conversão ao Direito, de modo
que as tensões limítrofes entre Direito e não-Direito
podem ocorrer a todo momento no interior das

133
decisões estratégicas do Estado. A ideia de que
existe um estado selvagem completamente distante
de um estado civilizado é um equívoco – uma
abstração sem mediação (para conceder uma
recaída na terminologia exótica hegeliana) – que
torna impossível entender a intersecção necessária
entre os dois em uma situação contextual real e
histórica, onde mesmo o homem selvagem negocia
seu poder, e mesmo o tirano não o exerce
gratuitamente. Esses momentos isolados e
fragmentados, no entanto, se tornam a base de uma
mimetização da razão – ou ideologia – e nas mãos
de intelectuais, são os recursos de retórica usados
para instrumentalizar a santificação retrospectiva
do lado vencedor. O legítimo, legal, se torna,
assim, o prático por excelência.
Nossa ampla digressão sobre a questão da
legitimidade trouxe à luz importantes
conhecimentos sobre o caráter da prática, e à
questão “O que posso fazer?”. Mas agora
percebemos como essa questão, colocada por Kant,
deve ser respondida através de um ideal de
racionalidade não interno, mas público. O
deslocamento da questão da prática legítima para a
imagem humana refletida pelo Estado tende a
preencher o vazio da moralidade subjetiva –
canonizada por Kant – com um modelo de
referência para a ilegalidade extraído de uma
imagem do estrangeiro. A legitimidade se exprime
socialmente como moralidade objetiva (ou
eticidade) por meio de um crédito ou uma medida
de racionalidade que é defendida e protegida por
134
aqueles que reconhecem a necessidade de seu
governo como fundamento integrador desse ethos
mesmo – que sem esse reconhecimento se tornaria
costume contingente, ahistórico ou irracional.
Como a razão e o crédito nunca podem ser medidos
senão pela autenticidade das atividades práticas que
as reconhecem e defendem, eles acabam se
exprimindo como uma ideia de humanidade que se
autodefende e autoprotege.
Quando “a lei restabelece-se a si mesma e
realiza sua própria validade”25 ela se torna positiva
em conteúdo, não apenas formalmente. Esse
modelo de justificação pelo autoreconhecimento
mostra a face histórica e citadina das pretensões de
universalidade. Coloca a legitimidade do Direito
em relação com sua presunção histórica e humana.
Enfraquece o escolasticismo contemplativo da
moral subjetiva e devolve ao humanismo o reino da
lei. É deste ponto de vista rugoso, onde a razão
caminha por ruas tortas e empedernidas, que
entendemos hoje a frase de Hegel de que “um
código penal pertence essencialmente ao seu tempo
e ao correspondente estado da sociedade civil”26. É
o início do que entendemos hoje por política: a
compreensão da lei integradora – isto é, o Direito –
como oposição ao que fica fora dos muros do
Estado. O imigrante é hoje o modelo de ilegalidade,
assim como as fronteiras do produto interno bruto é
o modelo do cálculo e do contrato econômico.

25
Hegel, p. 196.
26
Ibid, p. 195.

135
A Condição Histórica e o
Direito

& A Experiência humana e a História:


como a filosofia pode ser dispensada da sua
função de narradora da razão

& Diagnóstico do capítulo pós-metafísico

& A subordinação do Conhecimento


e da Compreensão à limitação histórica segundo
uma anedota: a impossibilidade da ignorância em
um contexto de jogo

A hipótese exótica de que os nativos das


Américas não tenham visto os primeiros viajantes
europeus ancorando em colossais naves, ou que
viajantes extraterrestres transitariam em nosso
sistema solar sem seres notados ou sem nos notar,
poderia seria explicada (supondo a possibilidade de
algo análogo realmente ocorrer), no modelo de

136
abordagem sugerido pelos “jogos”, como um efeito
de indiferença que não é propriamente psicológico
ou cognitivo, mas como a consequência de uma
incomensurabilidade hermenêutica que pertence
exclusivamente ao campo dos jogos. Não ter nada
em jogo com “eles” produziria a circunstância
cognitiva de não vê-los, percebê-los ou reconhecê-
los dentro das condições de possibilidade de nossa
intuição. Essa hipótese, aparentemente anedótica,
ganha plausibilidade diante da premissa de que
toda a experiência, para se afirmar como um
acúmulo de passado, tem de se colocar em uma
posição de superioridade capaz de construir a
distância histórica entre ela e as possibilidades
experimentais de outra cultura. Isto é, ela tem de
poder ver a outra cultura pela perspectiva histórica,
como uma cultura ultrapassada, ou primitiva. Se ela
for incapaz de arbitrar essa pretensão de
superioridade, é justo dizer que essa experiência
degenera para um estágio não temporal onde a
contagem de suas vivências tem de recorrer a
imagens e esquemas sobrenaturais: ver o outro
como “deuses” ou “demônios”, isto é, seres sem
interação direta conosco. O que a anedota pretende,
portanto, ao dizer que os europeus não foram
“vistos” é apenas dizer que eles não se integraram à
experiência dos nativos, uma vez que não foram
compreendidos como “inferiores” desde uma
reivindicação de superioridade. Ao não serem
compreendidos dessa maneira, os europeus se
recusaram a ser convertidos em objeto do juízo
nativo, que dessa sorte não os puderam

137
“classificar” como entes e nem, por isso, integrá-
los à sua perspectiva de mundo.
A parte do conceito que não tem uma chave
abstrata de acesso ao jargão técnico que amansa o
conhecimento mecânico entra na especulação sabendo
algo sobre o quanto o problema é : sabe se vale a pena
pagar ou não por ele, e aprende a contrabalançar a sua
ignorância diminuindo

preço que ele está disposto a pagar para o saber


que

para o qual aquele domínio conceitual está


direcionado e vivificado.

O que a anedota pretende, portanto, ao dizer


que os europeus não foram “vistos” é apenas dizer
que eles não se integraram à experiência dos
nativos, uma vez que não foram compreendidos
como “inferiores” desde uma reivindicação de
superioridade.
E essa visão encerra tudo o que nos parece
relevante para explicar a posse de um saber, podendo se
repetir da mesma maneira no âmbito analítico e mesmo
na especulação dogmática, sem que suscite nenhuma
contestação geral sobre sua qualificação psicológica –
mesmo quando na epistemologia se lhe recusam o
qualificativo.

Mas quando o próprio movimento especulativo


desse saber é considerado, o mecânico já perdeu a
acessibilidade regional – quer empírica, quer dogmática

138
– daquele saber, pois qualquer ponto de perspectiva
pode iniciar uma nova cadeia de especulação: dentro do
círculo do todo, qualquer fim é também um início
possível. Isso não significa que a perspectiva de um não
mecânico poderá contestar o saber do mecânico ao
modo da refutação lógica, ou ao modo da espera de um
dado empírico que lhe oportunize iniciar a construção
de uma perspectiva de oposição. Mas está aberta a
possibilidade de especular sobre o projeto conceitual
desse saber, pois o conceito é capaz de contestar a si
mesmo a partir da perspectiva especulativa concreta de
seu automovimento. A ignorância técnica não paralisa a
especulação; pois não é uma ignorância especulativa,
nem uma ignorância do conceito sobre ele mesmo. O
peso e o valor da informação técnica não consegue
rasgar nem dissimular todos os parâmetros de
desconfiança e credibilidade, e o não-mecânico que está
no centro do logos, do conceito, ou da discussão – sobre
a solução para um problema do carro – tem sempre
recursos conceituais internos para conceituar/discutir se
um mecânico é incompetente ou competente.

A questão que se levanta aqui é a de que


estaríamos confundindo o saber técnico e relevante
sobre o carro com o saber prático daquele que sabe
reconhecer se um conhecimento está superestimado, ou
se o preço que se cobra por essa venda de conhecimento
não vale a pena perdido por ele. Mas não existe
justamente a diferença que causaria a confusão. A
confusão pertence à filosofia tradicional, em especial no
seu formato epistemológico, que se acostumou a separar
esses dois momentos do saber, como se pertencessem a
dois domínios estrangeiros, e um pudesse subsistir sem
o outro; como se o tempo do conceito fosse inacessível
a ele mesmo. A rigor, o preço do conhecimento é um
saber do conceito que conhece sobre ele mesmo. O

139
status dessa informação aparentemente paralisada no
enquadramento do jargão somente no movimento do
reflexo do saber sobre ele mesmo tem uma força de
influência discursiva absoluta, de modo que não pode
ser des-sabido por aquele que sabe. Entre o mecânico e
o não mecânico, a única coisa os integrando em um
diálogo que desenvolve o processo de um conceito é a
capacidade de identificar ...

Um não mecânico

Irreversível. Esclarecido. Filosofia.

pode parecer agora mais familiar ao domicílio


intelectual da prática, da ação, do fazer, onde aquilo que
se sabe só é sustentado em sua validade absoluta como
um elemento de segurança em uma rede de cálculo
especulativo.

A mera ignorância técnica de uma consciência


não é diretamente relevante para os elementos
especulativos do problema, uma vez que .

Em outras palavras, a ignorância de uma


determinação fixa paralisa apenas a reflexão científica

Essa última frase aparentemente indecifrável


significa apenas que o campo de negociação nunca está
fechado para que o saber saiba a si mesmo, e nessa
abertura encontra-se uma identidade entre o seu
conteúdo determinado – a proposição sobre a

140
temperatura do carro – e o que o próprio conceito pode
saber sobre essa determinação. O não mecânico
encontra no conceito um ponto de identidade que, não
permitindo que ele se arvore de autoridade na região
determinada em que aquele saber foi paralisado (isto é,
no jargão técnico), permite, contudo, que ele saiba algo
da mesma família, um parentesco que os coloca no
mesmo nível de mútuo reconhecimento. Uma espécie de
traduzibilidade é operada, onde os saberes são elevados
a uma plataforma de comensurabilidade especulativa
independente, orbitando um centro problemático
comum, a saber: o conserto do carro.

Essa hipótese, por desconcertante que seja,


sugere que a sensibilidade de uns aos outros (e a
indiferença de uns aos outros) é um efeito
psicológico e epistemológico subordinado, cujo
efeito como “conhecimento” depende de certo nível
de enfrentamento prático ou possibilidade de
comércio entre duas ou mais energias vitais27.
Assim, dentro de um jogo a ignorância se torna
transparente, até se converter em conhecimento da
ignorância e se integrar às regras como algo
previsível. A transparência com que um jogo impõe
suas regras a todos os seus participantes não é
adquirida sem tornar esse jogo um universo
fechado e incomensurável, transcrito para a história
de maneira dogmática e unilateral. Para isso
27
Essa energia vital se articula através dos lances de poder.
Estudar a negociação da energia vital, do tempo e agenda dos
membros de um jogo, por isso, pertence a um estudo de uma
teoria sobre o poder.

141
depende da metafísica. A metafísica mobiliza todos
os recursos da filosofia na sua campanha de
transcrição da história.

Comentário:

O que é característico para aqueles que se


agrupam em um jogo é a transparência da sua
sensibilidade comum aos avanços efetivados pelos
lances permitidos. Isso não significa que a
ignorância dos jogadores é impossível. Mas
significa que a ignorância não pode ser
contabilizada:

Essa exige um posicionamento interativo


que é a negociação da disponibilidade de energia
vital dos envolvidos: é o tempo dos jogadores, suas
apostas e as fichas que eles investem no cassino,
que fundamenta a realidade da sua interação. A
mencionada situação de negociação de tempo se
articula em uma dimensão independente, virtual,
quando estudarmos a natureza dos contratos e do
dinheiro. De fato, o direito existe em estado
preliminar ou avançado sempre que essa
sensibilidade inaugura uma situação de negociação.
Essa, por sua vez, não existe sem certo contexto de

142
rivalidade. No limite mais elementar, essa
rivalidade é sempre competição pelo uso e
disposição do tempo. O valor do tempo cria a
estrutura financeira de uma negociação. Essa
estrutura, por sua vez, facilita o amadurecimento da
compreensão jurídica de posse e do mérito pessoal,
fundando as bases para pedidos de justiça
indenizatória e as condições de cobrança e
pagamento estipuladas na virtualidade dos
contratos.

