Você está na página 1de 190

Contraparto

LUCIANO MARTINS COSTA


ROMANCE

CONTRAPARTO/Luciano Martins Costa

São Paulo: Edição do autor, 2018

ASIN: B07JNXZK4Z

Copyright by Luciano Martins Costa, 2018

Todos os direitos reservados.

Proibida a reprodução do todo ou parte deste livro, inclusive

para fins didáticos, sem autorização por escrito.

Citações de trechos de seu conteúdo devem indicar a fonte.

Direitos administrados pelo autor.


ADVERTÊNCIA

Este romance contém referências a fatos reais, de conhecimento geral.


No entanto, trata-se de uma criação ficcional. Embora algumas reflexões
e opiniões creditadas aos personagens citem eventos, personalidades e
informações geográficas ou históricas, todo o conteúdo desta obra
resulta de um exercício de imaginação do autor.

i
1 − PACÍFICO

"Não tem gente que morre?" – A frase me vem à memória


enquanto olho pela porta de vidro que isola a sacada, em
direção ao mar. Lá está o Pacífico, majestoso em seu
mistério. O céu se apresenta nublado, mas entendo que
haverá sol ao longo do dia. Posso contar com essa certeza
pela visão dos muitos windsurfistas que singram a superfície
das ondas, cruzando suas velas coloridas ao longo da orla.
Cresci ouvindo histórias fantásticas desse oceano que é
quase uma entidade viva em minha imaginação, uma
espécie de monstro paridor de estranhos seres, que tanto
poderia alimentar toda a humanidade como engolir a terra
com todos os seus viventes. Mas a imagem me tranquiliza,
em parte por oferecer a sensação de que as coisas mais
importantes, aquelas que trazem a ilusão da permanência,
continuam em seus lugares, apesar de minha vida ter sido
entornada e emborcada como um balde de mariscos, nos
últimos dias.
No fim de semana anterior ainda passeava de bicicleta com
Sofia pelo Kungsträdgården, certo de que o futuro não tinha
mais surpresas reservadas para nós. Até então, tudo era,
como gostava de dizer, plano como um lago. "Har inte folk
dö?" – A pergunta de Maria, nossa filha menor, feita três
décadas antes, ainda era motivo de risadas na família, e
também tinha para mim o sentido profundo do oceano de
minha infância: o absoluto das coisas que não se pode
contestar. Era dessas pedras que delimitam a realidade.
Por um longo tempo, agora sei, eu me havia iludido,
imaginando que podia ser diferente. Foram praticamente
quarenta anos ao longo dos quais me habituei a ver os dias

3
LUCIANO MARTINS COSTA

se sucederem quase iguais, e assim desejáveis em sua


previsibilidade. Fora me acostumando ao bem-estar como
destino, sem me questionar sobre justiça ou merecimentos,
acomodando-me a uma existência sem atropelos ou sustos, à
certeza quase absoluta de que envelheceria, tranquilo, ao
lado de Sofia, do casal de filhos e dos netos que alegravam
nossa rotina.
Estou agora à janela do hotel, a quase quinze quilômetros de
Viña, esperando por alguém ou por um acontecimento.
Apresentei-me à recepção, recebi a chave. Nem precisei dizer
meu nome. Não me pediram documentos ou um cartão de
crédito. Acomodaram-me neste apartamento amplo do
terceiro andar, com uma varanda de onde se pode ver, à
esquerda, a Avenida Borgoño, que acompanha a praia, rumo
ao sul, e, à direita, a elevação das dunas de Punta Concón.
Eu nunca havia desejado esta circunstância em que me
encontro, mas no mais tenebroso dos meus temores talvez a
considerasse inevitável e inescrutável como o fundo do mar.
Quando me permitia visitar as memórias da juventude, o
sentimento mais marcante era esse medo de uma volta ao
passado, retorno dos fantasmas que assombravam minhas
primeiras noites no exílio. No entanto, de certa maneira
sabia que um dia teria de voltar. E aqui estou, como se a vida
tivesse um novo começo.
O conjunto das imagens, de sons e cheiros que entram pela
varanda me diz que estou em casa, e um daqueles jovens
que descem a encosta de areia, montados em seus trenós
improvisados, bem poderia ser eu mesmo, algumas décadas
antes. Mas sei que este não é mais meu lugar. Havia passado
os melhores momentos da infância e da juventude ali, feliz
como se nada fosse capaz de romper a rotina de algazarras e
prazeres miúdos, até que veio o tempo da ruptura. Cinco
anos de turbulências que me pareciam, à época, nunca se
acabar. Eram tempos excitantes, que eu havia vivido
automaticamente, sem perceber, levado pelas ondas de
emoções fortes, das ações irrefletidas, daquilo que se fazia Excluído: -
porque tinha que ser feito, sem questionamentos, como a

4
CONTRAPARTO

inevitabilidade do mar e do céu, a realidade dos Andes e


aquela pergunta-resposta de minha filha. Depois, a
serenidade, o bem-estar e as certezas de Estocolmo — e aos
poucos outra vez aquela sensação de paz, como se tivesse
voltado a ser menino. Olho o oceano, com sua imensidão de
mistérios profundamente azuis, e me imagino navegando
sempre em frente, até dar na Suécia. Mas concluo, em
seguida, que por ali não seria um trajeto sensato: Estocolmo
está às minhas costas, no outro lado do mundo, para lá da
cordilheira.
Tenho que esperar, apenas esperar. Caminho até o interior
do apartamento, apanho a pera que a meu pedido a
camareira havia deixado sobre a mesa, quando veio recolher
a bandeja do café da manhã, e me recosto na cama. O som do
mar é como um relógio transcendente, a marcar um tempo
que não tem relação com minha presença ali, que passa à
minha revelia e a despeito de todos os seres. Dou algumas Excluído: -
mordidas na fruta e mastigo calmamente: esmago a polpa a Excluído: -
cada arrebentar das ondas nos rochedos, e em seguida
engulo e respiro devagar, como se meu hálito acompanhasse
o refluxo das águas. Aos poucos, minha atenção vai se Excluído: -
concentrando e se integrando ao ritmo do oceano, e afinal
esqueço de mim e o sono invade minha mente.
Durmo uma hora, talvez, e sinto o tremor como um balanço
suave e longo, primeiro de um lado, depois do outro, e ouço
o tilintar das garrafas na adega da sala. Nada que possa
assustar um natural desta terra espremida entre as
montanhas e o Pacífico e montada sobre as cicatrizes do
planeta. Em minha sonolência, imagino que o movimento
sísmico demora mais do que os registros de minhas
lembranças, de tantos outros episódios iguais que havia
testemunhado durante a época em que ainda vivia no Chile.
Parece que o edifício oscila mais tempo em direção ao
oceano, voltando para o lado do continente apenas para se
aprumar um pouco e novamente deslizar para oeste. Talvez,
no dia seguinte, alguém venha me contar que o Chile se
moveu um pouco para dentro do mar. Uma ponta de

5
LUCIANO MARTINS COSTA

curiosidade me faz entreabrir os olhos, mas a sensação de


cansaço, como um peso sobre o peito, me mantem na cama;
volto a cochilar serenamente. É o jet lag da longa viagem, ou
o temor do que virá?
Minha mente estabelece um ponto de referência: o envelope
encontrado na caixa de correspondência no domingo. Sofia e
eu voltávamos das onces bailables na Casa Chile, hábito que
ela me havia obrigado a retomar, depois de quase cinco anos
recolhido a um círculo restrito de amigos, quase todos
suecos. Ela dizia que, tendo me aposentado, eu iria precisar
de muita vida social para evitar uma depressão. Percebia em
mim certa tendência à melancolia, disse, e citava estatísticas
de compatriotas que definhavam rapidamente após uma
vida de trabalho, por falta do que fazer. Dentro do envelope
havia um cartão deste hotel em Viña del Mar, e no verso do
cartão o número do vôo LaTam e o código de embarque para
a terça-feira da semana seguinte, saindo de Arlana às 15h30.
Logo abaixo, apenas uma palavra: "Contraparto".
Sofia estranhou a chegada daquele envelope em pleno fim
de semana, principalmente porque quase nunca recebíamos
cartas ou panfletos, e levei quase um dia inteiro para
convencê-la de que seria mais apropriado ir sozinho.
Inventei uma história sobre partilha de bens, burocracias que
deveria enfrentar em cartórios do interior. Havíamos viajado
juntos ao Chile apenas uma vez, quando os filhos eram
muito pequenos, dois anos antes de Pinochet perder o
referendo por meio do qual pretendia seguir no poder.
Mesmo naquela ocasião, evitei contatos com pessoas que
conhecera na juventude e permaneci em Santiago somente o
tempo necessário para preparar uma temporada no sul do
país. Voamos quase imediatamente para Puerto Montt, onde
gastamos um par de dias visitando as cercanias do lago
Llanquihue e as encostas do Osorno e do Calbuco. Depois,
tomamos um navio e passamos a semana navegando pela
Patagônia.
Naquela ocasião, um acidente de trem perto de Valparaiso,
quando estávamos em Santiago nos preparando para uns

6
CONTRAPARTO

dias na costa, facilitou meu desejo de embarcar rapidamente


para a Suécia e voltar à rotina. Morreram pelo menos 159
passageiros, mais de 500 ficaram feridos, dezenas foram
mutilados, mas a censura ainda ativa do regime militar
agonizante tratou de desestimular a curiosidade da
imprensa. Minha mãe ainda era viva, mas pouco percebia da
realidade. Confundiu-me com um personagem de sua
juventude, chamou-me algumas vezes de Tomás e com isso
convenci Sofia de que não tinha mais nada a fazer no Chile.
Depois, durante uns poucos minutos em que Sofia foi ao
quintal mostrar o jardim aos meninos, ela tomou minhas
mãos nas suas e disse alguma coisa que me pareceu pessoal:
"Você não voltou". Eu imaginei que ainda delirava, que
pensava falar com Tomás Ordoño, mas ela acrescentou:
"Não precisa voltar. O Chile já não existe, é uma tripa de
terra sem deus. Pinochet o destruiu. Agora você é sueco,
meu filho".
O sono se foi, permaneço no escuro, de olhos abertos,
tentando me familiarizar com o ambiente. Na parede em
frente posso ver a reprodução de uma gravura multicolorida
e pueril do pintor brasileiro Romero Britto, que nas casas de
celebridades e famílias ascendentes da América Latina
significa sucesso e bom gosto. Ouço o mar batendo nas
rochas, de vez em quando passa um carro lá embaixo. Estar
sozinho me dá certa tranquilidade, a convicção de que
poderei enfrentar de maneira mais satisfatória o que vier a
acontecer.
Na outra viagem, ainda tentei relaxar e agir como um
visitante estrangeiro. Desta vez eu estava ainda mais
inquieto e Sofia economizou perguntas. Ela compreendia
que este retorno haveria de provocar recordações penosas, e
jurou que não me pressionaria. Queria apenas fazer turismo.
Além disso, justificou, insistia em viajar comigo porque seria
preciso reencontrar parentes, examinar documentos, visitar
lugares que evocariam sentimentos inconvenientes e sua
presença seria um suporte emocional de grande valor. Mas
fui irredutível: disse que, se ela me acompanhasse, seria

7
LUCIANO MARTINS COSTA

obrigado a apresentá-la às pessoas, fazer cortesias, estender


conversações, que meu propósito era desincumbir-me o mais
rápido possível das exigências burocráticas, assinar os
papéis que me colocassem à frente, providenciar carimbos e
procurações e voltar imediatamente para Estocolmo.
Minha determinação de viajar sozinho afinal a convenceu
quando disse que não tinha nenhum prazer em reviver
minha juventude. Agora, estirado na cama, imagino como
seria difícil explicar a Sofia por que tenho que esperar aqui,
inerte neste quarto de hotel. Na verdade, não saberia dizer a
mim mesmo que forças me haveriam compelido a deixar o
exílio para me deslocar a este ponto do passado.
Confortável, afirmavam os porta-vozes da ditadura; os
chilenos na Suécia viviam um exílio dourado, costumava
declarar o colunista Pérez de Arce. Confortável? Não, nunca
tinha sido confortável para mim. Uma vida inteira contendo
as palavras, administrando cuidadosamente a narrativa de
minha existência anterior, controlando gestos, opiniões,
olhares, expressões, sorrisos e, principalmente, domesticando
os sentimentos. De tanto exercitar o controle sobre minha
própria linguagem, eu havia me tornado outra pessoa.
Na verdade, desde muito tempo me havia convencido de
que precisava de um duplo eu para seguir em frente, ao
mesmo tempo em que me acostumara com a idéia de que
nunca conseguiria voltar a ser chileno. Não que me sentisse
inteiramente sueco: eu era um daqueles cidadãos que
podiam vivenciar duas realidades cotidianamente, sem
conflitos angustiantes: na intimidade, pensava em espanhol,
sentia minha alma constrangida entre a montanha e o
Pacífico; nas interações sociais, era um habitante daquela
cidade cosmopolita que, na superfície, não parecia
diferenciar um sul-americano de um polonês. Aquela
palavra solitária no verso do cartão – "contraparto" – foi o
ponto de intersecção entre minhas duas existências. Tanto
poderia significar o reverso do nascimento, como
representar a inauguração de uma nova vida; e só agora,
olhando fixamente minha imagem refletida na tela apagada

8
CONTRAPARTO

da televisão, ouso consultar minha consciência. Tenho as


mãos cruzadas no peito, e a possibilidade de ser encontrado
assim, com um buraco de bala na testa, faz acelerar meu
coração. Essa não é uma perspectiva absurda, constato, e de
certa forma a hipótese me transmite uma sensação, quase
um desejo, de paz.
E se de fato isso acontecesse? Certamente haveria uma
investigação, Sofia e os filhos teriam dificuldade para
entender, mas finalmente aceitariam o fato de que o passado
tinha retornado para cobrar suas contas. Na verdade, minha
família na Suécia pouco sabe de minhas atividades antes do
exílio, e um desfecho dessa natureza poderia se encaixar em
alguma narrativa que porventura tivesse feito numa das
muitas vezes em que Sofia me havia questionado. Mas a
rotina do casamento acabou por encobrir minha história
pessoal, e um dia ela simplesmente desistiu de construir
uma narrativa para nossos filhos sobre como fui parar em
Estocolmo.
O inevitável tem o poder de abreviar o sofrimento. Uma vez
consciente de que nada pode fazer, o homem vai buscar
distrações para seu desconsolo e é essa a sensação que me
invade. De alguma forma, minha decisão de viver na Suécia,
ou melhor, ao aceitar o desafio que as circunstâncias
impunham naquele longínquo ano de 1976, eu contava com
a perspectiva de uma vida muito distinta do que tinha sido
até então, entre as correrias da mocidade e a militância
política no Chile. Sentia-me, então, maduro para o
inesperado, e considerava que, de certo modo, não tinha
podido controlar o curso dos acontecimentos.
Posso ouvir o mar. Posso lembrar claramente meus dias de
juventude, que eram também os tempos da juventude de
minha terra. Não foram dias de inocência, mas de juvenis e
irresponsáveis estripulias, e aproveitei os primeiros anos de
exílio para preencher os vastos espaços vazios na minha
formação. Tinha muito tempo para leituras, e a mente bem
ocupada se desprendeu gradualmente daquelas memórias.
De certa maneira, o contato com a obra de Per Erik Martin-

