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8/10/2020 Tragédia ideológica

EDIÇÃO 167 | AGOSTO_2020

questões da ultradireita

TRAGÉDIA IDEOLÓGICA
O bolsolavismo foi o hospedeiro perfeito para as tendências totalitárias de uma geração
MARTIM VASQUES DA CUNHA

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O monstro híbrido: anti-intelectualismo embalado em retórica radical e uma pretensa elite disposta a pôr em marcha um
comportamento totalitário, por meio de um “líder providencial” CREDITO: KLEBER SALES_2020

Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,


idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada.
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na participação na vida coletiva, mas no cultivo da consciência


individual.

Naqueles anos da era FHC, o Partido dos Trabalhadores, embora ainda


estivesse um tanto longe da Presidência da República, era quase
unanimidade nas redações e nas universidades. A retórica belicosa dos
seus militantes, somada ao hábito de reduzir as relações humanas a
questões políticas ou ideológicas, me irritava profundamente. Assim,
Carvalho passou a representar para mim, e para outras pessoas da minha
geração igualmente sufocadas com o pensamento do PT, um papel
parecido com o de Monteiro Lobato nas décadas de 1930 e 1940, em sua
oposição a Getúlio Vargas.

Além disso, Carvalho oferecia a chance de redescobrir autores nunca


citados na imprensa, como o ensaísta francês René Guénon, o filósofo
alemão Eric Voegelin, o escritor, também francês, Bertrand de Jouvenel,
sem falar de pensadores brasileiros banidos do cânone universitário por
sua posição liberal-conservadora, como José Osvaldo de Meira Penna,
Mario Vieira de Mello e Gustavo Corção. Mais ainda: Carvalho tinha a
ousadia de desafiar diretamente alguns dos expoentes da intelligentsia de
esquerda no país, entre eles Leandro Konder, Marilena Chaui e José
Américo Motta Pessanha, e fazer um contraponto ao niilismo, que
sempre caracterizou o comportamento desses intelectuais, ao defender de
maneira obstinada a dimensão transcendente da vida. O niilismo, da
parte desses professores, advém do fato de julgarem que a vida não tem
sentido fora da ordem social, recusando a explicação metafísica da
existência. Carvalho defendia que essa atitude poderia ser combatida por
meio do estudo e do amor pela verdade.

N
o início dos anos 2000, comecei a participar ativamente das
discussões de novos grupos à direita no fórum virtual Sapientia,
criado por Carvalho em sua página na internet. Ali, eu conversava
sobre religião, filosofia, literatura e música sem me sentir cerceado pelos
slogans esquerdistas dos meus professores. Na mesma época, fui com

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Amêndola a uma palestra de Carvalho em Campinas, onde eu então


morava com minha família. A palestra aconteceu no mais improvável dos
lugares para alguém que fustigava o pensamento universitário: a
faculdade de letras da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Fumando sem parar seus cigarros sem filtro da marca francesa Gauloises,
Carvalho explicou a uma plateia de menos de trinta pessoas suas ideias
sobre a elite intelectual brasileira, sempre soltando piadas, trocadilhos e
algumas farpas maliciosas.

Esse tipo de atitude me influenciou muito quando comecei a colaborar


com o site O Indivíduo, editado por Álvaro Velloso de Carvalho, no final
de 2001. Quatro anos antes, ele e dois colaboradores do site, Pedro Sette-
Câmara e Sergio de Biasi, haviam sido vítimas de linchamento e
acusações injustas de racismo por terem publicado um texto polêmico
sobre a Semana da Consciência Negra. O artigo, escrito por Sette-Câmara,
com uma verve chamada de “politicamente incorreta” pelos jornais, dizia
que “toda decisão tomada com base em raça é racista” e que as ações
afirmativas “só aumentaram o racismo nos Estados Unidos”. Afirmava
ainda que, se elas fossem aplicadas no Brasil, produziriam um “efeito
muito mais nefasto” e propunham, ironicamente, a realização da Semana
da Consciência Branca.

Carvalho foi um dos poucos a sair em defesa dos três rapazes, num
programa de debates da GloboNews comandado pelo jornalista Pedro
Bial, também com a presença de Sette-Câmara. A essa altura, o autor de
O Jardim das Aflições vinha obtendo certo reconhecimento na mídia e,
nos anos seguintes, passaria a publicar colunas em jornais como O Globo
e Jornal da Tarde, e nas revistas Época, Bravo! e República.

Foi a colaboração com o site O Indivíduo que me possibilitou conhecer


pessoas alinhadas com ideias próximas das minhas e, também, com a
filha de Carvalho, Maria Inês de Carvalho, que, soube depois, era
namorada do meu vizinho e amigo, Pablo Corbett.

S
ó fui ter um novo encontro pessoal com Olavo de Carvalho em 2001,
após o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em 11 de setembro. Por

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Ingeborg Bachmann, Uma Espécie de Perda

Goiaba Gigante em Vasos


Maior e Melhor Site de Plantas
do Brasil

A
ntes da peste, a palavra que unia as diversas correntes da nova
direita brasileira era “liberdade”.