& A Trapaça, a Fraude e a História

Permanece objetivo de interesse e uma mina


de perplexidade a discussão sobre se a história pode
ser ou não julgada. Essa discussão decidiria se ela é
um jogo ou uma “realidade”. Existe também a
esperança de que essa questão esclarecerá de que
modo os membros do jogo, vencedores e
perdedores, articulam a fonte de indignação de suas
retóricas na construção narrativa dessa história. O
desconcerto gerado por essa pergunta se revela na
questão sobre se a história é composta de violência
ou de justificação. E se pela primeira, de que forma
essa violência, entendida como modos de ação
injustificados, pode se inscrever em qualquer
registro de documentação assinada por sujeitos cuja
identidade depende da validação dos

143
acontecimentos segundo sua própria razão.
Podemos, como fizemos até aqui, entender essa
validação da razão para si mesma (ofício da
metafísica) como o acesso a uma forma de
identificação narcisista e um plano de transparência
de si para si mesma. A pergunta permaneceria:
como é possível a sujeitos tipicamente narcisistas
entender qualquer acontecimento do passado que
não possa ser reconhecido em uma versão
espelhada de si mesmos e, portanto, que não seja
tragado e cativado ao seu presente histórico? Se
preferirmos preservar a tradição filosófica que
identifica a razão com esse mecanismo
autoconsciente de identificação e reconhecimento
de si mesmo, podemos reformular a pergunta:
como é possível à razão esquecer a si mesma e
deixar a violência, o segredo, a obscuridade,
escrever sua história? Como é possível uma história
do oculto, do não visível?
Por outro lado, não causa menos
perplexidade a possibilidade de que o que
chamamos de história não possa jamais se
apresentar em um formato surpreendente, alheio,
destacado da previsibilidade da autoconsciência ou
na forma de ruptura com a estabilidade social.
Apesar da aparente aporia, uma forma típica de
inteligência que contrabalança o discurso filosófico
geral da metafísica, mas ainda se articula em
entusiastas da filosofia, é a inteligência paranoica
dos teóricos da conspiração. Esses acreditam
justamente em uma história subterrânea, que
acontece pelos meios da espionagem e do segredo.
144
A mesma inteligência presente nos teóricos da
conspiração se encontra em estado menos
contaminado nos movimentos de desconstrução, e
nos movimentos políticos de oposição à patologia
narcísica cultural do humanismo ocidental. Os
surtos ocasionais de tendências pós-metafísicas, tal
como pequenas reações do organismo a uma
doença prolongada, são apenas insinuações das
possibilidades ainda não exploradas pela filosofia.
Eles se apresentam, no entanto, de maneira ingênua
e desarticulada, como pequenos insurgentes que
ainda não descobriram como manufaturar armas de
contra-ataque.
De acordo com Susan Neiman, “se a
história, como escreveu Bayle, é a história dos
crimes e infortúnios, tentativas de dar conta delas
estão fadadas não apenas à falsidade, mas também
ao ridículo” (2003, p. 22). Essa frase reproduz a
crença tradicional de que não há história do
ilegítimo. A trapaça, assim como o segredo, não
tem poder de universalizar-se. Por isso, não pode
haver uma história da fraude, assim como é
paradoxal pensar em um recorde de fracassos.
Como se provou diversas vezes, contudo, os
paradoxos são as fontes mais profícuas de
desenvolvimento de discussões filosóficas. O
problema da trapaça é semelhante ao paradoxo, que
veremos em seu tempo, entre poder e legitimidade
e pode ser colocado através dessas duvidas: será a
história é composta de trapaça, o sucesso histórico
poderá ser ilegítimo, ou existirá um estado de lei
que ultrapassa os limites da soberania particular, e
145
regula até mesmo estados de guerra, justificando o
sucesso, a felicidade e o insucesso e a infelicidade,
e qualquer que seja o resultado histórico, de
maneira absoluta e sem possibilidade de apelação?
A rigor, a possibilidade de trapaça, de abuso,
apenas mostra como o poder está sempre em jogo.
É o que dá possibilidades de despotismo, mas
também o que desarma o déspota.

Existe um sentido em que os princípios da


democracia compõem mais do que um mero
sistema institucional contingente, sendo antes um
elemento inevitável na negociação do poder social,
presente em qualquer sistema institucional
construído para estruturar uma sociedade. A
possibilidade de despotismo se insinua no interior
da democracia, e vice-versa. O controle da
linguagem, e, portanto do sistema financeiro
fundamentado na linguagem, e, como um todo, o
próprio direito, é impossível mesmo nas condições
ditatoriais mais severas: isto é, mesmo nas fases de
maior esquecimento metafísico, quando a opressão
científica vigora, quando a verdade é engessada por
termos técnicos e diagnósticos de autoridade a
serviço de um poder estagnado, dando ao justiceiro
e ao inquisidor todos os ingredientes de sua receita
de violência. De forma que podemos esperar, com
mais otimismo, que mesmo se o nazismo houvesse
triunfado contingentemente durante a guerra, não
teria justificado a si mesmo perante o direito de
maneira incontroversa, como o sujeito histórico do
poder, e não poderia impedir a narrativa do lado
146
perdedor de se infiltrar como parte da história. Essa
possibilidade de perpetuar a discussão do poder,
isto é, a inevitabilidade de que o poder esteja
sempre em jogo, é o fundamento estrutural da ideia
de uma linha do tempo da razão, que determina a
história de uma cultura. Esta, por sua vez, não tem
lados. Será a mesma, a história do Bem e da Razão,
do vencedor, não importando o conteúdo que
preenche essa forma vitoriosa.

Supondo que uma narração da História seja


feita pelo nazismo, através de termos técnicos,
autoridade científica, e uma estrutura inteira de
segredos e obscuridade feita para materializar a
palavra Bem e ligá-la a sua própria ideologia. Isso
pode ser feito substituindo o caráter vago da
palavra Bem por simples aspectos materiais
associados de uma forma ou de outra ao arianismo,
e ao mesmo tempo relegando ao não ariano todos
os vícios. ‘Bem’ se tornaria, naquele âmbito de
esquecimento, correspondente a “ser ariano”.
Entretanto, tal não mudaria o fato de que essa
narrativa seria feita através da linguagem, e que
qualquer linguagem existe apenas como
instrumento de comercialização da sensibilidade
dos sujeitos ou classes políticas, de modo que esses
poderão explorar aberturas semânticas que
permitem interrogar sobre o crédito subjacente aos
juízos, e proteger a racionalidade de seu próprio
horizonte de experiência28. De modo análogo, como

28
Seria justo esperar que uma improvisação aproximada das
palavras Bem e Mal será sempre uma possibilidade primitiva

147
o sistema financeiro é o amadurecimento ulterior
da linguagem, todo o sistema de desigualdades e
superioridade criado dogmaticamente através de
doutrinas técnicas teria de se submeter, em último
aspecto, ao sistema de variações de um sistema
financeiro. De modo que o nazismo e o arianismo
ficariam expostos a falhar na competição geral do
comércio de ideias. Uma estrutura de desigualdade
ou de igualdade jamais é sedimentada a um ponto
em que fica imune à revisão competitiva.

Supomos, para todos os efeitos, que a ontologia


é uma descrição dos jogos através de uma
linguagem sobre as características do mundo e da
realidade. E como as questões ontológicas e
filosóficas sempre tendem a uma materialização em
formas de dramaturgias contingentes, é justo
esperar que a nossa perplexidade diante do
problema do Ser e do que é a realidade degenere
invariavelmente em um conforto moral consolidado
na linguagem. O sentido é improvisado como algo
que pode ser consultado sem pensamento
filosófico: uma semântica. Tal compreensão
ontológica geral está sujeita a perturbações
políticas e periódicos conflitos entre
uma civilização e uma barbárie, a Razão e a
Loucura, o Bem e o Mal, cuja expressão depende

de toda língua natural. É como o reflexo de uma versão moral


do problema ontológico acerca da existência, isto é, como
uma maneira de questionar os limites regionais do que existe
através de questionamentos morais – o que foi
estrategicamente elaborado no cristianismo, ao erigir sua
visão ontológica do mundo sobre o maniqueísmo.

148
sempre de uma articulação histórica: a
reivindicação do Bem contra o Mal envolve
necessariamente uma pretensão de superioridade
que só pode passar à compreensão como uma
perspectiva do “avançado” contra o “primitivo”, o
“atual” contra o “ultrapassado”, o “vivo” contra o
“morto”, o “presente” contra o “passado”.
Naturalmente, isso está presente mesmo nos casos
menos óbvios, isto é, quando a pretensão de
superioridade não reclama em plena voz uma
posição histórica “moderna”, “pós-moderna”, etc.
Por isso mesmo o destino histórico não nos atinge
como destino externo, e podemos arbitrar posições
de superioridade histórica pela perspectiva do
presente. Assim, a narração da História jamais
estará indefesa contra as possíveis revisões do Bem
e do Mal, e o poder que nasce de uma ou outra
dessas materializações dramatúrgicas do sistema de
débitos de uma sociedade está sempre em jogo na
linguagem, sobretudo através da maturação da
função de “contabilização” da linguagem em um
sistema financeiro.

Poder e Direito

& A facilidade de transição da pergunta


sobre o que é normativo para a pergunta sobre o
que é legítimo

149
A representação da existência de uma
ordem legítima é chamada por Weber de vigência
(ver Economia e Sociedade, vol. 1, § 5, 2000-9, p.
19). O sociólogo descreve as possibilidades de
vigência por meio de cuja presença os envolvidos
orientam suas ações através de formas típicas de
atribuição de legitimidade: a tradição, a adesão
emocional, a crença racional na validade da
vigência, um acordo entre os interessados e a
imposição. Segundo Weber, a tradição, a adesão
emocional e a imposição são circunstâncias com
idêntica vocação explicativa para a regularidade e
previsibilidade da ação social (ver Economia e
Sociedade, Vol. 1, Cap. I, § 4, § 5), diferindo
apenas no nível de racionalidade. O que ele chama
aqui de racionalidade, entretanto, é o que tem de
ser discutido. Uma sociedade não tem uma
racionalidade (ou irracionalidade) como uma pedra
tem o formato rugoso ou é áspera: a racionalidade
dela é também base informativa de sua
inteligibilidade enquanto sociedade. Um costume é
menos racional justamente porque tem menor
potencial informativo sobre o comportamento da
sociedade alvo, que sabe menos sobre si mesma, e
portanto é meramente contingente na explicação da
regularidade do comportamento social. O costume
é apenas a parte psicologicamente cristalizada de
um conjunto de reações e sintonizações tonais que
dão expressão a uma racionalidade histórica
específica, que não é senão o modo de
representação de uma oposição a um outro.
150
Essa oposição ao outro é o fundamento
tonal da racionalidade das possíveis respostas e
comportamentos socialmente descritos pela
psicológica ou sociologia. A tese presente depende
da premissa de que existe um motor de hipocrisia
latente fundando o movimento da encenação social,
e que toda vigência é apenas o resultado da
consolidação dessa encenação ou jogo. Essa
encenação encontra sua expressão máxima na
máquina burocrática, onde cada um age “conforme
o jogo”, ou, como diria a expressão coloquial:
“apenas para pontuar”. O que chamamos de
racionalidade é simplesmente o motor filosófico
(tipicamente metafísico, mas que pode assumir
formas meta-narrativas diferentes) dessa hipocrisia
ou fundamentalismo que dá uma ordem para a
ação. Pode haver um evento contingente, como um
contrato ou um evento de imposição, na origem da
vigência, mas isso não explica as condições da
rivalidade intersubjetiva que preservam um índice
de previsibilidade aos envolvidos em uma
negociação social de qualquer espécie. Se os
membros não são previsíveis, ou se não podem se
espelhar uns nos outros através de um conceito de
razão que os distingue do “bárbaro”, do “não
racional”, etc., qualquer contrato ou imposição
seria uma mera artificialidade, existindo apenas “no
papel”, sem qualquer poder de vigência. Na
verdade, a ideia de contrato, tradição e imposição
não explica a legitimidade da vigência, mas apenas
pressupõe outra forma de discuti-la. Ao discutir a
ideia de contrato e imposição, problematizamos o

151
próprio conceito de vigência, em vez de explicar a
possibilidade da governabilidade que essa vigência
coloca em questão. De maneira similar, o
“costume” não pode explicar a regularidade das
ações sociais, porque ele é apenas uma repercussão
contingente da própria regularidade.
Também os quadros administrativos
burocráticos que dão vigência ao poder de nossas
instituições são enquadramentos contingentes, e a
infra-estrutura de seu poder de negociação, os
mínimos elementos de intimidação, pressão e
dissimulação (produzindo adiantamento e
manipulação do tempo do dominado), não são
qualitativamente diferentes da hipnose social de
uma dominação carismática ou tradicional.
Seja como for, a vigência de uma ordem é
um fato que vêm à tona na nossa experiência
através do conceito de poder, mas não o poder
gratuito, e sim o poder entendido sempre em
conjunção com uma pretensão de vitalidade ou sua
força de expressão tonal, que caracteriza uma
energia de reação racional capaz de contrabalançar
o poder rival. Esse contrabalanço frequentemente
envolve a construção de toda uma retórica de
oposição. Veremos no seguimento do capítulo que
a psicologia e a metafísica pretendeu estabelecer as
condições dessa energia de poder através de
definições sobrenaturais para o conceito de
“legitimidade”: o sacrifício da vontade em um
contrato, o depósito da confiança. Uma das maiores
cadeias e limitações explicativas do conceito de

