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“As falácias por serem modas não deixam de ser falácias.

”  Chesterton

Para melhor avaliarmos as críticas contundentes que Chesterton faz a Freud, é


indispensável uma primeira aproximação ao seu pensamento e personalidade. (1)

Sigmund Freud (1856-1939), médico neurologista, foi o fundador da teoria


psicanalítica. Foi muito influenciado na faculdade de medicina por um professor
darwinista, C. F. Claus e, no que diz respeito à sexualidade, por Schopenhauer e
Nietzsche. Iniciou os seus estudos sobre fisiologia sexual com a disseção do sistema
reprodutor masculino de enguias, em 1881, mas não obteve resultados científicos
relevantes. Diria sobre Nietzsche: “Na minha juventude ele representava a nobreza
que eu não conseguia alcançar.”

Apesar da sua responsabilidade na morte do amigo íntimo E. Fleischl-Marxow, que a


seu conselho se viria a tornar viciado em cocaína a partir de 1885, o próprio Freud a
tomava, diluída em água, e atestava o seu carácter inofensivo. Escreve à sua noiva
Martha Bernays em 1885: “Quando nos reencontrarmos, eu serei um homenzarrão
selvagem com cocaína no corpo.” Adopta a cocaína e a hipnose para o tratamento
de doenças neurológicas e acaba sendo considerado um charlatão pelos seus
colegas. Utilizava a cocaína como terapia de uma “doença” a que chamava neurose
nasal reflexa e encaminhou vários supostos doentes para serem operados ao nariz,
por esta suposta doença, pelo único colega seu amigo, W. Fliess. Uma das cirurgias
teve um desenlace fatal, a de Emma Eckstein.

O falecimento do pai, em 1896, conduziu-o à análise dos seus próprios sonhos e ao


reviver da sua infância, pois deste modo acreditava poder combater a sua própria
neurose. Na obra que escreve, A Interpretação dos Sonhos, uma autoanálise, Freud
afirma que a génese dos seus próprios problemas psiquiátricos se encontra numa
atracção sexual pela mãe e numa hostilidade para com o pai; desta autoanálise
nasceu o famoso Complexo de Édipo.

Na sua teoria geral sobre o comportamento humano identifica duas pulsões ou


forças: um princípio do prazer ou eros e um princípio da realidade ou tanatos. Do
conflito entre estes dois princípios resultaria o comportamento e as neuroses ou
repressões. A posição de Freud relativamente a estes princípios não é neutral. Ele
identifica o eros como um princípio vital e o tanatos como um princípio de morte, de
negação. O tratamento das neuroses ou a sua evicção residiria no predomínio do
eros sobre o tanatos, que é como dizer, o predomínio dos instintos sobre a razão.

Nietzsche não o diria melhor. Libertação sexual, um eufemismo para libertinagem. A


ética, que para Nietzsche era apenas efeito do ressentimento dos débeis, era para
Freud uma psicologia de repressão.

Estas pulsões agiriam na mente humana, que possuiria três componentes primários:

-O id, local dos instintos e das pulsões primárias, responsável pelos desejos ou
pulsões mais primitivas e perversas. É a sede das pulsões: a orientação sexual, libido
ou eros e a pulsão de morte ou tanatos.
-O Superego, contraria e limita o id e representa os pensamentos morais e éticos
internalizados na criança pela nefasta educação dos pais.

-O Ego, permanece entre ambos e gere o conflito entre o id e o superego. É a ele


que Freud chama a consciência e, da boa gestão deste conflito, nasce o equilíbrio.
No ego manifesta-se o id, sob forma daquilo a que Freud denomina “a necessidade
de satisfazer o prazer e evitar a dor”. A arte e a religião são manifestações de uma
libido sempre insatisfeita.

Nesta gestão é crucial a abolição do sentimento de culpa e a anulação da ética


judaico-cristã. Neste, como noutros aspectos é mais uma vez evidente a influência
de Nietzsche:

“A dor da consciência é indecente!”

Toda a religião fica reduzida a uma neurose obsessiva:

“A tentativa de obter uma forma de proteção contra o sofrimento mediante uma


reelaboração ilusória da realidade é empresa de um grupo considerável de pessoas.
As religiões humanas têm que ser classificadas no grupo das ilusões massivas deste
tipo”, O Porvir de uma Ilusão, 1927.

O seu ódio religioso era particularmente dirigido ao cristianismo:

“Eu não creio que Cristo fosse um grande mestre. Ele falhou como professor e como
divindade. Os seus ensinamentos são ingénuos e destrutivos. Qual dos seus
ensinamentos é realista? Amar o nosso próximo como a nós mesmos? Isso é uma
tola impossibilidade! Oferecer a outra face?…Para seguir o martírio de Cristo porque
os mansos herdarão a terra? Claro que sim, serão nela sepultados! Acham
coincidência que Cristo instrua os seus discípulos a serem como crianças para
entrarem no Reino de Deus? Isso aconteceu porque o homem nunca aceitou que
está só no universo e a religião transforma o mundo inteiro no seu infantário!”