9
LUCIANO MARTINS COSTA

Löf na Universidade de Estocolmo me proporcionara certo


consolo nas crises de consciência. Na verdade, tudo que lia e
estudava entrava nessa espécie de corrida em que eu tentava
apressar a maturidade e tratar com certa condescendência o
que eu havia sido: das deduções lógicas do filósofo podia
tirar alguma justificativa para as escolhas que tinha feito,
ainda que para isso tivesse que distorcer certos conceitos.
Por outro lado, os ensaios de Tage Lindbom sobre o mito da
democracia abriam amplos espaços para conjecturas a
respeito dos limites de meu próprio arbítrio nos eventos de
que havia participado. Era uma forma de fugir de
questionamentos aos quais nunca poderia responder.
Mas nenhuma obsessão foi tão grande quanto por Emanuel
Swedenborg. Assim que consegui decifrar relativamente
bem o idioma, internei-me na Kungliga Biblioteket; foi ali
que descobri Swedenborg e Sofia. Enquanto ele me forneceu
um roteiro para construir minha nova vida, ela me ofereceu
uma razão para seguir vivendo. Com esses dois elementos
pude consolidar um arcabouço suficiente para as seguintes
quatro décadas de minha existência, que parece chegar ao
episódio final neste exato momento.
Ao entrar pela primeira vez na KB, compreendi que tinha
aportado em outro universo, onde a essência do
conhecimento humano vinha sendo criteriosamente
catalogada e arquivada desde muito antes de o Chile haver
se libertado do colonialismo espanhol. Swedenborg era uma
indicação de meu mentor na universidade, uma citação que
me fizera reviver a vida no Chile, porque já tinha lido uma
referência a esse nome em circunstância que desejava
esquecer. Sofia era meu destino. "Seu Swedenborg é o
filósofo, o cientista ou o místico?", ela perguntou. Fechei o
livro, levantei os olhos e me deparei com aquele anjo de
cabelos negros e olhos que faziam imaginar as profundezas
do Pacífico.
A visão daquela mulher expandiu os limites de minha
apreciação estética. Era bela, o olhar doce incrustado nos
traços suaves do rosto. Estava justamente lendo uma

10
CONTRAPARTO

tradução da obra intitulada "Psychologia Rationalis", e tentava


imaginar o que estariam fazendo os mapuches de minha
terra quando aquele pensador identificava a matriz da
consciência humana, ao definir os territórios da mente, um
século e meio antes de Freud descrever a distinção entre o
consciente e o sub-consciente. Quando Swedenborg escreveu
aquilo, os chilenos estariam lascando pedras, e seguiriam
rachando pedras e crânios de desafetos pela vida afora, até o
fim dos tempos, pensei. Por isso, entendi Swedenborg como
a ruptura com meu próprio passado. E Sofia era a
perspectiva de uma vida nova, um renascimento.
Naquele exato momento, eu me dava conta de que não
poderia mais ser chileno. O simples movimento de erguer a
cabeça que se debruçava sobre o texto e me deparar com o
olhar de Sofia significava uma improvável conexão entre
razão e espiritualidade, entre a terra e o céu. Era a
transcendentalidade de Swedenborg, de quem eu conhecia
apenas uma referência: foi num poema de Borges intitulado
"Outro poema dos Dons", encontrado no bolso de um jovem
argentino, que eu havia lido pela primeira vez aquele nome:
"Por Swedenborg, que conversava com os anjos nas ruas de
Londres". Não quero, não posso lembrar esse episódio.
Balanço a cabeça para os lados, como para expulsar esses
pensamentos. Por força das circunstâncias, desenvolvi essa
técnica simples e eficiente para conter o fluxo de idéias
incômodas: abria bem os olhos e sacudia a cabeça.
Neste momento, não posso seguir adiante em minhas
reminiscências. Não por esse caminho, nem por
Swedenborg, mas pelo jovem argentino em cujo bolso havia
encontrado o poema manuscrito. Esse é o território proibido,
o terreno pantanoso no qual minha mente se negava a
transitar desde que havia decidido que não voltaria a ser
chileno. Assim tinha sido desde que minha vida tornara ao
revés, e assim deveria ser até o último suspiro. Aquela vida
que eu poderia rever, se me animasse a levantar da cama e
olhar outra vez pela janela, na direção de Punta Concón, era
apenas uma recordação nebulosa, dolorosa. O declive de

11
LUCIANO MARTINS COSTA

areia foi minha antiga existência: de repente, no meio da


corrida excitante que era minha juventude havia uma pedra;
e aquilo que era o inocente e repetitivo deslizar em direção
ao mar, aquele jogo do constante retorno, se revelou a poiesis
que vim a compreender somente quando cheguei a
Estocolmo. Então minha existência foi reinventada, e o que
era antes acomodou-se no passado como o não-ser, o
inadmissível, tudo aquilo que não poderia ter acontecido.
Foi o encontro com Sofia que me recriou. Antes, pouco antes,
entre a ruptura e o recomeço, pensei que poderia me manter
num estado de suspensão, transitando de uma cidade a
outra, de Madri a Barcelona, de Barcelona a Paris,
esforçando-me por acreditar ser aquele que os outros
pensavam que eu era. Era um tempo entre Santiago e
Estocolmo: recebido na embaixada sueca, ali fiquei apenas o
necessário para os trâmites do exílio, e logo voava para
minha nova pátria. Depois, a recepção da comunidade dos
asilados e o programa de adaptação, que incluía as 250 horas
regulamentares de aulas do idioma – e na verdade mal me
dera conta do que se passava. A viagem me pareceu longa
demais, mas a regularização dos papéis foi rápida e a
autorização para circular pela Europa chegou como um
alívio, enquanto esperava começar o ano letivo na
Universidade de Estocolmo.
Ninguém estranhou que a Universidade Católica do Chile
tivesse facilitado com tanta presteza os documentos para a
transferência, num período em que todo candidato ao exílio
era submetido a uma rigorosa investigação pelos agentes da
ditadura de Pinochet. Em poucos dias eu gozava o período
de férias que não havia pedido e que me pareceu uma volta
aos folguedos em Viña. Isso tudo antes de Sofia. Essas foram
as últimas férias do meu espírito. Depois disso, veio o
encontro com Sofia e minha fragmentação, a consciência
dolorosa de que não poderia continuar sendo o que era nem
admitir o que havia sido.

12
CONTRAPARTO

2 − DESERTO

Quando cheguei a Estocolmo, fui logo apresentado à


comunidade dos chilenos como um estudante que tinha
decidido sair às pressas do país porque corria o risco de ser
preso. O sobrenome do meu pai apenas produziu certa
resistência de alguns exilados mais velhos, que tinham
alguma notícia de sua ligações com a democracia cristã, que
havia apoiado o golpe de Pinochet. Mas logo a curiosidade
em torno de mim se esvaiu, pois todos estavam envolvidos
em efervescentes atividades de contrapropaganda, para
mobilizar lideranças europeias na campanha pelo
isolamento da ditadura.
No início, tive que contar com remessas de dinheiro por
parte de minha família, para as despesas iniciais. Convenci
minha mãe de que estava seguindo para um curso de pós-
graduação na Europa, e de que em pouco tempo dispensaria
aquela ajuda, pois iria dispor de uma bolsa de estudos mais
do que suficiente para me manter. Orgulhosa do filho que
iria estudar no exterior, ela não apenas engoliu a história
como espalhou a novidade entre as amigas. Mas meu pai
demorou inicialmente a aceitar a viagem: justamente quando
o general estava dando um jeito no Chile, dizia o velho
desembargador Eyzaguirre, o correto seria ficar e participar
da reorganização do país; quem sabe podia articular para
que eu recebesse um cargo de responsabilidade para me
ocupar em meio período. Para isso ele tinha bons contatos e,
por seu engajamento no processo que acabou com aquilo
que costumava chamar de "aventura comunista de Allende",
sabia que não lhe negariam um pedido razoável de

13
LUCIANO MARTINS COSTA

colocação para o único filho homem. As coisas sempre


funcionaram assim.
Ele determinara desde muito tempo que a família viveria os
dias úteis em Santiago, quando a vida social seria feita no
Clube de Golfe Los Leones, mas não abria mão de passar os
finais de semana em Viña del Mar. Exceto nas ocasiões em
que viajávamos ao exterior, quase sempre para a Flórida,
também as férias tinham que ser no balneário, onde
mantínhamos a antiga mansão do bairro alto, aonde se
chegava pela Rota 68. Ele gostava de dizer que era vizinho
do palacete que pertencera ao prefeito don Manuel Ossa
Sainte Marie. Dali se podia baixar ao centro pela Eje Alvarez-
Vianna e frequentar os melhores restaurantes e cafés, onde
as pessoas de bem precisavam ser vistas. Nada mais natural
que, com o novo governo, um membro de família tão
confortavelmente instalada na elite nacional viesse a pleitear
um bom cargo.
Em casa, ninguém tinha conhecimento da reviravolta que
fora minha vida no ano anterior. Apenas dois amigos mais
próximos, com os quais convivia em Viña del Mar desde a
infância, tinham uma ideia aproximada de quanto seria
conveniente aquele afastamento. Mas só eu e o comando
sabíamos por que e para que eu me juntaria aos chilenos
que optavam por viver no estrangeiro. Meu pai resistiu até
aquele telefonema. Estávamos em Viña, em meio ao almoço
de domingo, quando soou o telefone. "É o doutor Törnvall
na linha", anunciou a empregada. Foi um alvoroço quando
ela entrou na sala para avisar que estava ao telefone
ninguém menos que o embaixador do Chile na Suécia.
Queria falar com o ministro Eyzaguirre. Aqueles poucos
minutos de conversação bastaram para mudar
completamente a opinião de meu pai. Ele pousou o telefone
no gancho e me cumprimentou como nunca antes havia
feito, até com algum afeto.
O médico Svante Törnvall havia assumido a embaixada em
Estocolmo exatamente um ano depois do golpe militar, com
a função específica de estabelecer uma base para a

14
CONTRAPARTO

observação das atividades políticas dos exilados e construir


uma rede de apoiadores em favor do governo Pinochet,
especialmente entre simpatizantes do antigo Partido
Nacional Socialista da Suécia, que depois da Segunda
Guerra se haviam reorganizado em entidades defensoras da
superioridade racial nórdica e antissemitas. Eram contrárias
ao governo social-democrata de Olof Palme. Törnvall era
personagem disputado na sociedade chilena, reconhecido
por haver participado da primeira cirurgia de válvula mitral
no Chile. O ministro Eyzaguirre tinha partilhado com ele, na
juventude, o fetiche fascista que empolgou a oligarquia
nacional na primeira metade do século XX, segundo o qual
apenas gente como eles podia compreender e dirigir os
destinos do país. Os dois haviam atuado intensamente no
movimento pela derrubada do governo da Unidade Popular.
Meu pai desligou o telefone e, com um sorriso, sentenciou:
"Inácio Eyzaguirre, você vai para a Suécia".
A sucessão de lembranças me inquieta. Queria estar
preparado para a eventualidade de ter que voltar. No "Clube
dos Cronópios", na Stadshagsvägen, um poeta, citando
Henri Bergson, afirmou, certa vez, que a memória humana é
individual, mas também traz resíduos da espécie e, no
fundo, representa um detalhe da memória da própria vida.
A diferença entre um ser humano progressista e um
reacionário, observou o poeta, seria a capacidade do
indivíduo de se desprender de seus interesses específicos e
conectar sua biografia com a do resto da humanidade, mas o
ser iluminado seria aquele que mescla sua existência com a
vida, "esse fluxo temporal em constante transformação". A
lucubração do poeta me havia proporcionado uma sensação
de serenidade, porque eu reconhecia a mim mesmo, minha
própria vida, como a realização desse movimento
permanente em direção ao desconhecido. Eu acrescentaria
àquela reflexão a hipótese de que não apenas os iluminados,
mas também alguns náufragos da existência, como eu,
acabavam por viver "esse fluxo temporal em constante
transformação".

15
LUCIANO MARTINS COSTA

Sentia-me como em uma viagem que se iniciava numa


caverna à beira do Pacífico e que esperava terminar no
Oceano Báltico. Imaginava-me, então, um verdadeiro
cronópio, não o elemento verde e viscoso imaginado por
Julio Cortázar, mas um exemplar daquela espécie de roedor
que havia habitado a Patagônia em tempos remotos. Certa
vez, quando levei os netos ao cinema para assistir o desenho
animado sobre a idade do gelo, tive a certeza de que o
esquilo que passa todo o filme tentando agarrar uma noz
congelada era eu mesmo, um cronópio extinto muitas eras
antes.
Naquela época, alimentava a esperança de que o ignoto,
aquilo que imaginava estar à minha frente, não haveria de
incluir um retorno a Viña del Mar. Mas é onde me encontro.
No entanto, serei eu mesmo quem se estende nesta cama, os
olhos pregados no teto, a contar as faixas de sombra que o
sol projeta através da cortina?
Não, eu sei que sou bem outro desde que conheci Sofia, e
essa constatação me assombra. Não sou o mesmo que partiu
daqui há quarenta anos, no entanto carrego as memórias
daquele jovem. Estou aqui, mas não sou eu mesmo. Então, o
que estaria fazendo aqui? Por que uma palavra obscura
rascunhada no verso de um cartão teria o poder de reverter
quarenta anos de minha existência e fazer-me deslocar por
metade do planeta e me oferecer assim, vulnerável à vontade
alheia, sem mesmo saber quem me havia convocado? Se a
vida real era tudo que tinha experimentado desde os
primeiros suspiros, porque sou obrigado a me render agora
aos ditames do passado fantasmagórico que queria
exorcizado e enterrado?
Esse pensamento me faz saltar da cama. Caminho até o
banheiro, lavo o rosto e ajeito os cabelos grisalhos. Minha
pele está certamente mais clara do que na época em que
parti; os anos sob o sol do Pacífico, depois o rigor do inverno
sueco, se somam para me cobrar o preço em rugas. Apesar
de tudo, porém, estou envelhecendo com sobriedade. Gosto
dessa expressão: envelhecer com sobriedade é menos

16
CONTRAPARTO

pretensioso do que envelhecer com dignidade. Também é


mais realista: eu reconheço que não poderia me sentir
confortável sob o crivo dessa palavra: dignidade.
Durante quatro décadas, eu me recusara a aceitar a narrativa
de minha existência por essa perspectiva. Dignidade era um
conceito que havia substituído por algo bem mais simples:
apenas viver. Ou melhor: sobreviver. Sofia, e depois os
filhos, eram uma espécie de bônus que eu não esperava
receber. Tudo que desejara era poder continuar usufruindo
aquele presente do destino. Mas havia aprendido que o
destino era sempre o resultado lógico de nossas escolhas,
numa equação em que entrava também a lógica das
circunstâncias. Mas até a semana anterior ainda podia me
deleitar com a possibilidade de uma velhice tranquila na
segurança terna e reconfortante de Estocolmo e de Sofia.
E se eu simplesmente fizesse outra escolha, se eu
considerasse que me restava algum arbítrio e uma vontade
forte o suficiente para rejeitar essa volta ao passado? Visto a
jaqueta, apanho a carteira, mas não encontro o telefone
celular. Saio. O corredor está vazio e tem pouca luz, mas
sinto que alguém me observa enquanto caminho para o
elevador. Espero por quase um minuto, mas o painel
luminoso não se altera. Então decido ir pelas escadas. Desço
três lances, saio no corredor e viro à direita, mas não vejo a
recepção. Estou, na verdade, em frente à porta do meu
quarto. Imagino ter me equivocado, e lembro-me das vezes
em que, pretendendo levar as crianças ao parque infantil
Katarina, e tendo caminhado na direção contrária, acabava
diante do Nobelmuseet, no centro histórico de Gamla Stan. E
de como repeti a mesma trapalhada diversas vezes, até que
finalmente aprendi o caminho. Olho a placa na frente do
elevador e me dou conta de que ainda estou no terceiro piso.
Então desço novamente, e outra vez me encontro no mesmo
pavimento, diante da porta do meu apartamento. Caminho
de volta para a escada, mas então me sinto confuso. Quero
me deitar.