152
poder, que é a expressão mais pura de uma energia
vital ou inteligência (racionalidade) de reação,
defesa, resposta, etc, é o conceito de
“legitimidade”, que é cunhado com o objetivo
único de reduzir o poder a uma propriedade
anódina, que apenas pode existir em coordenação à
justiça e à moral.
Tomemos um exemplo. A conquista é um
modo de aquisição de poder facilmente
compreensível. O poder satisfaz sua pretensão de
legitimidade aqui diretamente, no próprio exercício
de silenciar as pretensões rivais através da força. A
sua energia vital, ou o despertar de sua tonalidade
afetiva, é aqui visto em sua pura potência: no
próprio exercício da vitória. Além disso, em uma
conquista não vemos os estágios intermediários de
negociação que poderiam sugerir disputa, cisão e
insegurança. Mas nem mesmo a conquista tem um
caráter incontroverso se tomado sob o ponto de
vista psicológico que contesta a motivação mental
da vitória e, logo, sua legitimidade. Muita literatura
já foi gasta discutindo a fragilidade da pretensão de
legitimidade do poder de um governante que
adquiriu um principado através da estratégia de
conquista sem apoio suplementar. Maquiavel
observou que o Príncipe identificado em uma
situação de conquista ilegítima gastará preciosa
energia de governabilidade tentando construir base
de apoio e minando a força das facções rivais. Ora,
é um traço problemático tradicional das
democracias representativas modernas a
necessidade de alianças partidárias para preservar
153
ou adquirir governabilidade. De modo que o poder
adquirido pela conquista não é tão direto e
incondicional, nem mesmo se comparado ao tipo de
poder das democracias modernas, onde o poder é
mais claramente dividido e controlado, pois o
diálogo e a negociação são presumidos na estrutura
burocrática.
A questão é difícil, pois sugere que a
apropriação tem duas dimensões: uma
simplesmente contingente e outra substancial.
Hegel, nos Princípios da Filosofia do Direito,
representa um proponente astuto dessa distinção:
O domínio do meu poder pode ser
ampliado pelas forças mecânicas, armas e
instrumentos. (...) Todos esses laços
representam ou possibilidades de apropriação
que excluem outros meios reais em proveito de
um proprietário e com dano de outro, ou um
acidente inseparável da coisa a que se
acrescentam. (Hegel, 55-a, p. 54)

A dificuldade em identificar uma expressão


de poder, mesmo quando se trata de um caso tão
claro quanto uma conquista, seja por meio de
guerra armada ou manobras de dissolução
psicológica, é que não é fácil identificar os traços
que mantém um (ou mais) subordinado (s) a um
soberano. Chamemos a isso de questão da
legitimidade da governabilidade. Quando o poder é
pensado pela perspectiva de seu grau ou força de
governo, o que entra na interrogação não é apenas a
probabilidade de que será obedecido, mas a

154
duração, o crédito, o quanto ele convence, e o
quanto está apto a ser obedecido no futuro. Essa
questão sugere um primeiro passo na direção do
conceito de legitimidade. O passo envolve o
entrosamento íntimo da questão do poder e a
questão da psicologia: o poder é observado em
conexão com o sujeito do poder, uma mente, ou
uma alma (que pode ser também uma “alma do
povo”), cujas sensações e pensamentos controlam e
legitimam o poder. A primeira parte desse capítulo
se ocupará desse entrosamento.

& O Desenvolvimento da ideia de Inimigo


de acordo com a intervenção psicológica: formas
preliminares do totalitarismo.

Através de uma compreensão da natureza


do poder em sua conexão com a legitimidade,
Rousseau ultrapassou, muito antes de seu tempo, a
concepção psicológica clássica que entende as
propriedades humanas – como a de ser “amigo” ou
“inimigo” – como definições contingentes
enraizadas em circunstâncias desligadas da
dramaturgia correspondente, como se fosse
possível, por exemplo, medir a inimizade através
de uma característica racial ou cultural. Rousseau
enfatiza que a inimizade é uma condição que
envolve pretensões de direito, e que a própria
estrutura do saque, da pirataria ou do abuso de

155
poder não se desenvolve ou prospera em condições
de rivalidade, pois nesses casos há apenas o choque
casual entre interesses destituídos de força
soberana. Estes viriam carregados em uma
declaração de guerra. Enquanto bandidos, ou
tiranos, os homens são meros particulares
incapazes de universalizar suas ações e pretensões,
pois, de fato, agem sob a pressuposição da
exceção, colocando a si mesmos como traidores,
como excetuados das regras que usam para tratar os
demais. Portanto, enquanto particulares, tampouco
podem universalizar sua pretensão de oposição.
Pela sua própria natureza, o questionamento do
poder exige uma jogada capaz de enunciar sua
oposição por uma declaração de guerra, que
envolve a assinatura de um “não reconhecimento”
da legitimidade do outro poder.
A ocorrência desse embate envolve ambos
reivindicando para si a condição de rito burocrático
sério (o dono de um segredo/mistério/Bem) e
denunciando no outro a condição de jogador (o que
está sempre vulnerável, brincando). Isso ocorre
porque psicologicamente estamos condicionados a
pensar o outro como uma psique inacessível, que
entra no diálogo conosco apenas como um mistério,
algo de meta-discursivo guardando possibilidades
de reação que não pertencem ao jogo, uma vez que
a psicologia entende “jogo” sempre – erroneamente
– como o lugar de embate entre estratégias técnicas
privadas. Entendido como detentor de neuroses ou
sintomas internos, o outro se torna politicamente
inacessível como “impossível de dialogar
156
democraticamente”. O paradoxo do poder revela
uma condição não tão estranha, mas que não
melhora a sua condição paradoxal: a de que
questionar o poder é sempre um lance de
reivindicação do poder. Essa característica mostra
que o sujeito do poder, aquele que é questionado,
autorizado, discutido, etc., só pode ser questionado
do ponto de vista de um sujeito rival.
Se aprofundarmos as consequências desse
debate, vemos que a discussão do poder pelo ponto
de vista da legitimidade nos levou a reconhecer
novamente a psicologia como o instrumento
metafísico responsável pelas premissas aqui
estabelecidas. Pois as propriedades psicológicas ou
morais do indivíduo, a sua confiança, sua
segurança, etc., são formas de expressar (embora
artificialmente) sua condição afetiva tonal em uma
dinâmica dramatúrgica de encenação onde entra em
questão a legitimidade de suas pretensões de
rivalidade, e, portanto, não apenas as suas
pretensões como “particular contingente”. Um
poder pode ser seguro ou inseguro, de acordo com
o modo como arbitra suas pretensões e administra
seus súditos. Um mero particular só pode ser
seguro ou inseguro na medida em que é
considerado pela sua medida de poder, ou
legitimidade de suas ações no processo interativo.
Nos dois casos entra em questão o modo como
“encena” a segurança ou insegurança.
A tentativa de explicar ou definir a
segurança através de critérios contingentes como

157
instrumentos físicos de medição ou postulados
psicanalíticos é uma sequela da antiga metafísica,
que não podia alcançar a afirmação de que o
humano (ou a saúde psicológica/racionalidade que
caracteriza o humano) não é uma “coisa” passível
de ser observada quer em uma consciência, quer
em uma inconsciência, mas sim o elemento
decisivo de uma retórica de pretensão de
legitimidade que deriva seu sentido da capacidade
de se opor ao “não humano”, ou “não racional”,
etc, ou o inimigo (que declara guerra). Essa retórica
de pretensão é alimentada através da exploração de
suas oportunidades vitais em uma expressão afetiva
tonal, capaz de encontrar o timing de sua energia
ou inteligência de reação, resposta, defesa, etc. A
psicologia é apenas a expressão tardia de uma
nomenclatura artificial que tenta encerrar as
tonalidades afetivas em classificações morais,
criando também as condições para controlar e
manipular as pretensões de legitimidade de fora do
jogo. O instinto psicológico é o instinto do
manipulador. Em uma disputa jurídica, pode se
observar o instinto psicológico agindo quando se
tenta atropelar os procedimentos horizontais de
chances e de consenso, manipulando a distribuição
do ônus da prova e invocando o impacto meteórico
de um argumento ou montagem disfarçado de
“fato” com força de decisão absoluta. No código
penal de muitos países, a teoria do domínio do fato
inclui na constituição a possibilidade legal desse
procedimento de exceção.

158
Metafísica e a Psicologia; e o Poder
e o Direito

& Entrando no campo da Filosofia Política


através da Metafísica

É claro que o Estado de Direito não acaba com


as desigualdades. Apenas as nivela burocraticamente,
que, nesse caso, é a própria matriz das estruturas de
segredo que não são mais “metafísicos”. O Estado se
torna dono dos ritos. O característico das democracias
das massas é que a desigualdade é criada, nela, pela
própria linguagem e suas nuances burocráticas, criando
estruturas de poder baseadas em criptografias. As
desigualdades no conhecimento/compreensão e
comunicação intersubjetiva não se expressam
metafisicamente, mas sim em diferentes posições de
poder consolidadas na linguagem e materializadas em
retóricas com potencial de reação.

159
& O Direito Natural, a Psicologia e a
Moral: a impossibilidade da injustiça dentro do
jogo

Tomás de Aquino acredita que “os preceitos


da lei natural são para a razão prática o que são os
primeiros princípios da demonstração para a razão
especulativa” (Questão 94, segundo Artigo, Suma
Teológica). Montesquieu, muitos séculos depois,
em O Espírito das Leis, argumenta que “Antes das
leis serem feitas, havia relações de justiça
possíveis” (Livro I Capítulo 1). A ideia de que
existe uma lei natural, ou uma espécie de luz da
razão que possibilita ao homem enxergar a lei sem
necessitar de promulgação29, sendo isso conhecido
sem anúncio empírico, tem sua raiz em uma
observação da coerção jurídica. Segundo esse
ponto de vista, o poder legal é um fenômeno gerado
espontaneamente nas condições de negociação que
distribuem postos de preeminência e legitimidade
de pretensão. É a própria vocação da regra para
criar as condições de exclusão dos trapaceiros que
alimenta sua força de legitimidade. A sua vigência
é, assim, antes de tudo, uma característica de sua
estabilidade, antiguidade, paradigmaticidade. Isso
pode ser observado nos conflitos entre o moral e o

29
Embora ela já tenha sido promulgada por Deus segundo
Tomás de Aquino (Terceiro Artigo, Réplica à Objeção 1).
Essa é também a ideia mais tarde popularizada por Kant de
que uma lei prática não pode ser reconhecida senão por sua
propensão própria a se universalizar.

160
imoral: o segundo é visto como dono de uma
pretensão abusiva, não conciliadora, incapaz de se
firmar como direito. A essa intuição, sozinha, no
entanto, falta a discussão sobre as condições de
uma jurisdição. Esses teóricos aceitaram sem
discussão o estado de governabilidade de uma
jurisdição como um dado contingente do mundo
produzido por uma circunstância empírica ou
supra-empírica de contrato (em ambos os casos
externa e contingente), e essa aceitação é a razão
por traz da compreensão metafísica das condições
vinculativas que constroem uma obrigação: pois ela
não coloca em questão como o sujeito chega a se
estabelecer como um agente sensível a variações de
crédito/poder, nem como ele adquire consciência
política e uma posição no jogo. Ela simplesmente
pressupõe um contrato, que pode ter sido feito por
meio de palavras, ou pelo simples nascimento em
determinada região geográfica que lhe dá
cidadania: um pacto involuntário.
Os teóricos que defenderam a lei natural se
basearam na suposição de que a razão prática tem
acesso claro aos princípios da lei determinada para
o bem comum. A ideia de direito natural defendida
pelos maiores filósofos do passado pressupunha a
capacidade humana de entender as ameaças da
natureza. A subsequente necessidade de cooperação
social seria uma nativa forma de consciência: uma
sensibilidade que traria certa pressão para que se
escolha entre a obediência ou a rebeldia. A tese é a
de que os homens não são indiferentes aos mesmos
problemas fundamentais, relacionados à
161
necessidade de segurança e proteção, de modo que
participam dos mesmos jogos e seus dramas
pessoais são completamente inteligíveis de um para
o outro. A crença psicológica de que o conteúdo da
outra mente é acessível por negociação, onde
ambos sejam conciliadores, ou morais, é a crença
dominante aqui.
Por conseguinte, se pressupõe que essa
sensibilidade à ofensa é uma propensão natural, que
permite ao homem compreender sua vida social
através de sinais objetivos de lucro e prejuízo dos
quais ele não pode se desvencilhar por mera
vontade pessoal nem força de seu arbítrio. Os
teóricos então concluem que essa forma de
inteligência calculadora e prudente para vivenciar
sua vida social é uma compreensão das limitações e
obrigações dos homens, e naturalmente podem ser
descritas por normas. Essas normas existiriam antes
mesmo de serem promulgadas positivamente: “se
algum ser inteligente recebia benefícios de outro,
ele devia mostrar sua gratidão; (...) se um ser
inteligente causa dano a outro, merece uma
retaliação, e assim por diante (Montesquieu, Livro
I, cap. 1). Semelhantes normas não precisam ser
anunciadas, ou melhor, as condições de seu
anúncio não são discutidas. Simplesmente existem
como cláusulas dogmáticas. Em outras palavras, a
ideia de uma lei clara naturalmente, que indica o
envolvimento vinculativo de um indivíduo, se
origina de um evento de debutante para um corpo
político, um fato contingente, posteriormente
descrito pela construção de sua personalidade
162
sensível através de vários recursos psicológico-
metafísicos que narram a inclinação e o
temperamento político do “indivíduo/sujeito”. Em
casos de direito internacional ou pré-jurídicos esse
nascimento pode ser caracterizado como uma
“entrada contingente no jogo”. A individualidade
ou as credenciais de um indivíduo em um jogo o
coloca em direta situação de sensibilidade aos
débitos resultantes da vitória ou derrota sofrida
naquele jogo. Essa sensibilidade é clara e não
ensinada, mas é construída artificialmente e
amadurecida através de expressões morais que
começam a ser incluídas no arcabouço da
inteligência dramatúrgica do sujeito30.
Também parte daqui a subsequente
confusão dos antigos teóricos do direito natural
entre moral e direito: para alguns deles o direito
não podia existir em um formato que não
convergisse com a moral. Com efeito, como para
eles o evento de debutante – e de inclusão em um
jogo – é um fato contingente, que não discute as
nuances das condições de rivalidade e poder,
também as emoções e sensações que podem ser
descritas psicológica e moralmente são estados
contingentes e externos que descrevem
teoricamente, como proposições científicas sobre o
“fato humano”, as dívidas e o crédito negociados
30
Quanto mais hábil for um homem no exercício de manobrar
contendas jurídicas, melhor versado nos poderes de
contorcionismo retórico oferecidos pelas expressões morais.
Pois os últimos representam o resultado mais acabado do
financiamento metafísico de legitimidade para os jogos.