A influência de Nietzsche é evidente:

“Nietzsche tinha um conhecimento mais profundo de si mesmo do que qualquer


outro homem que já viveu ou que venha provavelmente a existir.”

A essência do freudismo é precisamente a tentativa de eliminação do sentimento de


culpa. Para Freud resulta da tensão entre o desagradável superego e o ego. Não é
pertença do homem, não lhe é intrínseco, mas resulta de imposição social. Por isso o
homem deve-se livrar dele para dar livre curso às suas fantasias sexuais.

Freud acreditava que todos os seres humanos nascem polimorficamente perversos.


O desenvolvimento sexual processar-se-ia em etapas, de acordo com a área em que
a libido estivesse mais focalizada: a etapa oral (chupeta), a etapa anal (retenção de
fezes), a etapa fálica (manipulação de órgãos genitais), o complexo de Édipo com a
focalização incestuosa na mãe.
Freud teve enorme êxito com esta construção da teoria psicanalítica por várias
razões:

-Talento literário e imaginação.

-Messianismo: ele acreditava ter a chave secreta para interpretar a vida humana,
uma espécie de gnosticismo. Este gnosticismo mereceu-lhe acolhimento junto dos
intelectuais. Nada ultrapassa o orgulho narcísico de um intelectual se considerar um
eleito, um sábio, separado dos outros homens e conhecedor dos seus segredos, no
fundo jogar o papel de um deus.

-Com Marx, Nietzsche, Freud e Einstein, o mundo tinha deixado de ser o que
parecia ser, e não se podia confiar na razão, na ética ou na tradição (interpretação da
História a partir de uma atitude de suspeita): chegara a altura dos instintos.

-O relativismo moral e o anticlericalismo atingira o seu apogeu. Allan Bloom escreve:


“Vi crescer neste país o relativismo de valores num grau que ninguém poderia
antecipar.” Nos filmes de Woody Allen tropeça-se constantemente em neuroses de
índole sexual que são ultrapassadas apenas com boa vontade.

-A análise do que está oculto ou privado, como o mundo onírico ou o sexo, sempre
fascinaram o homem, sempre foram um filão inesgotável de inspiração na arte e na
literatura.

Após a popularidade, começaram as dificuldades:

-Os fenomenologistas atacaram a suposta natureza científica da teoria psicanalítica


ao revelar o seu fundo apriorístico e artificial- no fundo o psicanalista encontra
apenas o que espera encontrar.

-Os comportamentalistas sublinharam que Freud neurotizou a sexualidade ao


associá-la a incesto, perversão e transtornos mentais. Enfatizaram a elaboração de
uma conclusão generalista a partir de dois factos particulares: a obra clássica “Édipo
Rei” de Sófocles e a relação particular de Freud com o pai e com a mãe- uma falha
grave no método científico.

-Karl Popper desmascarou a natureza não científica do trabalho de Freud: em vez de


achados altamente específicos, que pudessem ser postos à prova por meio da
redução ao absurdo ou pela submissão ao teste da não contradição, que
conduzissem a um quadro global, Freud preferiu a elaboração de teorias de carácter
geral a partir de convicções pessoais e de experiências particulares- isso
impossibilita a sua comprovação.

-William Sargant demonstrou, a partir da sua experiência com traumatizados de


guerra, que doentes altamente traumatizados são altamente sugestionáveis. A
psicanálise pode apenas provocar estados de alta sugestionabilidade, em que os
doentes expressam as crenças do próprio psicanalista.
-Freud caracteriza o esquecimento das atividades auto-eróticas durante a infância
pelo receio de castração, uma vez que as experiências auto-eróticas sem objeto, se
reportam remotamente à mãe como objeto. Mas Freud não explica em que medida
as atividades auto-eróticas são mais reprimidas do que aquelas que se acompanham
de fantasias incestuosas.  Nem tão pouco porque não substituiu a ideia perniciosa
de que alguém foi abusado pela mãe, pela ideia mais inócua de que apenas a
desejou.

-Voloshinov e G K Chesterton foram as únicas pessoas que salientaram o erro


clamoroso de imputar a uma criança o horror do incesto, que é, na verdade,
património de uma civilização.

“Uma moda consiste em conceber tudo acerca do nascimento como estando


relacionado com o sexo, como outros poderiam achar que tudo consiste em apanhar
minhocas…estas modas vão-se muito rapidamente, e nem é preciso picar as bolas de
sabão porque elas rebentam por si.

