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questões da ultradireita
TRAGÉDIA IDEOLÓGICA
O bolsolavismo foi o hospedeiro perfeito para as tendências totalitárias de uma geração
MARTIM VASQUES DA CUNHA
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O monstro híbrido: anti-intelectualismo embalado em retórica radical e uma pretensa elite disposta a pôr em marcha um
comportamento totalitário, por meio de um “líder providencial” CREDITO: KLEBER SALES_2020
N
o início dos anos 2000, comecei a participar ativamente das
discussões de novos grupos à direita no fórum virtual Sapientia,
criado por Carvalho em sua página na internet. Ali, eu conversava
sobre religião, filosofia, literatura e música sem me sentir cerceado pelos
slogans esquerdistas dos meus professores. Na mesma época, fui com
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Carvalho foi um dos poucos a sair em defesa dos três rapazes, num
programa de debates da GloboNews comandado pelo jornalista Pedro
Bial, também com a presença de Sette-Câmara. A essa altura, o autor de
O Jardim das Aflições vinha obtendo certo reconhecimento na mídia e,
nos anos seguintes, passaria a publicar colunas em jornais como O Globo
e Jornal da Tarde, e nas revistas Época, Bravo! e República.
S
ó fui ter um novo encontro pessoal com Olavo de Carvalho em 2001,
após o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em 11 de setembro. Por
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A
ntes da peste, a palavra que unia as diversas correntes da nova
direita brasileira era “liberdade”.
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Num dia de novembro de 2001, por causa dessa confusão toda, ocorreu
outro fato insólito. Minha mãe me ligou desesperada porque havia
recebido um e-mail, com a logomarca forjada da agência Reuters,
dizendo que eu tinha sido assassinado perto de um shopping em
Campinas. O homicida era ninguém mais, ninguém menos que Olavo de
Carvalho. A mentira me causou risos, mas deixou minha família
assustada. Durante uma conversa ao telefone com Carvalho (que também
tirou sarro da situação, com seu humor característico), ele sugeriu que,
para aplacar a tensão dos meus parentes, eu fosse passar uma semana na
casa dele em Petrópolis, com sua filha Maria Inês e Corbett.
Foi uma visita de poucos dias, muito agradável. Fiquei hospedado com
meus amigos numa casa anexa ao casarão onde Carvalho morava, no
topo de um morro. Um dia, ele decidiu viajar ao Rio de Janeiro para
resolver questões pessoais e ir ao lançamento do romance Brás, Quincas
& Cia., de Antônio Fernando Borges, na livraria Argumento, no Leblon.
Alugou uma Kia Besta, na qual embarcamos eu e toda a família de
Carvalho – sua mulher, Roxane, os filhos de ambos, Leilah e Pedro, a
assistente Josiane, Maria Inês (filha de outro casamento) e o namorado.
Sempre que saía de casa, Carvalho fazia questão de levar dois itens para
ele essenciais: cigarros e livros. Para aquela ida ao Rio, separou a História
das Ideias Políticas, de Eric Voegelin, uma obra do pensador alemão
Eugen Rosenstock-Huessy e um volume de contos do norte-americano
Raymond Chandler, que dizia ser um dos maiores estilistas da língua
inglesa, perito em descrever cenas de luta. Enquanto todos conversavam
alegremente no veículo, Carvalho, no banco da frente, passou a viagem
fumando e lendo em silêncio, alternadamente, trechos dos três livros,
como se fossem partes de uma só obra.
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R
eencontrei-me pessoalmente com Carvalho pela última vez em
2004. Eu havia me mudado para São Paulo e trabalhava como
vendedor na Livraria Cultura. Ele estava preparando sua mudança
para os Estados Unidos, como correspondente do Diário do Comércio, o
único jornal para o qual lhe restara escrever, depois de brigar com os
diretores de redação de várias publicações por causa de suas opiniões
controversas. Mas isso pouco me importava naquele momento, pois eu já
encontrara outra pessoa que se tornara para mim uma espécie de
antídoto ao polemista de O Imbecil Coletivo: o poeta Bruno Tolentino.
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P
ondé apresentou a mim uma terceira via. Na época, ele não era
afeito a polêmicas, mas, sempre que se via envolvido em alguma,
buscava sustentá-la por meio da argumentação acadêmica, sem
recorrer a ofensas pessoais e, sobretudo, sem cair no anti-intelectualismo
de Carvalho.