163
entre os homens na sociedade. A injustiça só seria
possível, portanto, artificialmente: quando os
homens não ouvem sua voz consciente interior. O
direito natural é a mais perfeita expressão da
concepção de que a justiça é o domínio do poder
dentro de um jogo que limita seus lances legítimos.
Essa premissa será retomada pelo rival teórico do
direito natural, o direito positivo, sob novos termos:
a de que esse jogo não é um fato natural, mas
convencional. O importante, contudo, em comum a
ambos, é o modo como envolvem a justiça em
circulo paradoxal, onde é impossível ser injusto a
não ser artificialmente, ou se colocando em posição
de inimigo, exilado das condições de credibilidade
comum aos homens.

& A origem moral e metafísica da ligação


entre poder e legitimidade: as premissas comuns
do positivismo jurídico e do direito natural

No capítulo III, da parte II Do Contrato


Social, Rousseau afirma: “A força é um poder
físico; não vejo de modo algum, que moralidade
pode resultar de seus efeitos”. Apesar da sugestão
implícita de que há certa afinidade entre a
obrigatoriedade de seguir um poder e a moralidade
ligada a ele, Rousseau não desenvolve a
insinuação. Ela é, no entanto, uma sequela da sua
forma de pensar psicológica, que o pressiona a

164
separar o poder do seu efeito, o ligando a um
sujeito que por sua vontade e moral pode escolher
exercê-lo ou não: ele retém a força em sua
potencialidade, como uma energia psíquica abstrata
e virtual.
Voltar-nos-emos a outro filósofo clássico
para continuar a discussão.

& Antropomorfismo e Poder

Nosso exame dos diagnósticos da metafísica


desmascarou o seu elemento acobertador, que atinge sua
maior expressão quando a psicologia (que é um
instrumento da metafísica) cristaliza artificialmente as
tonalidades afetivas que representam possibilidades
vitais de resposta e reação, as diminuindo a meras
encenações de coquete, afetações, melindres e outras
sensações ensinadas por novelas e imitadas até se
tornarem costume. Essa realidade encenada, por sua
vez, representa a radicalidade antropomórfica da nossa
compreensão ôntica do mundo como totalidade dos
entes. Para adaptar os resultados desse exame aos
nossos propósitos, a metafísica é o procedimento de
manutenção do narcisismo que dá apoio à ilusão
conservadora de que não estamos jogando, que existe
um mundo natural anterior à encenação e que
fundamenta a claridade e transparência das regras que
surgem depois, artificialmente. Embora seja uma ilusão,
pois é criada para proteger um campo de
cognoscibilidade imune à crítica, é uma ilusão

165
fundamental. A clareza das regras implica que os
interesses e lances dos homens podem ser previstos por
todos os homens, de modo que um abuso de poder
poderia ser sempre contabilizado ou punido. No limite,
isso alimenta a visão de uma racionalidade que se
movimenta em seu próprio elemento, supervisionando
suas possibilidades de expansão ou retração. Essa é a
ilusão de que a rivalidade é sempre evitável e que os
estados de guerra e de trapaça onde ‘tudo vale’,
inclusive o segredo, a malícia, as táticas sem regra, etc.
são estados primitivos e bárbaros incompatíveis com a
estatura moral do ser humano.

& As formas da encenação: a economia, o


direito e a burocracia

& A Burocracia como um estágio mais


avançado da juridicialização do mundo humano: o
Estado de Direito

O estágio mais crítico desse processo ocorre


quando é necessário exercer poder jurídico sobre
massas, isto é, demografias complexas. Nesse caso, a
juridicialização é completada pela instituição de quadros
administrativos burocráticos cujos compartimentos
qualificados e hierarquias profissionais controlam o
processamento da informação, mantendo focos de
previsibilidade calculável, e exercendo uma dominação

166
jurídica baseada nesse monopólio de segredos
profissionais. Como diz Weber:
Administração burocrática significa: dominação em
virtude de conhecimento; (...). Além da formidável posição de
poder devida ao conhecimento profissional, a burocracia,(...)
tem a tendência de fortalecê-lo ainda mais pelo saber prático
de serviço: o conhecimento de fatos adquirido na execução de
tarefas ou obtido via “documentação”. O conceito burocrático
de ‘segredo oficial’ – (...) – provém dessa pretensão. (2000-9,
p. 147)

Os instrumentos burocráticos de cálculo ou


contabilização que dependem dessa previsibilidade tem
expressão mais rudimentar com termos psicológicos.
Porém, bem entendida, a previsibilidade do outro não é
uma simples característica do comportamento, ou uma
estimativa de lucro de seguradoras, mas sim um
resultado da construção do horizonte de encenação
dramático que individualiza as posições dentro do jogo,
isto é, determina a inteligência de resposta e energia de
indignação, amadurecendo a pulsão política que
corresponde à situação econômica – ou a capacidade
(solidificada ou não em uma estratificação social: como
castas, estamentos ou classes) de planejar a satisfação
de desejos de aquisição ou abastecimento. Do ponto de
vista psicológico, o amadurecimento dessa pulsão
política, adquirida no conflito de forças interativas que
resultam na sedimentação estereotípica das
características dos sujeitos em jogo, produz o efeito de
reconhecimento que a consciência individual cobra do
outro para edificar sua singularidade. Esses sujeitos
agora se enfrentam em um jogo em que um trabalha
para dispor do outro ao torná-lo mais previsível ou

167
“fácil de julgar”31. Nessa atribuição de contabilidade por
meio de instrumentos que coagem o outro a se
conformar a um padrão previsível se encontra a origem
prototípica de uma administração baseada no
nivelamento social: o controle burocrático como forma
de dominação jurídica. Formalmente considerados,
esses instrumentos assumem a forma de mera
documentação, mas essa documentação formal pode ser
complementada materialmente por tecnologias de
identificação – DNA, impressão digital – capazes de
aumentar o domínio burocrático e o nivelamento
humano. A parte material da burocratização, contudo, já
promove um afastamento do estado de direito e, como
veremos, fortalece os fundamentos do justiceirismo, que
é seu avesso: neste se privilegia a condenação sumária,
naquele, os procedimentos e protocolos de julgamento.

& A Burocracia como controle do


vazamento de informações: o monopólio do
segredo pelo Estado

De fato, um corpo burocrático é a expressão


máxima da colocação do outro em posição de
“julgado”. Weber chama a administração
burocrática de “forma mais racional de exercício de
dominação” (p. 145), aludindo ao fato de que nessa
ordem social é possível alcançar o rendimento
técnico máximo em uma administração das massas.
31
Embora a previsibilidade completa do “escravo”
desvalorize o reconhecimento que ele devolve ao senhor –
entendido como o que detém o julgamento.

168
Em outras palavras, a capacidade de contabilizar o
dano e produzir sentenças com probabilidade de
serem obedecidas é elevada a um rendimento
técnico máximo. Essa maximização da ordem não
está separada da sua auto-compreensão como
legítima. A disciplina e a confiabilidade alcançada
pela fixidez das competências funcionais somada à
inércia do seguimento das ordens, permite que a
dominação burocrática nivele a sociedade,
instituindo um regime onde o máximo de
previsibilidade é adquirido. Segundo Weber, “todo
nivelamento social, (...), fomenta a burocracia que,
por toda a parte, é a sombra inescapável da
progressiva ‘democracia das massas’”. (p. 147). O
nivelamento social que ocorre na medida em que a
previsibilidade individual é convertida em traços
contabilizáveis, ou passíveis de cálculo, não é uma
etapa contingente inédita, mas apenas desenvolve o
roteiro da dominação jurídica em um contexto
moderno de administração de massas.
O positivismo jurídico é a expressão
filosófica desse evento de nivelamento jurídico que
faz o indivíduo desaparecer nas teias de sua forma
previsível ou contabilizável, saindo de um mundo
de condenações sumárias direto para um mundo
kafkiano de procedimentos, protocolos e
regulamentos, ou de julgamentos prolongados
indefinidamente. A justiça se torna um problema
cuja solução só pode ser feita por meio de
discussão, e as chances de defesa se tornam mais
importantes que as da acusação, assim como os
estatutos protocolares que encenam a justiça são,
169
nesse contexto, mais importantes do que a força
fatual do fato que condena32. Todos os custos do
estado de direito são instituídos e entre eles o mais
oneroso é ausência de uma base de fundamentação
fatual para a verdade. Em troca é estabelecido um
confronto entre suspeitas, onde uma probabilidade
é periodicamente sobreposta à outra. Nesse estágio
cautelar da justiça, onde a grande vantagem é que
não é preciso temer o arbítrio, a confissão forçada
ou adquirida por armação, a ausência de ceticismo
e o linchamento, é curioso, no entanto, que os
homens estejam condenados a outro cativeiro: o da
indecisão. Esse cativeiro, contudo, não é criado
pelo estado de direito, mas apenas pressuposto por
ele como parte fundamental da condição humana
que acarreta a preferência por sistemas de
julgamento não dogmáticos ou inquisitivos, uma
vez que se aceita a premissa de que não há dedo
jurídico divino.
Podemos perceber aqui que, no intrincado
jogo travado entre acusação e defesa, o vazamento
da informação no decorrer de um processo –
documentos periciais, testemunhos, e todos os
indícios etc – é subvalorizado, ou neutralizado por
cláusulas de discrição e sigilo, e apenas encontram
ocasião de influenciar o fortalecimento
probabilístico de uma suspeita por meio do
contrabalanceamento de estratégias de defesa e
ataque. Dentro do universo cautelar da discrição, a
32

170
dominação, que é sempre uma forma de
antecipação, ou um adiantamento temporal, alcança
um selo de legitimidade na medida em que o
cálculo baseado no nível de previsibilidade do
“subjugado” é feito por meio de um corpo
institucional caracterizado pelo monopólio dos
meios cautelares de contenção do vazamento
informativo: o que é feito através do império da
documentação. Assim, o laço filosófico entre
capacidade de julgar, ou distinguir o verdadeiro do
falso, e o poder alcança, na burocracia, uma nova
expressão: a produção de segredos oficiais. A
metafísica já não é necessária em seu formato
popular visível, como a religião, na medida em que
o Estado assume o monopólio do místico e do
segredo, assumindo a competência pelos ritos
sociais. O mistério metafísico que instituía
legitimidade ao poder antes, agora é assumido pelo
segredo de Estado. A ordem burocrática e seu
esquematismo funcionalista excessivamente formal
estabelecem o horizonte de encenação ou o
contexto de jogo onde as leis jurídicas alcançam
um rendimento máximo de cálculo, se tornando
capaz de dispor das pessoas ou julgá-las, na medida
em que as nivela e permite o esquecimento das
desigualdades específicas de sua situação,
incluindo as desigualdades que se refletiriam em
divergências de aproveitamento econômico.

O Poder para Além do Paradoxo

171
& A Origem psicológica e Metafísica do
paradoxo do poder

Para nossa inteligência majoritariamente


psicológica, onde o outro sempre aparece como um
mistério psíquico independente, cujas
possibilidades de rivalidade não são vistas como
“jogadas”, mas como loucura, psicoses, neuroses,
etc., a correspondente inteligência política só é
possível como classificação do outro/estrangeiro
como “não tolerante”, “não democrático”,
“impassível a diplomacia”, “resistente às leis”,
“arbitrário”, etc. Isso faz com que nossa
Inteligência seja insensível às dinâmicas de poder a
menos que elas sejam expostas como paradoxos:
pelo ponto de vista do rival, o poderoso é ao
mesmo tempo não poderoso, pois ilegítimo, e é
poderoso, pois culpado por sua própria força por
adiar a emancipação de um poder supostamente
legítimo. A rivalidade é assim explicada sempre
como um paradoxo, algo que, para o conservador,
deve ser excluída como “ilegítima” e para o
revolucionário, deve ser excluída como
“trapaceira”. Um exemplo típico desse paradoxo é
encontrado na Inteligência política dos grupos
identitários, que acusam o opressor de ter chegado
a se exercer apenas através de trapaças, truques,
manobras moralmente execráveis, como a
escravidão ou o uso de armas desumanas.