Há, contudo, uma consideração que se deve fazer.

É típico destas manias que elas não conseguem convencer a mente, mas elas
turvam-na. Sobretudo escurecem-na. Todas estas descobertas tremendas e
temporárias têm o fascínio singular de que não são apenas degradantes, mas
também deprimentes. Nenhuma leva em conta as verdadeiras e sérias conclusões
deste mundo. Mas cada uma pode provocar feridas profundas e desastrosas na
mente do homem comum…em vez de encontrarmos perdão para os nossos pecados,
pecados que cometemos por nossa própria culpa, obtemos a mais fantástica lenga-
lenga mental, envolvida no manto da ciência, que nos explica que os nossos pecados
não são pecados, e o que quer que seja que tenhamos feito, não foi por nossa culpa.
O mal perpetuado por esta falácia tem duas consequências: nós tornamo-nos menos
responsáveis pelas nossas acções pecaminosas e aguardamos um perdão que nunca
chega. É o casamento de Freud com Darwin, uma pseudo-ciência com outra.”
(Chesterton, The Century Magazine, 1923.)

Mais recentemente, George Steiner afirmaria: “A teoria de meu pai como rival sexual
e de um certo complexo de Édipo universal parece-me um melodrama
irresponsável.”

Freud que procurava fornecer uma confirmação científica para as afirmações


formuladas por Nietzsche, percebeu o perigo da insustentabilidade científica do seu
trabalho e o perigo de ruína.

Escreve a Jung: “Temos que fazer da teoria sexual um dogma, uma fortaleza
inexpugnável.”

Chesterton não o poupa por abandonar os argumentos: “Os ignorantes chamam-lhe


Freude, os eruditos chamam-lhe Fróide; eu chamo-lhe Fraude”. Assim, redondinho,
sem eufemismos!

Em conclusão:
Freud forneceu um pensamento de tipo ideológico ou filosófico, não uma teoria
científica.

Porque extrapolou da sua experiência pessoal para todos os neuróticos, depois para
todos os doentes mentais e, finalmente, para todos os indivíduos.

Porque as suas observações não são repetíveis sob as mesmas condições, nem
universais; não são verificáveis, não obedecem ao princípio da não contradição.

Porque o seu método padece de indução e de conceitos a priori.

Porque a sua formulação de id, ego e superego encontra semelhanças gritantes com
os conceitos cabalísticos e gnósticos de soma, psyque e pneuma.

Porque a sua elaboração parte de um objetivo apriorístico, não obtido através da


ciência: a de fornecer um suporte fisiológico ao conceito cínico de sexualidade,
compromisso e culpa, formulado anteriormente por Nietzsche.

Uma criança cujo pai bate na mãe seguramente desenvolve sobre ele um conceito
muito diferente daquela outra criança cujo pai partilha carinho e amor com a sua
mãe. Repulsa pelo pai que bate na mãe é como a repulsa pelo intruso que nos
assalta a casa; não é como a simpatia com alguém que convidamos para jantar.

Abordemos Freud com os olhos de um ateu, numa perspectiva sem Cristo:

Aquilo que Freud nos propõe é o abandono de um relato religioso de séculos, feito
de tradição oral e escrita, alguma datada, como o rolo de Isaías de Qumran, de
experiências particulares e coletivas de comunicação com a divindade, por parte de
um povo, o judeu, de onde era originário, que se conta entre os povos mais
instruídos e ecléticos da Terra, com uma formação que se assemelha à formação
militar, uma disciplina religiosa escrupulosa guardada incólume por séculos, por
milhões de homens instruídos. Muitos descreveram ter visto e até falado com Deus,
mas nunca nenhum descreveu um encontro com o Id…

E o que nos dá em troca?

Uma fantasia saída da sua cabeça, a que nem remotamente se poderá chamar
ciência.

Em desespero de causa apela para que a aceitemos como dogma. Nem Epicuro tinha
ido tão além. Recusa ver o desejo sexual como parte de algo mais vasto a que se
chama amor.

Ignora ostensivamente que a primazia dos instintos sobre a razão nega o


compromisso e induz sofrimento no outro.

O seu conceito de sexualidade é cínico, frio, impessoal, utilitarista, hedonista,


mecânico, bestial, sem consideração pelo outro, sem amor. O sexo aumentou tanto
que se tornou um vício e a finalidade mais importante, senão única, da vida. O amor
diminuiu tanto que ficou entregue a homens fracos, ignorantes e tíbios.

Para um céptico honesto ainda é mais difícil vislumbrar o vulto imerso do id do que
o brilho da face de Cristo. Só ao diabo pode lembrar, chamar a cada criança o
assassino de seu pai.