17
LUCIANO MARTINS COSTA

Para que subir outra vez? Desisto, entro no quarto e trato de


telefonar para a recepção. Mas ninguém atende. Confuso,
caminho até a sacada e olho a paisagem. O sol se põe no
horizonte, tingindo de tons avermelhados a borda da Playa
Ancha. As velas dos windsurfistas ainda bailam logo adiante,
e há poucas nuvens no céu. Posso ouvir os gritos e risadas
dos meninos que descem as dunas de Concón. Volto ao
interior do quarto, ligo novamente para a recepção e desta
vez atende uma voz feminina. Apenas peço o jantar. Não
faço perguntas, e a voz do outro lado também não estimula
conversações. Na certa minha mente está fatigada pela
viagem e eu com certeza imaginara ter descido as escadas.
Escolho um assado e peço uma garrafa de Trabun Sirrah,
safra 2010. Ligo a televisão para me distrair, e fico trocando
de canais até topar com uma transmissão de futebol, reprise
da final da Copa América, que havia assistido na Casa Chile,
em Estocolmo, meses antes. Lembro-me, então, de minha
avó Lucille, quando a convidei para assistir a uma partida da
seleção nacional contra a Bolívia, no torneio de 1975. Ela não
se interessou, eu insisti e perguntei se sabia o que era a Copa
América. "Sí, lo sé", respondeu a senhora. "Por supuesto que
yo sé lo que es la Copa América. Como siempre, los
americanos se quedan con todas las medallas de oro, Cuba
se lleva las de plata, los argentinos se lastiman las de bronce y
nosotros nos felicitamos con las medallas de mierda" – disse.
A família riu do episódio por meses, e a anedota ilustrou
muitas conversas durante seu funeral. Lucille de Beauséjour
é uma das poucas referências carinhosas que tenho da
infância e da juventude. A outra, além de minha mãe, é
Amanda Escostegui, menina que vi crescer junto com minha
irmã, Isadora. Os pais, professores da Universidade Católica,
tinham um perfil mais liberal do que a minha família,
embora fossem, ambos, descendentes de europeus chegados
ainda no século 17. Era como uma prima, sempre próxima, e
não lhe prestava muita atenção, apesar dos sinais de que eu
não lhe era indiferente. Atrapalhado com os sobressaltos da
adolescência, praticamente a ignorei, até que, num verão em

18
CONTRAPARTO

Viña del Mar, eu a vi brincando com Isadora. As duas


tinham cerca de doze ou treze anos. Amanda vestia um
conjunto de blusa rosa e shorts branco. Notei que uma
pequena mancha vermelha se formava entre suas coxas.
Fiquei hipnotizado, os olhos fixos naquele pontinho, que aos
poucos se expandia pelo tecido claro, até que ela percebeu
aquele meu olhar quase mórbido, se tocou e saiu correndo
da sala. A partir daí, Amanda se tornou uma obsessão em
minha vida. Passei a observar seu rosto anguloso, seus olhos
amendoados, a pele morena, os cabelos densos e
encaracolados. Passei a chamá-la de "amêndoa", tentando ser
carinhoso, mas ela não gostava. Uma vez lhe disse que seu
nome tinha um significado maravilhoso, que tinha lido no
Diccionário Heráldico de Apellidos Españoles y Americanos,
de Alberto e Arturo Garcia Garraffa, e queria dizer "aquela
que deve ser amada", mas ela riu na minha cara antes que
pudesse lhe passar o poema que havia composto em
acrônimo. Descobri quase por encanto que tinha seios e que
seu corpo se desenvolvia em curvas gostosas de se apreciar.
Mas, ao mesmo tempo, ela passou a me ignorar
agressivamente. Nos momentos em que estava em sua
presença, procurava um contato visual mas recebia de volta
uma mirada fria, sinais de profundo desprezo. Com o
tempo, ela virou um objeto de culto para mim, mas nunca
tive coragem de me aproximar e lhe fazer uma confissão. Era
uma paixão encruada, como um fruto que seca sem ter
amadurecido. Tive namoradas, as estrepolias da juventude
nos afastaram e nos aproximaram, sem que ela desse algum
sinal de simpatia por mim.
Foi uma paixão, certamente minha primeira e única paixão,
que nem cheguei a compreender. Foi o sentimento mais
próximo do amor que tive oportunidade de experimentar até
conhecer Sofia. A lembrança me dá vontade de telefonar
para casa. Ainda não seria meia-noite em Estocolmo e ela
certamente está esperando que eu me comunique, que conte
alguma coisa, mesmo que seja por hábito. Mas não encontro
o celular. Reviro minhas roupas, vasculho os armários, enfio

19
LUCIANO MARTINS COSTA

as mãos entre as almofadas do sofá, da poltrona, busco


embaixo da cama. Alguém tirou o aparelho enquanto eu
dormia. Apanho o telefone fixo que está na cabeceira da
cama, e percebo que não é possível fazer uma ligação: o
aparelho dá sinal de linha mas imediatamente se segue o
sinal de ocupado, como se alguém interrompesse a conexão.
Certamente não querem que me comunique por enquanto.
Resta esperar. Uma antiga sensação de impotência me faz
lembrar o tempo em que eu não era dono de mim.
Por alguma oculta razão, lembro outra vez de Amanda, e
sua lembrança traz junto uma música, óbvia, que é a famosa
composição de Victor Jara, e logo se sobrepõe à canção um
poema que li há alguns anos, numa rede social, na verdade o
poema que dava título ao livro: Ojos de desierto. O autor,
Paulo Baudouin, brasileiro e argentino, por algum motivo
que não consigo decifrar me lembra a juventude que tento
esquecer. Mujeres que cargan desiertos con sus ojos vendados,
una pequeña semilla. Mujeres que cargan embriones tan
invertebrados como la luz. Eu sempre soube que todo meu
desespero se resume a esses poucos versos, que se juntam ao
verso de Borges sobre Swedenborg, e considero uma bizarra
e monstruosa ironia o fato de que minha vida tenha de ser
revirada de cabeça para baixo por causa de um par de versos
sem que eu possa fazer nada para impedir a minha mente de
se perder na vastidão dos pensamentos, como um cego que é
deixado para morrer em meio ao deserto.

20
CONTRAPARTO

3 − PROFUNDEZAS

Desperto com uma sensação de náusea. Na televisão, o


noticiário da madrugada relata um novo tremor de terra na
região dos lagos, numa sequência de eventos que haviam
começado com a erupção do vulcão Villarica, poucos dias
antes. Especialistas discutem uma possível relação entre a
explosão vulcânica e os movimentos sísmicos: uns entendem
que não havia ligação entre os fatos porque os tremores,
embora periódicos, ainda não tinham uma regularidade
notável; outros afirmam que a regularidade seria constatada
nos meses seguintes, com uma sequência maior de
ocorrências. Ainda sonolento, imagino o debate se
estendendo por semanas, mobilizando cientistas e curiosos.
Em seguida, ao ser sacudido por novo tremor, sei, por
alguma razão, que também entrou em erupção o Calbuco.
Apanho o controle remoto e aperto o botão de mudar os
canais até parar diante de um rosto que me parece familiar.
Logo compreendo que se trata de um programa de
variedades, em que se misturam cantores, chefs de cozinha e
subcelebridades do mundo artístico. A cada intervalo, antes
dos anúncios, a apresentadora lê para a audiência trechos do
livro do Apocalipse, enquanto na tela passam imagens do
Calbuco, que, segundo entendo, permanece emitindo sua
fumaça escura desde algumas semanas.
Fico sabendo de tudo isso em poucos minutos e essa
constatação me dá uma medida de quão distante estava do
Chile: apenas soubera do Calbuco porque, ao buscar
informações sobre o hotel onde deveria me hospedar,
apareceu na tela do computador um vídeo com imagens da

21
LUCIANO MARTINS COSTA

erupção. Na TV, a apresentadora me parece familiar, mas


ainda estou semi-adormecido e não dou atenção ao que ela
diz. Coloco mais um travesseiro sob a nuca e me deixo ficar
diante da tela, com o som em baixo volume. Fico sabendo
que a mulher colhe entrevistas e depoimentos ao longo da
semana, e os apresenta como um resumo do que chama de
"mundo VIP latinoamericano". Tal programa é transmitido
no começo da noite, antes do noticiário principal, e reprisado
na madrugada. A sensação de que a conheço me incomoda,
e me chama a atenção o fato, percebido rapidamente, de que
ela se converteu recentemente a uma seita neopentecostal de
origem brasileira e se dedica, segundo diz, a "levar o
Evangelho aos que já têm tudo". Com essa curiosidade em
mente, volto a cochilar.
Desperto com o alarme do telefone de cabeceira e noto que
alguém tinha colocado a bandeja com o café da manhã sobre
a mesa da sala, ao alcance do meu olhar. Antes de me
levantar, porém, uma ideia me faz estremecer: a mulher da
televisão, na madrugada, era Isadora. E imediatamente me
vem à lembrança o episódio na casa da família em Viña,
quando, na ausência dos pais, nós recebíamos um grupo de
brasileiros que viajavam pela costa do Pacífico em uma velha
kombi. Jogávamos truco, cantávamos sambas em dois
idiomas e tomávamos o vinho do ministro Eyzaguirre.
Estávamos sentados em almofadas, em torno de uma mesa
baixa, na varanda, e um dos visitantes mal podia dissimular
o encantamento com a visão das coxas de minha irmã,
descuidadamente cobertas por uma minissaia. O rapaz
simplesmente não conseguia desviar os olhos. Então, sem
qualquer aviso, sem demonstrar aborrecimento, ela se
levantou, tirou a roupa e ficou apenas de calcinha e blusa.
Depois, voltou a sentar, pernas cruzadas, e comentou:
"Pronto, pode olhar à vontade. É isto que eu levo por baixo".
E continuou jogando, como se nada tivesse acontecido.
Essa era Isadora. Por sacadas assim, com manifestações
ousadas e espontâneas de autoconfiança, que ela se
destacava no nosso grupo. Sempre havia reconhecido que

22
CONTRAPARTO

minha irmã era feita de outro esquadro que não o modelo


convencional da família. Diziam que havia saído a uma tia
de nossa mãe, mulher dada a iconoclastias, que um dia
embarcou num cargueiro americano e, três meses depois,
mandava uma carta informando que estava vivendo em um
lugar chamado Plymouth. Lembro claramente as feições de
Isadora e, apesar de tantos anos, estou absolutamente seguro
de que a apresentadora da televisão é ela mesma, minha
irmã, e não outra pessoa. Quanto mais me convenço, mais
me espanto que tenha vindo a se transformar numa dessas
celebridades de cabeça oca, e ainda por cima cooptada pelas
ideias primitivas dessas seitas caça-níqueis que proliferam
na América Latina.
No tempo de nossa juventude, custei a acreditar que ela
havia casado virgem, e que tivesse escolhido o mais sem
graça dos nossos amigos. Mas foi um casamento que
agradou ao desembargador Eyzaguirre: seu marido era
parente do ministro Roberto Kelly Vásquez, um dos
primeiros conspiradores do golpe contra Salvador Allende.
O rapaz não era especialmente dotado de carisma, ao
contrário de Isadora. Mas foi essa sua escolha, que nunca
cheguei a compreender. Pouco depois, nós rompemos por
causa de uma disputa pela casa de Las Condes, insuflada
por meu cunhado.
Levanto-me, tomo primeiro o suco de laranja, depois sirvo-
me de café; apanho a xícara e metade de um pão marraqueta
e vou para a varanda. O ar está fresco e uma brisa sopra do
oceano, trazendo uma variedade de cheiros que eu julgava
esquecidos. Posso ver duas ou três velas balançando nas
ondas, mas como nunca conseguia enxergar todas de uma
vez, imagino que pudessem ser quatro, cinco ou mais. Uma
prancha levanta a proa, e eu calculo, de longe, as manobras
que cada um daqueles jovens estaria executando. O pão não
está quente como eu gostava quando vivia no Chile, mas é
crocante como os que me serviam na casa do pai. Ocorre-me
que, antes de me transferir para a Suécia, a vida me fora
generosa, e que a maior parte de minha existência, quase

23
LUCIANO MARTINS COSTA

toda passada em Estocolmo, também me havia presenteado


com mais alegrias que dissabores.
Por que, então, essa inquietação? O oceano à frente, as
montanhas atrás, o silêncio em torno, as boas lembranças,
tudo deveria inspirar serenidade, mas estou ansioso. Mais
do que isso, uma angústia crescente se instalou em meu
espírito desde que passei os olhos naquele cartão do hotel.
Fazia algumas semanas que expressava a Sofia meu desejo
de viajar um pouco, e me queixava de certo cansaço quando
recebíamos a visita dos netos. Havíamos planejado ir a
Barcelona, talvez Madri, e estávamos na iminência de
transformar o desejo em um projeto concreto quando chegou
a mensagem. Quando disse que precisava ir ao Chile
imediatamente, Sofia deixou escapar um lamento em falsete,
quase um ganido: "Mas a gente não ia para Barcelona?"
Lembro de um trecho do livro que um dos brasileiros
carregava, naquele encontro de muitos anos atrás. Era O
Processo, de Kafka, e o prefácio dizia, mais ou menos, que o
homem não governa seu destino; isolado em seu mundo,
pode reger-se por suas normas de conduta, mas ao viver em
sociedade, sombra entre sombras, viajante entre viajantes,
sempre em choque com a humanidade, é conduzido pelas
forças do espírito e da matéria e se torna mero joguete nessa
luta formidável. Era de mim que falava.
Na época, tinha vontade de aprender o português do Brasil,
mas quase não dava conta do curso de inglês e apenas
arranhava algumas palavras em francês, mais por força das
citações que frequentemente os mais velhos faziam à mesa.
Quando surgiu a necessidade de aprender o mínimo do
idioma sueco como condição para minha permanência,
pensei que fosse enlouquecer. Imaginei que estaria
condenado a viver limitado à companhia dos compatriotas
que então conhecia em Estocolmo. Vinha-me à mente aquele
trecho do prefácio kafkiano: "sombra entre sombras, viajante
entre viajantes". Era o que viria a ser, se não dominasse
aquele emaranhado de sons meio falados, meio cantados, da
língua nórdica. Aquilo era o tom, o pitch, conforme havia

24
CONTRAPARTO

lido no manual introdutório do curso. Demorei muito para


aprender que o agudo ou o grave definiam as vogais curtas
ou longas.
Foi quando conheci Sofia que essa angústia se desanuviou:
ela fez do meu aprendizado um jogo prazeroso e em menos
de um ano podia trabalhar, acompanhar as aulas na
universidade, ler tudo que me passasse diante dos olhos.
Acabei aprendendo com facilidade, e de tal modo o idioma
sueco dominou minha mente que, agora, para trocar duas
palavras em espanhol com algum chileno que
eventualmente encontro no metrô de Estocolmo, preciso
fazer certo esforço. Nunca fiz questão de que meus filhos
aprendessem a língua da minha terra e é com alívio que vejo
os netos falando sueco e inglês. Faz muitos anos que não
participo de uma conversa em espanhol, e mesmo nas raras
ocasiões em que me vejo obrigado a interagir com outros
chilenos, sempre há algum convidado sueco ou de outra
nacionalidade e eu dou um jeito de falar em outro idioma.
Agora que o quarto se enche da intensa algaravia da
televisão, eu me dou conta de como os chilenos costumam
ocupar o tempo com palavras. Houve uma época, sim, em
que o país ficou em silêncio: foi logo depois do golpe. Era
muito fácil distinguir em qualquer grupo aqueles que
haviam participado ativamente do movimento golpista dos
que apenas observavam os acontecimentos que terminaram
com a morte de Salvador Allende. O banho de sangue que
prosseguiu, sob o manto pegajoso da omissão, por meses e
anos seguintes, definiu o que seriam os chilenos dali para a
frente: um povo silencioso e acovardado, do qual os
melhores foram arrancados e destruídos ou desterrados para
o anonimato.
Era esse mesmo o vozerio que inundou os melhores
restaurantes de Santiago assim que foi suspenso o toque de
recolher: a alta classe média chilena fazia questão de
demonstrar seu contentamento com o fim da experiência
socialista e os remediados tratavam de desfrutar o fim da
crise de abastecimento que havia sido fabricada para

