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Vida mulata

Luís Chacho
Vida mulata
Luís Chacho
Vida mulata
Luís Chacho
Vida Mulata
Luís Chacho

Paginação: José Pedro Moreira

Setembro de 2017

© Luís Chacho. Esta obra está licenciada com


uma Licença Creative Commons - Atribui-
ção-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Inter-
nacional.

Enfermaria 6
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Selecção, pelo autor, de texto publicado no blog
http://cimento-cola.blogspot.pt/
sexta-feira, 11 de julho de 2014
E aqueles que haviam mentido por salário;
os corrompidos, os corruptores da linguagem,
os corrompidos, que colocaram a lascívia
[do dinheiro
Antes dos prazeres dos sentidos…

Ezra Pound
A ntecedo, preocupado, a manhã em um
quarto. Na cabeça: «sobrou do que beber?».
Matar o bicho. Aqui. Ainda a claridade é esquisso,
dito da boca pelas zungueiras que predigo por aí
afora. Aqui. Por entre um par inerte, se pensa um
acorde imperfeito. Varar os intestinos com sen-
tido geométrico, sinusoidal, envelhecido pelo veio
rigoroso da madeira. Alimento provisório da força.
Nervo. Beber sem pressa é poesia, palavras com-
postas dos outros pelas costuras de outros ainda.
Sou das narrativas, quando muito, tensas. Aí, con-
cedo, sou língua ressuscitada. Um espírito que se
dessolidariza lateral à carnadura, desenhada esta
por braços insuficientemente diurnos, para delinear
uma sombra. Diga-se daqueles – são instrumentos
mínimos de tortura.

Um íncubo sem horas de luz, a minha desordem,


entornada que está pela bissectriz do meu algures.
A nascente, o alçado invisível de um ventre. Comu-
nicante um oceano, que me agride tranquilamente
de volume por entre continentes que esqueço. O
suporte físico, efémero, de um passaporte.
Por cada rosto meu, um ano. Naturalmente. Por
uma fotografia amarelecida, toda a humidade que

vida mulata 9
transfiro para o solo do meu desequilíbrio. Duração
de partículas evaporadas.
Convergi num ponto, do avesso. Em Angola.
Podia ser um outro lugar, também de África. Seria
o mesmo. Bem-vindo.

Desconsegui a vida. Pouca roupa, bom cal-


çado. Para pisar, á volta, terra queimada. Alguém
que a pisa, separado por uma espessura de indife-
rença pela língua parecida, um lugar que me é igual
a qualquer um outro. Tanto faz. Ossos. Que seja
um lugar, assim me basto, onde possa enlouquecer
longe da fechadura da porta que coincide com as
chaves que encontro no fundo da mala de viagem.

Erguida, a intempérie se decide. Construção


em altura? Pé-direito inferior ao que é imprescin-
dível?
Como suportar o tempo de um pensamento?
Assim sou, gás volátil. Elevo-me à temperatura das
nuvens, condicionado por estas. Atravesso outras,
pelo vidro que me separa da paisagem.

Pelas viaturas de chapa, blindagem quase


intransponível, escondem-se as mãos. Pelas janelas,
na direcção curiosa do outro, são lançados: latas de
refrigerante, indiferença, medo. Espontaneamente
violentos, numa altercação.

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Sorrisos abertos a meio pelo traçado de um
intestino grosso, musculado, das coisas mal dige-
ridas a que chamamos princípio do corpo, por não
ser escultura.

Engano-me. Hoje, mais um dia. Para isso


mesmo. Aqui, cidade no corpo. Acidentado, mais
por peões do que por viaturas. Onde existe violên-
cia, sim. Sempre existiu. Por entre o material pere-
cível das almas.
Da condição mental em altitude, a confusão
musical. Dos tambores pontuais, não há um tempo
certo. Como não há um caminho comum, apenas a
mesma rua para movimentados sentidos obrigató-
rios. Onde existem desencontros, um cruzamento,
um dia diferente noutra hora.

Esqueço. Um de mim. Jacente neste colchão,


atento á erosão do verbo ser. Aqui se desprende
e assisto, por um fragmento temporal, ao andrajo
dessa esponja embebida do odor de quantos, aí,
atentaram a vultos. Rostos desenhados por man-
chas, na laje. Deles falavam, por gestos. Também
eu. Em suor, reconheço vários corpos estranhos. A
quem pertencem? Miseráveis contornos, de varia-
ção almiscarada. Não sei o que são.

vida mulata 11
Água que não há, perdida da pele para uma
superfície. Através de um espelho danificado. De
palavras de fora, lama, a couraça de um bicho.

A ideia, intransitável. Escombro de ossos sen-


síveis, interrompidos pela fome do mais velho a pé
pelo final da ilha de Luanda.

Projectam-se pela parede romba do fundo


á alma, pesadelos em lâmina. Um grito incerto.
Corpo. Mão cerrada num baralho de cartas novas.
Entenda-se tentação. Perderás sempre para um
vento. Perder assim. Como o resto que se perde de
nós. Diferenciada matéria que se descola, com o
tempo, da pele indiferente. Perder o princípio de
uma vida. A minha irresponsabilidade.

Pouca coisa muda. A ausência de significa-


dos a que me habituo. À pontuação final. A um
monograma em um lenço dobrado encardido, que
esqueço no bolso. Recém-chegado, descrevo os
indivíduos, os diálogos, a cela. Como aqui cheguei?
Superfície sobrante, não traumatizada. Peremp-
toriamente isso de mal não tem. Tenho pensado
o pior. Digo assim por estas palavras que não sei.
Como aqui voltei? A uma cela.
São sempre escuras as celas, de estação única. O
Verão dos arrependidos, sentimentais incapazes de

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compreender o abjecto anterior às coisas. Diga-se o
que se pensar das arestas. O que que irão ser senão
confusão de bichos? Não há aqui intempérie. Neste
espaço calafetado. Imersão de proximidade. Se para
aqui vierem, tragam água engarrafada.