“A Psicanálise é uma confissão sem absolvição.” G. K. Chesterton

No seu maravilhoso ensaio sobre a Psicanálise, de 1923, Chesterton trata da


substância da técnica em si, que diz ser da mesma natureza dos sonhos. Trata da sua
metodologia que classifica de indutiva, não científica, consistindo na generalização
de uma fração da realidade a toda a realidade, uma monomania. Trata do seu objeto,
o sexo e o inconsciente e, finalmente, como epílogo, a desconstrução cultural, que
se iniciou no iluminismo, contra o patrimônio medieval.

Afirma que a psicanálise começou como uma moda para se tornar uma superstição.
Como a nossa sociedade constrói mitos, em geral não admite que o seu fundamento
possa ser discutido.

Chesterton afirma: “Uma teoria é apenas um pensamento enquanto que uma moda
é um fato”.

Lembra muito as palavras de Charles T. Tart, o guru PhD da parapsicologia: “Se está
nos mídia, aconteceu. Se aconteceu, mas não está nos mídia, nós cremos que não
aconteceu.”

Termina a dizer que a nossa sociedade, sempre a falar em iluminismo e opinião


pública, tem os políticos conservadores apoiados por fundos financeiros de
proveniência duvidosa e os políticos revolucionários apoiados pelas sociedades
secretas.

Claro que as ideias de Freud tiveram correspondência nas artes e nas letras, no
chamado movimento surrealista, que se quer libertar da lógica e da razão e penetrar
no mundo onírico e no inconsciente. Os surrealistas rejeitam o que chamam “a
ditadura da razão” e os valores de pátria, família, religião, trabalho e honra.
Pretendem colocar em equivalência o sonho e a realidade. Nas letras, esvazia-se o
significante do seu significado, e adopta-se a escrita automática, em que alguém
escreve o que lhe vai passando pela cabeça, de forma desconexa e sem fio condutor,
buscando a desestruturação. Na pintura, o espanhol Salvador Dali e o belga René
Magritte são os seus maiores expoentes.

Curiosamente, A Tentação de Santo Antão, O Homem Invisível e Os Amantes, têm


uma conexão direta com este ensaio de Chesterton. O primeiro porque reflete a luta
entre a religião e a mitologia, o segundo porque lembra o outro homem que
supostamente vive dentro de nós (a que Chesterton chama macaco), e o terceiro
porque amantes de face coberta é o equivalente a sexo entre bestas.
A arte, em geral, reflete a sua época. Gostar de uma pintura não nos deve impedir
de saber como se chegou ali e qual a ideologia que lhe está subjacente. Se o
freudismo originou o surrealismo não será exagero apontar a formulação de Freud
como surreal. Trata-se do princípio da não contradição.

Traduzimos o ensaio, quase integralmente. Introduzimos pequenas notas para


melhor compreensão. Dividimos o ensaio em capítulos para melhor ordenamento
mental da narrativa e do conteúdo.

António Campos

xxx

Chesterton, O Jogo da Psicanálise, The Century Magazine, 1923

Introdução
Pode dizer-se da psicanálise que ela é constituída pela própria substância dos
sonhos.

A psicanálise deixou de ser uma mania porque foi elevada à categoria de moda. É
uma moda. Apresenta-se tão visível ao homem comum como os manequins das lojas
de rua.

É chegada a altura de alguém lhe dar um pontapé, no sentido de voltar a atribuir


nomes corretos às coisas. Entendo seguir os princípios gerais da psicanálise ao não
reprimir este impulso. Quem sabe se eu não ficaria traumatizado para o resto da
vida e, consequentemente, impedido de alcançar o pleno das minhas
potencialidades? É muito melhor dar livre curso ao meu impulso, rindo na cara do
professor ou fazendo-lhe um gesto obsceno.

Bem, alguns considerarão esta minha sugestão um pouco exagerada ou até leviana;
então voltarei ao objeto deste ensaio. Um objeto que, tal como o professor, é muito
sério, embora não tão solene.

Andamos mais preocupados com o uso incorreto do termo do que com a sua
utilização correta. O uso correto de um termo é algo de linear, lógico, confinado ao
seu lugar. Colocado no seu lugar por um número limitado de especialistas. O uso
incorreto de um termo é um evento histórico, uma revolução, uma coisa que
envolve milhares.

A história da bolha dos mares do sul (1) não se conta por um desenho de algo que
aconteceu numa ilha dos mares do sul. O que aconteceu de relevante não foi um
evento remoto, mas a mais central e civilizada fábula ou ilusão.