172
Nosso propósito nesse capítulo é tentar
explicar o poder fora desse paradoxo. E nossa linha
de estratégia será identificar a origem do paradoxo
para explorar saídas a ele. Isso equivale a
identificar a psicologia e o modo metafísico de
pensar como o sintoma patológico fundamental
dessa inteligência paradoxal. Os primeiros passos
dessa explicação já foram dados. Resta agora
organizá-los em uma resposta melhor
contextualizada. Nem conservador e nem
revolucionários são capazes de entender a
rivalidade fora da dimensão do paradoxo, e isso se
deve à sequela da metafísica e da psicologia sobre
o seu modo de pensar. Para eles, não há opção para
o diálogo senão excluir aquele que “não sabe
falar”: para uns, o fascista, para outros, o
incivilizado.

& Poder, privilégio e sua conexão com a


psicologia

Certa inteligência utópica define o poder


por um ideal de liberdade que vem sendo
aperfeiçoado desde os gregos até o iluminismo, e
que continua sendo o pilar do Direito até aonde
chegam os tentáculos metafísicos de nossa cultura.
Privilégio do poderoso, aqui, significa a capacidade
de dar um sentido teológico para o desespero da
finitude. É o privilégio de confiar nas leis e

173
pressupor a inocência. A capacidade de questionar
suas próprias ações do ponto de vista do crédito
que as fundamenta, e da universalidade que ela
pressupõe, como ações de um homem entre os
homens, humano entre iguais. Levado a extremos
mais utópicos, esse privilégio significa a
independência das mesquinhas restrições do mundo
social, uma capacidade de se elevar além da
encenação dos interesses vãos. Privilégio é filtrar o
mundo pelo ponto de vista de sua própria
mitologia, sua capacidade de ver a história pelo
ponto de vista da própria retrospectiva.
Esse ponto de vista está tão incrustado no
nosso modo de pensar psicológico – e metafísico –
que é difícil imaginar uma forma de poder que não
se encaixe nesse modelo. No entanto, também a
quem pensa de maneira psicológica está disponível
outra forma de inteligência do poder. O poderoso
pensa que a sua condição de poder não acarreta
privilégio algum, que é a sua condição psicológica,
o que ele é mais intimamente, em sua psique, que o
torna merecedor do poder. A estrutura do jogo lhe é
indiferente: ele se confunde tão intimamente com o
poder através de sua inteligência psicológica, que
pensa que seria vencedor, de novo e de novo, se o
fizessem jogar o jogo novamente. Se voltasse às
competições do passado, novamente os Neandertais
seriam suplantados, e os carteginenses derrotados.
Essa cronologia das ilusões humanas de liberdade e
inevitabilidade de sua história apenas ensina que
todo o privilégio é fundado sobre um grande
castelo de cartas logocêntrico, uma incapacidade de
174
rir e satirizar a própria condição, e uma crença
absolutamente séria em sua própria versão da
existência. A falta de ironia do mundo do poder
tem sido o elemento mais forte na fundação de seu
privilégio. É essa disposição de espírito que desvia
os olhos do poderoso de suas limitações, de seus
defeitos, e torna o mundo algo que ele assume sem
crítica: um produto de sua transcendência, como se
sua experiência não pudesse, de fato, ensiná-lo algo
de errado ou enganoso. É como se o engano fosse
uma prerrogativa do outro, do bárbaro ou infiel.
O foco da identidade social do poder se
difunde dessa maneira em um todo impessoal e
invisível, algo que o poderoso é incapaz de
questionar e construir por si mesmo. Os
privilegiados que falam pelo lado do poder não
incorporam nada de especial: eles são a própria
humanidade, assumem a dívida por toda a
existência. O homem branco europeu habita até
mesmo a norma gramatical com mais presença, o
masculino, o branco, parece pertencer ao indivíduo
que dispensa justificação, que existe independente,
como a forma dominante de capitalizar
simbolicamente a energia e o significado da
identidade psicológica do “humano”. Assim, para
aqueles que têm a prerrogativa de ser “mais
humanos que os outros humanos”, a capitalização
da potência social deveria ser idêntica à sua
formulação psicológica como “eu”, cuja expressão
acaba se confundindo com a própria espécie, como
a assinatura da humanidade. O privilégio deriva do
poder, portanto, como um fato metafísico com
175
consequências psicológicas. Não é um fato
contingente que privilegia o homem branco
europeu. É a própria racionalidade desse poder,
metafisicamente construída, que não permite que
ele se veja como possível perdedor, e sequer como
possível jogador. Ele se vê como “sujeito”,
protagonista de certa dramaturgia, na medida
mesma em que a encena. Como ele se mistura e
confunde com a cultura humana em geral, o seu
fracasso não é contado como fracasso individual
contingente, mas misturado a um problema
universal humano, ditado pela religião ou pela
filosofia como a sua limitação espiritual: sua
finitude, que dramatiza e romantiza sua
individualidade até afirmá-la como subjetividade
em sentido histórico. Eles olham para o destino e
para os deuses, invejando a imortalidade, enquanto
os meros jogadores olham uns para os outros com
cobiça, se admirando e se invejando, tudo ao
mesmo tempo: o louvor e o ódio andando juntos.

& As manobras de exceção do Direito


através da fabricação psicológica do “outro”

O efeito da psicologia, cujo princípio motor


elementar é a construção ininterrupta de
instrumentos para descrever as jogadas possíveis
segundo os limites de um “jogador” que existe em
uma dimensão interna inacessível e mesmo alheia

176
ao jogo (uma psique que pensa/intui, uma alma que
avalia moralmente, etc), não é encerrado com a
consolidação romântica do indivíduo como
subjetividade. Esse é apenas seu efeito como
expressão filosófica mais sofisticada. Sua
consequência mais desconcertante e, no entanto,
mais presente no dia a dia de pessoas sem formação
filosófica formal, não é a construção do eu, mas a
construção do outro como a “psique/alma” a que eu
não tenho acesso. Quando o indivíduo x acusa o
indivíduo y de inveja, sua bagagem psicológica o
leva a crer que ele apenas pode identificar essa
inveja no outro por causa de um motivo: pois ele
tem em si mesmo as primícias da mesma sensação,
seja em semente, seja em ato. A psicologia é um
hábito tão esmagador no cotidiano de nossa
existência que x apenas pode entender o sentimento
de inveja como algo que pertence a um eu
entendido como “universo inacessível” a um outro,
o que nos lembra também que o próprio conceito
psicológico de “eu” é realmente uma farsa
metafísica que apenas faz sentido no cotidiano de
jogo quando pensado como “outro” ou rival para
“outro”.
Na verdade, o que chamamos de inveja,
ciúmes, possissividade, etc., são possibilidades
acessíveis em uma dramaturgia, um jogo onde
jogadas implicam riscos, jogadas compreensíveis
justamente porque não pertencem a ninguém de
maneira a priori, e são deslocados sobre um ou
outro lado da negociação por mecânicas metafísicas
que, no dia a dia, tem sua expressão como
177
dinâmicas de poder: formas de fortalecer e
enfraquecer um ou o outro lado. O lado mais fraco,
naturalmente, é o que fica com a posse da “inveja”,
enquanto a mesma jogada, feita pelo lado mais
forte, aparece nos documentos de posse
psicológicos com nomes mais indulgentes: audácia,
ambição.
O Direito, entendido não apenas como
conjunto de normas, mas como o espaço da
negociação da legitimidade das pretensões, é a
arena final do confronto entre as criações da
psicologia: o eu (entendido como “outro” para seus
rivais) e o outro. Não é a primeira vez que a
presunção cega contemporânea define a si mesma
por referência ao atraso do passado e, portanto, a
ninguém deveria surpreender que o nosso chamado
estado de direito defina a si mesmo como uma
inteligência jurídica amadurecida e superior ao
passado inquisitório dos tribunais movidos por
motivações religiosas ou políticas. No entanto, a
própria ideia de estado de direito não passa de uma
retórica vazia, tanto como a democracia, que se
metamorfoseiam semanticamente justamente para
ajudar a polarização entre eu e o outro: o outro, que
antes era o “não civilizado” (ou infiel, não temente
a Deus, etc), entra com um disfarce semântico
atualizado como o “não democrático”. O que
existiria de vantajoso em um sistema jurídico capaz
de suplantar técnicas de inquisição medievais, a
saber, eliminar a polarização psicológica entre eu e
outro, e entendê-los alternativamente como
possibilidades de rivalidade em jogo, não é atingido
178
como objetivo enquanto o hábito psicológico – e
metafísico – permanece incontestado e confortável.
Assim, quer seja na Inquisição Espanhola,
quer seja no suposto Estado de Direito moderno, a
desconfiança, que é a expressão psicológica de um
motor patológico tonal referente à abordagem mais
elementar do “outro”, encontram meios linguísticos
de se expressar que não se deixam limitar por um
ou alternativos disfarces semânticos. Bruxas eram
queimadas na Idade Média pelo Direito tanto
quanto desafiantes políticos são condenados pelo
Direito, hoje. Mesmo o princípio da inocência, que
no papel é uma das mais fascinantes expressões de
inteligência jurídica, sem a eliminação dos hábitos
psicológicos é também uma figura de retórica
obsoleta. Porque o que caracteriza as chances de
resposta dentro de uma negociação jurídica
depende, hoje, do modo como entendemos os
sujeitos da fala, dentro de um espectro de
possibilidades de rivalidade. E como a psicologia
vulgar não pode discutir o rival senão como uma
“entidade misteriosa”, um “conteúdo mental
privado”, que é entendida também como uma
aporia filosófica tratada com espalhafato por
filósofos respeitáveis como J. Austin, nessa
dimensão a defesa jurídica não consegue falar com
a voz da “presunção de inocência”. O preço da
confiança e da inocência foi cotado por dinâmicas
de poder que o Direito, graças à psicologia,
esconde.

179
Esse processo é parcialmente sorrateiro,
mas a metafísica e a psicologia não podem se
esconder sempre. As manobras de exceção
adotadas por países em épocas de guerra não são
senão formulações literais de estratégias que a
desconfiança traça, mesmo quando a guerra não é
expressamente declarada, isto é, durante o domínio
do Direito. Como a exceção é uma medida de
emergência, a sua condição não é a declaração
formal da guerra, mas sim a medida de emergência
que foi criada artificialmente. E essa criação é
justamente psicológica: a ansiedade, o medo, a
intolerância, nascem de diferentes dosagens de
inclusão do não familiar no cotidiano do indivíduo.
E essa inclusão depende da fabricação psicológica
do conceito de “outro”, que ocorre como aporia no
universo da compreensão filosófica33, e como
paradoxo no universo do poder político que se rege
pelo conceito de “legitimidade”.