O que não está bem neste caminho é o esboço.


A partir da trama excessivamente branda do carvão
a partir de um punho trémulo de hesitação. É um
instante. O caminho abreviado, sem berma, por
esta desordem. Em primeiro me vejo, um umbigo
de danças pelo terreiro. Um chão habitualmente
vulgar. Um quintal.
Em que eu demasiado bêbado, na boca do mar
a arrebentação, uma espuma biliar a perder-se de
vista, presa á primeira linha do mar. Um bicho no
meio de vértebras, empurrado para uma faca de
recortar bainhas, que apara as roupas acima da carne
exposta. Alguns ossos menos extensos, enquanto a
minha voz ameaça a partir deste número dividido.
Por três vigilantes.

Numa fracção lenta, vai a refeição a meio, um


deles armado com AK quarenta e sete – sei a marca
à arma de memória. Quase não existem outras por
aqui, guerras das outras. Existem anos mal esqueci-
dos desta arma. Me não apercebi «meu kota como

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então?» a pancada apenas seca, por si. Uma coro-
nhada, de maciça sinceridade, me silencia o movi-
mento in extremis. Antes de conseguir pele, depois
carne, para a faca.

Devolvo-me cortado á cegueira em pedaços


iguais á noite. Menos os gatos. São poços os olhos
dos gatos. Poços fundos, fragilmente dilatados
por cada um, no seu movimento de unhas. Uma
paciência.
O cálculo do perímetro 2πr. Se tanto. Os óculos
quebrados sobre a estrutura do nariz. Cor provi-
sória da carne. A mesma cor no material dos aros.
Outro final. Eu à ponta, no banco traseiro de uma
viatura da polícia de Luanda. Bramindo a voz
contra dois polícias. Oficialmente perplexos. Com
a diversidade das asneiras, as que há. Algumas bem
impessoais. Que fossem para o caralho, um qual-
quer que os fodesse. Digo a eles a única coisa que
desejo. É um telefone.
Anterior um filme, onde o prisioneiro teria
sempre, nestas condições, direito a um telefonema.
Podia ninguém atender? Sim.
Ligar á mãe da minha filha. Mestiça de nós
os dois, pais que por ela gritam para a eternidade.
Estava quase a nascer. Dali a quase nada. Disse
duas, disse três. Disse arrematadas semanas. Dis-
se-o várias vezes: «senão morro!». Morro todos

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os dias, mas eles não sabem. Prolongo-me pelas
manhãs seguintes, enquanto as houver. Curta
edição de artífice. Uma noção de escala. Identificar
os tamanhos à vida. Puta que pariu.
A sonoplastia desacompanhada do estrondo.
Segue-se um silêncio.

Da porta a fixação em diâmetros brutos de ferro.


Sou encaminhado pelos polícias. Diurna natureza
mestra. Ou chave. Uma atmosfera. Um céu de
prisão se abate, sobre o negro do fundo às pare-
des. O corredor que aqui acaba. Outra parede. Um
vão de porta. Para dentro. Sou bicho localizado.
O último por ordem capturado. Sem contraditó-
rio. Pelo reflexo das minhas acções de bicho. Sem
querer. Neste zoológico, nestas condições.
Apenas isso de absurdo. Sem nada para além
dos instintos, nas extremidades. De vigília, me des-
loco. Um traço improvável, pelos volumes da vodka
a garrafa inteira em meia hora. A duração incom-
pleta de um dia a mais. Do qual me esqueci. Das
horas. Havia luz quando aqui entrei. Apenas isso.
Atravessado me sinto. Na linha incompleta de
fronteira, o corpo. Contorno ilegal. Quinze tons
diferentes de sombra.
Um prisioneiro preto, incompleto na pince-
lada vigorosa do mestre possível. A curiosidade
não matou ninguém. Aqui não se gosta de gatos,

vida mulata 15
já não existem por morrer. Aqui um único tom me
desenha. De fora de um tempo, a planta que se dá
sem peso em épocas determinadas da terra. Venho
com cem quilos. O pouco amor-próprio se pesa. De
resistência eléctrica sem fio de terra.

Um chão descolorido de chinelos, desencontra-


dos do par. Numa cor diferente. Um calor quase
suportável, fosse eu filho das labaredas. Original
minério, transformado no dúctil de um homem.
Uso o tronco nu. Uso calções. Sou bicho a tornar-
-me elemento.
Que seja água. Água é o que me escorre da
fronte. Rio único, que transborda nas costas.
Uma corrente em cada perna. Desfocada imagem
enquanto afogamento.

Memórias turvas. Outro rio. Nome Judeu. Pelas


suas margens um barco. Um esqueleto de lado,
como adormeceu. Pela lama um nome.
Pele dos dedos de um pé. Calço o par do luxo,
nesta prisão. Incluindo o polícia graduado de ser-
viço. São botas de performance. O meu teatro.
Ultimo modelo Merrell. O par comprado. Não é
o dinheiro, por agora, problema. Ganho bem. Saio
tarde. Do descanso, um domingo. Religião de todos.
Menos dos chineses. São a pilhas e arroz. Nunca

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param. Não os deixam. Misturam-se bem com o pó
dos caminhos. Andam bem. Sorrisos estáticos pelos
candongueiros. Ouvi falar que habitam já os mus-
seques. Por aí se vê. Pela estação do Oriente, olhos
rasgados de crianças. A gargalhada fácil. Como as
outras. Deslocam harmonias pelas ruas. Música dos
tambores. As ancas deslocadas.

Botas sem atacadores são chinelos. Tamanho


acima da saudade uma estação fria. Uns abraços
podem ser fortes. Atacadores confiscados à entrada.
Na esquadra. Podiam servir para colarinho.
Uma única vez.