Uma teoria é apenas um pensamento, enquanto que uma moda é um fato. Se certas
coisas se apoderam dos centros da civilização, elas partilham o seu lugar na História,
quer a sua origem tenha sido um equívoco ou não.
Se certos mahatmas são venerados por todos em Paris ou em Londres, de pouco
importa que eles sejam considerados hereges no Tibete. Se certas danças de origem
africana forem consideradas sedutoras pelos aristocratas da Europa ou da América,
torna-se irrelevante que elas sejam consideradas obscenas e degradantes pelos
próprios canibais de África.

A verdade é que o núcleo do verdadeiro estudo psicológico pouco ou nada tem que
ver com a moda da psicanálise, tal como o núcleo do estudo biológico genuíno
pouco tem a ver com a pantomina popular do elo perdido.

Tanto quanto uma ciência escrupulosamente científica realmente existe, ela possui
entre os seus méritos certas características que a tornam incapaz de ser uma moda
deste tipo. É característica de uma verdadeira ciência ter um conteúdo especulativo
limitado e assente na demonstração prática, avançando com correções múltiplas,
muitas vezes chegando quase até ao ponto de origem, outras contraditando-o. Para
dar um exemplo de como uma ciência se aplica a problemas psicológicos, tomemos
em conta o aforismo de contar carneiros para adormecer: à medida que os numerais
aumentam, deixam de ser monossílabos e tornam-se progressivamente mais difíceis
de pronunciar. Além do mais, o seu uso é menos comum. Nós raramente dizemos
que queremos cento e setenta e três chapéus ou duzentos e dezessete bilhetes de
comboio. Por isso, a ciência manda-nos contar, mas na verdade, isso resulta em que
deixemos de contar.

Não nego que algum trabalho está a ser feito sobre o inconsciente, a memória e a
associação de ideias. Mas, por ser um fato, é óbvio que esse trabalho não vai ser
uma moda. Antes de avaliar a mente inconsciente não seria pior descobrir o uso da
mente em si.

Métodos
As passagens mais citadas por estes intelectuais da psicanálise demonstram que são
fortes em teorizar mas fracos a pensar.

Alguns dizem que Hamlet não só odiava o tio mas também odiava secretamente o
pai, pela simples razão de que gostava da mãe. Em Hamlet há uma frase que diz “O
mais importante neste tipo de coisas são apenas sombras”. Um professor que tente
dissecar uma sombra, que pretenda usar a sua cabeça no estudo dos órgãos internos
de uma sombra, ou demonstrar as deformidades de uma sombra, é um personagem
de um pesadelo irreal. Trata-se de um sonho ainda mais incompreensível do que os
sonhos que tenta interpretar. Até um escrivão consegue formar uma ideia correta
quanto a este modo leviano de formar opiniões. Estes intelectuais transpõem para a
vida real os truques usados na literatura.

Alguns dizem que alguém ao escrever uma conferência sobre dificuldades


inesperadas (unforeseen) se enganou e escreveu dificuldades antecipadas (foreseen)
e tomam isso como um ato falhado. Eu diria que quem faz uma conferência sobre
dificuldades inesperadas não está a pensar, em consciência, em dificuldades não
expectáveis e na apresentação de soluções para as superar, pois sabe perfeitamente
que vai dizer um chorrilho de mentiras, pois as dificuldades inesperadas não podem
ser, por definição, antecipadas. Há algum homem que por escrever matar
camponeses (peasants) em vez de matar faisões (pheasants) deva ser considerado
um homicida?

A marca do psicanalista é que ele sempre fala de complexos, mas nunca parece ter
ouvido falar de complexidade. Por isso chamo a este movimento as simplificações
doentias. Cada uma delas toma parte da verdade, por vezes uma centésima parte da
verdade e, depois, oferece-a como toda a verdade.

Por exemplo, os calvinistas tomaram a omnisciência divina para sufocar todos os


outros atributos divinos. Os seus descendentes, os deterministas, negaram qualquer
escolha, negando mesmo a possibilidade de as pessoas escolherem aquilo que eles
próprios dizem ser verdadeiro em detrimento daquilo que eles próprios dizem ser
falso.

Os utilitaristas desfilaram a sua forma universal do interesse próprio, da mesma


forma implacável, embora essa forma possa ser um trocadilho, pois os utilitaristas
usaram a palavra próprio (self) como os psicanalistas usaram a palavra sexo (sex).
Calvinistas, utilitaristas e todos esses homens de apenas uma ideia são abusadores
intelectuais. O seu objetivo em dar nomes severos às coisas é arrepiar-nos, ao
ouvirmos nomes feios atribuídos a coisas comuns e naturais.

Claro que a prossecução de qualquer ideal só pode ser levada a cabo numa alma
consciente, num eu. Eles fizeram um trocadilho e chamaram a isto egoísmo.