& O poder como poder em Jogo: a


encenação como forma de candidatura a uma
posição de poder

Quando pensamos em um cenário de


rivalidade em que o sucesso e o fracasso, a vitória e

33
A aporia é descrita pela pergunta: existem outras mentes?

180
a derrota, não é corrigível ou passível de revisão,
nossa linguagem tenta refletir nesse pensamento
uma distinção especial e sempre presente: a entre
um jogo e a vida real. Na vida real, se perde ou se
ganha sem recurso ou indenização. Em um jogo,
nos parece, é sempre possível agir conforme
truques, baseados nas regras, no pontuamento, na
dissimulação, de modo que o vencedor sempre
aparece sob uma luz mais ou menos frágil, como
mero “pontuador”. O jogador usa seus recursos
para explorar as regras, estimando os custos da
infração, e usando os pontos a seu favor para
extrair uma vitória. Também podemos exprimir
esse pensamento com o conceito de que em um
cenário da “vida real” os resultados não são
passíveis de julgamento. Introduziremos a ideia de
julgamento de Kant para ajudar essa discussão. A
faculdade de julgar, tal como enunciada por Kant
na Crítica da Razão Pura, engloba tanto a
formulação de proposições, como a construção de
raciocínios (A 304/B 361), e “não pode ser
derivada de nenhuma outra faculdade”
(A133/B172). Por isso “podemos reduzir todos os
atos do entendimento a juízos” (A69/B94). Ele é o
ato de subsumir intuições sob conceitos. Para falar
com certa liberdade, o juízo submete os fatos a um
tribunal: os dados são colocados em um contexto
de discussão. Esse momento de exposição
especulativa depende, contudo, de certa operação
globalizante que pressupõe uma visão de sobrevoo.
Podemos continuar nossa exposição,
subsequentemente, entendendo o juízo como o

181
exercício que permite discutir os resultados do jogo
a partir da perspectiva de um não-membro do jogo.
Os juízes de esportes exemplificam esse caso; para
todos os efeitos, eles não estão envolvidos nos
mesmos projetos e ambições de vitória que os
demais.
Assim, a apelação tardia e a justificação,
entre outras formas de visão judicativa dos
resultados do jogo, não pertencem propriamente a
um horizonte da “vida real”. A “vida real” é o
termo usado para dar expressão à dimensão que não
pode ser julgada. Nela tampouco é possível a
trapaça, em sentido estrito, pois não existe um
critério de legitimidade inteligível: a justiça divina
ou natural, se é que pode ser chamada de justiça,
não é cognoscível. Qualquer meio de conseguir a
vitória tem força de se exercer nessa situação
prototípica. O abuso também perde o sentido. Não
há limites para o poder. Poderíamos tentar
exemplificar um caso de “vida real” característico
com o exemplo da guerra, uma vez que nesta “tudo
vale”. Podemos desenvolver essa reflexão através
do conceito de ‘poder’ a que já temos acesso até
aqui. Com efeito, o poder é uma posição de
superioridade conquistada ou estabilizada em um
contexto de rivalidade. Uma definição
complementar, derivada da definição de dominação
de Weber: exercer poder é determinado pela
probabilidade de ser obedecido. Tomemos o poder
como algo que só existe em ato, em exercício, e
não como algo que pertence ao domínio das posses
e das justificações. Essa hipótese é chamada por
182
Foucault de “hipótese de Nietzsche” 34. Trocando
em miúdos, essa hipótese sugere que o poder não é
algo que se pode deter, trocar ou alienar, ou
escolher ter, ou não ter, em nome de uma
justificativa moral ou uma discussão da
consciência. Nenhum tribunal tem jurisdição sobre
o poder e os negócios de poder. Por isso a
separação artificial, e construída psicologicamente,
entre governo que se exerce pela força e governo
legítimo. Ignorando essa distinção artificial, temos
o mesmo resultado almejado acima para nosso
conceito de ‘vida real’: uma posição de poder é
sempre conquistada em um horizonte onde “tudo
vale”. Isso confirma a opinião de Michel Foucault
na obra Em Defesa da Sociedade, de que o “poder é
a guerra, é a guerra continuada por outros meios”
(p.22).
Naturalmente, mesmo a guerra é apenas
uma aproximação conveniente para exemplificar o
que mais perto improvisamos para uma visão do
horizonte completo de uma ‘vida real’. O que
chamamos de ‘vida real’ é sempre uma
aproximação desenhada pelas linhas de uma
perspectiva metafísica. Para todos os efeitos,
nossos mecanismos retóricos e metafísicos de
correção e delineamento de perspectivas estão
presentes em todas as facetas da vida, e mesmo a
guerra é preenchida de perspectivas de apelação,
recorrência, correção e dispositivos pré-jurídicos
que regulam os limites do tolerável, da trapaça, etc.

34
Ver Em Defesa da Sociedade, 2005, p. 24.

183
A possibilidade de “julgar” os resultados do jogo,
ou instituir juízes, pertence a um estágio ulterior da
nossa convivência social, mas não depende
integralmente da instituição de instrumentos
jurídicos sofisticados como um conjunto de leis
promulgadas e regras de reconhecimento. A guerra
é um bom exemplo, porque nela a todo momento
somos confrontados com julgamentos. Um soldado
não se sente “livre para fazer história”, como se
todos os seus atos tivessem a violência da
incorrigibilidade. A rigor, não é porque um soldado
se abstém de usar seu poder (por exemplo, tendo
um refém ou dispondo de civis rendidos em um
Estado conquistado) em algum momento da batalha
que ele instaura, de improviso, um análogo do
estado civil, onde para toda ação é possível uma
revisão e sua atividade carece de uma justificação,
seja aqui da consciência, da razão, ou das
instituições que julgam crimes de guerra. Pois essa
abstinência não faz diferença alguma do ponto de
vista do jogo: o perdedor e o vencedor e, logo, a
história, acontecem a despeito dele, tendo por
referência apenas a concorrência ou o outro. O que
a filosofia aprendeu com o conceito de “jogo”
através de Wittgenstein é que rejeitar a
participação no jogar em nome de um ideal de
incorrigibilidade filosófico – a mente, o mundo
exterior, etc. – é apenas uma faceta mesma do
“jogar”: no interior deste, tudo permanece
discutível, passível de concorrência, e é a presença
do outro a única referência para o sucesso ou
derrota.

184
Voltando ao ponto de vista do poder, isso
significa que mesmo o cristão mais devoto não
pode senão exercer poder sobre seu algoz quando
dá a cara à tapa; seu ato de humildade é ainda um
lance de poder, que será contabilizado na
estimativa final dos vencedores e derrotados. É
porque a nossa sensibilidade, como indivíduos
inseridos em um jogo, não pode sacrificar
completamente uma forma de delinear os contornos
do jogo, lhe dando uma aparência jurídica, isto é,
conforme regras, por isso é que mesmo a guerra
não constitui um exemplo perfeito de ‘vida real’,
que, no sentido radical aqui entendido, é uma mera
figura de retórica, embora inevitável.
Mas se isso é assim, é preciso refletir
novamente sobre o enunciado de Foucault, de que
“o poder político é uma guerra silenciosa” (p. 22).
Antes de tudo, se entendermos o silêncio como um
palco de segredos e táticas, espionagem, etc., já
criamos um cenário onde o exercício do poder é
dissolvido em formas de comercialização
comunicativa, onde ele é experimentado no jogo,
isto é, onde o poder não existe apenas em ato (vida
real), mas em cada uma de suas possibilidades de
ameaça e nas formas de intimidação encorajadas
pelo controle e obscurecimento da informação. O
segredo não é um privilégio místico, nem um
acesso epistemológico elitizado, mas sim uma
forma de criar confusão, conquistar preeminência,
adiantamento, sobre os adversários. Portanto, a
“guerra silenciosa” de Foucault já não é parte da
‘vida real’. É o jogo mesmo. Houve de fato o
185
deslocamento de uma situação radical para outra de
“brincadeira”, embora a falta de gravidade incluída
na ludicidade do “brincar” seja um aspecto
fundamental da completa desesperança, sentida
pelos jogadores, de verem uma saída real, como
seria o bálsamo da morte. Onde a “vida real”
oferece uma esperança de conclusão final, a
ludicidade dos jogos fecha o horizonte dos
jogadores e os abandona à completa desesperança:
não há nada que possam fazer que não seja
contabilizado e interpretável como “tática”,
“estratégia”, “truques”, etc. A mentalidade
filosófica clássica, nesse caso, já poderia acusar os
envolvidos de apenas “jogar”. O moralista também
poderia acusá-los de serem maliciosos e prudentes
jogadores. Mas mesmo esses não conseguem
escapar de serem interpretados como
“estrategistas”: suas manobras tem influência direta
sobre o jogo. A “saída” se torna inacessível: o além
já foi decodificado pela metafísica e a moral e
apresenta o suicídio como uma saída covarde,
castigada no inferno. Aquele que joga não tem
sequer a opção do suicídio, pois o “além”
permanece um mistério, e o mistério é o
mecanismo mesmo pelo qual o que fica “fora” do
jogo adquire um caráter de “jogada” (lance). Os
homens sagrados que se ocupam de mistérios
tornam acessível para si a possibilidade de jogar
com as possibilidades do além: acreditar, duvidar, e
mesmo interagir com ele. A tarefa da metafísica
muitas vezes se confunde com essa meta.

186
Por outro lado, o espírito da afirmação de
Foucault permanece importante: ele sugere que não
importa como julguemos o certo e o errado quando
nos engajamos em trocas e comércios permitidos
em um estado político. Não importa, porque
qualquer que seja o sacrifício de poder que
achamos ter feito a um soberano ou a um corpo
representativo aparentemente legítimo, nossas
ações não deixam de carregar o peso de uma guerra
direta e inevitável que significa que os lados não
podem deixar de contestar o poder um do outro em
cada uma de suas ações (não importando quão
humildes e desinteressados se auto-proclamam).
Isso não é assim porque entramos na esfera de uma
“vida real”, contra as brincadeiras do
academicismo ou as convenções do estado
burocrático. Mas sim porque a discutibilidade do
poder não é esgotável. Isso se pode descrever pelo
enunciado de que o poder está sempre em risco. A
possibilidade de “jogar” com o poder é, portanto,
parte fundamental da própria estrutura que distribui
o poder. Não existe poder fora de um jogo onde o
risco de perdê-lo se torna visível. Veremos no
seguimento que o “risco” é o modo pelo qual o
jogador que encena um personagem previsível se
torna cativado à sua previsibilidade, que se reflete
em sua reputação, e tem em sua previdência
financeira uma expressão econômica característica.
Gadamer assim se expressa sobre os riscos que
cativam a encenação subjetiva em um mundo de
interação fechado:

187
...onde se trata da subjetividade humana
que se comporta ludicamente, o primado do
jogo sobre os jogadores que o executam acaba
sendo experimentado pelos próprios jogadores
de uma forma muito especial (...). (...)
costumamos dizer que alguém joga com
possibilidades ou com planos. (...). Este não se
fixou tanto em tais possibilidades como em
metas mais sérias. Por outro lado, essa liberdade
não está livre de riscos. O atrativo que o jogo
exerce sobre o jogador reside exatamente nesse
risco. (Gadamer, 2008, p. 158)

Isso significa que o mundo lúdico e


artificial onde são encenados os dramas humanos
tem por característica própria cativar a perspectiva
dos envolvidos em uma espiral onde nenhum juízo
escapa de ser julgado, isto é, onde a discutibilidade
é uma constante, e o “risco” é o ponto onde o
lúdico se encontra com o “sério”. O termo
“kafkiano” tem potencial figurativo e retórico para
representar esse tipo de cativeiro, que encontra no
domínio da burocracia sua expressão cotidiana.

A Condição Humana e o Direito

& Os mal-entendidos na discussão entre o


Direito Natural e o Direito Positivo: a
coincidência entre legitimidade e concretização
histórica

188
Conclui-se das premissas de Locke e
Rousseau que o poder é algo adquirido sobre
alguém que perturba o jogo, que se declara acima
às regras do jogo, que usa as regras do jogo apenas
para benefício próprio ou segundo interesses
unilaterais. São as características de “outro”, como
abusador, alienado de razão, etc., que caracterizam
a invalidade do poder e justificam o uso de uma
força de oposição como uso legítimo de força. Isso
é válido para o transgressor que ameaça de morte
alguém para lhe usurpar, tanto quanto para o tirano
que cobra de seus súditos mais do que esses lhe
devem. De forma que o estado de poder
momentâneo de um ladrão ou de um tirano, porque
ilegítimo, não é, segundo essas premissas,
realmente poderoso. Ele esgota suas opções
estratégicas se expondo ao uso da força legitimada
contra ele. A própria dinâmica da luta entre os
homens irá retirar dele o poder, na medida em que
a proteção subjetiva inveterada que ele faz desse
poder – o abrigando em um ponto de vista privado
– o enfraquece.
Essa concepção tradicional pode ser
encontrada na intuição comum da sociedade. O seu
funcionamento como sistema de crédito
comunitário depende de que se possa cobrar quem
abusa dessa poupança. Mas a origem dessa intuição
popular está bem documentada pela filosofia. As
características que definem o “poder legítimo”
correspondem a uma sintonia tonal do poder com

189
sua oportunidade vital, que faria do poder algo de
poderoso simplesmente pelo seu exercício: elas não
são características criadas artificialmente pela
psicologia, que dá ao poder um sujeito e avalia a
legitimidade do poder pelas características formais
morais-subjetivas desse sujeito ou dos traços
externos dessas características.
Desse modo podemos ver como o que é
legítimo no poder já está presente na racionalidade
de um estágio aparentemente natural, onde o
conflito entre os homens cria as bases
dramatúrgicas para que eles renunciem ao refúgio
covarde de seu ponto de vista da validação interno,
e cobrem ao outro o reconhecimento. A discussão
entre o Direito Natural e o Positivo perde de vista o
fato de que ambos enfatizam aspectos diferentes da
mesma característica do Direito, que se completam:
pois a legitimidade racional da lei que encontra
obediência consensual dos interagentes sociais que
negociam seus interesses, os moderando
moralmente, não é incompatível, mas sim
coemergente, com sua expressão como poder de ser
obedecida pela letra, tal como manifestada nos ritos
do direito positivo. O reconhecimento do rito
positivo não é um fato empírico gratuito,
suplementado por uma ficção ideológica externa
fabricada por intelectuais ou marketeiros. O que há
de ideológico é a força de naturalidade que uma lei
ganha ao ser vivida no interior do sujeito como
moralidade ou dever inegociável, mas isso não é
uma intervenção do exterior, e sim parte do
processo de negociação do reconhecimento e da
190
exclusão do abuso e da violência. A lei positiva
aparece então como soberana porque ela dá
expressão à uma autoconsciência do limite de
tolerância que distingue o sucesso do abuso,
suplementando o rigor de um Estado de Direito,
isto é, onde a violência não tem força de
efetividade contratual.