25
LUCIANO MARTINS COSTA

derrubar o governo. Os mais pobres, e aqueles que tinham


ousado sonhar com um futuro melhor, não participavam da
festa. Nos terminais das linhas de ônibus que conduziam aos
bairros proletários, as filas de homens e mulheres
cabisbaixos, desconfiados e silenciosos completavam o novo
quadro da política nacional. Mas esse era outro tipo de
silêncio: o dos derrotados e desesperançados, aqueles que
tinham vivido a ilusão do poder.
Eu posso compreender o quanto o Chile mudou durante
minha ausência, apenas ouvindo a sequência de bobagens
que minha irmã arranca dos entrevistados. Há em todas as
frases uma estudada platitude, um tom festivo e
deslumbrado com a exibição de um cortinado, um conjunto
de móveis ingleses de cor avermelhada, um aparelho de chá
herdado de uma avó, e já o tema passa a ser o cabelo da
apresentadora, então um rápido comercial dos cosméticos
que patrocinam o programa. Em algumas décadas o Chile
parece ter saltado do ciclo maníaco-depressivo inaugurado
com o golpe para uma euforia sem razão aparente, e se pode
notar por toda parte um enorme apreço por neologismos;
gírias tomadas do lunfardo argentino e expressões em inglês
brotam em meio a todo tipo de conversação. Eu poderia
observar como um lustro de mal dissimulada hipocrisia
cobre as relações sociais – se de alguma forma estivesse
interessado no Chile. Mas tudo que desejo e posso fazer é
cumprir o que ordenava aquela palavra escrita num cartão.
E, assim que possível, tomar o primeiro avião de volta a
Estocolmo.
Sinto que, de certa forma, também eu vivia com as emoções
suspensas. Dou-me conta de que não havia conhecido o
amor antes do exílio. Vivera uma infância despreocupada e
prazerosa, atendido em todos os desejos de menino, cresci
sob a rigorosa proteção da família controlada com mão dura
pelo desembargador, mergulhei na juventude já
transformado em ativista de um projeto político que
engajava todo o meu círculo de amigos e conhecidos, mas de
um modo tosco, irresponsável, impensado. Por não haver

26
CONTRAPARTO

conhecido o amor, não soube reconhecê-lo quando vi Sofia


pela primeira vez.
Nunca me escapou, em todos esses anos, que encontrá-la foi
o melhor que podia ter me acontecido àquela altura da vida,
mas sei também que jamais tive condições de ir além disso:
reconhecer aquela boa sorte, desfrutar dela, construir a
relação com cuidado e procurar ser um bom marido, pai
devotado, um funcionário exemplar. Passei a falar
pausadamente, pensando bem antes de dar uma opinião
sobre qualquer coisa e, por isso, alguns me acham
inteligente. Mas era apenas cautela, de alguém que age como
quem encontra um tesouro e tem medo de que venham
roubá-lo.
Foi a cautela também que me fez apressar a volta a
Estocolmo, na ocasião em que aceitara levar Sofia e os filhos,
ainda pequenos, para conhecer o que restava de minhas
raízes chilenas. Pensávamos ir a Valparaiso, de trem, para o
carnaval, mas eu estava inquieto com a possibilidade de ser
reconhecido por algum companheiro de juventude. Embora
Sofia falasse um espanhol apenas rudimentar, ela seria capaz
de compreender uma ou outra expressão que eu preferia não
ter que explicar. Estávamos nos preparando para o café da
manhã no hotel, em Santiago, no dia 18 de fevereiro de 1986,
quando o noticiário da televisão começou a mostrar os
destroços do comboio expresso misturados ao que havia
sobrado do carro-motor com o qual havia se chocado no
trajeto entre Valparaiso e a capital federal. Fiquei tão
transtornado com as imagens que apareciam na tela que
Sofia saiu imediatamente com as crianças para o saguão de
entrada. Ainda antes do almoço, ela concordou que
deveríamos antecipar a viagem de volta para Estocolmo.
Nos dois dias em que tivemos de esperar pela transferência
do vôo, fiquei sabendo que os números de mortos e feridos
apareciam em contagens regressivas conforme se
desenvolviam as investigações. Era certamente a mão pesada
da ditadura, que, embora decadente, ainda se beneficiava da
cumplicidade dos principais meios de comunicação. O

27
LUCIANO MARTINS COSTA

noticiário passou a destacar a hipótese de que o acidente fora


provocado por terroristas, que, segundo autoridades, já
haviam incendiado cinco trens nos meses anteriores. Havia,
de acordo com a imprensa, sucessivos roubos de cabos e
outros equipamentos naquela linha, e apenas uma pequena
nota dava conta de que o sistema de comunicação da rede
ferroviária era de 1928; por isso funcionava precariamente,
assim como a estrutura de sinalização, danificada por um
temporal poucos dias antes do acidente.
Mas o que mais me perturbou foi a revelação de que
moradores da região de Queronque e transeuntes haviam
saqueado muitas vítimas. Algumas mulheres recolhidas a
hospitais tinham as orelhas dilaceradas por vândalos, que
lhes tinham arrancado brincos, roubando também colares,
anéis e outros objetos de valor. Muitos cadáveres pareciam
ter sido vítimas de pilhagem; seus bolsos estavam revirados
e os socorristas encontraram muitos documentos espalhados
pelo chão. Aclimatado à sociedade sueca, eu desmoronei.
Nunca antes tinha me preocupado em conhecer o que era a
sociedade chilena, e estava diante do retrato da barbárie.
Foi o que me fez decidir que não seria mais chileno. O que
teria acontecido com meu país? Antes, eu não costumava me
sensibilizavar com a propaganda socialista de Allende, com
as campanhas de solidariedade das entidades religiosas e
com a onda de humanismo que por dois ou três anos havia
ocupado as relações sociais. Vivia isolado em meu paraíso
junto ao oceano. A notícia de que chilenos saqueavam
cadáveres de chilenos como se fossem despojos de guerra,
em plena década de 1980, me derrubou.
Não precisava raciocinar muito para concluir que a
sociedade chilena estava irremediavelmente perdida, e que,
se quisesse alimentar a esperança de um futuro para mim e
minha família, eu deveria manter-me distante para sempre.
Lembrei-me de outro desastre, ocorrido em 1971, no
segundo ano do mandato de Salvador Allende, quando um
trem cheio de estudantes partiu por acidente de Vicunha
para La Serena, sem os tripulantes, que almoçavam na

28
CONTRAPARTO

estação, e tombou em um barranco, quando passava por


uma curva no lugar chamado Gualliguaica, a 120
quilômetros por hora. Naquela ocasião, o presidente Allende
apanhou um avião da Força Aérea e foi comandar
pessoalmente o resgate das vítimas, liderando uma corrente
de solidariedade. Depois exigiu que os responsáveis fossem
punidos. Comparei o acidente de 1971 com o de 1986 e
imaginei quanto se havia depreciado a solidariedade entre
meus antigos compatriotas em uma década e meia de
ditadura.
Mas eu sabia que os dois acidentes estavam conectados por
uma dessas ironias que o destino, a História ou mesmo o
acaso costumam construir para dar ao homem o que pensar.
No desastre de 1971, ocorrido no dia 11 de março, o trem
levava 350 passageiros, na maioria crianças e adolescentes,
que viajavam a Vicunha para visitar o museu Gabriela
Mistral. Havia entre eles poucos adultos, praticamente
apenas professores e alguns pais que participavam da
excursão. Um desses adultos era o tenente da Guarda
Nacional Alejandro Ybarra, que mais tarde adotaria o
sobrenome O'Hare, sacado de um parente distante vindo da
Irlanda no século XIX. Não se encontrava ali nem como pai
nem como professor. Sua tarefa era espionar alguns dos
passageiros, observar com quem mantinham contato, se
possível bisbilhotar suas conversas. Era o tempo em que
amadurecia o movimento que resultaria no golpe militar.
Seu nome nunca saiu nas listas de vítimas, embora tenha
sofrido ferimentos gravíssimos, dos quais resultou ter
perdido o braço e a perna esquerdos, além da orelha e o olho
também do lado esquerdo.
Ybarra-O'Hare era um dos meninos que costumavam descer
as dunas de Punta Concón. Pouco antes, quando nosso
grupo já integrava o comando fascista Pátria y Libertad, ele
viria a ser um dos principais ativistas do plano de atentados
e sabotagens financiado pela CIA para impedir a posse do
presidente eleito Salvador Allende, entre 1970 e 1971. Por
acaso, tornou-se depois protagonista no episódio que custou

29
LUCIANO MARTINS COSTA

a vida do jovem argentino em 1974, ao descobrir que


tínhamos sido autores daquele crime. Então, já agregado ao
núcleo do sistema repressivo, usou sua influência no
governo da ditadura para arquivar a investigação, e agiu de
maneira determinante para engajar nosso grupo de
delinquentes na máquina do governo militar. Nessa época,
eu tentava encarar com seriedade o curso de Direito, mas
aderi à barbárie oficial com entusiasmo.
Quando, naquele mês de fevereiro de 1986, o avião decolou
do aeroporto de Santiago-Pudahuel, eu me demorei junto à
janela, a observar o cenário cinzento da velha pátria.
Imaginava, então, que seria o adeus definitivo, e pela
primeira vez vivi, plenamente, o peso do exílio. Era uma
sensação clara de perda que se desvanecia rapidamente, à
medida em que o aparelho ganhava altitude, sentimento
substituído gradualmente pela tranquilizadora convicção de
que minha vida já havia recomeçado bem longe dali, em
Estocolmo. Para lá me dirigia, na companhia das únicas
pessoas com as quais realmente me importava.
O Chile ainda me assombraria em seguida, quando Olof
Palme foi assassinado. A notícia da morte de minha mãe
chegou alguns dias depois, e meu único sentimento foi de
alívio. Sua imagem melancólica era uma lembrança distante.
O Chile, pensava então, ficava enterrado sob os escombros
da civilização – uma nação que se amesquinhava e se
devorava internamente, por haver abdicado da compaixão.

30
CONTRAPARTO

4 – RUPTURA

Olhando com atenção bem à esquerda, é possível ver da


sacada do hotel o brilho das luzes de Viña del Mar e de
Valparaíso, logo adiante. Nesta noite, que imagino ser uma
terça-feira, deve haver pouca gente nos balneários e muitos
prédios estão vazios, apagados. Por isso, preciso puxar pela
memória para reconhecer o cenário: Renaca, depois o clube
de golfe Las Salinas, que posso apenas adivinhar na semi-
escuridão, em seguida a iluminação amarelada da Avenida
Espanha, onde passam alguns carros; logo após, vê-se o
pisca-pisca na fachada do cassino e mais adiante, marcando
o limite entre a terra e o oceano, a Playa Ancha e a Escola
Naval. Ocorre-me, com alguma estranheza, ter um dia
sonhado com a carreira no mar e consigo ainda lembrar a
sucessão de postos que imaginara galgar depois que me
tornasse cadete bacharelado: guarda-marinha, subtenente,
segundo tenente, primeiro tenente, capitão de corveta,
capitão de fragata, capitão de navio, contra-almirante, vice-
almirante e almirante. O oceano seria minha pátria.
Tinha, então, catorze ou quinze anos e a única pessoa na
família que compartilhava aquele projeto era minha mãe. Na
verdade, ela me havia inculcado essa ideia desde pequeno:
me vestia de marinheiro nos dias festivos, presenteava-me
com livros de histórias sobre o mar, mostrava fotografias de
um tio-avô que teria servido sob as ordens do grande herói
nacional Arturo Pratt Chacón. Era uma confidência entre nós
dois, que parecia desagradar profundamente meu pai. Mais
tarde, quando escolhi a carreira jurídica, surpreendi o casal
numa áspera discussão por causa do meu futuro, e fiquei
sabendo que minha mãe havia tido outro pretendente, até
pouco antes de se casar – o suboficial Tomás Ordoño, que
desapareceu na Espanha em 1954. Ele integrava a tripulação

31
LUCIANO MARTINS COSTA

que faria a primeira viagem do navio-escola Esmeralda, dos


estaleiros em Cádiz para Valparaíso, mas não chegou a se
apresentar para o embarque. Foi dado como desertor e, ao
que se saiba, nunca voltou ao Chile.
Três semanas depois de reportado o desaparecimento do
jovem oficial, aquela que viria a ser a minha mãe casou-se
com o juiz recém-chegado da cidade de Concepción. Eles
haviam se conhecido durante as celebrações da
Independência, em Viña, no início de setembro, mas ela não
lhe dera atenção, porque ainda estava apaixonada pelo
marinheiro Ordoño, que viajara para a Europa menos de
dois meses antes. O casamento foi realizado ainda naquele
ano, depois de uma rápida sucessão de jantares nos quais o
novo pretendente, então desconhecido em Santiago, foi
apresentado oficialmente aos familiares e amigos como o
noivo secreto que voltava à capital federal após destacada
passagem por tribunais provinciais.
Aquele que viria a ser o ministro Eyzaguirre galgou
rapidamente a carreira sem nunca ter sido obrigado a deixar
a capital federal. Logo tratou de aproximar-se do melhor da
sociedade, tirando proveito das boas relações da família de
sua esposa, até se tornar o poderoso ministro da Suprema
Corte. Nunca tive curiosidade de conhecer a história do
antigo namorado de minha mãe, até o dia em que
testemunhei aquela discussão; e só agora, olhando para o sul
e tentando adivinhar o que representam aquelas luzes ao
longo da costa, me ocorre que minha vida pode ter sido
desde o início um grande equívoco, desde a concepção,
desde antes do nascimento.
Foi mais intensa minha curiosidade pelo assunto quando era
adolescente. Cheguei a bisbilhotar em antigos recortes de
jornais e anotações que encontrei em um diário escondido no
fundo da velha arca esquecida na casa de Viña. Descobri que
Ordoño era sobrinho do cabo Manuel Astica Fuentes, um
dos líderes da revolta dos marinheiros, ocorrida em 1o. de
setembro de 1931. Seu desaparecimento da guarnição não
chegou a ser oficialmente esclarecido. A única informação

32
CONTRAPARTO

disponível era de que teria embarcado no porto de Cádiz,


em um pesqueiro com destino ao Marrocos.
O assunto chegou a me obcecar por algumas semanas, mas
aos poucos a curiosidade me abandonou. A suspeita que me
assalta agora poderia justificar tudo que me ocorreu nos
anos seguintes, e eu me deixo levar por suposições. E se o
marinheiro Ordoño fosse meu verdadeiro pai? Isso
explicaria minha natureza voluntariosa? Justificaria a
ruptura que me havia conduzido para a Suécia? Mas sei
também que é tarde para encontrar a verdade, mesmo
porque tenho consciência de que minha personalidade
impulsiva não foi obtida por herança paterna, mas lapidada
na total licença para arroubos e traquinagens.
O nome reapareceu em minha vida em janeiro de 1974,
numa madrugada em que o grupo de amigos esticava a
noitada de Valparaíso nas dunas de Punta Concón. Alguém
acendeu um baseado, a brasa passou de mão em mão, e eu
me lembro da expressão esquisita que minha irmã fazia ao
aspirar a fumaça do cigarro, olhando para a brasa na ponta.
Ela ficava ligeiramente estrábica, com os olhos refletindo a
luzinha vermelha. Eu não gostava que ela nos acompanhasse
nessas delinquências quase inocentes, mas sabia que Isadora
tinha um temperamento forte e, ali, ninguém ousaria passar
dos limites com a filha do Desembargador. Além disso,
minha irmã costumava arrastar consigo a amiga Amanda
Escostegui, a mulher por quem eu comeria toda aquela areia
em que estavámos sentados.
Eu me distraí com as conversas, minha mente viajou até o
oceano escuro, lá adiante, e dali partiu para outras terras,
então me imaginei marinheiro, talvez comandante de um
transatlântico, como no tempo em que minha mãe me vestia
com as galas de almirante. Não era, comumente, um tipo
sonhador, mas a visão do Pacífico me retirou dali, e não
saberia dizer quanto tempo passei a contemplar aquela
imensidão escura, pontilhada de vez em quando por uma
luz distante que as ondas mostravam e escondiam,
mostravam e escondiam. Estava um pouco atrás do grupo,

33
LUCIANO MARTINS COSTA

alguns metros acima, de modo que podia ver o mar e as


cabeças de meus amigos, e meu primeiro pensamento foi
para Amanda, cujos cabelos esvoaçantes me fizeram
imaginar as asas de um albatroz, e logo se dispersou nas
ondas que se moviam.
Em algum momento me percebi cantarolando uma canção
de Victor Jara, dado como desaparecido naquele ano. Então,
eu acreditava que Jara havia fugido para Cuba, como
divulgado pela imprensa. Cantava não porque gostasse, pois
em minha família e entre os amigos o autor não era
apreciado, mas porque a canção era dedicada a uma mulher
chamada Amanda, e a amiga de minha irmã era minha
paixão desde que me conhecia como homem. Mas Amanda
Escostegui me tratava como um transtorno, um par de olhos
e ouvidos sempre xeretando as conversas das duas, e foi essa
lembrança que me trouxe de volta à realidade.
Corri os olhos pelo grupo que se sentava à frente e percebi
que Isadora não estava ali. Dei-me conta, então, de que a
canção que me vinha à memória estava sendo cantada por
alguém ali perto, e o som chegava como as ondas do mar,
conforme as oscilações do vento. Levantei-me, intempestivo,
enquanto um dos jovens do grupo, o estudante de medicina
Adolfo Schmidt, apontava a direção de onde parecia vir a
cantoria. Senti latejar as veias do meu pescoço.
Outro amigo, Alejandro Irigoyen, já perscrutava a colina de
areia em busca da origem daquela música. "Quem é o filho
da puta que está cantando?" – gritou. Irigoyen era um tipo
bruto, vinte centímetros mais alto e, como eu, também
versado em lutas marciais. Havia participado ativamente
das agitações que antecederam a derrubada do governo de
Salvador Allende e estava, naquela ocasião, esperando a
nomeação para um posto na Guarda Nacional. Seu pai fora
deputado durante o mandato de Eduardo Frei Montalva,
compondo a ala mais conservadora da aliança liderada pelos
democratas-cristãos, e as nossas famílias imaginavam desde
muito que ele seria o marido ideal para Isadora.