Circulo. Impaciente. Entre a cozinha e o comum


da sala. Não descanso. Enquanto não vejo o fundo
á garrafa. Vodka. Às vezes gin. Raramente whiskey.
Que acordo o corpo ao diabo. Não há corda fiel a
um relógio. Medição. A garrafa foi aberta, contei
por alto, há quinze minutos. Vinte.
No vidro da garrafa, a marca do meio-dia
líquido, um horizonte de erosão veloz, onde pás-
saros mudos apregoam a procissão das nuvens. Em
cada viagem, meio copo. Alto. Umas gotas de sumo
de laranja de pacote. Na sala, deito-me ao comprido
do sofá. Ligo o ar condicionado. Apenas uso roupa
interior. Engano a nudez. A televisão está sintoni-
zada no canal de música Afro-Music.

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«Assim é como? Kuduro.». «Assim é quê?
Kuduro.». Acrescento jindungo.

Sei de corpos, de tanta coisa pesada. Do mara-


vilhoso torpor feminino dos corpos. Curvas. Eu
mesmo bem fobado, quero só já pitar. A partir da
matéria estável do fungi que alimenta as curvas
acidentadas dos veículos de mão. Elevam-se acima
da temperatura do espaço onde acontecem e são o
meu transtorno. Pela amplificação do televisor a
Noite Dia: «…olha o fogareiro… apaga o fogo…
olha o fogareiro…apaga o fogo…».

Onde atravesso, um acidente. Abandono o lugar


do sinistro, a partir do mesmo canto. Construo
outro à pele. De vontade.

As moças da limpeza são duas. Estão espalha-


das pela casa. Marca 09h45. Hoje não fui traba-
lhar. Amanhã não vou trabalhar. Fui despedido. Por
nada.
Ainda no mês passado tinha recebido um
prémio. Um jipe para as deslocações. Marca Suzuki.
Modelo Jimny. Cor branca. Cuidei dele. Desviei-
-me de todos os abismos, das unhas grandes dos
outros. Cuidei dele. Até há dois dias atrás. Abreviei
a sua frase corpórea para metade. Utilizei-o como

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arma. Um momento. Tentei um crime. O meu
desejo era matá-lo!

Senti um estremecimento pelo corpo. Convul-


são. Incontroláveis coisas de estômago. As entra-
nhas no grito: «queremos sangue!». Quase vomi-
tava. As lágrimas pelos olhos, leito de cheias. A
transformação do meio inexacto se exagera. Um
só formigueiro. Um mal em que se está. Compri-
mido ar de inquietação. Atravessá-lo com o dispo-
nível de chapa. Dizer adeus de vidro aberto. Dizer
boa-noite. Já passou. Pela rua se descontrolam as
experiências. Empreitadas rápidas sem dono. Nem
obra a que concorrer. «Tenha atenção á passagem
da composição sem paragens», lembro. Nesta pas-
sagem um segundo.
Um único sinal de exclamação. Tudo antes de
um minuto. A seguir o tempo.

Saí à noite no final da semana passada. Vi vários


bêbados. Os fora-de-mim incapazes da sobriedade,
de quem me esqueço, um por um por muro. Numa
esquina, uma grade de cervejas ou um improviso.
Na direcção das pedras o nome parecido com desa-
parecer. Cinco ou seis cadeiras de plástico. A mesa
de material igual. Duas mulheres, duas irmãs. Res-
ponsáveis pela roulotte na esquina instável do pó.
No chão, antes da lama se a água não tiver outro

vida mulata 19
caminho onde ir. Pranto por extenso. Pelas vielas
rebentam as águas á mãe, ouvem-se gritos de
Kianda. Louca. Exausta. De ser também o mar que
vem dar água á boca dos mortos prévios, no firme
da terra. Ainda um movimento. Assim não. Que
o relógio não suporta tanto ponteiro, tanta corda.
Alguns palmos parados ao mesmo tempo. Chão em
profundidade. Na banda a rotunda é cemitério. A
verdade ao lado do cemitério, no Camama. Marca
23h30.

Um dia antes, vou pela estrada. Aos repentes.


Reduzo, de súbito, a marcha à viatura. Imobilizo-
-me.
Sigo uma marcha fúnebre. Komba aos corpos
mortos que dançam atrás da carrinha de caixa
aberta com mortos sobreviventes. Têm roupa com
bolsos, para aí guardarem a ferramenta das refeições
sem lugar a uma hora. Insisto. Satisfazer. Necessi-
dades. Capitais. No tempo de respirar, foder.
Vazios em que insisto. No tempo de respirar,
beber. Em tudo exagero. Tremoços. Heroína. Mil-
-folhas. Álcool. Não consigo parar. Sou adição,
engulo de tudo. A vida útil de um tambor de
máquina de lavar roupa. Os molares soltos da alma
em escorbuto. Foder. Beber. Beber devagar é poesia.
Tudo na mesma primeira pessoa.