As regras arbitrárias do jogo positivo


somente ganham o status de ritos históricos
absolutos quando uma imagem de humanidade é
expressa através dos projetos estratégicos desse
jogo. Surgem assim crimes que não são meramente
positivos, mas crimes contra a humanidade. Nesse
momento, algumas regras se tornam tabus, - o
incesto – e vazam inclusive para a categoria de
crimes de guerra – a tortura – porque coincidem
com uma linha de universalidade humana que tem
de ser respeitada para manter a prática concreta
prenhe de sentido. Por outro lado, a moralidade
subjetiva que se coloca uma meta de valor, este
independente da concretização positiva da força de
reconhecimento, também perderia sua força de
Direito.

& O Direito Natural e Positivo como


petições de princípio para pressupor a resposta ao
problema histórico

191
Podemos retirar duas lições do mal
entendido do conflito entre direito natural e
positivo. O erro de ambos é tentar explicar os
aspectos enfatizados pelo outro os reduzindo a si
mesmos. O resultado é que o direito positivo não
consegue afastar a capacidade da violência como
forma de criação da legitimidade, onde a
legitimidade é improvisada externamente através
de um pedigree, e o direito natural, na violência
dos atos humanos concretos em conflito no estado
de natureza como forma de criação das soluções
convencionais concretas dos estatutos e ritos. Na
tentativa de encontrar o que Weber chamou de
“swichman for the tracks along with interests can
be combined with ideas in a legitimate order”35,
tanto o direito natural quanto o positivo
pressupõem a resposta do problema antes de
problematizá-lo. O erro é que o sentido do direito,
o conteúdo objetivo do rito, é improvisado através
de uma imagem de sujeito, de humano. A
abordagem do sociólogo é instrutiva, aqui. O
sociólogo que pretende explicar a estabilidade
social garantida por uma ordem normativa, como
Weber, tem de lidar com uma dimensão de
observação que não é nem meramente fatual – o
fato da lei positiva – e nem meramente ideal – o
fato de uma especulação hipotética sobre o que
deve ser feito para estabilizar a integração social.
Ele não tem alternativa, senão observar
cautelosamente a própria noção de integralidade e

35
Habermas, 1986, p. 194.

192
estabilidade histórica que estabelece a coincidência
entre o concreto e o ideal.
O problema, portanto, deve ser distanciado
da discussão entre essas escolas. Ambas
encontraram substitutos fabulosos para o problema
da estabilidade social e histórica. Ambas viram o
Direito como a presença institucional correlata à
estabilidade social. Dessa maneira, se permitiram
continuar na discussão através de um artifício. A
instabilidade social se reflete em fatos que não
pertencem ao direito, ou fatos de violência e
exceção, de segredo e conspiração. A
impossibilidade de uma violência estável mostra o
caminho para a solução do problema. Uma lei
legítima (segundo um valor moral) e uma lei
poderosa (um rito convencional) coincidem porque
o abuso ou desvio à letra da lei coincide com o seu
enfraquecimento. Para aqueles que precisam
esperar o apoio da vitória para se convencerem de
uma força, essa coincidência daria evidências do
triunfo da violência, maturando o mito do herói
violento mas justo, que sempre reaparece no
fascismo. Esse mito se baseia na impressão da
convergência entre violência e Direito.
A dimensão da probabilidade especulativa e
abstrata do valor moral subjetivo acredita que as
interações humanas podem ser dês-racionalizadas,
e podemos procurar sua razão em uma ficção
fabricada de legitimidade independente capaz de
solucionar conflitos. Isso seria como achar que
problemas históricos podem ser resolvidos pela

193
perspectiva de uma solução exógena, uma
substituição improvisada da justiça, um ideal
retirado da fisiologia natural ou de uma ideia
abstrata de humano e sujeito. Basta refletir sobre o
dilema: valeria trocar a moral pela eficiência, a
justiça pelo resultado, decidir a história por um
projeto, voltando no tempo para matar Hitler no
berço? Pelo ponto de vista da moralidade subjetiva,
sim. Mas isso incorre no mal entendido que supõe
que a realidade positiva do direito pode ser
improvisada em abstrato, fora da história.

& A Solução

A recomendação do adestrador é instrutiva: ele


pretende resgatar a racionalidade comunicativa não
onde ela é mais superficial e paliativa, mas no seu cerne
essencial mesmo, isto é, na dimensão do poder
negociado. Essa dimensão, naturalmente, não é nem
biológica e nem psicológica. O desentendimento é
sempre ideológico, isto é, se baseia no coroamento
artificial de uma razão, na medida em que envolve uma
194
acusação de “pseudo-sentido” ao outro. Naturalmente,
essa acusação envolve a subsequente materialização
dessa premissa de superioridade racional em uma
filosofia, que desenvolve não apenas as condições de
sua incomensurabilidade com outros paradigmas, mas
também o ceticismo ideológico que permite duvidar do
“entendimento do outro” ou mesmo da existência da
outra mente. Isso mostra que sua “desumanidade” é
uma condição meramente política, que é flexibilizada a
cada vez que se exige de um “não-humano” uma
resposta; mas que é impedida ideologicamente – através
de doutrinas sobre o humano – de evoluir até a inclusão
democrática do não humano na lei. Mas a ideologia
tampouco é uma coisa firme anexada em paralelo a uma
razão eterna. Ela é um modelo atomizado de razão
destacado pelo seu potencial disciplinador e pedagógico
e que, por isso, oportuniza a formação de reações
automatizadas, capazes de degenerar até a
irracionalidade e o vazio completo de sentido.

Por exemplo, hoje não se pode falar em


sociedade sem colocar em questão o nível de seu ideal
democrático. Em outras palavras, a existência social
implica em si a sua dependência com a racionalidade
dos dispositivos institucionais que estruturam a
convergência dos humanos (que integram esse Estado)
com uma imagem da humanidade em que eles se
reconhecem. O Direito humano tampouco pode ser
imposto de fora, como um código positivo ou um
ensinamento alienígena; é o homem que fala em defesa

195
de sua própria humanidade que realiza o Direito a cada
vez. Se essa fala não encontra reflexo discursivo, não
tem poder de pressão e nem inclusão, como acontece
frequentemente graças à desigualdade social, isso não
pode ser resolvido externamente por um decreto ou por
um catálogo humanitário de fachada emprestado da
revolução francesa.

Vemos aqui como a existência de sociedades


modernas implica o aparecimento da discussão sobre a
medida de inclusão democrática que garante a
identidade do humano com uma imagem de humanidade
em que ele se reconhece. Essa representatividade
baseada no reconhecimento, portanto, não está
disponível à intuição através de uma matéria. A unidade
social de um fato não é medida através de um meio
homogêneo: uma matéria moral disponível à
investigação, ou uma ideologia da classe produtiva que
pode ser decifrada à parte de seu contexto humano.
Tampouco há uma propriedade “histórica” que pode ser
anexada às coisas sociais atemporalmente para
autenticá-las. Uma coisa é histórica apenas quando o
modo de ser problematizada criticamente envolve uma
tomada de posição temporal que sempre envolve
selecionar a sua época, o nível de retrocesso ou seu
potencial progressista. Esta apenas entra no interior do
discurso sociológico quando esse a problematiza
historicamente, isto é, pela perspectiva política que a
apoia ou a ela se opõe, julgando já a sua legitimidade na
medida mesma em que a compreende. A hermenêutica é
aqui sempre mesclada à forma do reconhecimento
político que permite que a teleologia antiga seja
substituída por um posicionamento histórico que veicule
o “dever-ser” em seu próprio projeto interpretativo
defensivo.

196
Pré-legitimidade do Poder: a origem
das possibilidades de negociação
O Problema do Paradigma que liga poder e
legitimidade

Vimos acima como a psicologia, a metafísica e


a moral estão entrosadas na construção de um ideal
político onde a legitimidade sempre está em questão
onde está em questão o poder. No interior desse
paradigma, que coincide com um ideal civilizatório
tipicamente eurocêntrico, o inimigo e o outro são
tratados como “abusadores do poder” e não como donos
de um poder rival. A competitividade é, assim,
eliminada da compreensão. O que exorbita a esfera do
direito e da legitimidade é visto como trapaça, abuso, ou
simples rebeldia, mas nunca como rivalidade legítima.
Essa tradição sofre com uma primeira dificuldade: como
podem explicar o poder ilegítimo, se esse é mais do que
uma simples combinação semântica que lhes desagrada?
O paradigma eurocêntrico não tem os instrumentos para
colocar em foco como um poder pode enfrentar outro,
como adquire gradualmente mais pontos de
legitimidade, e como esta – a legitimidade – também é
construída no histórico de enfrentamentos entre poderes
rivais. Seu principal defeito é pressupor que a
legitimidade é associada ao poder a priori, independente
do jogo em que este poder é disputado.

197
& Esboço de uma descrição não psicológica da
transmissão, passagem e aquisição de poder

Alguém que observa uma briga de fora, tendo a


responsabilidade de separá-la e corrigir o culpado, tem o
instinto de, por seu discernimento, descobrir quem foi o
primeiro agressor. Assim, uma criança brigando com
seu irmão esboça a sua absolvição diante do pai,
apontando ao irmão e dizendo: “ele foi quem começou”.
A criança acredita sem desonestidade ou malícia que o
outro esteve sem interrupção abusando do controle do
tempo, e ela, ali parada, descansada, só se levantou do
seu lugar de paz e certeza graças à iniciativa
perturbadora do outro. Mas não basta aplicar os olhos
morais para decidir quem estava certo e quem estava
errado. Não é suficiente apontar para uma informação a
mais, algum segredo ou fato contingente escondido, que
decidiria o certo e errado. A psicologia pressupõe que as
disputas poderiam ser decididas simplesmente
apontando a um sujeito e identificando se, pelo grau de
sua moralidade, ele é o detentor legítimo do poder ou
não. Mas isso é supor que o poder é de um ou outro lado
antes mesmo da disputa, antes do jogo.

No caso da briga entre irmãos, a experiência


pessoal de cada lado tem sua própria energia sensível,
seu tônus afetivo, que abastece os seus desvios de
retórica e adapta a descrição do evento ao molde de sua
perspectiva, colocando a si mesmo como o foco pacífico
e o outro como perturbador. Essa capacidade de
construir ideologicamente sua estabilidade histórica, sua
inércia reacionária, ou o peso de concreto, que apenas

198
balança sob a influência dos ventos da violência, é uma
das primeiras formas de traçar a diferença entre o bem e
o mal, o pacífico e o agressor, o justo e o injusto. Ele
decorre da energia vital colocada em negociação, e é
pré-psicológica, embora implique uma incipiente
compreensão do eu como não-outro e, portanto,
contenha a semente que será aproveitada posteriormente
pela metafísica. É um artifício que envolve nossa
capacidade de dizer “não estou brincando”, “tenho mais
investimento do que o outro nessa questão”, “tenho
mais seriedade/mais a perder”, enquanto ele “apenas
joga jogos”. Estar do lado do primeiro polo de cada par
significa conter o poder, o direito, o selo e assinatura
que o dispensa de prova e garante sua justificação. E
isso sugere que o que se entende por poder é uma
posição de distância, uma iniciativa de quem alcança o
“fora do jogo”.

Quando se teve a ideia de derivar o poder


político das formas de autoridade e legítima intervenção
já instituídas em um estado natural, pode-se especular
que os autores construíam, talvez distraidamente, uma
versão preliminar do funcionamento distributivo do
poder dentro das possibilidades de negociação humanas.
Um homem consegue poder sobre outro quando, sem
perturbações vingativas, revida “de acordo com os
ditames da razão calma e da consciência, o que esteja
em proporção com a transgressão, isto é, tanto quanto
possa servir de reparação e restrição” (Locke, Livro II,
cap. 2, 8)36. Essa calma do poderoso é a sua
36
Em Dois Tratados Sobre o Governo, a tese de Locke é a de
que existem falhas nítidas que levam a sociedade civil a ser
preferível, mas que já o estado natural revela como o poder
passa de homem para homem, ou em que medida ele habita
um ou outro homem correspondentemente a como ele fala
(arbitra jogadas) pela razão comum que fundamenta o crédito

199
superioridade sobre os desesperados jogadores, sempre
disputando ninharias, se satisfazendo com pontos,
colecionando vitórias. O transgressor é considerado por
referência ao estado que ele perturbou, e ele se expôs ao
poder na medida em que perturbou uma condição de paz
e segurança inicial. Cada homem teria a possibilidade
de dispor do poder e aplicá-lo sobre outro na medida em
que sua condição prevê e abrange a condição deste
outro, que se torna a ele exposto, tornando a aplicação
de correção ou indenização uma ação regular e
impessoal: um ato de justiça, onde um juiz de fora do
jogo aplica a sentença.