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O primeiro número da Dicta foi bem recebido pelos grandes jornais, que
fizeram reportagens a respeito da publicação. Acredito que a revista
também foi importante para que a Veja “descobrisse” os autores
estrangeiros apresentados por nós, como Scruton e o psiquiatra inglês
Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels). A Dicta também
dialogou com alguns nomes da intelligentsia brasileira e estrangeira,
como o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o
escritor Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura. E publicou dois
artigos de Carvalho, um sobre Mario Ferreira dos Santos, outro sobre
Ludwig Wittgenstein.
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N
aquele ano, o homem que havia escrito O Jardim das Aflições era
outro. Apesar de ter criado um curso online de filosofia com a
excessiva duração de cinco anos (mais longo que um curso
universitário de ciências humanas), Carvalho não se preocupava mais
com “o estudo e o amor pela verdade”. Seu vocabulário, articulado em
um programa de rádio na internet batizado de True Outspeak, além de
chulo, era agora dominado por slogans, como “guerra cultural”,
“desonestidade intelectual”, “senso de proporções”, “comunista” e – o
preferido dele – “analfabeto funcional”. Era um indício de que, pouco a
pouco, ele deixara de ser um conservador e se revelara um reacionário.
De qualquer modo, O Mínimo que Você Precisa para Não Ser um Idiota
foi um sucesso (em 2017, a Record comemorou a marca de 100 mil
exemplares vendidos).
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uanto a mim, já casado e com um doutorado em filosofia política
feito na USP, eu tentava sobreviver escrevendo textos para a
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Esse poder em específico não tem nada a ver com política ou dinheiro, e
sim com uma pseudoautoridade espiritual. Mas sua contrapartida prática
é um “líder providencial” capaz de realizar a integração plena entre o
Estado e o resto da sociedade. O liberalismo brasileiro seria atraído
facilmente para esse feitiço, pois se alimenta daquilo que Lionel Trilling
chamava de “imaginação liberal”, fundada na “negação das emoções”. E,
por ser fundada na negação das emoções, está em contínuo esforço para
simplificar (e tentar organizar) este mundo, que é “um lugar complexo,
inesperado e terrível”, impossível de ser “sempre entendido pela mente
humana da mesma maneira que ela é usada em nossas tarefas
cotidianas”.
V
olto à minha aula no Instituto Mises. O deputado Eduardo
Bolsonaro foi um aluno educado e fez um bom trabalho final sobre
o princípio da tolerância em Karl Popper, mas eu tinha dúvida se
ele prestava atenção ao que era dito, já que parecia estar pensando em
outra coisa.
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Enquanto explicava esse trecho, alertei aos alunos que essa “ordem social
libertária” de Hoppe era, de fato, uma ordem social totalitária. A sala de
aula ficou em total silêncio – exceto Eduardo Bolsonaro, que disse:
“Professor, lá em casa temos armas e facas para que isso aconteça aqui, no
Brasil.”
F
oi nesse instante que percebi que estava envolvido na tragédia que
atingira a nova direita brasileira. Ou, talvez, eu já estivesse
mergulhado nela havia anos e apenas continuasse praticando as
“ruminações de um lerdo”. Ao escutar aquela frase, fiquei paralisado,
como os demais presentes naquela sala. Engoli em seco e encarei aquilo
como uma blague, uma provocação. Mas não era.
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ideológica não só pelos votos, mas pela mente e o coração dos eleitores. E,
com certeza, a recusa do real diante da gravidade de uma peste.
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E
nquanto isso, pessoas como Carlos Andreazza (que, embora seja
editor de Carvalho na Record, trilhou, em seu papel de jornalista,
um caminho divergente ao bolsolavismo), Alexandre Borges,
Francisco Razzo, Lobão, Dionisius Amêndola e eu percebemos ter sido os
“vencidos da vida”. Juntou-se a nós Renan Santos, do MBL, um dos
responsáveis pelo impeachment de Dilma e apoiador da candidatura
Bolsonaro no segundo turno. Santos passou a ter um papel importante na
discussão sobre como impedir esse “governo das sombras”, pois viu que
os seus motivos, puramente pragmáticos, foram também responsáveis
por nos levar a essa situação.
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mundo, ela escreve. No meu caso, posso perder o mundo, mas jamais a
mim mesmo.
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