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«Vamos só se dar, ya?», cuspo a uma das mulhe-
res da roulotte. Tinha acabado de chegar. Sentei-
-me a uma mesa, a ouvir uma conversa com sotaque
português do Brasil. O sujeito já lá estava.
Estávamos os dois bêbados. Conversava ele com
a outra das mulheres. Um olhar cruzado. Os olhos
dele nos meus. Encravados. Sorri para ele. «Você
tá me fatigar», atirou-me da sua mesa. Levanta-se.
Depois de me ter atirado com a garrafa de cer-
veja que tinha em mãos. Toma a minha direcção.
Um punho seu acerta de raspão no meu rosto.
Levanto-me. Arrasto ligeiro o meu corpo pesado.
No encontro com o outro solto uma gargalhada
nervosa. Neste momento sou esmurrado, os óculos
são desviados do nariz. Ouço perfeito o quebrar do
plástico. Fodasse. Desfiro um golpe no ombro do
sujeito. Não tenho paciência para mais. Esta luta
ia ser perda de tempo. Não teria o imediato de um
relâmpago simultâneo ao trovão. Não.
Teria sim o nariz despedaçado, um couro cabe-
ludo retalhado. Demasiado tempo. A minha raiva,
um nevoeiro. Em que me encerro e aí me aban-
dono. Onde não vejo os sinos que ouço. Sei que são
os barcos no meio do rio Tejo que eles procuram.
Onde, não vejo.
Dos sinos fico a saber para onde vão as margens,
se sono ou melancolia. O acento das coisas de nós.
Existem regras, para as coisas de nós. É um jogo.

vida mulata 21
Sem regras, é um jogo com mais de um jogador.
É um jogo difícil, ganhar mal e bem. Uma fron-
teira facilmente transparente. Atravesso. Matéria
de facto indefinível. Para o lugar internacional dos
bichos. Ar de ameaça.
Som de urros, de uma calma desapaixonada.
Vejo mal em frente, a dioptria incorrigível. A cara
do sujeito que me transforma a paisagem do rosto.
Nos arredores, este sujeito. Um sinal com corpo.
Esqueço-me da pontuação nas frases, palavra. Pala-
vra que ali não quero indisposta, se a si encontra
uma posição diferente. Em uma outra frase, tenho
o jipe estacionado perto. Enquanto decido. Não é
bem isto decidir, é reacção. Abandono a luta, de
acordo. Unilateral. Quero ser a pele da mão, rápido.
Se me estremecem os tendões, quando se alteram
as chaves na ignição, as poucas posições erradas. O
motor fala. Confirma a máquina.

Acelero-o simultâneo ao meu coração.


A embraiagem, um elevador em desvario. Para
cima. Para baixo. Para cima daquele filho da puta
brasileiro. Ainda guardo este som na minha cabeça.
A voz do sujeito a insultar-me. A mim. À raça
dos portugueses que o pariram. Não importa. Já
nada importa de facto. Uma manhã. Um sorriso.
Uma canção. Um néon berrante. Umas fodas. Não
importa o quê. Que se respire em pleno. Vou na

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direcção do sujeito, para a sua distorção de con-
torno. Uma pessoa. Será?
O que distingo depois de uma poça de água
estagnada, ao eixo do meu trilho. Observo-o tenso
pelos tons, em segundos, sombreados. Terrorismo
instantâneo. A minha reacção. Esta, imperceptível á
luz de todos os códigos de parentesco com controlo.
O que se intui. Infinito aterrador sobre o que se vê
e não flutua. Não foi por ideal algum que seja, não
tenho melhor partido nem deus, os políticos são
tantos, meu deus, nem clube por onde jogar.
Tenho sim mau perder, uma calma que é dos
loucos. Assim penso em segundos. Um momento.
À justa, o sujeito se atira para cima do conjunto
de mesas e cadeiras. Não me consigo desviar do
conjunto. Não acerto no sujeito. Importo-me com
o alvo que falho. Sim. Não o atropelei, mas levo o
que sobra á sua volta á frente da máquina. Fogo-
-de-artifício.
Para os olhos se esquecerem dos arrependimen-
tos. Vindouros os suores, por qualquer coisa em que
embato. São pequenos pilares. O ferro que sustenta
a cobertura desta construção sensível. Hora mate-
rial, carne dos outros. «Me não sinto melhor», digo
á boca. Pilares de ferro ligados por improviso.
Os rostos das mulheres têm o contorno do
terror, em silêncio de lábios. Onde leio gritos.
Engato, febril, a marcha atrás da repetição. Cara-

vida mulata 23
lho, que falho novamente. Não sei se satisfeito ou
infeliz. Acredito hoje que satisfeito. Já agora, acabo
com isto. Um jogo de bowling. Uma série de pinos
alinhados ao fundo. Assim se deviam equilibrar,
tombados.
Isto não é o fim, é apenas destruição. Acelero
para o lado de fora, outro lugar. Vejo pouco a partir
das bermas, os óculos caíram-se-me do rosto para
o chão da viatura. O que interessa é sair daqui
para fora. Conduzo a máquina, tresloucado, mal
morto pelos horizontes retrovisores. Dos espelhos,
esquerda. Dos espelhos, direita. Espero alguém,
uma visita. Alguém me persegue? Nem sirenes per-
guntam por mim. Prisma.

A designação genérica das doenças mentais tor-


cidas em feixes, o que de mim se decompõe em luz
tardia, pela confusão do trânsito. Mais á frente o
Projecto Nova Vida. Àquela hora da noite, as vias de
circulação interna sempre na incapacidade máxima.
Amálgama de detritos fantasmas, lavados pela
corrente de ferro retorcido da manhã seguinte.
Insano. O dia perfeito, quando a pele se traumatiza
de matéria sifilítica, latex coagulado. Extremidades.
Pneus. Tumores embraiados.
Vou na direcção da Gamek. Movimento abor-
tado. Encosto á berma, infectado de transpiração.