O prazer que os intelectuais têm ao espalhar uma atmosfera de sexo sobre toda a
expansão na direção da beleza ou da arte, lembra um rapaz que assusta as suas
irmãs, falando sobre sangue como um ogre, quando, na verdade, apenas fez um
pequeno corte no seu dedo.

A mesma irracionalidade se comete quando se pega numa pequena fração obscura e


duvidosa da verdade e se publicita como a verdade e nada mais do que a verdade. É
exatamente isto que se faz quando se apregoa a natureza sexual de todos os
problemas não sexuais.

Que o instinto sexual é muito importante é uma evidência; que é difícil dizer o
quanto ele influência outras coisas também parecem evidente. Agora o modo como
certos especialistas falam do complexo materno (2), só indica que uma mãe é
demasiado complexa para que eles a possam analisar. A sua ênfase não é tanto se
existe algo como o instinto sexual, mas sobretudo negar que exista algo como o
instinto maternal. Por esta teoria, uma galinha não se interessa por pintinhos mas
apenas se interessa por frangos. Ou, o andorinha macho só traz comida ao ninho
para os passarinhos fêmea, procedendo a fêmea de modo inverso.

Parece absurdo, mas não é mais absurdo do que afirmar que as mães não querem
saber das filhas, tal como dizer que os pais ignoram os filhos. O que é fato é que o
instinto parental é a força que corre na natureza que é de longe a mais poderosa e
determinante que atravessa a natureza humana. É claro que a gentileza de um pai
para uma filha ou o especial carinho de uma mãe para com um filho pode ter uma
tonalidade indelével da diferença entre sexos. Mas essa tonalidade é, não só
diminuta, como praticamente imperceptível.
Estas escolas monomaníacas nunca se preocupam com proporção ou equilíbrio.
Aquilo que para elas é novo, agiganta-se no universo, ignorando ostensivamente
aquilo que é, para toda a gente, verdadeiro. Aliás, qualquer pessoa sã diria sobre o
assunto que, se é que existe, faz parte da mente subconsciente e, portanto, é melhor
que continue inconsciente.

Mas é marca do agnóstico pretender estar consciente do seu inconsciente. E, por


detrás de tudo isto, como no diabolismo dos calvinistas ou no materialismo dos
utilitaristas, encontra-se muitas vezes uma atitude ou um padrão que consiste num
prazer absurdo na brutalidade ou na blasfêmia.

O mesmo exercício, que consistiu em dizer que a maioria dos homens se encontra
condenada ou que todos os homens são egoístas, é efetuado ao sugerir, embora de
forma absurda, que a santidade da maternidade ou o amor às crianças tem como
pano de fundo algo das trevas inumanas de Édipo.

O mesmo paralelo pode encontrar-se em muitas escolas de ética e política do nosso


tempo. Tal como a mania de proclamar que tudo era sexo, assim foi a mania de
proclamar que tudo era econômico. A noção marxista, a teoria materialista da
história, tem nela o mesmo tipo de autoconfiança estúpida no centro do seu
insuficiente materialismo.

Uma moda concebe tudo acerca do nascimento como sendo sexual, tal como podia
conceber ser tudo acerca de apanhar minhocas. Isso seria inadequado até para os
pássaros que, apesar de não fazerem mais nada a não ser comer e procriar, ainda
não escreveram grandes ensaios do tipo “as ações douradas dos pintassilgos” ou “a
vida das cotovias famosas”.

Todo o pensamento reside, pois, numa confusão entre as condições necessárias à


vida e os objetivos de vida.

É óbvio que a vida não poderia continuar se a comida e o sexo não estivessem
presentes, mas nada nos diz qual a importância da sua presença. Será como afirmar
que, como um homem sempre se apoia nas suas pernas, sempre se desloca nas suas
pernas, então as suas pernas são o único interesse da sua vida. Se ele corre para
apanhar o comboio é apenas para exercitar as pernas ou, por outro lado, se herdar
uma fortuna vai logo comprar um par de botas.

Claro que o homem só consegue progredir na história apoiado nos dois apoios que
são a alimentação e a reprodução, mas que ele se preocupe apenas com estas coisas
é desmentido por toda a História, e, só assim ele poderia ter alguma história. Se só
existissem estes dois apoios não existiriam romances como “O Egoísta”, “O Império
Romano”, “As Cruzadas”, “A Revolução Francesa” ou “A Grande Guerra”.

Objeto: o sexo e o subconsciente


A monomania da omnipresença do sexo, tal como a monomania da omnipresença da
economia, pode ser refutada claramente pela experiência do mero homem comum.
Tal como qualquer homem comum que se tenha apaixonado, que tenha apanhado
uma bebedeira com os amigos ou que tenha ido passear no campo, sabe que
existem muitos objetivos que não são econômicos, assim também qualquer adulto
que alguma vez tenha olhado com ternura para um menino de três ou quatro anos,
sabe que o complexo do pai é idiota e que o seu carinho faz parte de uma série de
coisas que a psicanálise não analisa, entre elas o sentido do absurdo.