Para mim, tudo começou em 1999, quando um amigo, Dionisius


Amêndola, me indicou um livro com título instigante: O Jardim das
Aflições, publicado quatro anos antes por um ensaísta chamado Olavo de
Carvalho. Eu já conhecia o autor de uma entrevista que dera à (extinta)
revista República, em 1997, com declarações pontuadas de ironia e uma
visão idiossincrática sobre alguns mandarins da intelectualidade de
esquerda no Brasil. Também conhecia o livro O Imbecil Coletivo, de 1996,
uma coletânea de artigos de Carvalho, que, apesar da falta de unidade,
me agradara muito. Suas ideias eram um refresco para um jovem como
eu, que, no terceiro ano de jornalismo da PUC-Campinas, nunca havia
gostado do marxismo e lia de forma caótica os escritos de José Guilherme
Merquior, Paulo Francis e Raymond Aron.

Foi, porém, O Jardim das Aflições que me levou a repensar a minha


própria vida. Com uma prosa hipnotizante e um raciocínio que amarrava
as pontas soltas de eventos políticos da minha adolescência – como o
impeachment de Fernando Collor, em 1992 –, o livro me abriu
possibilidades de interpretações da realidade que não eram transmitidas
no meu curso universitário. Nessa época, um tema me era
particularmente caro: a importância da vida interior, fundamentada não

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S
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causa de um imbróglio criado pelo PT em Campinas, eu tinha sido


envolvido injustamente na investigação do homicídio do prefeito da
cidade, Antonio da Costa Santos (PT), morto a tiros em 10 de setembro.
Uma amiga em comum conseguiu que Carvalho ouvisse a minha versão
da história. Ele se compadeceu e logo passou a me defender em suas
colunas na imprensa. Isso fez com que a situação mudasse e o PT
desistisse da perseguição política.[1]

Num dia de novembro de 2001, por causa dessa confusão toda, ocorreu
outro fato insólito. Minha mãe me ligou desesperada porque havia
recebido um e-mail, com a logomarca forjada da agência Reuters,
dizendo que eu tinha sido assassinado perto de um shopping em
Campinas. O homicida era ninguém mais, ninguém menos que Olavo de
Carvalho. A mentira me causou risos, mas deixou minha família
assustada. Durante uma conversa ao telefone com Carvalho (que também
tirou sarro da situação, com seu humor característico), ele sugeriu que,
para aplacar a tensão dos meus parentes, eu fosse passar uma semana na
casa dele em Petrópolis, com sua filha Maria Inês e Corbett.

Foi uma visita de poucos dias, muito agradável. Fiquei hospedado com
meus amigos numa casa anexa ao casarão onde Carvalho morava, no
topo de um morro. Um dia, ele decidiu viajar ao Rio de Janeiro para
resolver questões pessoais e ir ao lançamento do romance Brás, Quincas
& Cia., de Antônio Fernando Borges, na livraria Argumento, no Leblon.
Alugou uma Kia Besta, na qual embarcamos eu e toda a família de
Carvalho – sua mulher, Roxane, os filhos de ambos, Leilah e Pedro, a
assistente Josiane, Maria Inês (filha de outro casamento) e o namorado.

Sempre que saía de casa, Carvalho fazia questão de levar dois itens para
ele essenciais: cigarros e livros. Para aquela ida ao Rio, separou a História
das Ideias Políticas, de Eric Voegelin, uma obra do pensador alemão
Eugen Rosenstock-Huessy e um volume de contos do norte-americano
Raymond Chandler, que dizia ser um dos maiores estilistas da língua
inglesa, perito em descrever cenas de luta. Enquanto todos conversavam
alegremente no veículo, Carvalho, no banco da frente, passou a viagem
fumando e lendo em silêncio, alternadamente, trechos dos três livros,
como se fossem partes de uma só obra.

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Fomos diretamente para a Cinelândia, no Centro do Rio, onde Carvalho


tinha problemas a resolver numa repartição pública. Ainda está bem viva
na minha memória esta cena que testemunhei: quando ele voltava para o
carro, um mendigo se aproximou e lhe pediu uma esmola. Carvalho,
então, sacou do bolso um grosso maço de dinheiro e deu ao homem uma
nota de 100 reais. Todo feliz, o pobre-diabo sorriu como se tivesse
ocorrido um milagre.