34
CONTRAPARTO

Irigoyen caminhou em direção ao topo das dunas e eu o


segui, ao lado de Schmidt. Um pouco mais ao norte,
avistamos os vultos de duas pessoas sentadas; o jovem de
cabelos longos acabava de depositar o violão junto a um saco
de dormir, onde parecia estar sentado. Ao seu lado estava
Isadora, que mirava o oceano, distraída.
Alejandro Irigoyen foi quem chegou primeiro, segundo o
relato da própria Isadora, que veio a fazer parte do inquérito
que só veio a público uma década mais tarde, na ocasião em
que Irigoyen, pouco depois de haver completado quarenta
anos, tentava uma candidatura ao Parlamento. Irigoyen era
frio e cruel. Ele não se precipitou. Aproximou-se dos dois,
aparentando calma, sentou-se ao lado do casal e perguntou:
"De quem é essa música que você estava cantando?"
O jovem do violão respondeu, mostrando um caderno com
partituras:
"É de Victor Jara. Chama-se 'Te recuerdo, Amanda’” – e, sem
ter a mais remota suspeita do que significava aquele gesto,
apanhou o violão para retomar a canção. Eu me aproximava
nesse momento. Agarrei o braço da minha irmã e a obriguei
a levantar-se. Em seguida o grupo cercou o rapaz; Amanda
Escostegui abraçou a amiga e a afastou dali. Caminharam
juntas para o pé da colina de areia, e Isadora se voltou
algumas vezes para ver o que se passava:
"O que vai acontecer? O que eles vão fazer? É apenas um
menino argentino, que viaja por aí de carona", disse.
Mas Amanda a fez virar-se para a frente.
"Nada. Não vai passar nada. Eles vão apenas dizer para o
cara se mandar daqui."
"Simón. Simón Natan é o seu nome", disse Isadora. "Não é
ninguém. Apenas um rapaz de Córdoba, viaja por aí...", e
seguiram pelas dunas abaixo, Amanda conduzindo Isadora.
Quando as duas chegaram ao carro estacionado na Avenida
Borgoño, o jovem já estava morto. Primeiro fui eu quem lhe
deu um chute na altura do rim, fazendo-o rolar na areia. Em
seguida, Alejandro Irigoyen o levantou pelos cabelos e eu o
atingi com uma saraivada de golpes brutais de muay tai. O

35
LUCIANO MARTINS COSTA

moço rolou no chão. Nós o chutamos ladeira abaixo. Tossia,


agoniado pelos golpes no peito e na cabeça, engasgando-se
com a areia. Então, Adolfo Schmidt arregalou os olhos e
gritou: "Hoje é dia de sangue! Hoje é dia de sangue!". Em
seguida, retirou do bolso um soco inglês que tinha uma
lâmina embutida, apertou o botão calmamente e, com um
movimento rápido, seccionou sua jugular, cortando fundo
em seu pescoço. O sangue jorrou como de uma mangueira
de jardim, atingindo o meu rosto e minha camiseta.
Nosso grupo ainda permaneceu alguns instantes sem saber o
que fazer. Schmidt limpou a lâmina, olhou para o soco inglês
e disse, em voz baixa: "Minha primeira cirurgia". Fui eu
quem tomou a inciativa de revirar os bolsos do argentino.
Apanhei seus documentos, algumas notas de dólar e uma
folha de papel, e os enfiei no bolso. Em seguida, comecei a
cavar uma vala na areia. Os dois amigos se juntaram a mim,
e com gestos apressados o corpo foi enterrado rapidamente
ao lado de uma pedra, junto com o violão. Em seguida
cobrimos sua sepultura com o saco de dormir.
Enquanto caminhávamos em direção à orla das dunas, dei
uma olhada no passaporte que havia apanhado e me
espantou: o jovem morto se chamava Simón Natan Ordoño-
Aguilar. Havia também entre seus pertences algumas
dezenas de dólares e uma carteira da Associação Mutual
Israelita-Argentina, junto com o papel onde se podia ler o
poema de Borges com a referência a Swedenborg: "Por
Swedenborg, que conversava com os anjos nas ruas de
Londres".
Amanda desapareceu naquela mesma noite. Isadora a levou
até a cidade, ela pediu para caminhar um pouco sozinha.
Combinaram de se encontrar na manhã seguinte na cafeteria
Samoiedo, mas Amanda não compareceu. No fim do verão,
alguém diria que ela também não frequentava mais a
universidade, e correu o boato de que havia entrado para a
clandestinidade, engajada num grupo de resistência contra a
ditadura de Pinochet. Foi buscando alguma pista de
Amanda que acabei me aproximando do Movimento de

36
CONTRAPARTO

Ação Popular Unitária (MAPU), uma das facções que


tentavam organizar a oposição a partir de uma dissidência
da Democracia Cristã tradicional. Foi então que minha vida
virou do avesso.
Não foi difícil integrar-me ao grupo. Encontrei entre os
militantes um ou dois ex-colegas do Colégio San Ignacio;
como havia atuado durante o movimento contra Allende
logo após a eleição de 1970, quase exclusivamente em Viña,
num daqueles bandos de jovens arruaceiros que agrediam
intelectuais e depredavam repartições públicas, poucos em
Santiago sabiam desse meu passado. Na capital federal pude
construir outra imagem para mim, enquanto procurava uma
pista de Amanda. Logo era levado a reuniões onde aos
poucos fui compreendendo o mal que se havia abatido sobre
o Chile, com alguma contribuição minha e de meus amigos.
Mas estava como anestesiado e cheio de ressentimento.
Quando minhas antigas convicções começavam a ser
abaladas, fui abordado na saída da universidade por um
carro preto onde se encontrava Alejandro Ybarra. Ao
embarcar no automóvel, não sabia que estava também
transpondo um portal que me levaria ao lugar sem dúvidas,
ao universo sem contestações onde uma ordem vinda do
alto, de um poder absoluto, determinaria que a vida dos
indivíduos não tinha a menor importância diante dos
interesses do Estado.
Mas o Estado era também a representação de indivíduos,
uns poucos, aqueles que possuiam boas casas, que tinham
bons carros e podiam ir ao aeroporto e voar para Miami ou
Paris, sem se preocupar com as contas a pagar ou sem
remorso de deixar para a volta o salário dos seus
empregados. Quando entrei no carro cuja porta foi aberta
pelo ajudante-de-ordens do tenente reformado Alejandro
Ybarra-O'Hare, eu ainda não sabia que as lembranças de
Miami, do Clube de Golfe Los Leones e das dunas de Punta
Concón valiam tanto. Entrei num turbilhão e assim fui
esquecendo Amanda.

37
LUCIANO MARTINS COSTA

Essas memórias foram forrando os dias seguintes de uma


capa impermeável que me impedia de virar a cabeça para
trás e contemplar aquelas dúvidas que me haviam assaltado
nos primeiros meses da universidade. Esses foram dias de
grande angústia, mas a convicção de que havia um lado
naturalmente vitorioso, e que o acaso me empurrava para
dentro do sistema de maior poder, acabou por apaziguar
meu espírito. Portanto, não durou muito essa angústia.
Sempre fui de me acomodar à zona de conforto. Aos poucos,
me convenci de que, sendo impossível permanecer alheio ao
que acontecia no Chile, era melhor estar no lado vencedor.
Mas algumas lembranças continuaram faiscando em minha
mente, e quase todas tinham no centro o rosto anguloso de
Amanda Escostegui e seus olhos verdes brilhantes. Numa
dessas lembranças, ela estava sentada com minha irmã no
carrocel do parque de diversões, em Viña del Mar, enquanto
os alto-falantes tocavam sem cessar aquelas canções do
brasileiro Roberto Carlos que faziam grande sucesso no
festival anual de música. Eu estava na cadeira da frente, com
um amigo, e me virei para trás pelo tempo suficiente para
ver seu sorriso. Ela estava tão absolutamente feliz, tão
luminosa, e foi naquele instante mágico, aos quinze anos de
idade, que tive uma ideia do que poderia ser o amor.
Poderia escrever uma tese de doutorado sobre a quase
inocente expressão "as voltas que o mundo dá". Ainda agora,
olhando, absorto, as luzes de Viña del Mar, uma enorme
tristeza me faz pensar em como a vida tem sido um carrossel
inútil a rodar no vazio. Cedo descobri que aquela era uma
felicidade que eu nunca teria. Mesmo depois, em Estocolmo,
minha relação com Sofia e os filhos se desenrolou sob a
sensação de que aquela promessa de felicidade que se
apresentou por acaso numa mesa da Kungliga Biblioteket
não me pertencia. Vivi esse enredo tendo como pano de
fundo o medo de que acabasse subitamente. Quando vieram
os netos, imaginei que finalmente podia considerar que
ocupava um lugar no mundo. Mas o cartão recebido uns
dias atrás destruiu toda ilusão.

38
CONTRAPARTO

As lembranças voam em minha mente, as imagens mal se


fixam e são substituídas por outras, por sensações que se
misturam, cada qual deixando um rastro corrosivo, como
um fio de ácido sobre chapa de alumínio. Sim, considero, se
precisasse imaginar um estado para minha mente, diria que
vivia em processo de corrosão. Os quase quarenta anos de
vida com Sofia parecem se encolher a um tempo exíguo, e
minha existência de antes se impõe, como uma onda
avassaladora, sobre as memórias do exílio. Aqui se rompe
toda ilusão, Estocolmo foi um sonho, um sonho longo e feliz,
mas a realidade desliza, inexorável, feito avalancha pelas
areias de Punta Concón, e se solidifica como uma montanha
de granito à beira do oceano.
Sinto-me cercado: atrás de mim, a cordilheira que sei
onipresente, imponente e ameaçadora como uma onda
congelada que a qualquer momento pode empurrar o Chile
para as tenebrosas profundezas do Pacífico; à frente o mar e,
à direita, aquela montanha simbólica de minhas lembranças.
Entre a muralha de pedra e a do oceano minha vida se
encolhe. Não há como voltar, não posso seguir adiante.
Deixo a sacada e me recolho ao quarto. Não saberia dizer
quanto tempo estive lá fora, olhando a paisagem e
deslizando com minha memória pelas dunas. Alguém
colocou o jantar sobre a mesa, sem que eu notasse. Sento-me
e como lentamente, saboreando a peça de merluza austral
que vem acompanhada de batatas assadas e alcaparras. Uma
garrafa pequena de um bom Chardonay pousa na bandeja.
Mastigo com prazer a carne macia das batatas, imaginando
como tudo, nesta terra, obedece a uma sucessão de rituais
que cobrem a superfície da vida social e penetram nas vidas
privadas, criando uma carapaça que nem mesmo a História,
com suas rupturas às vezes brutais, seria capaz de romper.
Sob essa capa vivem os chilenos sua vida de merda,
afogando suas consciências sob toneladas de música ruim,
de preconceitos e mitos, de valores antiquados, apartados da
realidade por certa visão de mundo que os mantêm presos
ao século 19.

39
LUCIANO MARTINS COSTA

Como a crosta de ervas que cobre a carne do peixe, a vida


comum dos chilenos parece suportar estoicamente qualquer
abalo, qualquer terremoto. Se, por acaso, o destino ou algum
desatino coletivo, desses que se avolumam em torno das
grandes mobilizações da imprensa, provocasse um corte
nesse tecido de superficialidades e protocolos, a carne
interna não se alteraria. Ficavam os chilenos a esperar que
novamente a superestrutura se acomodasse, que tudo
voltasse a parecer como antes, ainda que nada fosse igual.
Foi assim com a perseguição a Neruda, durante o governo
totalitário de Gabriel González Videla, no final dos anos
1940; pelo menos na versão cinematográfica, que eu, a
contragosto, havia assistido poucos meses antes em
Estocolmo. Foi assim na campanha que resultou na
derrubada de Salvador Allende, e foi assim durante o
período da ditadura de Pinochet. Os chilenos se acomodam
sob essa capa de conveniências, e esse é um dos poucos
pensamentos que consigo completar nesta noite. Então, viro
o filé de merluza e aprecio a carne aos poucos, fazendo
explodir sobre a língua cada grão de alcaparra. Tomo o
vinho com calma e observo que é bom e gratificante. Depois,
apanho com as mãos a crosta de ervas, levanto a cabeça e a
rompo a dentadas.