24 luís chacho
Tremo bastante. As pernas desobedecem. Dentro
de pouco tempo terei de falar. Da loucura que em
mim se instala, lacónica. A voz que o diz. Onde
vais? Quero apenas chegar ao Projecto Nova Vida.
Uma casa onde vivo, não a sinto como minha. É um
quarto. E espaços. Comuns a outros colegas, com
quem nada tenho em comum. Senão a garrafa. Sair
da rua, depressa. Que me engolem, a partir do pos-
sível de um par de olhos. Alguém viu? Aquilo de
catástrofe, um grau elevado. Fico sóbrio. Tenho de
telefonar ao responsável pelo sector dos transportes
da empresa onde presto serviço. Corrijo: prestava.
Tão ridículo me parece tudo isto. De inexplicável.
Vou dizer que estacionei mal a viatura, alguém
me bateu e não vi. Estou fodido. Esclareço: estou
fodido. Para o de mim que ainda duvida.
Quando chego a casa, estaciono o jipe. No
quintal. Junto á porta de acesso á cozinha, estão
todos em excomunhão de horas. Refeição. Copos
de tudo. Gargalhada fácil. No quintal. As suas via-
turas estacionadas no mesmo hábito. Saio do jipe.
Este, imobilizado, em pranto de matéria dilacerada.
Ouço a confusão que se diminui, em espessura, de
estridência pela frincha da porta fechada. À noite
da casa, os sons densos. O que pouco me ocupa,
enquanto observo a minha escultura. Uma obra em
que interferi, sôfrego. Simples vingança, em mate-
rial de impressão. Depressão analógica. A minha

vida mulata 25
fenda, absolutamente em profundidade. Se me
explico, tanto pior. Observo o jipe em ferida, um
lamento localizado no capô. Este quase desapare-
ceu. O radiador é um pulmão apertado. Alteração
pelo corpo? Acidente vascular cerebral. A compac-
tação do sonho contado por passos. Pensar sem
maldade: «o dia acaba.». Amanhã será pior. Agora
vou beber, não sei quando volto. Se volto. Se falho
algum telhado descabido na inclinação. Tenho de
fazer um telefonema. Comunicar. O acidente, já
alguém o disse. Eles sabem. Desde que chegaste.
Às horas certas, um voto de confiança. O cur-
rículo não era mau, assim bastou. Um telefonema.
Nem o vi, não o conheço. Só de um nome, o
homem dos Recursos Humanos em Portugal. Um
telefonema. Bastou. Aqui tens um bilhete de avião.
Podes ir.
Mais nada havia a fazer. Saía de uma depressão,
outra procurava.

Canto: «…vou sorrir para não chorar, mais um


dia na minha vida, vou cantar para não lembrar as
malambas desta vida…»

Tragicamente amanhece. E não devia. Assim


para uns olhos, sem filtro, a intensidade das arestas.
De exuberante geometria, os lugares da luz. Esbo-
ça-se, cénica, a formalidade.

26 luís chacho
De um barco sem remos, a narração do passado.
Foram os remos substituídos por um final de noite.
Copos estilhaçados nas margens do rio Judeu,
longe daqui. No Seixal, um remo. Outro, em outra
margem. Assim como as pernas, indecisas de um
corpo.
O barco abandonado, em separado. Por mim,
pelo grupo. Éramos cinco, todos bêbados. Insensí-
veis á água, que nos agarrava pela cintura. A quie-
tação severa da manhã, uma substância gorda que
enleia nos cabelos a desordem ruidosa dos pássaros.
Por mais que digam eles, não façam barulho. Portu-
gueses, na recordação que tenho deles. As suas asas,
uma bandeira. Se se veste assim, um sujeito.
Corda curta por norma. Atordoado na cabeça,
marcante um tambor. Desliga-se.

Uma das moças aparece á porta da sala, vinda


da cozinha. Veste um avental por cima da roupa da
semana. Um sorriso. É-se habitualmente informal.
Lá na banda. Um sorriso. Para tudo sorrisos.
Uma desgraça os sorrisos. O que são, forçados
pelo garfo que se embrenha na carne do outro. Um
sorriso. Pergunta a moça se pode, se não incomoda.
Quer sentar no sofá, para ver a telenovela. Eu digo
que pode. Disse outras coisas que não se ouviram.
Disse mata. Disse esfola. Tudo na mesma frase.

vida mulata 27
Ávido. Da carne, digo suculenta. Refeição para o
corpo. A alma em perfil rígido, muscular desnorte.
Frémito.
A culpa que nunca existe, enquanto se diz
cobras de um Deus desordeiro. Se o desentende,
convergente. A turfa moldada de hipóteses, por
besouros céleres. O que em nós demora a despir.
Digo roupas, próximo da estação do frio. Sou a
palavra que a ela digo. Um sorriso. Quando está
tudo fechado, fora de horas. Um sorriso. Distensão
da pedra gelada, disposta por mim em tudo. Altero
o canal da televisão, enquanto a moça se senta. Tan-
gente próxima, à qual exalo uma geometria de pre-
dação. Precisamente.
A moça no sofá, disposta na perpendicular á
avenida que começa nos meus pés descalços. Sem
propósito, assim ténue, suspiro á alma. Assim me
manifesto. Toco-me. Pelo começo a mão direita.
Uma vez, outra, interior. À queima-roupa, ordina-
riamente, roupa interior. Confortavelmente acessí-
vel por todo o lado. Assim me trato por tu, numa
carícia. O pénis em extensão elaborada do desejo,
um animal alterado em diversos sentidos. A contra-
mão pelo mamilo esquerdo. Reina a sensibilidade,
que é saliente. A moça entende, do que resta do
seu campo de visão, desviando-se do aparelho em
transmissão. Neurose adolescente, hiperbolizada
por gestos.