Logo depois, estávamos no restaurante Bar Brasil, na Avenida Mem de


Sá. Os familiares de Carvalho diziam que ele só os levava para comer em
lugares onde havia “o rastro de mijo de alguém”, mas garantiram que ali
a comida era muito boa. Durante o almoço, perguntei-lhe sobre Voegelin,
cuja obra eu também estava lendo na época. Durante duas horas, ele
discorreu sobre o opus inteiro do filósofo alemão e contou do seu desejo
de escrever um livro a respeito da identidade brasileira explicada por
meio da história da literatura, a corrupção moral das universidades e o
modo como entendia a filosofia mundial – tudo isso ele despejou num
único vórtice, em meio a baforadas de cigarro, sem nenhuma
preocupação com a comida que era servida à mesa. Enquanto ele falava,
notei que os garçons do Bar Brasil olhavam feio para nós. Só fui entender
o motivo quando, na saída do restaurante, vi os garçons correrem para
arrumar a mesa onde estávamos – debaixo das cadeiras, Carvalho lançara
uma infinidade de bitucas de cigarro.

R
eencontrei-me pessoalmente com Carvalho pela última vez em
2004. Eu havia me mudado para São Paulo e trabalhava como
vendedor na Livraria Cultura. Ele estava preparando sua mudança
para os Estados Unidos, como correspondente do Diário do Comércio, o
único jornal para o qual lhe restara escrever, depois de brigar com os
diretores de redação de várias publicações por causa de suas opiniões
controversas. Mas isso pouco me importava naquele momento, pois eu já
encontrara outra pessoa que se tornara para mim uma espécie de
antídoto ao polemista de O Imbecil Coletivo: o poeta Bruno Tolentino.

Apesar de conhecer a obra de Tolentino, só estive com ele pessoalmente


no início de 2001, quando assisti a sua palestra na Academia Campinense

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de Letras. Ali, em meio a um público de cerca de dez pessoas, percebi que


Tolentino tinha algo que faltava a Carvalho: uma sensibilidade realmente
sofisticada, que apresentou, a mim e a meus amigos, poetas como
Geoffrey Hill e Yves Bonnefoy, além de lançar nova luz sobre a obra de
Manuel Bandeira e Jorge de Lima.

Carvalho e Tolentino tinham sido amigos inseparáveis entre 1994 e 1998,


ambos provocando rebuliço na mídia, como as declarações do poeta à
Veja, em 1996, dizendo que Caetano Veloso e Chico Buarque eram
artistas medíocres. Tolentino foi acusado de oportunismo, vaidade e
mitomania (o que não deixava de ser verdade), e Carvalho o defendeu.
Apesar das aparentes semelhanças entre os dois, muitas coisas os
separavam, em especial o fato de Tolentino considerar relevantes os
estudos universitários, apesar de suas falhas, justamente porque era um
meio de não cair na armadilha do anti-intelectualismo (Carvalho não se
cansava de depreciar a universidade).

Foi esse um dos principais motivos que me levaram a me aproximar de


Tolentino. Eu sentia que faltava algo nas ideias idiossincráticas de
Carvalho e me incomodava o ódio que ele tinha pela academia. Numa de
nossas conversas, o poeta me disse que uma das características das
pessoas que vivenciam “o mundo como Ideia”, conforme ele dizia, era a
ilusão de que, para escapar do ambiente cultural/universitário brasileiro,
a melhor solução seria recorrer ao autodidatismo. E era justamente o
autodidatismo que Carvalho pregava aos seus alunos como virtude, uma
vez que, na sua concepção, a vida universitária era irrelevante para quem
pretendesse ser um filósofo. Certa vez, Tolentino me disse: “O erro do
Aiatolavo (como costumava se referir a Carvalho) é achar que ele é a
única fonte de todo o debate intelectual. Por pior que seja a universidade,
ela lhe dá uma chance de você praticar o contraditório, de provar o seu
ponto usando uma linha lógica de raciocínio, sem saltos. Quem segue o
modo de pensar do Olavo só tem uma maneira de refletir: a que vai rumo
à loucura.”

Segui o conselho de Tolentino para continuar meus estudos


universitários e, em 2006, enquanto trabalhava na Livraria Cultura, já
formado em jornalismo, procurei quem pudesse me orientar no
mestrado. Essa pessoa foi o professor Luiz Felipe Pondé, que ensinava

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filosofia da religião na PUC-SP e ainda não era colunista da Folha de S.


Paulo, nem o intelectual superstar de programas de entrevistas e
palestras corporativas. Pondé frequentava com assiduidade a filial da
Cultura do VillaLobos e, um dia, viu expostos num dos balcões um
conjunto de livros de autores conservadores apresentados a mim por
Carvalho ou Tolentino, e colocados ali por indicação minha e de alguns
vendedores (entre eles Amêndola, que me apresentou à obra de
Carvalho). Pondé ficou interessado em vários deles, como os de Edmund
Burke, Michael Oakeshott, Leo Strauss, Russell Kirk e Roger Scruton.
Todos esses autores iriam fazer parte do cânone intelectual da nova
mentalidade conservadora no Brasil.