40
CONTRAPARTO

5 – FLUTUAÇÕES

Nüyün. A palavra se apresenta em minha mente quando


novamente a náusea me desperta. Mas não me levanto de
imediato. Prefiro continuar deitado, sentindo a cama
balançar e ouvindo tilintarem os talheres que havia deixado
sobre o prato. Conhecia a expressão de umas poucas
palavras que tinha aprendido com a velha mapuche que
servira durante anos na casa da família. Nüyün, ela disse
certa vez, lá pelo ano de 1958, quando um terremoto sacudiu
a região de Santiago. Eu era um menino, ainda na educação
básica, mas nunca esqueci o barulho de vidros se
estilhaçando e a estranha visão de objetos rolando pelo solo;
mas a sensação que me marcou definitivamente foi a náusea.
Era como um sonho, como se o mundo tivesse saído de seus
eixos, como se tudo se levantasse de repente e ficasse assim,
flutuando, sem tempo para voltar ao lugar. E era bom.
Ainda agora, nesta noite que não saberia situar no
calendário, eu me deixo embalar pela mesma sensação de
instabilidade, reconheço que gosto disso, e me ocorre que a
muitos chilenos deve parecer que o mundo seria melhor sem
uma terra firme, que talvez o país devesse flutuar sobre o
Pacífico indefinidamente, de modo que ninguém precisasse
se perguntar como foi que se chegou a tal lugar, a tal estado
de espírito, e então não seria preciso mentir sobre o que este
ou aquele indivíduo da família estava fazendo numa noite
qualquer de 1973 ou de 1976, porque então não haveria
necessidade de História nem de uma geografia sólida, e a
memória simplesmente flutuaria como tudo o mais, livre e
sem culpas.
O tremor demorou menos de cinco minutos, e uma sensação
de serenidade se apossa de meu espírito e anula a percepção
do tempo, como se o apocalipse brotando das profundezas

41
LUCIANO MARTINS COSTA

da Terra fosse uma hipótese adequada para o fim de toda


inquietação. Recordo a ocasião em que, deixado pelos
amigos ao sol do verão, depois de uma noite de bebedeira,
fui resgatado em Punta Concón, afetado pela insolação,
confuso e com ânsia de vômito. E havia gostado da sensação
estranha dos calafrios percorrendo minha coluna de alto a
baixo. Agora, porém, não apenas sinto meu corpo flutuar,
mas, apesar da sonolência, adquiro uma clara consciência do
que está acontecendo. Aos poucos, o noticiário esparso que
havia recolhido em cenas fragmentadas na televisão do
quarto começa a compor um mosaico pleno de sentido. E
compreendo que a explosão do vulcão Villarica, pouco mais
de um ano antes, era parte desse processo de movimentos
tectônicos e erupções vulcânicas que produzem um desenho
em torno do território chileno. Começa na região dos Lagos,
a partir de Chiloé, e contorna a borda ocidental dos Andes,
fazendo um recorte no sentido sul-norte, compondo uma
sequência que inclui os vulcões Osorno e Calbuco, que
despertam quase simultaneamente, poucas semanas depois
do Villarica. Os tremores se seguem a partir de Roncágua, no
centro do país, e também ao longo da costa, com sismos de
intensidade média ou elevada, a partir da região de Viña del
Mar e Valparaíso, com os eventos traçando uma linha reta
pontuada ao largo de Los Sillos, em Canela Baja, Tongoy, La
Serena e La Higuera. De Antofagasta até Arica, na fronteira
com o Peru, a sequência produz uma mudança para o lado
oriental, desenhando o contorno do território chileno com a
precisão de um cartógrafo rigoroso, abrindo nova sucessão
de tremores desde Putre, quase na Bolívia, e descendo para o
sul em direção a San Pedro de Atacama. Quando os
sismógrafos finalmente fazem uma pausa, o Vulcão Tacora
produz seu espetáculo de fogo e fumaça negra. No entanto,
seu irmão gêmeo, o Chupiquiña, em terras peruanas,
estranhamente permanece calado. Pouco depois, o rio
Desaguadero, ao norte, começa a secar, em meio às chuvas
torrenciais do alto verão, ao mesmo tempo em que o lago
Titicaca, sua principal fonte, parece murchar. Passadas

42
CONTRAPARTO

semanas, somente depois que o Titicaca havia perdido quase


vinte quilômetros de largura, os especialistas podem
constatar que o leito do canal havia sido escavado
profundamente. A chilena Visviri, ao norte, é a primeira
cidade a desaparecer, engolfada numa cratera que surgiu
repentinamente, no fundo da qual se pode ver o brilho
escuro de obsidiana negra de um lago subterrâneo. As casas
de Tripartito, no enclave entre Peru, Chile e Bolívia,
sofreram apenas rachaduras. Ao sul, a Laguna Blanca se
esvazia a cada dia como uma bacia furada, bem como o
Llanquihue, e o solo começa a se elevar na linha costeira do
Chile. Os baixios de Valparaíso afundam no Pacífico,
enquanto os cerros se elevam em centenas de metros. Posso
ver da sacada do hotel, mesmo sem me levantar da cama, e
sei que o Chile se aparta do continente, separado dos Andes
por um canal profundo; então me ocorre que finalmente a
Bolivia havia conquistado seu direito ao mar, e que neste
momento milhares de bolivianos estão buscando um jeito de
descer pelas escarpas dos Andes, para ver de perto como o
lago de Licancabur desapareceu, ou melhor, como se estende
agora ao longo da antiga fronteira, suas águas misturadas às
de outros lagos e do Pacífico, formando aquele canal
enorme, que começa onde antes havia o arquipélago de
Chiloé e, dando a volta pela borda da cordilheira, termina
outra vez no oceano. Muitos levam varas de pescar e
pequenos cestos, outros carregam pranchas de surfe, numa
intensa alegria pela novidade. Comentaristas do rádio e da
TV, falando de La Paz, começam a discutir como ficam os
direitos territoriais da Bolívia, enquanto o governo boliviano
convoca uma reunião de emergência para aprovar projetos
de portos na nova costa recem-conquistada por direito de
natureza. No Chile, silêncio. Sem eletricidade, sem
comunicação, os sobreviventes vagam pelas ruínas,
procurando abrigo. Familiarizados com os tremores de
alcance restrito, os chilenos buscam um jeito de escapar de
sua vizinhança, sem imaginar que todo o país tinha sido
destroçado e que aquilo que era antes o território nacional se

43
LUCIANO MARTINS COSTA

havia deslocado, em bloco, cinco quilômetros para dentro do


mar. Pequenos tremores ainda sacodem as bordas do país, a
leste e a oeste, causando desmoronamentos nas escarpas que
brotaram por toda parte. A Placa de Názca se havia
incrustado sob a Placa Sulamericana, num movimento
contínuo como não ocorria há milênios, dizem os
especialistas, e a palavra subducção surge a cada dois
minutos, como um mantra para explicar o fenômeno.
Deitado em minha cama, com os olhos arregalados, tomo
conhecimento de tudo sem mover um músculo da face, e
vejo que a televisão do quarto se acende e minha irmã
Isadora aparece na tela, comandando um roda de orações
pelas vítimas do terremoto, dizendo que as autoridades
ainda não podem precisar o tamanho dos danos nem o
alcance do tremor, mas garantem que a ordem está mantida
e recomendam que a população se afaste dos locais
perigosos, assegurando que os agentes da defesa civil estão
fazendo o possível para colocar tudo sob controle. Então
considero que minha irmã Isadora representa bem o seu
povo: sim, certamente tudo estaria em ordem e o Chile
continuaria sob controle, porque os chilenos gostam de
controle, adoram viver em ordem e detestam tudo que possa
representar uma mudança de hábitos. Também me dou
conta de que a região metropolitana de Santiago não foi
afetada seriamente pela tragédia. De certo modo, imagino,
faz sentido, porque a capital federal é o único lugar onde o
país tinha alcançado certo grau de modernidade. Em poucos
dias a imprensa começaria a publicar artigos louvando a
resiliência dos compatriotas, as escolas passariam a ensinar a
nova geografia, topógrafos sairiam a campo para tomar as
novas medidas do país e o Fundo Monetário Internacional
enviaria seus consultores para negociar os financiamentos da
reconstrução. Mas ainda seria o Chile? – eu me questiono.
Sem a cordilheira, quase toda esfarelada, com as terras
centrais revolvidas e seu território transformado em uma
planície, como uma longa e estreita tábua de passar roupa,
quem sabe ainda se deslocando para o meio do Pacífico, que

44
CONTRAPARTO

país seria aquele? Uma nau de insensatos insensíveis,


incapazes de se indignar na medida justa e enfrentar o mal-
estar que tentavam ignorar desde o dia 11 de setembro de
1973?
Lá embaixo, um carro passa buzinando, uma curta saraivada
de fogos comemora, talvez, o fato de uma bola ter
ultrapassado a linha do gol num campo de futebol, e
considero que aquele não seria o momento mais adequado
para qualquer celebração, evento ainda mais bizarro
levando-se em conta que não deveriam ter sobrado muitos
estádios inteiros após o cataclisma. Então, penso na uruguaia
Mirtha Ercília Fernández de Pucurull. Estaria viva? Que
lembranças carregaria de sua caminhada na corda bamba
sobre o abismo da morte? Ainda aprisionado entre o sonho e
a vigília, quero evitar a visão daquele rosto marcante, a pele
muito clara, aquele olhar ao mesmo tempo duro e sereno
que se derramava de uma cama da Clínica Sara Moncada.
Ela estava ali, sob proteção do governo da Suécia, para se
tratar de uma hemorragia provocada pelo câncer no sistema
urinário.
Eu tinha sido abordado na saída da universidade por um
automóvel preto e convidado a partilhar o banco de trás com
um homem magro, incrivelmente magro, e não o reconheci
imediatamente. Era o dia 25 de novembro. As aulas estavam
suspensas desde o dia 11 de setembro, mas eu havia
combinado um encontro com amigos, que iriam comemorar
o aniversário de alguém. Só quando ouvi sua voz aguda
soube que era Alejandro Ybarra, agora dito Ybarra O'Hare.
"Vamos buscar uma comunista dos tupamaros e lhe dar um
tratamento modelo", disse o companheiro de infância
quando alcançamos a avenida Pedro de Valdívia. Passamos
pelas colunas de pedras e pude apreciar o belo arco de ferro
em estilo art-nouveau tardio, guarnecido por uma luminária,
por onde se ingressava no jardim bem cuidado. Dali, o
edifício vetusto me pareceu pequeno, no centro do terreno
de doze mil metros quadrados. O automóvel parou perto da
porta lateral e a voz de Ybarra determinou: "Fico aqui, vista

45
LUCIANO MARTINS COSTA

este jaleco e alguém vai te encaminhar ao quarto da mulher.


Os soldados garantem que você a traga, nem que seja
arrastada". Só então me dei conta de que atrás do nosso
grupo havia duas viaturas cheias de carabineiros, que
rapidamente se espalharam por todos os lados, sob o
comando de um capitão.
Mas o sequestro não foi pacífico. Enquanto eu providenciava
a remoção da mulher, que devia ter em torno de trinta anos
de idade, chegou à clínica um grupo de civis, liderado pelo
embaixador da Suécia, Harald Edelstam, que era
acompanhado de seu adido militar e do embaixador da
França, Pierre de Menthon. Pretendiam fazer reconhecer a
condição de exilada de Mirtha Pucurull, mas foram cercados
e agredidos pelos carabineiros. O capitão chegou a sacar a
arma e a apontou para o diplomata sueco. Eu me lembro da
excitação daquele momento. Eu era um dos homens que
levavam a uruguaia na maca. Ao passar pela porta, apanhei
de uma mesa um urinol de metal, tipo "papagaio", e o
coloquei junto ao corpo da mulher. Afastei-me rapidamente
do local, protegido pelos carabineiros, enquanto a altercação
se intensificava e os militares agrediam violentamente o
pequeno e desarmado grupo de Edelstam.
Não olhei para trás.
Quando entrei novamente no carro, notei que O'Hare tinha
mudado de lugar no banco traseiro, e só então me dei conta
de que lhe faltava quase todo o lado esquerdo do corpo. Sem
a perna esquerda nem o braço esquerdo, com a orelha
esquerda substituída por uma enorme cicatriz onde não
nascia cabelo, meu amigo parecia ainda mais magro, ou,
como pensei em seguida, era por isso que me havia parecido
incrivelmente magro. "Para onde vamos?", perguntei, com o
rosto ainda afogueado pela excitação. "Eu queria levá-la para
a Casa Yucatán, mas o imbecil do carabineiro acha melhor
deixá-la primeiro no presídio feminino", respondeu.
Enquanto seguíamos o comboio militar, um integrante do
grupo notou que eu havia apanhado um urinol do tipo
usado em pacientes masculinos, e riu muito. "O moleque não

46
CONTRAPARTO

sabe a diferença entre um caralho e uma xoxota", provocou,


mas O'Hare o interrompeu, animado, e disse que pretendia
usar a militante uruguaia como modelo exemplar de um
método de tortura de que tinha ouvido falar – "apenas
teoricamente", explicou – durante o estágio na Escuela de
Las Américas do Forte Gullik, centro americano de
pesquisas de interrogatórios no Panamá. "Vou usar no
contraparto". Foi a primeira vez que ouvi a expressão e ele
mudou imediatamente de assunto: "Quando me apresentei
como voluntário, o chefe Contreras duvidou que eu pudesse
desempenhar qualquer papel no serviço. Mas eu o dobrei
com uma brincadeira. Veja, não tenho nada à esquerda, nem
a orelha. Sou o verdadeiro protótipo do Chile que queremos.
E o chefe se cagou de rir. Temos carta branca para tudo, e
nesta fase da revolução, o governo somos nós", completou.
Mas fui informado duas semanas depois de que a uruguaia
Mirtha Pucurull tinha sido devolvida aos suecos e, àquela
altura, já deveria estar instalada em Estocolmo. Não poderia
definir que sentimentos me invadiram na ocasião, mas sei,
desde muito, que aquele foi o episódio definidor de minha
vida. Se não tivesse sido abordado por Alejandro Ybarra
O'Hare naquele dia, minha existência teria transcorrido
como a de muitos de meus amigos: terminaria o curso
universitário, ganharia um bom cargo por influência de meu
pai, o desembargador e ministro Eyzaguirre, e não estaria
agora atormentado por este pesadelo. Mas também não teria
conhecido Sofia.
Minha mente entra mais uma vez em estado de paradoxo, e
me sinto voando em duas realidades paralelas. Vejo passar a
imagem de Mirtha Pucurull, mas o rosto não é dela. É
Amanda Escostegui, que debocha de mim numa rua do
bairro Paris-Londres, em Santiago. Passávamos pelo
Instituto de Investigações Genealógicas e comentei que meu
pai havia encomendado um estudo sobre as origens da
família. Eu a tinha visto descer de um automóvel perto da
universidade e a alcancei poucos metros adiante. Ela me
reconheceu imediatamente, o que me deixou exultante, e

47
LUCIANO MARTINS COSTA

permitiu que a acompanhasse até a estação do metrô. Eu


procurava um assunto que me permitisse saber por que ela
havia se afastado dos amigos de Viña; foi quando vi a sede
do instituto que impulsivamente resolvi falar da família,
talvez para fugir da ideia que viria em seguida, ou
simplesmente para retomar a ligação rompida meses antes,
em Punta Concón. Ela deu uma gargalhada e, sem deixar de
caminhar, disse que as famílias burguesas do Chile não
deveriam gastar seu rico dinheirinho no Instituto
Internacional de Genealogia e Heráldica, que era uma vasta
picaretagem dedicada a explorar a vaidade de gente sem
história, cuja existência precisava buscar uma razão moral
fora de sua casa e do seu tempo, numa suposta e fantasiosa
origem nobre, num sobrenome estrangeiro, e que, na maioria
dos casos, bastava pesquisar nas ruas da zona vermelha, ali
perto, onde as prostitutas faziam seu comércio desde o
século 19, e naqueles becos estaria toda a raiz da burguesia
chilena importada da Europa. Em seguida citou um
sociólogo alemão chamado André Gunder Frank e sua tese
sobre a pobreza intelectual da elite sulamericana, que ele
chamava de lumpenburguesia, e arrematou dizendo que as
classes médias do continente são estúpidas demais até para
reconhecer um governo que defende os legítimos interesses
nacionais. "Tudo que é o Chile de hoje se resume nas placas
colocadas por devotos no túmulo de uma prostituta no
cemitério central de Santiago. Transformaram o túmulo da
pobre Carmencita em uma animita, essa espécie de santuário
que só mesmo no Chile se poderia inventar", ela disse.
Lembro do ódio que tomei por Amanda naquele momento, e
de como meu olhar se desviou por um instante para a
fachada do número 38 da rua Londres, onde poucos dias
antes eu fora apresentado ao temido chefe do governo das
sombras, Juan Manuel Guillermo Contreras Sepúlveda,
conheido como "El Mamo". Foi naquele momento que senti
o poder que havia adquirido desde a primeira vez que
entrara no sobrado que chamavam Yucatán, onde a nata da
repressão política tinha seu quartel-general. Ocorreu-me

48
CONTRAPARTO

então a ideia que me assombrara momentos antes: a de que


bastava dar uns passos na direção do número 38 da rua
Londres, e a bela Amanda Escostegui seria apenas um vaga
lembrança de minha adolescência. Repeli imediatamente
aquele pensamento, ao mesmo tempo em que me dava conta
de que ela nunca me havia enxergado de verdade. Eu
sempre fora o pendejo, o chato que a rodeava como um cão
no cio, e agora que ela provavelmente se envolvia com
subversivos e eu fora atraído para o interior da máquina
repressiva, era preciso romper definitivamente com a
infância, de ser fiel ao que era – o filho do ministro
Eyzaguirre – e torcer para que nossos caminhos nunca mais
se cruzassem. Esse era o meu paradoxo do desejo.
Sabia que muitos daqueles jovens dos quais me aproximava
no ambiente acadêmico eram inofensivos. "A esquerda
festiva", como diziam os colunistas da imprensa, gente que
não representava perigo para a estabilidade do projeto
nacional conduzido pelo general Pinochet. Eram na maioria
como Amanda, meninos e meninas mimados, iludidos por
ideólogos esquerdistas e por uma facção desvirtuada da
Igreja. O grande perigo eram os mais experientes, aqueles
que haviam escapado das primeiras incursões ou que não
tinham fugido para o exterior. Toquei em seu braço e a
conduzi para a direção da Alameda, afastando-me a passos
apressados da rua Londres. "Aqui está muito escuro. Vamos
andar mais depressa" – e ela me seguiu, surpresa por me ver
tomar a iniciativa tão bruscamente. Nunca mais a vi; mais
precisamente, nunca mais a vi com vida, não tenho certeza
se a vi morta, e de tudo que me atormenta na maldita
memória, a única referência a Amanda Escostegui é o
pavoroso significado da palavra contraparto.
Já era, então, um agente consciente de meu papel. Desde o
primeiro contato com Alejandro Ybarra, em duas semanas
eu me deixara levar pelos acontecimentos e me habituara à
rotina bizarra que passou a dominar minha vida: dormia até
tarde, quando não era despertado por um telefonema da
Casa Yucatán. Então, me vestia apressadamente e me dirigia