Estas modas passam rapidamente, mas existe uma consideração a fazer. É


característico destas manias que embora nem sempre consigam convencer, elas
turvam a mente. Sobretudo escurecem-na. Todas estas descobertas temporárias e
tremendas têm a característica singular de que não são apenas degradantes, mas
também deprimentes. Nenhuma deixa vestígios da verdade e das grandes
conclusões deste mundo, mas cada uma deixa feridas graves e profundas e
afastamento na mente do homem comum.

O caso contra a nova psicologia é meramente psicológico. Quando não pode ser
tomada como ciência, deve ser tomada como doença. Um pesadelo nunca é
verdadeiro e nunca dura muito, mas sempre se empina acima das estrelas e envolve
o céu e a terra enquanto dura. É nosso dever dar um beliscão às pessoas, ao passar,
para ver se elas acordam.

Claro que existem outras coisas na psicanálise para além da loucura de ver instinto
sexual em todos os outros instintos ou ideias. A ideia fixa sobre a influência indireta
do sexo é típica desta tendência. A maior verdade sobre a psicanálise é que não se
trata de uma análise. Não é análise porque analisar significa decompor a realidade
em todos os seus componentes básicos. No caso da alma, isso não pode ser
efetuado de forma perfeita, e estes doutores ainda o fazem de forma mais
imperfeita do que deveria ser feito. Eles encontram a sua causa predileta em casos
em que um verdadeiro analista encontraria cinco ou seis causas; portanto os seus
complexos continuam complexos. Acima de tudo, lidam com um complexo que
deixam mais complexo que o próprio universo.

O outro grande objeto da psicanálise, além do instinto sexual, é o subconsciente. É


evidente que ninguém pode analisar o que é inconsciente. Ninguém pode separar o
todo nas suas mais pequenas partes elementares, contar esses elementos e estar
seguro de que nenhuma falta. O máximo que se pode fazer é ter um esboço da
coisa, não como os investigadores, que alegam conhecer quando nem sequer sabem
se as coisas detectadas são significativas ou insignificantes, comparativamente às
coisas que permanecem ocultas. Na verdade, é óbvio que entre as possibilidades do
subconsciente se encontram todas as possibilidades psíquicas.

No momento em que uma coisa está fora da luz da consciência, não podemos saber
que aliados possui nas trevas. Na verdade, nem podemos tão pouco saber se tem
origem em nós ou não. Se algo vem de um local do qual não temos consciência, é
óbvio que não podemos ficar seguros de que a sua proveniência apenas reside no
nosso subconsciente. Tanto quanto sabemos são eventos de lado algum, pelo que
podemos depreender que podem ser manifestações de qualquer lado.

Não podemos imaginar a existência de uma terra incógnita e depois traçar fronteiras
entre as suas diversas nações, que desconhecemos. Estamos a melhorar da posição
do filósofo que disse que uma “snark” era um “boojum” (3), apenas usando a nossa
autoridade para afirmar categoricamente que uma “snark” não pode definitivamente
ser um “boojum”. Tudo o que podemos afirmar sobre a região além do nosso
consciente, é que ela pode conter qualquer coisa, desde o céu ao inferno.

A Mitologia
A poesia de cordel, a ficção da moda, as conversas na sala de estar e alguns títulos
de jornal, enchem-se de mitologia ridícula sobre como todo o homem tem dentro
dele uma espécie de macaco selvagem, idoso e microcéfalo. Fazem poemas
melancólicos sobre como é fascinante o macaco que vive dentro do homem e há,
inclusive, debates de natureza ética que visam definir se é o homem que comanda o
macaco ou se é o macaco que comanda o homem.

Os homens esquecem-se que a inconsciência é, por natureza, inconsciente, tal como


esquecem que o elo perdido sempre esteve por encontrar. Estão a fazer um retrato
do homem subconsciente exatamente como fizeram um retrato do super-homem.
Neste ambiente intelectual se a coisa não passar como uma moda só pode ficar
como superstição. O mundo moderno pode ou pode não recuperar a religião, mas
está rapidamente a construir uma mitologia.