Alguns meses depois, em 2007, Pondé explicou numa entrevista à Folha


quais eram as diversas correntes conservadoras, citando alguns daqueles
pensadores. A mídia começava a manifestar grande interesse pelo
assunto, blogs de direita pipocavam no país, e editoras pequenas
lançavam, um depois do outro, livros a respeito. Seguiam esse caminho
jornais de grande circulação como a Folha e O Globo, e também as
revistas Bravo! e República, ambas dirigidas por Luiz Felipe D’Ávila,
com a participação dos jornalistas Wagner Carelli e Reinaldo Azevedo,
que tiveram a audácia de contratar como colunistas esses dois sujeitos
odiados naqueles tempos: Carvalho e Tolentino.

P
ondé apresentou a mim uma terceira via. Na época, ele não era
afeito a polêmicas, mas, sempre que se via envolvido em alguma,
buscava sustentá-la por meio da argumentação acadêmica, sem
recorrer a ofensas pessoais e, sobretudo, sem cair no anti-intelectualismo
de Carvalho.

Foi com o mesmo propósito – difundir o pensamento conservador


universitário num tom que não fosse nem belicoso nem ofensivo – que eu
e alguns amigos criamos em 2008 a revista cultural Dicta&Contradicta,
inspirados por Tolentino, que morrera um ano antes, vítima da Aids. De
minha parte, montei um departamento de humanidades para o Instituto
Internacional de Ciências Sociais (IICS). A entidade tinha a participação
do Opus Dei, da qual nunca fiz parte, mas negociei arduamente com a

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diretoria do instituto para que o departamento de humanidades fosse


pluralista e – o mais importante – secular.

Em ambos os projetos, o propósito era apresentar um outro tipo de


perspectiva intelectual, diverso dos extremos defendidos por Carvalho e
pela esquerda petista. Para tanto, foi fundamental o contato com o
cientista político português João Pereira Coutinho, que nos encantava
com suas colunas na Folha.

A linha editorial da Dicta&Contradicta, inspirada no curso A Literatura


da Política, que Coutinho dera no IICS, defendia que o conservadorismo
não deveria ser um pensamento sistemático, muito menos um dogma. O
importante era ter uma disposição conservadora, que oscilasse entre o
reconhecimento da relevância da tradição histórica e o ceticismo com
relação às engrenagens do mundo. Para nós, a natureza humana era
moldada, para recorrer à definição do filósofo britânico Anthony
Quinton, por uma política da imperfeição, segundo a qual se aceita a
fragilidade intrínseca do homem, sem deixar de lado a força da liberdade
individual. Isso implicava distinguir o conservador do reacionário, que é
uma pessoa cheia de certezas, com a qual é impossível dialogar, e que
considera o poder de Estado acima de qualquer suspeita e instrumento
obrigatório para alterar o curso da história.

O primeiro número da Dicta foi bem recebido pelos grandes jornais, que
fizeram reportagens a respeito da publicação. Acredito que a revista
também foi importante para que a Veja “descobrisse” os autores
estrangeiros apresentados por nós, como Scruton e o psiquiatra inglês
Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels). A Dicta também
dialogou com alguns nomes da intelligentsia brasileira e estrangeira,
como o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o
escritor Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura. E publicou dois
artigos de Carvalho, um sobre Mario Ferreira dos Santos, outro sobre
Ludwig Wittgenstein.

Apesar de promover a alta cultura, a revista não se esqueceu de observar


certos fenômenos da cultura de massa, como Tropa de Elite 2 – O Inimigo
Agora É Outro, de 2010, continuação do polêmico filme lançado três anos
antes pelo diretor José Padilha e o roteirista Bráulio Mantovani. Ambos

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participaram de um debate promovido pela revista, mediado pelo


economista Eduardo Giannetti da Fonseca, que atraiu um público de
cerca de duzentas pessoas – o que, para nós da Dicta, pareceu um sinal
do surgimento de um novo Brasil, que ansiava por novas ideias.

Quando a revista parou de circular, em 2013, as ideias conservadoras já


tinham avançado bastante no Brasil. Dezenas de grupos de direita
haviam surgido na internet, revelando a existência no país de um vasto
número de pessoas – jovens, em grande parte – que decidiram ir na
contramão da mentalidade hegemônica à época. A publicação furou um
bloqueio intelectual que, até então, somente Carvalho, Tolentino, a
equipe da Bravo!, da República e João Pereira Coutinho tinham
conseguido furar.

A esquerda, contudo, se mostrava empedernida na crença de ser a dona


da verdade no debate público, mesmo dando a entender que defendia a
pluralidade de ideias. Uma das provas que tive desse comportamento foi
quando propus escrever um ensaio para uma revista cultural que
adorava colocar na capa, de três em três números, alguma declaração de
Marilena Chaui. Ao saber que eu incluiria no meu texto uma referência a
Leo Strauss (erroneamente classificado como “neoconservador”), a
editora-chefe da publicação me disse, sem hesitar, que seu periódico
“tinha orgulho de ser de esquerda e, portanto, vetaria ali qualquer
menção a um pensamento de direita”.