49
LUCIANO MARTINS COSTA

ao ponto marcado, geralmente um café no centro, perto das


grandes universidades. Ali recebia um envelope com
fotografias, nomes, endereços. Quando podia, repassava
imediatamente um perfil do investigado, e às vezes fazia
anotações sobre dados que deveria conferir depois.
De vez em quando meu interlocutor era outro jovem como
eu, mas quase sempre um militar de carreira. Em certos dias
da semana passava algum tempo na Universidade Católica,
ouvindo conversas, participando de reuniões, e foi assim,
por casualidade, que tive notícia de Amanda Escostegui,
poucos dias depois de tê-la reencontrado na rua: alguém
informava sobre seu desaparecimento. Teria adotado a
clandestinidade, ou estaria presa.
Antes de ser convocado por Alejandro Ybarra O'Hare, eu
estava alienado das turbulências políticas. Apesar de ter me
engajado em ações violentas na campanha eleitoral, quando
tentávamos evitar a vitória de Salvador Allende, e nas
confusões que armávamos para desestabilizá-lo pouco antes
da posse, não tinha ideia sobre como me posicionar diante
dos acontecimentos que engolfavam o Chile desde o golpe
de 1973. Os eventos me remeteram diretamente da
adolescência protegida no clube Los Leones e nas farras de
Viña del Mar para a imersão no aparelho de repressão. Eu
apenas me deixava levar, considerando que podia
posicionar-me naturalmente ao lado do novo governo, pois
era para gente como eu e minha família que os militares
haviam tomado o poder. Achava que Amanda estaria
protegida, porque não podia crer que levasse a sério a
propaganda dos comunistas. Afinal, ela também era uma
burguesa autêntica; era praticamente uma irmã. Uma quase
irmã que eu desejei muito, e que nunca dera sinal de sequer
perceber minha existência.
Depois da visita à Clínica Sara Moncada, Ybarra
desapareceu por semanas. Eu sabia que ele chegava ao
sobrado da rua Londres no começo da noite e, até pouco
antes do amanhecer, orientava os interrogatórios, nos quais
eu nunca tinha estado presente. Minha função era localizar,

50
CONTRAPARTO

nas reuniões de acadêmicos, indivíduos procurados, e


identificar participantes de grupos que começavam a se
organizar para contestar a autoridade do novo governo.
Outros agentes, chamados de "analistas", tratavam de
encontrar possíveis conexões dos estudantes com líderes de
movimentos esquerdistas que se escondiam nas províncias
ou perto da fronteira com a Argentina. Mas em pouco tempo
o governo chileno havia convencido militares argentinos a
manter sob vigilância as principais rotas de fuga, e
comentava-se que o governo militar do Brasil também tinha
aderido a uma operação conjunta permanente de caça a
subversivos.
Observada agora, da perspectiva da minha maturidade, tais
eventos parecem pertencer a outra pessoa, a uma daquelas
biografias clandestinas de protagonistas da repressão que lia
de vez em quando, no final dos anos 1980, por insistência de
ativistas do movimento de exilados na Suécia. Não me
considero parte dessa história, não posso me considerar o
mesmo, ainda que tivesse durante os anos de estudo
procurado uma justificativa para o fato de ter me deixado
conduzir para dentro da máquina de morte antes de
aparecer a oportunidade de me mudar para Estocolmo. No
tempo de estudante, retorci como pude a teoria
institucionalista de Per Erik Martin-Löf em busca de um
anestésico para a minha consciência. Minha melhor tentativa
foi a interpretação construtiva da constante lógica: "o sentido
de uma constante lógica não se explica pela maneira como
ela depende da verdade ou falsidade das proposições a que
se aplica". Por aí me exercitei na busca, primeiro, de alguma
compreensão sobre como o absurdo universo em que me
meti na juventude podia na época me parecer correto, ou,
talvez pior, como as ações de que participei podiam se
justificar como justas, necessárias, ou, no limite, admissíveis
fora do conjunto fechado de proposições que constituíam o
sistema da repressão. Não fui muito longe: rodando em
círculos, a única coisa que consegui demonstrar para mim
mesmo foi a irracionalidade do sistema, o fato de que todo o

51
LUCIANO MARTINS COSTA

aparato da repressão representava uma proposição


arbitrariamente determinada pelo organismo da ditadura,
sua própria razão.
Percebo-me agora igualmente prisioneiro da inevitável
verdade segundo a qual um conjunto só existe quando se
pode determinar a natureza dos elementos que o compõem.
Fora na juventude um desses elementos, colhidos na pouca
diversidade de pessoas que tinham alguma liberdade de
movimentos no Chile após o golpe de setembro de 1973.
Consolava-me, a princípio, a constatação de que, havendo
somente dois lados, o da repressão e o dos reprimidos, eu
tinha sido apanhado pelo sistema que detinha o poder do
Estado, ou seja, o conjunto da repressão me recrutara porque
ninguém que estivesse flutuando fora da repressão ou fora
do outro sistema, o da resistência, tinha qualquer chance de
escapar ao irresistível poder de atração da máquina de
morte. Uns para cumprir o papel de algozes, outros para o
destino de vítimas, todos vivendo o roteiro da tragédia.
Dessa forma, conseguira escrever para mim um roteiro
capaz de amortecer o sentimento de culpa, de evitar que se
cristalizasse o suficiente para impossibilitar a nova vida que
tinha vislumbrado quando Sofia me abordou na Kungliga
Biblioteket. Eu era um número que pertencera a
determinado sistema, como constante lógica no conjunto
irracional da ditadura. Sofia me abriu a perspectiva de
migrar para o sistema não lógico da democracia, onde
poderia me transformar em uma constante de predicado,
inicialmente, tornando-me simplesmente um personagem, e
depois assumiria cada vez mais a condição de constante
individual: chileno exilado, marido de Sofia, pai de Gustav e
Maria. Foi suficiente para construir uma nova vida, e me
empenhei com toda determinação para torná-la real,
duradoura, inabalável.
Eventualmente, quando em algum pesadelo o passado vinha
minar minhas certezas, eu apenas virava de lado na cama e
ficava olhando o rosto sereno de Sofia, seus traços
absolutamente harmônicos, seu nariz perfeito como se fosse

52
CONTRAPARTO

modelado com aquelas massinhas que as crianças usavam


para fazer bichinhos em suas formas de plástico. Bastava
para me tranquilizar, para assegurar que eu nunca tinha
vivido e protagonizado todo aquele horror. E me convencia
de que era sueco, nascido ali mesmo em Estocolmo.
Nos primeiros cinco anos de exílio, quando escolhi a carreira
que seguiria na Universidade e planejei a família, ainda
participava de encontros com a comunidade dos chilenos, ia
a alguns debates políticos mas evitava emitir opiniões que
de alguma forma me destacassem. O fato de ter uma esposa
sueca também servia de desculpa para o pouco engajamento,
principalmente porque a maioria dos integrantes dos grupos
de discussão tinha um histórico de militância ativa, alguns
eram ex-dirigentes do governo Allende e viviam quase
exclusivamente para a política. Posso afirmar que construí
uma existência honrada, que a rotina com Sofia nunca
colocou diante de mim desafios insuperáveis e, se não fosse
esta circunstância, que me obrigou a atravessar o planeta e
ficar à espera de uma nova ruptura, eu estaria me
encaminhando para uma velhice serena que não imaginava
merecer.
Neste momento, recluso e solitário no quarto de um hotel,
aquele estado de espírito que alcancei em Estocolmo parece
se resumir a uns poucos dias. Constato que não importa por
quanto tempo um homem é feliz, porque o espírito humano
vivencia com muito mais intensidade as turbulências, os
dramas, a infelicidade. Estas poucas horas em que me
encontro preso nesta armadilha do tempo ensinam que
quarenta anos podem ser apagados por um átimo, e é como
atravessar um portal e ingressar em outra dimensão.
Fui feliz em Estocolmo? Sim, na medida em que consegui
esquecer minha origem e cobrir meu passado com a planura
da vida junto de Sofia, posso dizer que alcancei o que todo
ser humano almeja. Ao me afastar da comunidade dos
exilados e me dedicar à família e à carreira acadêmica, pude
ao mesmo tempo apreender novas formas de encarar a
existência e consolidar uma visão de mundo que justificasse

53
LUCIANO MARTINS COSTA

meu bem-estar. Foi como apaziguei minha consciência e


pude seguir adiante, e cheguei a pensar que seria para
sempre, até aparecer diante de meus olhos aquela palavra:
contraparto.

6 − MORTE

"O general Sergio Victor Arellana Stark morreu no dia 19 de


março de 2016, aos 94 anos de idade, confuso e
desmemoraido, cagando-se e urinando-se na cama de uma
clínica particular de Santiago. Seu cadáver foi velado, muito
apropriadamente, no Cemitério Católico, e em seguida
destruído por cremação. Mas o mal que praticou
permanecerá para sempre. Como todo covarde, era incapaz
de decidir em circunstâncias ambíguas, mas se tornava
assertivo e violento em um contexto homogêneo como o da
ditadura. Sua mais honorável contribuição à história chilena
foi expor a culpa e a hipocrisia da democracia cristã, à qual
era ligado. Não por mérito, mas por covardia, no começo de
setembro de 1973, ele alertou pessoalmente o então líder do
Partido Democrata Cristão do Chile, Eduardo Frei Montalva,
que antecedera Salvador Allende no governo, sobre o golpe
iminente que iria colocar os militares no poder. Com a lógica
do abutre, os democratas cristãos esperaram o crime ser
perpetrado para então analisar qual parte da carniça da
democracia chilena poderia lhes caber.
Ao general Arellana Stark tocou, imediatamente após o
golpe, assumir a operação que o ditador Pinochet chamava
de acelerar processos e uniformizar critérios de administração de
justiça aos prisioneiros políticos. Na bizarra metáfora da
insanidade, tratava-se de corrigir o trato moderado que

54
CONTRAPARTO

alguns comandantes militares de província davam a ex-


dirigentes da Unidade Popular que haviam apoiado o
presidente Allende, que estavam detidos em quartéis à
espera de julgamento. Sua missão consistiu em visitar cada
unidade, identificar os presos e executá-los. Fazia-se
acompanhar de uma dúzia de oficiais e duas turmas de
cadetes e instrutores da Escola de Infantaria do Exército.
Mesmo com toda essa força, Arellana Stark não dispensava a
guarda pessoal do tenente Armando Fernández Laríos.
Foram 97 as vítimas identificadas, mas o total poderia muito
bem ultrapassar a centena, porque só se conhece o destino
dos prisioneiros de maior destaque. Sua caravana da morte
percorreu o Chile de norte a sul, passando por Rancagua,
Curicó, Talca, Concepción, Mulchén, Cauquenes, La Serena,
Copiapó, Antofagasta, Iquique, Pisagua e Arica, deixando
um longo rastro de violência.
A omissão e cumplicidade de Eduardo Frei Montalva tornou
sem sentido a primeira palavra da Democracia Cristã. A
ação do general Sergio Arellana Stark, que sempre teve laços
com a facção mais conservadora da igreja Católica, sendo
inclusive integrante da prelazia Opus Dei, tirou todo
significado da segunda palavra que representava o partido.
Por isso, repudiamos qualquer aliança com tais criminosos",
dizia o texto que eu, Inácio "Pelete" Beauséjour de
Eyzaguirre, recebi em minha casa no dia 12 de maio de 2017,
quando se articulavam as coalizões para as eleições gerais no
Chile, poucos meses antes de chegar às minhas mãos aquele
envelope perturbador que me remeteria à beira do Pacífico.
Na outra face do manifesto havia uma versão em sueco.
Os democratas cristãos ainda não haviam decidido se
participariam da aliança chamada Nova Maioria, que
tentava se manter no poder, porque anteviam as ótimas
possibilidades de um candidato mais à direita, Sebastián
Piñera Echenique. Quando se tratava de se agarrar ao poder,
o faro dos democratas cristãos raramente falhava, pensei.
Mas logo me deixei levar por outras reflexões, porque a
política chilena já não fazia parte de minhas preocupações

55
LUCIANO MARTINS COSTA

desde a última década do século 20. Nesse período, quando


apanhava a pouca correspondência que ainda chegava à
minha casa no bairro de Ostermalm, para onde me mudara
durante a pós-graduação, costumava separar apenas as
notificações de serviços, contas e, eventualmente, catálogos
de livros. Aquele envelope tinha como remetente o jovem
poeta Sven Thorn, que desde 26 de março de 2015 se fazia
chamar Sven Lamento, em referência a um poema de Tomas
Tranströmer. Foi nessa data que morreu aquele que
considero o maior dos poetas suecos.
Lembro-me bem de uma vez em que participei ativamente
desse tipo de discussão, em 1988, quando se mobilizavam as
forças de oposição por conta do plebiscito que decidiria
sobre a continuação de Augusto Pinochet à testa do governo.
Um grupo dissidente de exilados ligados ao Partido
Comunista do Chile queria impedir que a aliança aceitasse a
participação dos democratas cristãos e colocou em debate
sua posição por meio de um comunicado. O teor era muito
parecido com o texto de Sven Lamento, mas naquela ocasião
apenas li o manifesto e o guardei numa gaveta. Dias depois,
o original foi finalmente aprovado e enviado por fax a
Santiago, onde também ficou esquecido em uma gaveta.
O episódio vem à minha mente quando observo o envelope
que foi introduzido sob a porta do apartamento no hotel.
Traz o timbre tradicional da Democracia Cristã: a seta
vermelha sobre campo azul, apontando para cima, cortada
por dois traços horizontais. O peso e a densidade indicam
que havia ali mais do que uma carta. De fato, constato no
pacote algumas folhas com os dados da eleição geral e um
documento que aponta a necessidade de as "forças
democráticas nacionalistas e cristãs, defensoras das livre
iniciativa", começarem a preparar a volta defintiva ao centro
do poder. "Sem mais intermediários", diz o texto, "é a hora
de planejarmos o futuro do Chile, num projeto seguro para
as próximas cinco décadas". Seguem-se locubrações e
resumos de pesquisas sobre o suposto desejo dos chilenos de
enterrar o passado e buscar finalmente a reconciliação

56
CONTRAPARTO

nacional, "sem mais revanchismos". O estilo de jornalismo


panfletário era o mesmo que recheava a imprensa chilena
nos meses que antecederam a derrubada de Allende, a velha
ladainha das oligarquias que sempre se consideraram donas
do país. Ao final, as iniciais que eu gostaria de ter esquecido:
"A.Y-O'H".
Era o fantasma de Alejandro Ybarra lembrando-me por que
e para que estou recluso neste hotel há três dias. O sistema
ainda precisa de mim. Sim, os remanescentes da Casa
Yucatán precisam ter um dos seus à mão para colocar no
Palácio de la Moneda e eu, Inácio Beauséjour de Eyzaguirre,
sou um dos nomes mais qualificados, diz a mensagem:
exilado, poderia arregimentar as simpatias da juventude
alienada pelos esquerdistas; cientista social PHD em Ciência
de Sistemas por uma das mais respeitadas universidades do
mundo, pai de família exemplar, componho a imagem ideal
do pacificador. E, o mais importante, diz a mensagem,
"comprometido com os valores cristãos testados ao extremo
nas mais árduas condições da guerra ideológica". Após as
iniciais, o aviso: "Destrua imediatamente o conteúdo do
envelope".
Não posso evitar o tremor descontrolado que me domina ao
ler a carta. Num impulso, desfaço em tiras cada folha de
papel. Então, caminho devagar até o balcão e as lanço ao
vento. O pior de dois mundos parece desabar sobre mim.
Sinto-me paralisar junto à grade. O abismo, lá embaixo, é
convidativo, e me lembro do poema que definira a nova
personalidade do jovem Sven: "Han lade ifrån sig pen-
nan./Den vilar stilla på bordet./Den vilar stilla i tomrummet./Han
lade ifrån sig pennan ("Ele largou a caneta./Ela repousa calma so-
bre a mesa./Ela repousa tranquila no vazio./Ele largou a caneta").
Era como minha vida, penso, enquanto os pequenos pedaços
de papel balançam e rebrilham em seu voo incerto rumo ao
oceano escuro.
É noite, é tarde, muito tarde, mas eu não me importo. Faz
muito tempo que é sempre tarde para mim e, pela primeira
vez na vida, disponho-me a encarar o que realmente sou: um