A desconstrução moderna
Foi desta mitologia que eu aqui tratei, que ameaça ser uma superstição, ideal para
selvagens, mas sem vestígio de qualquer tratamento para a mente humana.
Reconheço que, nas mãos de homens verdadeiramente cientistas e de preferência
sensatos, muito pode ser feito para que uma pessoa se liberte de memórias
mórbidas ou associações bizarras. Mas, não há dúvida de que este lado sensato da
análise se encontra no tempo em que o calvinismo iniciou a doença destas
monomanias modernas. A nossa civilização, antes da emergência da filosofia
calvinista, estava impregnada da filosofia católica. Os puritanos destruíram as
instituições da sociedade medieval, uma a seguir à outra, e os modernos estão a
restaurá-las uma atrás da outra. A única diferença é que uma coisa que tinha uma
forma medieval moderada tem agora uma forma moderna extravagante.

O culto do feminismo tornou ridículo os protestos contra a Mariolatria. Existem


seitas protestantes na América, hoje em dia, que recusam terminantemente honrar a
mãe de Deus, embora se interroguem por que razão Deus não se chama mãe em vez
de Pai.

O culto do esteticismo tornou ridículos os protestos contra o ritualismo. William


Morris coloca em papel de parede os símbolos que os católicos foram proibidos de
colocar nas suas paredes.

Uma vez que os homens não deveriam recitar a Ladainha da Virgem com reverência,
Swinburne reescreveu-a para que eles a pronunciem como uma blasfémia, dirigida a
uma prostituta.

Uma vez que os monges praticavam um comunismo voluntário em pequena escala


que era tido como superstição, vieram os bolchevistas impô-lo a todos os homens
numa escala colossal.

Uma vez que destruímos as confrarias medievais que eram conservadoras, somos
agora compensados com os sindicatos que são revolucionários.
O mundo moderno rejeitou, como inacreditável, os milagres medievais que
envolviam relíquias e lugares sagrados e resolveu criar os seus próprios milagres
com mesas e pandeiretas (4); negou que um morto pudesse vir a adquirir um corpo
glorioso e vive para ouvir os seus cientistas dizer que podemos ter um clube de golf
glorioso (5) e um brandy com soda glorioso.

Não existe uma única instituição medieval que não tenha sido ridicularizada e
destruída e que não ressurja agora como paródia na sociedade moderna.

Talvez faltassem algumas que agora aparecem. A psicanálise é o repor do


confessionário.

O mundo moderno realmente carrega um fardo pesado de secretismo. Sempre a


falar de iluminismo e opinião pública, tem mais segredo, no pior sentido, que
qualquer outra época. Os seus políticos conservadores são financiados por fundos
de proveniência duvidosa; os seus políticos revolucionários pelas sociedades
secretas. Em termos afetivos, desenvolveu-se de forma mais fria e venenosa. O
aspecto mais saudável desta nova psicologia é que é apenas mais um surto dessa
secreção.

Do ponto de vista prático a comparação permanece. Quer faça ou não todo o bem
que o confessionário faz, seguramente fará todo o alegado mal que o confessionário
era acusado de fazer. Está de acordo em toda a linha com a velha acusação: a falta
de decoro da matéria em questão e a falta de dignidade do destinatário.

Na verdade, a acusação comum é mais evidente contra um experimentalista


ocasional do que contra um dedicado celibatário. Um padre pode ser libertino e
quebrar os seus votos, mas não é evidente porque razão um libertino inveterado
não deveria ter também votos para quebrar.

Mas toda esta comparação vai além da questão aqui em consideração. Basta dizer
que também nesta questão o mundo moderno cópia de forma enviesada o mundo
medieval, que condena furiosamente. E, se é verdade que isso é um defeito, deve
dizer-se que este é o modo mais próximo que ele se aproxima da virtude.

1 The South Sea Bubble, foi a denominação que se deu ao crash bolsista na City da
cotação da Companhia dos Mares do Sul. Esta companhia financiou a Inglaterra na
Guerra de Sucessão Espanhola e, em contrapartida ficou com o monopólio do
comércio com toda a América do Sul. Claro que isso tornou a companhia muito
atractiva em  bolsa, devido ao potencial de ouro e prata da América do Sul. Após
uma especulação selvagem sobreveio o colapso.

2 Complexo materno: grupo de ideias ou sentimentos associados à imagem da mãe.


Complexo de Electra: a criança identifica-se tanto com a mãe que deseja matá-la
para possuir o pai.

3 Lewis Carrol, autor de Alice no País das Maravilhas, escreveu um poema em que
fala de um animal imaginário que não chega a descrever. Disse que não podia
explicar, porque nunca o viu. No entanto dizia que o/a snark arranha ou morde.
Caça-se o/a snark com força e coragem pois o animal tem um fraco sentido de
humor e gosta de acordar tarde. O boojum é um tipo particular de snark que fez
com que um padeiro desaparecesse e nunca mais fosse encontrado.

4 Referência à psicanálise e às suas filhas, a hipnose e a hipnose regressa e,


provavelmente, também ao espiritismo.

5 Hoje poderíamos dizer um clube de futebol glorios

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