Naquele mesmo ano, a nova direita se aproveitou do sucesso das redes


sociais, a começar pelo Twitter e o Orkut, passando depois para o
Facebook, o que se tornaria uma mania. A descentralização do
conhecimento possibilitou a descoberta de um enorme público ansiando
por algo diferente do que era oferecido, em termos intelectuais, na grande
mídia e no mercado editorial. Mas também na imprensa começavam a ser
projetados à condição de astros certos jornalistas e universitários com
perfil conservador como Pondé e Reinaldo Azevedo, a principal estrela
do site da revista Veja. Editoras de menor porte, como É Realizações e
Vide Editorial, passaram a publicar o cânone conservador. A Record, no
campo das grandes editoras, se dedicava aos autores nacionais, como
Carvalho, de quem publicou, em 2013, a coletânea O Mínimo que Você
Precisa para Não Ser um Idiota.

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Foi Carlos Andreazza, então editor-executivo de não ficção da Record,


um dos primeiros a perceber que uma nova onda política e de
pensamento estava se formando nas frestas da sociedade brasileira. Para
divulgar o lançamento da coletânea de Carvalho, ele usou e abusou da
propaganda nas redes sociais, aproveitando-se de uma teia de contatos já
formada por influenciadores digitais, como o publicitário Alexandre
Borges, o professor de filosofia Francisco Razzo, o bacharel Gustavo
Nogy e os universitários Flavio Morgenstern e Filipe Martins – que se
tornou assessor especial para assuntos internacionais do governo Jair
Bolsonaro e, segundo a imprensa, é um dos expoentes do chamado
“gabinete do ódio”.

N
aquele ano, o homem que havia escrito O Jardim das Aflições era
outro. Apesar de ter criado um curso online de filosofia com a
excessiva duração de cinco anos (mais longo que um curso
universitário de ciências humanas), Carvalho não se preocupava mais
com “o estudo e o amor pela verdade”. Seu vocabulário, articulado em
um programa de rádio na internet batizado de True Outspeak, além de
chulo, era agora dominado por slogans, como “guerra cultural”,
“desonestidade intelectual”, “senso de proporções”, “comunista” e – o
preferido dele – “analfabeto funcional”. Era um indício de que, pouco a
pouco, ele deixara de ser um conservador e se revelara um reacionário.
De qualquer modo, O Mínimo que Você Precisa para Não Ser um Idiota
foi um sucesso (em 2017, a Record comemorou a marca de 100 mil
exemplares vendidos).

Carvalho tornou-se uma celebridade. Em 2014, quando o Brasil ainda


sofria com os abalos causados pelas manifestações de junho do ano
anterior e parte da população se mostrava insatisfeita com o governo de
Dilma Rousseff por causa dos escândalos de corrupção, as palavras de
Carvalho no best-seller se espalharam como uma epidemia, como a
afirmação peremptória de que uma elite intelectual corrompida era
apenas o início de um governo criminoso. Prova disso foi que, já nos
primeiros protestos de rua a favor do impeachment de Dilma, viam-se
pessoas com camisetas ou cartazes inscritos com a seguinte frase: “Olavo
tem razão.”

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Outro fato aumentou ainda mais a popularidade de Carvalho: as


conversas por internet, abertas a todos, que ele realizou com o cantor e
compositor Lobão, recém-convertido ao pensamento conservador e cuja
fama contribuiu para fazer crescer exponencialmente o número de
seguidores do autor de O Imbecil Coletivo no Facebook. Esses hangouts
de Carvalho na rede foram responsáveis por unir algumas pessoas de
direita que antes tinham divergências com ele, como o economista
Rodrigo Constantino – autor de Esquerda Caviar, outro best-seller da
Record – e, em menor grau, Pondé, que colocara de lado a erudição e se
metamorfoseara em mais um polemista.

Enquanto isso, era gestado outro movimento da nova direita, o da união


entre o liberalismo e o libertarianismo, impulsionado principalmente pelo
Instituto Mises Brasil, entidade encabeçada pelo empresário Helio
Beltrão, que depois influenciaria na criação do Partido Novo e do
Movimento Brasil Livre (MBL). Essa vertente é moldada pelas ideias dos
economistas Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek e Murray
Rothbard, além do cientista político Hans-Hermann Hoppe – a chamada
escola austríaca –, que prega a defesa radical das liberdades individuais,
a partir de dois pilares: a propriedade privada e o Estado mínimo. Essa
corrente passou a competir com Carvalho nas manifestações de rua, com
seus adeptos exibindo uma frase de comando também marcante: “Mais
Mises, menos Marx.”

Andreazza continuou a lançar outros livros com a mesma temática,


igualmente bem-sucedidos comercialmente: Pare de Acreditar no
Governo, de Bruno Garschagen; Por Trás da Máscara, de Flavio
Morgenstern; A Corrupção da Inteligência, de Flávio Gordon; e A
Imaginação Totalitária, de Francisco Razzo. Um dos primeiros a romper
publicamente com Carvalho, Razzo chamou a atenção para a forma
autoritária como o polemista se relacionava com seus alunos e
admiradores, exigindo nada menos que a total submissão – outra
característica evidente do seu anti-intelectualismo.