28 luís chacho
Adentro por este espaço, enquanto podem. Dis-
tracção prestidigitadora, a que me proponho com
resultados instáveis. Carácter experimentador. Que
se não encontra em um só adereço. A moça volta,
ligeiramente, o rosto. Assim. Entende o que faço.
Assim. Muda as suas mãos de lugar. O nervosismo
será ainda um leve desconforto. Apesar do hábito
se assemelhar a uma cor que não existe, senão na
melancolia de um motor de explosão. Em abstracto,
uma pintura de nódulos no tom das pérolas. Que
bem ficam num pescoço separado do corpo. Um
fio rudemente esticado, num lugar desconhecido da
estrada longínqua. Indiferente á transparência, uma
radiografia exposta à linguagem. Credo.
Da pornografia, boa etiqueta. De maneiras que
disponho o pénis. Movimento de mãos. Desloco o
que outros vêem, para os meus olhos. Masturbo-
-me. A disfunção é contrária à natureza do bicho,
que tudo assume como natural. Para as suas man-
díbulas, recordações de esquadrias impossíveis, três
terços de corpo. Estilizados aromas de cona. Não
existem roupas ou esquinas suficientes, para onde a
mão se ir esconder. Ali está exposta, a céu nuclear-
mente aberto pelo corpo.

A moça aproxima-se, num mínimo de rosto,


desviando-se dos diálogos transmitidos em portu-
guês do Brasil. Em aflição a moça. Nas suas costas,

vida mulata 29
o pano que ainda não desceu. Tambores intransi-
gentes pedem bocas escancaradas. Seguem-se os
gritos. Desvairados da devassidão. A audiência de
quantos contornos, exige sémen. Do meu orgasmo,
projecta-se uma mancha pelo tapete em tons de
usado. Sémen adulterado pelos açúcares natural-
mente adicionados pela boca. Alguém que inter-
prete este Rorschach efémero. Não há tempo. A
moça, estupefacta. Inscreve-me num lugar e tempo
pouco visitados por ela. Onde há um familiar
morto, à distância da memória. Uma violação que
acontece numa idade de sonho. Desfeita pelo corpo
de outro estranho, em câmara lenta.
Descende de um plano sem sinais de alteração.
Da boca da moça não vem uma repreensão, se a
existe, a guardou, misturada nos créditos finais da
telenovela que agora acaba. Transmite-se: o que
aconteceu é real.

Volto para a cozinha. Fluidez trôpega. Abro a


porta do frigorífico. Vários nomes, numa língua
destilada, são apontados pelas superfícies de vidro.
Verto o líquido que daí sobra, para o meu poço per-
meável. O copo cada vez mais meio, anulando-me
como o elemento mais instável da tabela periódica.
Observo os nomes pela lente. As garrafas mal se
sustêm, esvaziadas de sentido. Prendo o umbigo a
um pilar da realidade, a catástrofe no corpo para

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aqui vai, pouco obedece, imperfeita. Como se vê.
Emparelhado a um diálogo, a palavra espontânea.
Utilizo-a exausta, por este texto, expelida aos vossos
olhos. Inertes esquecidos do seu volume abrasivo,
as palavras emigram, encontrando lugares novos,
espaços de construção de raiz, expurgadas do seu
oxigénio original. À boca de cada um, como as
dizemos excessivas, numa forma provisória.

De ocos a marga mal amassada, no princípio


de uma figura. Paredes espessas, técnica imprópria,
para dedos magros. Na superfície de um espaço
devoluto, onde pernoitam os meus fantasmas preo-
cupados. A sombra que agora projecto, depois dos
braços, sem morada. Para aí vou raramente, para ser
astro.
Inclinado grau de cobertura, o que faço à sorte.
Pelo corredor, recordo-me. Ia na direcção da sala,
o semblante aos tropeções. Tímido pervertido. O
comportamento que escorre, ansioso, pelo meu
corpo a olhar o corpo da mulata. Um continente,
para o qual desloco a massa da minha tormenta. Ela
se desvia meteorologicamente, pelo que se anuncia
de tempestade. Desta se abriga, não quer proble-
mas. Quem os quer de facto, esquece-se. Provêm
do inferior das pedras. Assim. Lacraus velozes;

vida mulata 31
peças afiadas, no lugar que ocupam no tabuleiro
da narrativa. Em reacção a personagens, às quais
não reconheço o corpo pelo nome. Reis equatoriais,
deslocados das suas ameias de pano.
Cavalos com freio descosido pelos dentes,
avariados, resfolegam por entre eles a minha lou-
cura. Captado pelos tímpanos, muitos peões. Pelos
passos, damas sincronizadas. Ameaçam-me duas
moças. Gritam pelos vigilantes. Apareceram rápido,
enquanto lhes suporto o tom agudo. Observo-me
por fora. Entendo-me.
Ao alcance a faca, de trinchar, esquecida no
móvel de gavetas da cozinha. Não havia mais com-
prida. Não sei se o gume melhor. O inverso de um
homem na mão aberta.
Haverá dele o que existir? Por existir? O corpo,
como se repete. Às avessas. Patologia, ou outra que
seja. Com o gume da faca, copio o desenho das
moças pelo picotado dos seus rostos, à pouca dis-
tância. Uma acção simplesmente imprevista, por
parte deste que vos fala. Não é perdão o que procuro,
entredentes, diz o narrador na primeira pessoa con-
fusa. Munição humanizada. Derme habituada aos
dias feridos. O corpo num ponto febril de orvalho.
A passagem à descrição de outros céus, a metá-
fora de um sistema a ar, abandonado à pressa. A
última refeição, rejeitada. As vozes são o pior, antes
de serem impossíveis. Na descrição ínfima, o silên-