O Estado e as leis estão encadeados a essa


forma primitiva de tornar impessoal uma intervenção de
pessoa a pessoa. O estado é a personificação da
impessoalidade. O poder político não é senão uma
versão refinada da distribuição primitiva de direitos de
cobrança dados a qualquer um capaz de calcular dívidas
e estabelecer os limites de tolerância aos caloteiros. Mas
essa capacidade não é uma simples habilidade cognitiva
ou mental/psicológica, e depende da posição que se
ocupa em um jogo, que por sua vez depende da
construção de um tônus vital ou sensibilidade –
entendida não como um fato psicológico ou moral – que
dá inteligência de reação, ou capacidade de resposta a
um rival. Fora de um contexto de reconhecimento
mútuo criado antropomorficamente, não faz sentido
falar em jogo e tampouco em poder
justificado/legitimado. Qualquer negociação humana,
seja civilizada ou em um estado bárbaro, depende da
proteção desse crédito racional da vontade, e qualquer
um que esteja em condições de falar por esse crédito, e

das expectativas pessoais dentro do âmbito das negociações


humanas.

200
agir através dele, é um legítimo detentor do poder de
lance naquela circunstância de jogada especial.

O detentor do poder, ou do direito de


reivindicar a punição do outro, é sempre aquele que
coloniza a sensibilidade dos demais as englobando
dentro das próprias necessidades. Ele tem um tônus
vital dominante. Isso significa dizer que ele capitaliza a
sensibilidade rival. O poderoso é quem teve sua paz
perturbada, portanto, dizer que a sua voz e pedido de
restituição ou indenização tem poder é apenas uma
expressão de um fato que ocorre no interior de um jogo,
não a expressão de uma meta-posição como a de “ter
uma necessidade”. O poderoso pode não ter fome, ou
não tanta fome quanto o homem que se encontra em
situação de rivalidade consigo, mas a sua necessidade
de comer configura-se como mais importante naquele
jogo. A voz universal da sua razão é abastecida de uma
arrogância invisível, e o efeito cego dessa arrogância
permite que a exceção à regra que ele reivindica para si
mesmo assuma um ar de lei: ele se coloca fora do jogo.

A questão sobre o poder de governabilidade


garantida por uma lei é discutida em um campo de
problemas suplementar, a saber, o da legitimidade. E a
legitimidade depende da validação dada por teorias
morais e psicológicas que nomeiam as condições
metafísicas/epistemológicas/morais que colocam
alguém “fora do jogo” como o poderoso. Os grandes
dramas de Shakespeare frequentemente exploram essa
discussão. Em Hamlet, a podridão moral da realeza da
Dinamarca anuncia o enfraquecimento de seu poder.
Sem credibilidade do governo, a legitimidade da lei é
enfraquecida. Comunicar uma lei, ou a capacidade de
criar uma obrigação, exercendo poder, assim, se torna
um exercício que não pode ser descrito sem uma

201
discussão da dramaturgia humana que é fundamental à
questão da governabilidade. A construção de
inteligências dramatúrgicas, por meio de mitologias,
fábulas e outros recursos de descrição moral e
psicológica, é parte de um ritual de encobrimento que
ocidentalmente foi presidido pela metafísica. Essas
construções criam graduações dos limites do humano e
do desumano, estabelecendo os critérios de inclusão e
exclusão social posteriormente refletido na desigualdade
política cristalizada. O poder – entendido juridicamente
(isto é, o poder passível de ser cobrado/responder) –
nasce apenas porque existe uma estrutura de
desigualdade subjacente.

Para selar uma compreensão inicial dessa


estrutura de desigualdade, exploraremos e testaremos a
afirmação de que o poder não é senão a possibilidade de
expor algo ou alguém à sua própria estimativa de
tempo: a pessoa sem poder está à disposição de uma lei
que se afirma como impessoal na medida mesma em
que coloca alguém a sua disposição sem estar a ele
disponível. Um está subordinado à agenda do outro. O
fato da lei ser impessoal lhe imprime o caráter de
poderosa, isto é, o poder apenas age enquanto não se
rebaixa ao oprimido, enquanto não “entra no jogo do
rebaixado”. A impessoalidade, portanto, não é um ideal
filosófico intangível, mas uma marca de superioridade
que não se rebaixa, que não disputa nada com o
oprimido, não está no mesmo jogo que ele. Outras vezes
não é o oprimido, mas o abusador ou opressor que é
colocado “fora do jogo” em posição rebaixada. O estado
de disponibilidade do perdedor (o abusador, opressor,
ou o oprimido) é um efeito do fato de que ele está preso
ao horizonte de tempo do outro. Seus próprios interesses
e ações aparecem como uma perturbação de um estado
de normalidade, ou de paz, como se fosse um

202
transgressor ou um intrometido, alguém que não foi
chamado, de quem ninguém precisa.

& Características do poder decifrados através


do reconhecimento de sua dimensão de Jogo

1. Qualquer que seja o dispositivo político


acionado no exercício de descredibilização
de um poder instituído, ele sempre revela
um interesse implícito no mesmo poder,
mesmo quando a estratégia de
interrogatório é baseada em uma retórica de
humildade e de desapego. Contra Locke,
dizemos, portanto, que se algum processo
retórico foi capaz de sensibilizar a
sociedade, de modo que a faça temer a
perda de sua estabilidade e governabilidade,
não é porque esse processo se ampara na
falta de poder e porque é ilegítimo, mas
justamente porque já catalisa um poder
possível, uma carga de rivalidade. Mesmo a
declaração de guerra, portanto, não é uma
auto-exclusão do universo do direito, mas
uma reivindicação de direito feita no caso
mais extremado. Rousseau percebeu isso ao
mostrar que a inimizade não é uma
condição natural entre particulares,
portanto, o inimigo não é um “alienígena”
distanciado dos aliados por uma
característica contingente e particular como
a de “ter nascido há trezentos kms de
distância” ou com a “cor negra”. Homens

203
não nascem inimigos (e nem assim se
tornam por acidente), mas se encontram
dessa maneira em uma dinâmica de
oposição entre pretensões de direito que, se
não se resolvem através das leis (como
cidadãos em litígio), tem de ser declaradas
em forma de guerra (como soberanias em
litígio). Em ambos os casos, a oposição é
revelada na medida em que pôde alcançar a
sensibilidade do oponente através de uma
assinatura política legítima, isto é, uma
razão37.
2. Se uma reivindicação contra o poder
chegou a ser ouvida, se encontrou uma
sensibilidade a ela receptiva, não é porque
age como animal de presa, bárbaro em
estado de guerra, mas porque é plenamente
capaz de negociar o poder vigente e
reclamar respeito por sua própria

37
A filosofia política, a posteriori, tenta selecionar ou eleger
o que é uma posição política legítima e o que não, e o faz com
ajuda da psicologia e da identificação artificial dos limites de
tolerância entre rivais: o “outro” é criado através de uma
distância com as possibilidades de legitimidade política. Mas
Rousseau já havia entendido que isso é apenas uma estratégia
da civilização. Não há uma propriedade contingente que
separe o legítimo do ilegítimo, e que dê a um o direito de
escravidão sobre o outro. Seja na guerra ou na paz, o que
torna uma chance de resposta legítima, ou melhor, o que
garante essa chance, é justamente o fato de que está em jogo.
O dono de escravo que pretende que seu domínio sob o servo
é “um direito” esquece justamente que a submissão do
escravo é uma resignação contextual, contingente, que não se
baseia na sua adesão – uma vez que ela não tinha efeito no
momento do jogo onde era mais fraco – e que seria alterada
assim que o jogo lhe concedesse oportunidade de reação.

204
racionalidade e civilidade. Os rivais já estão
em um mesmo nível de encenação, onde
fingem respeito um ao outro em nome dos
benefícios que podem trocar. A guerra,
nesse caso, é o jogo mesmo, parte mesma
da encenação; e não um estado desolado
onde a negociação é impossível ou foi
decretada falida.
3. A única referência para a estatura de um
poder, ou para um potencial de legitimidade
de um governo, é o rival que não detém o
mesmo poder, ou aquele que não conseguiu
o posto do primeiro. Isso significa que a
estrutura do poder não é construída de
modo técnico, mas em uma dinâmica de
pressões, ou jogo, em referência ao outro
jogador. Não existe uma meta de
legitimidade que possa ser atingida
independente de comparação com a
competição, nem uma carta de crédito
divina que decida o vencedor antes que ele
dispute sua vitória. A disputa pela
legitimidade já é parte fundamental do jogo.
Os membros rebeldes, que contestam o
poder sob pretensões morais ou políticas,
nunca podem evitar de deixar a marca de
sua pretensão de concorrência. Isso ocorre
assim porque não se pode rejeitar a
legitimidade e o domínio de uma estrutura
de poder sem colocar por referência o
“outro” que não foi capaz de contê-la.
Assim, o poder de um cartel de drogas, por
mais ilegítimo que seja julgado, não pôde
chegar ao seu ponto de alcance
arbitrariamente, ou através de uma técnica

205
capaz de produzir resultados certeiros, mas
sim porque toda uma estrutura rival de
poder não foi capaz de contê-lo ou superá-
lo. Portanto, sua ação, apesar de ilegal no
papel, se afirma com a força de uma
rivalidade legítima, sugerindo a hipótese de
ser um Estado paralelo.
4. Nenhuma parte da sociedade é capaz de se
manter em segredo, fora do jogo, a tal ponto
que possa reivindicar “não ter nada a ver”
com o tráfico de drogas. E isso é assim
porque a omissão já é também, sempre,
parte de uma colaboração para que o outro
vença. De modo que não se pode questionar
o poder do traficante de drogas sem cair no
paradoxo: como, se ilegítimo, conseguiu
chegar onde está? O questionador do poder
tenta usar recursos metafísicos (a moral, a
psicologia, razões políticas) para se colocar
fora do jogo; mas o paradoxo aqui descrito
mostra que ele é sempre deslocado para a
categoria de “perdedor”, ou de omisso, de
modo que o simples fato de ele não “ter
feito melhor” que o outro esvazia suas
pretensões morais e políticas, o colocando
diretamente “em jogo” como rival ou
concorrente. O perdedor também é um
jogador; e isso vale, especialmente, para os
grupos chamados de minoritários e
oprimidos.
5. Qualquer manobra de exceção usada para
magicamente eleger culpados facilita na
‘mesma proporção’ (isto é, sem benefício
de custo) a incriminação do inocente. A
identificação do “bandido”, por isso, não é

206
um ato possível por um amadurecimento de
tecnologias de identificação, mas sempre
uma jogada estratégica, que depende da
posição de poder capaz de deslocar sobre o
“outro” as características do bandido, e não
das características tecnicamente
identificáveis. A psicologia apenas tenta, a
posteriori, e artificialmente, compilar na
categoria de bandidagem (como tendências
de caráter internas, ou sintomas psíquicos
específicos) aquilo que foi criado em um
jogo por estratégias políticas. Mas no jogo,
repetimos, qualquer estratégia de
identificação de bandidos repercute na
facilidade, na mesma proporção, de
incriminação do inocente. E isso ocorre
assim porque a “identificação” do bandido
seria um acontecimento em um nível não-
discursivo, fora do jogo ou diálogo, e nessa
dimensão, culpado e inocente são
estabelecidos independentemente do
Direito, isto é, estabelecidos independente
de um nomos objetivo que distingua o caso
ordinário da exceção. Esse é apenas a
fachada externa que simula legitimidade a
uma decisão prévia. Em uma dimensão
como essa, culpado e inocente foram
trocados pela categoria de “outro”, e esse
não é senão o efeito sintomático mais
primitivo de uma regra de exceção. Mas, é
preciso reiterar, a identificação (psicológica
ou social) do culpado é apenas uma fachada
para o que realmente acontece: uma
estratégia política ancorada em uma posição
de poder.

207
6. Na mente do indivíduo atavicamente
confundido pela tradição psicológica, a
categoria de “outro” está distante e o
bandido identificado nunca poderia ser ele.
Isso é baseado em um erro filosófico
atávico. Quanto melhores as tecnologias e
retóricas psicológicas usadas em uma
sociedade para identificar “bandidos”, mais
vulnerável estará qualquer cidadão para ser
incriminado. Isso determina o espaço de
jogo como um particularmente dependente
de uma estrutura dramática, onde o
determinismo e o livre-arbítrio não se
opõem: é o personagem que veicula suas
próprias possibilidades de destino segundo
uma mão invisível que representa suas
condições de existência temporais onde
nenhuma posição é gratuita, isto é, tudo
pode ser estimado por uma medida
estratégica onde força coincide com o
sucesso e o insucesso tem de ter a fraqueza
como correlato. Um cachorro capaz de
farejar maconha que esteve em contato com
uma roupa há duas semanas parece a
máquina perfeita de identificação de
criminosos. Mas ele facilita também as
potencialidades estratégicas do outro, que
pretende incriminar alguém. O “outro” que
no jogo encena uma polarização de
possibilidades estratégicas, no suposto
estado de direito disfarça sua caracterização
hostil e se apresenta como meta-posição
neutra: o cão farejador aparece como a sua
prova de imparcialidade, embora ele o tenha
adestrado por suas próprias metas

208
estratégicas. O adestramento corresponde
ao estágio do desenvolvimento filosófico
onde o sentido – a abertura do ser – é
confundido com a semântica – uma forma
não pensada de consulta a um mundo
fragmentado onticamente.

209

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