Q
uanto a mim, já casado e com um doutorado em filosofia política
feito na USP, eu tentava sobreviver escrevendo textos para a

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Q
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imprensa e fazendo projetos de consultoria para empresas de


telecomunicação. Também fiz um livro que seria editado por Andreazza,
A Poeira da Glória, sobre a crítica cultural brasileira, odiado com todas as
forças por Carvalho, que alegou tratar-se de um trabalho mal escrito, mas
foi incapaz de apresentar sequer um único argumento objetivo contra as
teses que expus.

Em 2016, fui convidado a dar um curso chamado Democracia e Escola


Austríaca na pós-graduação do Instituto Mises. Na minha primeira
turma, havia algumas celebridades da nova direita, como o pastor e
escritor Yago Martins e um deputado federal por São Paulo que causava
frisson entre as (poucas) alunas da disciplina – Eduardo Bolsonaro. Não
era por menos: o nome do pai dele já estava cotado para concorrer às
eleições presidenciais de 2018.

O mainstream político e midiático estava seriamente abalado com a


vitória surpreendente de Donald Trump, em 2016, e com o Brexit, o
referendo que tirou a Grã-Bretanha da União Europeia, no mesmo ano.
Nesse meio-tempo, o oportunismo tático de Carvalho voltou a se
manifestar, o que provava que seu projeto de formação de uma elite
intelectual, no fundo, era apenas um disfarce para conquistar outro tipo
de poder. Depois de ter flertado com Lula, nas eleições de 1989, e com
Ciro Gomes e Aécio Neves, nas de 2014, ele encontrou seu príncipe
encantado em Jair Bolsonaro, o que deu origem a esse monstro híbrido
que destruiria a nova direita: o bolsolavismo.

Esse monstro subterrâneo – como busquei explicar em meu livro A


Tirania dos Especialistas (2019) – se caracteriza principalmente por ser
uma forma peculiar de anti-intelectualismo. Sua maior pretensão é
provocar uma grande mudança no ser humano, em especial nos
brasileiros, insuflada por um discurso violento, que, por sua vez, vem
embalado numa retórica filosófica ou religiosa cuja intenção é resolver
todos os problemas estruturais da sociedade por meio de ações extremas
e radicais. Assim, a pretensa elite intelectual criada por Carvalho
consistiria apenas nos membros por ele reunidos, aqueles capazes de lhe
prestar permanente devoção, provocada pelo sentimento de terem
recebido uma iluminação celestial. Com isso, todos esses membros
entenderiam que o centro do poder é igual ao centro da verdade, como

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diria Václav Havel, pondo em marcha um comportamento explicitamente


totalitário.

Esse poder em específico não tem nada a ver com política ou dinheiro, e
sim com uma pseudoautoridade espiritual. Mas sua contrapartida prática
é um “líder providencial” capaz de realizar a integração plena entre o
Estado e o resto da sociedade. O liberalismo brasileiro seria atraído
facilmente para esse feitiço, pois se alimenta daquilo que Lionel Trilling
chamava de “imaginação liberal”, fundada na “negação das emoções”. E,
por ser fundada na negação das emoções, está em contínuo esforço para
simplificar (e tentar organizar) este mundo, que é “um lugar complexo,
inesperado e terrível”, impossível de ser “sempre entendido pela mente
humana da mesma maneira que ela é usada em nossas tarefas
cotidianas”.

Também no campo econômico, o liberalismo à brasileira era um terreno


fértil para esse projeto de poder baseado no anti-intelectualismo e na
perversão da filosofia, além de ansiar por um comandante que, no caso,
orientasse e organizasse esse ser complexo e terrível chamado “mercado”.
Foi o que motivou, por exemplo, o Instituto Mises, entre outras
instituições, a apoiar um economista pouco conhecido, Paulo Guedes,
que se vendia como um ministro inovador e foi visto como o conselheiro
ideal para o ex-capitão que revolucionaria a economia brasileira.
Enquanto isso, Carvalho se oferecia para o mesmo tipo de
aconselhamento nas áreas da educação e da cultura. Ambos, Guedes e
Carvalho, estariam a serviço do “líder providencial”. O resultado desse
caldeirão forjado pela “imaginação liberal” foi a vitória de Jair Bolsonaro
nas eleições presidenciais de 2018, com 57,8 milhões de votos.

V
olto à minha aula no Instituto Mises. O deputado Eduardo
Bolsonaro foi um aluno educado e fez um bom trabalho final sobre
o princípio da tolerância em Karl Popper, mas eu tinha dúvida se
ele prestava atenção ao que era dito, já que parecia estar pensando em
outra coisa.