32 luís chacho
cio brusco. Os vigilantes aparecem em número de
dois. Reconheço-os. Chipala igual a máscara. Apa-
rece um outro. Desconheço. Terá sido convidado?
Um deles tenta demover o que tenho em mim de
bicho, pela voz. Conhece ele de sobejo os animais,
da infância na província. Não os irmãos, o pai, a
mãe, todos esvaziados do sangue partilhado, em
simultâneo, pela terra. À mesma hora. Lembrou-se
assim um dispositivo, armadilhado de franqueza.
Um dos vigilantes, fatigado com o pula, que
é quisto que se não deseja nem ao primo. No seu
lugar de origem, uma afronta. Aproximo a faca,
pela mão que ousa afiar seu gume à pele desse wi.
Dele mesmo vem a coronha da AK quarenta e sete,
com efeito. No meu rosto, o estilhaço de vidros. O
meu par de óculos se espalha; assim como eu, pelo
chão. Não demoro.
Cambaleio até deixar de me ouvir, a mim, nas
palavras que atiro como pedras, que arranco de
memória à calçada da rua Augusta em Lisboa.
Percorro um traço curto de rua, entrando por
uma porta de uma pastelaria, neste Projecto Nova
Vida, copiada à vista a partir das viagens a Portu-
gal. Peço uma porção de gin. Tenho tempo. Como
habitualmente, duplo. Não tenho tempo. A meio de
um pensamento, sou interrompido pela hesitação
da empregada do balcão, que não tem um verbo que
lhe escorra, pesado, da boca para o pé. Um olhar

vida mulata 33
de dentes, em branco encerrados, pela imagem que
é engolida à força, inteira, por mastigar. Que mal
faz, por todos os poros. Entra um polícia. Equilibro
um sorriso, a toda a largura do espaço. Consoante
o ponto de fuga. O polícia procura por mim, traz
debaixo do braço o seu livro de leis universais. Já o
esperava. Espaço em branco.

Entra outro polícia. Ambos impecáveis na


ocorrência. Partilham entre si, uma educadíssima
discriminação positiva, o peso morto dos meus
braços. Bem preciso. Onde vamos? – Pergunto ao
gelo.
Todos os ajustes de tempo, pela minha pele em
diapasão, perguntam – onde vamos? Não respon-
dem. Chegamos à viatura. Falo eu. Assim foi, o
tempo todo da viagem até à esquadra. Um inter-
rogatório informal. – Como então você? A ator-
mentar as pobres das moças. Você mesmo não tem
namorada? – Perguntam. Tenho. Também o pas-
saporte, preenchido com os vistos de entrada em
outros países, dos quais desisti à última hora. Da
vida, nada. Retroversão pelas laterais, do que não
sou e sei. De uma parede intransponível, a altera-
ção. Nomes que evito, extensos de injúria. Liturgias
de alfaiate, as peças suficientes. Não prestei aten-
ção ao caminho, ocupado que vinha a ofender os
polícias. Estacionam a viatura, comigo em humo-

34 luís chacho
res. Pilha de polaridades. Anseio pela fractura dos
ossos, malembe, um por um, do corpo.
Peço-vos. Transformem o meu dia. Peço-
-vos. Perdi-me, estou bem. Estarei tanto melhor,
enquanto continue a existir álcool no sangue. Pinga
de verdade.
«Me não recordo.», comentei. Interrompe-se o
bicho – acossado, dilacera pelos pulsos a sua raiva.
O meu presente.
Imagens que rasteiram, inquietantes, os torno-
zelos distraídos da figura do corpo. A faixa muti-
lada, de um disco, pela agulha que se arrepende, a
meio, da operação de sutura parcial por sons côn-
cavos. Aleatório pensamento, que se celebra com o
canto distante de um pássaro de imbondeiro. Sem
voz, acordo.

Para este momento, a dissonância metálica da


porta da prisão que se encerra nas minhas costas.
O polícia, a medo, empurra o ar viciado que paira
sobre este aterro construído de divisões em alvena-
ria, com o meu corpo. Assegura-se que respiro.
A escória derivada da fusão da urbe, combinada
com oxigénio. Se acende um princípio de olhos. O
contrário das arestas, que desenho aceleradas por
um papel de confissão.
Entredentes a minha vida, um quarto dos fundos.
Entretenho os polícias, como a excepção deste dia.

vida mulata 35
Um pula, em que tropeçaram. Não é comum,
acontece. Uma vez por cada um que enlouquece.
Mata ou cospe veneno a cobra cuspideira. A única
fauna que vi perto. «Vem só», suspirava na minha
direcção, «Vem». Um dedo sangra à noite. A ferida,
vedada ao corpo esférico de uma palavra. Pelo agora,
instantes: duas celas, um corredor, uma latrina.
Com poucas janelas, a arquitectura do isola-
mento. Assim se projecta um corredor. «Aiuê!».
Ouço hienas, próximas. Do lado direito uma parede
pela qual inscrições de nomes por extenso, erros
ortográficos sem importância. Por quem gritar
numa noite de insónia. Alguns olhos se entendem
longitudinais, acima dos ferros.
Crocodilos vitrificados, ao fundo do corredor.
À direita. Uma cela com população densa, um
regime ditatorial. Subempreiteiro do sistema prin-
cipal. Um soba com implantes de nuvens carrega-
das nos olhos.
O sangue com que sonha, seca o motivo dos
corpos. Porque não dançam eles prostrados? Num
tom carmim acaba aqui o corredor. Na parede fron-
teira ao pátio da esquadra, uma janela. Revindo, da
entrada à esquerda se encontra a cela onde perma-
neci um infinito de vinte e quatro horas. Já faltaram
mais. Na manhã seguinte, a sede. Bebi da água dis-
ponível, a partir dos outros em garrafões de plástico.
Não fiquei doente, uma sorte que guardo. Assim