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Em uma aula sobre o livro Democracia: O Deus que Falhou, de Hans-


Hermann Hoppe, uma das bíblias do libertarianismo, resolvi mostrar
algumas contradições do pensador – apelidado por seus pares de Dr.
Fantástico, em referência ao cientista maluco do filme de Stanley Kubrick.
Dei especial atenção a um longo parágrafo do livro, no qual Hoppe
afirma que “não pode haver tolerância para com os democratas e os
comunistas em uma ordem social libertária”. E acrescenta: “Eles [os
democratas e comunistas] terão de ser fisicamente separados e expulsos
da sociedade. Da mesma forma, em uma aliança fundada com a
finalidade de proteger a família e os clãs, não pode haver tolerância para
com aqueles que habitualmente promovem estilos de vida incompatíveis
com esse objetivo. Eles – os defensores de estilos de vida alternativos,
avessos à família e a tudo que é centrado no parentesco (como, por
exemplo, o hedonismo, o parasitismo, o culto da natureza e do meio
ambiente, a homossexualidade ou o comunismo) – terão de ser também
removidos fisicamente da sociedade para que se preserve a ordem
libertária.”

Enquanto explicava esse trecho, alertei aos alunos que essa “ordem social
libertária” de Hoppe era, de fato, uma ordem social totalitária. A sala de
aula ficou em total silêncio – exceto Eduardo Bolsonaro, que disse:
“Professor, lá em casa temos armas e facas para que isso aconteça aqui, no
Brasil.”

F
oi nesse instante que percebi que estava envolvido na tragédia que
atingira a nova direita brasileira. Ou, talvez, eu já estivesse
mergulhado nela havia anos e apenas continuasse praticando as
“ruminações de um lerdo”. Ao escutar aquela frase, fiquei paralisado,
como os demais presentes naquela sala. Engoli em seco e encarei aquilo
como uma blague, uma provocação. Mas não era.

O escritor norte-americano Norman Maclean afirma que se pode localizar


precisamente um ato trágico numa única palavra, seja em uma obra de
arte, seja na história de uma vida. O “aqui” dito por Eduardo Bolsonaro
foi, para mim, esse termo. Nessa palavra estava concentrado tudo o que
aconteceria depois, tanto comigo quanto com o país: a violenta disputa

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ideológica não só pelos votos, mas pela mente e o coração dos eleitores. E,
com certeza, a recusa do real diante da gravidade de uma peste.

O meu silêncio não significou apoio à frase do deputado federal. Jamais


imaginei votar em Jair Bolsonaro: não fui às urnas, simplesmente, e
paguei a multa eleitoral, como faço há mais de vinte anos, já que vejo a
política partidária como uma atividade menor. Mas ali se manifestou
uma das piores características da nova direita brasileira: a covardia.

Em A Questão da Culpa, o filósofo alemão Karl Jaspers comenta sobre as


reparações jurídicas, morais e metafísicas com que a Alemanha nazista
deveria arcar diante do mundo por causa da Segunda Guerra Mundial e
do Holocausto. Ele explica a culpa e a covardia como “uma vida na
máscara”, atitude adotada pelo sujeito que deseja sobreviver, em
particular em uma cultura totalitária. As diversas correntes da nova
direita, por conveniência e por acreditarem que havia um inimigo
comum (o PT), anestesiaram-se durante o processo que levou Bolsonaro
ao poder, mesmo sabendo que isso resultaria numa catástrofe. Fizeram,
assim, da máscara o princípio de sua existência.

Esse tipo de vida sob disfarce constante anestesiou ressentimentos que


sempre existiram entre os principais atores das correntes de direita e
acabou culminando nesse sanatório que é o governo Bolsonaro, com sua
frente de linchamentos virtuais coordenados pelo “gabinete do ódio”.

O bolsolavismo é o agente desse “ódio organizado”, cujos efeitos nocivos


se espalham pelas bases da vida social brasileira. Por meio de uma
“ciberguerra”, cujos alvos foram milhões no Facebook, Instagram,
Twitter, WhatsApp, YouTube, Reddit e Google, os membros dessa nova
força política conseguiram manobrar a opinião pública. Seus métodos
favoritos foram a invasão de páginas nas redes sociais (via hackers); a
criação de notícias falsas (as fake news, como a de que o petista Fernando
Haddad, quando era ministro da Educação, teria mandado distribuir
para os alunos das escolas públicas um kit gay); o emprego de robôs (os
bots), que se multiplicam a cada retuíte de algum influenciador digital
famoso (como, por exemplo, Eduardo Bolsonaro); o investimento
financeiro em candidatos que jamais teriam a mínima chance de se eleger
(como o caso do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança);

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e o incentivo a polemistas digitais, posando de santos do intelecto, como


Bernardo Küster e Allan dos Santos (ambos abençoados por Olavo de
Carvalho).

A principal meta seria promover uma “revolução populista” – leia-se:


golpe –, abalar a fé cívica que fundamenta a democracia brasileira e criar
um “segundo governo”, que não conquistou seu poder por meio do voto.
A missão desse “estado paralelo” é esgarçar o tecido social até o limite da
ruptura institucional. Não é exagero afirmar que essa ralé no poder, com
toda a malícia do mundo, infectou o país com um outro tipo de mal, a
mentira, cujo contágio possibilitou a tolerância nefasta com a violência
policial e com a milícia, além de, claro, o descaso com os milhares de
mortos durante a pandemia.