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como guardo a muralha de gritos dos prisioneiros
novatos. Lhes acompanhei a praxe. Instantanea-
mente putas. Para a limpeza dos lugares de dormir.
No chão, o breu dos outros mais escuros que eu.
Fobados da curiosidade que os alimenta, quando se
aqui entra empurrado. O modo de alerta se activa.
Algoritmo da redenção. Geral.
Decido à queima-roupa que nada tenho a
perder. Assim. Tenho, mas não o digo aos outros.
Nunca digo. Sou este lençol de possível branco ser
rasgado, do umbigo para a periferia. Do abismo
falo, cronometrado, o suficiente para retardar uma
resposta.
Por este grupo espalho o desafio, em febre, um
por um nos olhos. Penso «não vou conseguir!».
Penso «mas vou morrer a pensar». Penso num
animal com mel no pêlo. Um cão tresmalhado da
sua serra. Perdeu-se a si, mas não ao instinto. Haja
saliva, para as feridas lambidas de violência. Um
hábito que não dispo, mas não é religião. Um por
um nos olhos, a degradação de cargas. Calculo o
peso de quem manda, neste avesso do mundo. E
esta não é a prisão pior.
Não exagerando, digo péssimo. «Filho da puta
doente que sou», engulo. Há muito que o sei. A
cela é uma casa sem chaves, algumas dimensões.
Duas divisões comuns onde poucos dormem. Por
olhos de vidro, este material perfeito para contar as

vida mulata 37
secreções do corpo. Não se lhes vê a alma. «Esses
wi bazaram, eles mesmo, só já ali no quê buscar um
coiso». Eu espero. Buscar o princípio à corda do
autoclismo, para a forca. A vontade para a sanita.
À noite do estômago, as estrelas aliviadas na sua
cadência.
A hierarquia de um céu – como se comporta em
espaços fechados?
Um patrão soturno usa óculos escuros que nos
protegem das suas imagens do purgatório. De nós,
diáfanos homens sem ramos. O patrão que manda
no meu rectângulo é brando no contorno, assim
como é o gume de uma faca que desenha a curva de
um osso. Uma malha caída da rede. Fala o francês.
Do Norte, um mar certo de fígados, armas, escravos
entre países que falam de sangue. Que nada vale o
sangue depois de vertido do outro. Num tom pardo,
me permitiu no seu espaço. Tive de me aproximar
da esquina, na sombra perguntar por ele.
Quando tirou os óculos, se traçaram representa-
ções claro-escuro de um ritual.
Em transe o animal de falas, regado com gaso-
lina de avião. O último sopro é seu vento de lima-
lhas. De ferro. Um brilho que sobreviverá aos meus
olhos. Um psicopata africano. Cada continente tem
um plural. A nascer da sua boca, ouvi «o que preci-
sares de cigarros fala só».
O que não ouvi não foi preciso «é bué de

38 luís chacho
kumbu». A todos custa. Do outro patrão, o mais
cordial «não tem makas». Interrogatório informal.
Pergunta por expatriados, alguém branco. Uma
morada transponível. O dinheiro possível de um
lugar. Alguém a quem enganar pelo coração. Tropas
inacreditáveis no peito, infiéis universais. Consumí-
vel do dia seguinte, a razão.
De morrer pela condição meteorologicamente
desfavorável. Um azedume por ninguém. Exibo
tensas as tatuagens do meu braço, a sua sombra
quebrada, projectada de pigmento. À conversa
somos melhores, ao mesmo tempo somos curiosos.
Quem eu sou se pergunta pelo corredor. Digo -
Sou monocórdico bicho de sentimentos.
Por garras encurraladas, entenda-se pavão
gestual. Desperdício de unhas. Transmissão com
cortes. Uma disputa de galos.

A impressão do outro, estrangeiro em tudo.


Fala-se de matéria consumada. De drogas consu-
midas. Se tenta adivinhar o crime cometido pelos
rostos, seus socalcos se desenham de eczemas, cica-
trizes, crostas pontuais. Um negativo de vão, tosco
coração que se reveste à vista das estações. Um
ano magro de pássaros, estes passageiros absolutos
da tempestade. As olheiras, um nível de água das
cheias passadas. No leito do dorso. Afogamento.
Inodoro esqueleto, fragmentado pelas margens.

vida mulata 39
Espaços de pé substituídos por imersões em diálo-
gos só com meio. Resta o livre arbítrio da interpre-
tação, entre pares, do início do final. Do que quero
aqui dizer, com este corpo por metade, se esquece
um Deus corcunda paralelo às veias subterrâneas.
Motivo-me de tinta definitiva, que me deforma o
aceno de proximidade.
Antes um Diabo sazonal, aparição, reduzido a
dente no canto da boca. Do nevoeiro, a melancolia
do unicórnio, asas vastas que afastam o vento e os
outros lugares. Das nuvens lisas, a voragem da pele
peregrina, no seu outro céu de separação.
As coisas próximas à paciência de um elefante.
A pedra na mão, um gesto de imortalidade.
Caduca uma folha que cai branca, em uma pilha
de destroços sem relatos. De indução sou. Da cons-
ciente alteração do pensamento linear, por defeito,
sou. Sou das rotinas. A isso bebo, e não posso. Não
pela capacidade aditiva da substância, também
isso, mas para cumprir um pathos. Umbilical pres-
crição do universo. «Tá bala», penso. Ente isolado
se confronta entre o mal que deseja e o bem que
nunca chega a ser um lugar. Coito interrompido,
por baldes de água. Cães afónicos. Sotaques da
loucura. O que resta, como impertinência da alma
que insiste ser outro corpo, paralelo à vida que des-
preza. A raiz extraída do primeiro número que a
boca disse.

40 luís chacho
Descair para o centro do sonho. No mundo
onde desisto – alegria em grilhetas – a insanidade
é uma bênção. «Tá bater», dizem. «Meu muxima»,
dizem também. Das tripas da vida digo eu coração.
O sonho construído de constrangimento. Trânsito
infernal.

A alma se edifica em altura, a partir das artérias


da cidade. Do corpo. Semáforos de vidro. Os olhos.
Aos olhos. Era segunda-feira.

vida mulata 41
Vida mulata de Luís
Chacho, publicado
pela Enfermaria 6, foi
composto em caracteres
Adobe Caslon Pro e
publicado online no site
da Enfermaria 6 (www.
enfermaria6.com) em
setembro de 2017.
www.enfermaria6.com

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