E
nquanto isso, pessoas como Carlos Andreazza (que, embora seja
editor de Carvalho na Record, trilhou, em seu papel de jornalista,
um caminho divergente ao bolsolavismo), Alexandre Borges,
Francisco Razzo, Lobão, Dionisius Amêndola e eu percebemos ter sido os
“vencidos da vida”. Juntou-se a nós Renan Santos, do MBL, um dos
responsáveis pelo impeachment de Dilma e apoiador da candidatura
Bolsonaro no segundo turno. Santos passou a ter um papel importante na
discussão sobre como impedir esse “governo das sombras”, pois viu que
os seus motivos, puramente pragmáticos, foram também responsáveis
por nos levar a essa situação.

A tragédia da nova direita se ampliou com a pandemia. Sem dúvida, um


dos principais responsáveis pelas mortes no Brasil é o presidente Jair
Bolsonaro, junto a seus apaniguados, entre eles Olavo de Carvalho e
Paulo Guedes. Eles são os verdadeiros reacionários que tentam colocar
em prática o projeto totalitário de Hoppe de eliminar direta ou
indiretamente os seus oponentes – no caso, o próprio povo brasileiro,
tendo em vista o modo como o governo se comportou em face do avanço
do novo coronavírus.

Em A Peste (1947), de Albert Camus, um personagem confessa a um


amigo: “Pensei que estava lutando contra a peste. Eu me dei conta de

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que, indiretamente, tinha apoiado a morte de milhares de homens, de que


tinha causado suas mortes ao aprovar ações e princípios que
inevitavelmente levaram a elas.” Alguns de nós, na nova direita, agora se
dão conta de que temos de assumir o “peso da responsabilidade” em
relação aos nossos erros, sendo que o principal deles foi não ter percebido
que o bolsolavismo se tornou o hospedeiro perfeito para levar a cabo a
nossa tendência totalitária.

O desafio atual é separar o joio do trigo, não só em termos morais, entre


amigos e parceiros que antes defendíamos (e nos quais não podemos
mais confiar, porque foram cooptados pelo governo Bolsonaro), mas
também entre as descobertas intelectuais feitas no passado, preservando
os pensadores sérios, capazes de nos ajudar a entender a política da
imperfeição, como Eric Voegelin, Mario Vieira de Mello e Michael
Oakeshott.

Karl Jaspers fala que, sem a purificação da alma, não há liberdade


política. Daí porque faço este meu testemunho, cheio de lacunas, mas que
vai pelo caminho oposto da esquerda, ávida por praticar um “duro acerto
de contas” com quem apoiou Bolsonaro, comportamento que replica o
mesmo equívoco da nova direita. A esquerda não consegue entender que,
apesar da pandemia, da economia em frangalhos e de uma sociedade em
ponto de ebulição, o bolsolavismo tem grandes chances de permanecer
no centro do poder, manipulando à vontade o centro da verdade. Assim
como a imprensa e a intelligentsia brasileira, a esquerda ignora o alcance
do encantamento que contagiou as novas gerações.

Nesse círculo vicioso (e viciante), a esquerda não percebe que a nossa


verdadeira tragédia foi nos preocuparmos só com a liberdade e nos
esquecermos completamente de outro termo: compaixão. A nossa culpa
deixou de ser moral e passou a ser metafísica ao abraçarmos por
completo o outro lado do niilismo e ao desprezarmos o que acontece com
o nosso irmão, com o nosso próximo. E, aqui, resta-me o conselho da
poeta austríaca Ingeborg Bachmann, que entendia muito bem desse
assunto. No poema Uma Espécie de Perda encontra-se um dos seus
versos célebres, que fala da derrota que se sofre ao não se ter nada para
dizer a respeito da desgraça humana, quando só temos uma única
consolação: preservar a integridade dentro de si. Não te perdi a ti, perdi o

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mundo, ela escreve. No meu caso, posso perder o mundo, mas jamais a
mim mesmo.

Enquanto isso, sou assombrado pelas palavras.

[1] Antes de Olavo de Carvalho se envolver nesse imbróglio, fui


convidado a ser um dos assessores de imprensa da Secretaria de Cultura
da Prefeitura de Campinas. Comecei a trabalhar, mas por algum motivo
misterioso minha nomeação não saía – e minhas dívidas se acumulavam.
Reclamei disso em um e-mail público, dirigido à Câmara Municipal, à
Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. A repercussão foi imediata:
no dia 26 de julho de 2001, minha nomeação saiu no Diário Oficial da
cidade, feita de forma retroativa, cobrindo o período de três meses. Em
razão do e-mail – pois supuseram que pudesse haver algum conflito
entre o prefeito e eu –, fui chamado a prestar esclarecimentos durante as
investigações do homicídio, e nada mais.

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