57
LUCIANO MARTINS COSTA

fantasma, o indivíduo cuja solidão absoluta extingue qual-


quer traço de humanidade. Não há alguém com quem possa
compartilhar minha própria história e não posso continuar
fingindo que tenho uma vida com Sofia e meus filhos e ne-
tos, porque o que veio antes e agora retorna impossibilita es-
sa alternativa. O mundo arcaico no qual construí minha ju-
ventude até aquele dia em que conheci Sofia na Kungliga
Biblioteket se acumula, inexorável, sobre o que ilusoriamen-
te imaginei, durante quarenta anos, que poderia ser uma vi-
da, e é como um tsunami que tudo arrasta e tudo mistura.
Como o jovem Sven Lamento, sinto-me suspenso na
impossibilidade de um poema interrompido, enquanto a
caneta repousa tranquila no vazio. Só que, no meu caso, a
realidade se impõe sobre a licença poética e não posso
escrever uma nova existência. Uma barreira pode ser
costeada, um abismo pode ser transposto. E o nada? O nada
é "o tanto que não pode ser escrito nem sufocado", o muito
que me custaria acertar as contas com meu passado para ter
alguma esperança de futuro. Mas sou também como as
mariposas que surgem do vazio, da escurição, e se chocam
contra a vidraça do apartamento, às minhas costas:
"pequenos telegramas pálidos do mundo", como diz o
poema. Então me lembro que apenas uma palavra, uma só
palavra escrita num cartão, bastara para interromper o
poema que era minha vida com Sofia, e lançar-me de volta
àquela outra vida que equivocadamente tinha considerado
morta e enterrada.
Essa verdade me atinge de forma incontestável: enquanto o
Chile não exumar os mortos da ditadura, também eu fico
impossibilitado de apanhar a caneta com a qual poderia
escrever um novo capítulo para minha existência. No
entanto, sei que muitos daqueles cadáveres nunca poderão
ser identificados. Eu mesmo os havia queimado, com o fogo
infernal de gasolina e pneus, depois os havia explodido sob
montes de areia, e em seguida ajudado a espalhar o pó de
seus ossos calcinados nas salinas imemoriais do deserto de
Atacama, na vã tentativa de apagar o crime que estávamos

58
CONTRAPARTO

cometendo contra nós mesmos. Nem posso dizer "eu não


sabia", pois estaria admitindo o domínio da loucura.
"Assim se escreve a História", dizia Alejandro Ybarra a cada
explosão, sob o olhar sisudo do general Arellano Stark, o
bom cristão. "A História se escreve com Semtex e TNT" – e
ria, e riam-se todos, e ria também eu, Inácio "Pelete"
Beauséjour de Eyzaguirre, porque naquele tempo ainda não
podia imaginar Estocolmo, a Kungliga Biblioteket, e, dentro
dela, os olhos diáfanos de Sofia e aquela pergunta: "Seu
Swedenborg é o filósofo, o cientista ou o místico?" Naquele
tempo, eu era como os poucos chilenos que podiam andar
tranquilos pelas ruas e estradas do país, rachando ossos e
matando seus irmãos a sangue-frio. Como os chilenos que
depois nunca mais teriam o direito de levantar a cabeça e
olhar nos olhos de seus compatriotas. Eu era parte de uma
loucura da qual o Chile nunca mais haveria de se curar.
Sofia tinha me levado ao cinema para assistir ao
documentário de Patrício Guzmán que mostra familiares de
desaparecidos percorrendo o deserto a pé, com pequenas
pás de jardinagem, procurando inutilmente pontas de ossos,
fios de cabelo, uma unha, um sinal qualquer de seus entes
queridos.
Fiquei olhando a tela, e as vozes daquelas pessoas eram
como um canto fúnebre, uma arenga distante. Por alguma
razão, minha mente colocou em lugar daquelas vozes o coro
dos peregrinos na ópera de Wagner, e imaginava estar
ouvindo um canto do reencontro, algo como "Beglückt darf
nun dich o Heimat, ich schauen", e gostaria de poder cantar
também: "Feliz agora posso te ver, pátria minha". Então,
observava as cenas de um país dilacerado mas não
conseguia admitir que aquele era meu passado.
Pois, sob o olhar sereno e distante do observatório
astronômico, aquelas pessoas vasculham o imenso areal em
busca de uma esperança. E o cruel cineasta corta dos
infelizes buscadores de ossos para as torres que vasculham o
espaço na esperança de uma outra humanidade, de alguma
forma de vida que seja mais aceitável, algum sinal

59
LUCIANO MARTINS COSTA

perceptível de uma estrela morta há milhões de anos, e então


aparecem os antropólogos que também olham para o
passado, mas um passado mais próximo, de quando viviam
naquele deserto os ancestrais dos chilenos, aqueles que os
chilenos contemporâneos, incapazes de encarar sua própria
covardia e culpa, adoram desprezar. Então ouço alguém
dizer que a câmera do telescópio está um milésimo de
segundo atrás daquele sinal de luz, e esse milésimo de
segundo condensa a distância entre o passado remoto e o
que é, ou parece ser. Uma ínfima fração de segundo, pois a
luz, embora veloz, demora um certo tempo para chegar: a
luz da Lua gasta pouco mais de um segundo para beijar a
Terra; a do Sol leva oito minutos. Nada acontece no instante
em que é visto. Tudo que vemos é passado, o presente não
existe, o que nos chega é a memória do presente. A
consciência é o que mais se aproxima de um presente
absoluto, e para mim a consciência é o inferno.
Também demorei para perceber a sombra que se espalhava
sobre aquilo que considerava meu país, e apenas um
incidente me fez desviar do papel que havia aceitado
passivamente ao lado dos criminosos que mancharam de
sangue a história do Chile. Minha mudança para a Suécia e a
vida nova com Sofia foi fruto do acaso: meu amigo Adolfo
Schmidt tinha sido apanhado em um bar de Viña del Mar,
vangloriando-se de haver cortado a garganta do jovem
argentino em Punta Concón. "Com um golpe livrei o mundo
de um argentino, um judeu e um comunista", dizia. Um
policial resolvera prendê-lo para investigar o crime.
O grupo foi identificado rapidamente, mas o caso chegou
aos ouvidos do general Arturo Yovane, comandante dos
carabineros e amigo do meu pai, o ministro Eyzaguirre.
Yovane manobrou para integrar Schmidt e seus amigos ao
núcleo do sistema repressivo. Daí para Estocolmo foi apenas
um par de conversas entre Yovane e o embaixador Svante
Törnvall, que buscava jovens capazes de se fazer passar por
esquerdistas e tinha pressa em formar o grupo de agentes
expatriados com o propósito de infiltrá-los entre os exilados.

60
CONTRAPARTO

Meu treinamento foi feito no comando unificado da


repressão, onde eram "tratados" alguns dos mais destacados
inimigos do regime. Alejandro Ybarra O'Hare me havia
apresentado como um militante valoroso, de sangue frio,
inteligente e perspicaz, com habilidade para aprender
idiomas e treinado desde muito cedo no olho do furacão
ideológico.
Disso tudo tomei conhecimento quando me apresentei ao
gabinete do embaixador, dois dias antes do telefonema que
encheu de orgulho meu pai. Já, então, eu tinha sido
encontrado por Alejandro Ybarra, ou o que restara dele após
o acidente de trem. Nas semanas subsequentes, acabara me
envolvendo em ações de investigação, enfronhando-me nas
intimidades da repressão. No começo, deixava-me levar pela
excitação das longas noites sem dormir, a bordo de um Ford
Falcon sem placas, percorrendo os bares onde se reuniam
intelectuais e artistas, somente pelo prazer de recolher
documentos, comparar nomes com uma suposta lista de
procurados que era, na verdade, uma folha de papel em
branco. De vez em quando participava de uma prisão, e
nunca me preocupava com o destino do infeliz que era
recolhido para as masmorras.
Numa dessas noitadas fui levado a um restaurante de luxo,
onde me conduziram à mesa do chefe da repressão,
Contreras, "el Mamo". Ele tinha ao seu lado uma jovem
morena, bonita e desinibida, que me foi apresentada como
Adriana Rivas. Mais tarde, fui informado de que se tratava
de uma espécie de secretária e tradutora, amante de
Contreras, ativa voluntária nas sessões de tortura da Brigada
Lautaro. Ela se apresentava oficialmente como funcionária
da Direção Nacional de Reabilitação, a entidade fictícia onde
se abrigava a nata da repressão e de onde saíam cheques
para operações encobertas e para pagar o silêncio dos
principais jornais, revistas e agências de notícias do país. Fui
portador de um desses cheques para o colunista do
tradicional diário Mercúrio, Hermógenes Pérez de Arce, que
logo depois ganhou o cargo de diretor do diário La Segunda.

61
LUCIANO MARTINS COSTA

Hoje, entendo que a imprensa chilena hegemônica,


composta pelas grandes empresas familiares, sempre foi um
braço do poder despótico. Às vezes dissimulada em
nacionalista, mas sempre a serviço das oligarquias, pronta a
agir em defesa de seus interesses. Naquela época, expressões
como "pátria" ou "chilenidade" me enchiam de orgulho e,
por que não confessar, provocava em mim efeitos
afrodisíacos.
Eu vivia como alucinado, embora usasse cocaína apenas
eventualmente, desde os tempos de Punta Concón. Logo
depois da posse de Allende, nossas ações se tornaram mais e
mais audaciosas. As informações sobre os planos de ataques,
sabotagens e atentados contra auxiliares do governo corriam
rapidamente e com eficiência entre os ativistas, e eu
imaginava que o governo esquerdista devia ser muito
incompetente para não identificar os autores. A gente se
reunia nos bares e falava claramente, às vezes em voz alta,
sobre as ações organizadas ou espontâneas que o grupo
protagonizava. Nunca fomos incomodados.
Quando, em junho de 1973, um comando ligado ao grupo
Pátria y Liberdad matou a tiros o ajudante de ordens de
Salvador Allende, o comandante naval Arturo Araya
Peeters, a barbárie estava estabelecida e o governo já não
tinha condições de resistir ao golpe, que viria em poucos
meses. A estratégia pacifista de Allende, que consistia em
esperar que os ânimos se acalmassem e confiar na Justiça,
simplesmente havia paralisado o governo e afastado os
poucos militares que ainda acreditavam no fim da violência.
Nem os assassinos do general René Schneider, conhecidos
de todos nós, foram condenados, porque Allende era um
bundão.
Tudo isso passa por minha cabeça, enquanto me dou conta
de que minha vida não pode ser como a do jovem poeta
Sven Lamento, a impossibilidade de um poema
interrompido, porque a vida real é esta, o que há é resultado
do emaranhado de sentimentos que insiste em se desenrolar
em minha memória, não aquele oásis que havia construido

62
CONTRAPARTO

com Sofia. Também não posso cantar com o coro dos


peregrinos de Tannhäuser, pois, diferente da ópera de
Wagner, não há para mim um lugar aonde ir. Então me
lembro de um personagem de Dostoievsky, o burocrata
bêbado Marmeladov, que pateticamente se dirigia aos
frequentadores da taverna, dizendo: "Entendem, senhores, a
importância de ter um lugar para onde ir? Todo homem
precisa ter um lugar para onde ir" – e sei que não tenho para
onde ir. Já não posso simplesmente voltar para Estocolmo e
fingir que a palavra contraparto não tem sentido, e também
não posso ficar indefinidamente neste lugar, esperando a
sentença que fará o acerto de contas com meu passado.

7 − ILUSÃO

Em todas as coisas, o ser se equilibra entre o bem e o mal, e


bem aí se conjugam os três elementos: o ser, o bem e o mal.
Em tudo deve haver equilíbrio. Toda coisa perfeita há de se
realizar em triplicidade: a intenção, a causa e o efeito.
Desperto na quarta noite sacudido por tremores. Frases de
Swedenborg ainda tamborilam em minha mente e me
lembro de ter me impressionado com sua afirmação segundo
a qual a essência vital consiste de minúsculas vibrações.
Portanto, a morte também deve se revelar pelo mesmo
fenômeno, provocando vibrações no corpo moribundo,
como as de um motor a explosão que está parando. Por isso,
não estranho quando me dou conta de que estou revivendo
a sensação de morte que me embalara, aos dezesseis anos,
quando despertei sob o sol do Pacífico, depois de haver
adormecido, completamente bêbado, nas dunas de Punta
Concón.

63
LUCIANO MARTINS COSTA

Eram deliciosos os calafrios e gratificante a percepção de que


a vida parecia pender de um longo fio, que ligava minha
cabeça ao infinito azul. Fiquei assim até que ouvi minha
irmã a chamar. Era hora do almoço, e só então a família se
dera conta de que eu não tinha voltado para casa naquela
noite. Mas a reprimenda que esperava do meu pai foi
substituída por um tapinha nas costas. O desembargador
Eyzaguirre apenas me perguntou: "Lembrou-se de usar uma
camisinha?" – e encerrou com um sorriso de cumplicidade.
Agora sei que me interessei pela doutrina de Swedenborg
(se bem não devesse chamar de doutrina algo tão flexível
como a trajetória da matemática para o iluminismo e daí
para a religião) por suspeitar que o Chile havia transitado da
utopia socialista para o delírio de uma razão impostora,
segundo a qual o país poderia viver com apenas uma
metade das possibilidades da ideologia. Então, me questiono
se Alejandro Ybarra-O'Hare seria um homem de verdade,
desde que foi partido ao meio no acidente de trem. E me
ocorre que Ybarra só seria possível num país mergulhado na
loucura daquela razão impostora na qual eu mesmo havia
me besuntado em minha juventude. De meus estudos,
registro como especial recordação o ensaio de Dominique
David-Ménard, sobre a influência de Swedenborg na obra de
Kant, e guardei para mim a convicção de que a razão é
apenas um paradigma aleatório no largo espectro que vai do
idealismo metafísico ao delírio puro e simples, denunciado
sobre a tela da realidade.
Mas quando tratava de consolidar essa possibilidade, em
1990, num artigo do doutoramento, lembrei-me do jovem
argentino cuja garganta fora seccionada pela lâmina de meu
amigo Adolfo Schmidt. Qual seria a conexão lógica, onde
estaria a razão pela qual aquele menino, que achara normal e
inofensivo cantar uma canção proibida pela nova
racionalidade chilena, carregava no bolso um poema de
Borges que citava os delírios de Swedenborg em suas
conversas com anjos? Como poderia responder esse enigma,
se nem Kant conseguira fugir aos questionamentos da razão

64
CONTRAPARTO

provocados por Swedenborg? Como escapar da armadilha


formada pela evidência das coisas não impossíveis que,
entretanto, também não podem ser consideradas entre as
coisas possíveis?
Era fato, não ilusão, que o menino assassinado nas dunas de
Punta Concón carregava no bolso um pedaço de papel no
qual se podia ler claramente o inteiro poema de Borges que
cita Swedenborg. Era um fato da realidade, perceptível no
objeto de papel e nos signos que lhe foram impressos a tinta.
Não era uma ilusão coerente dos sentidos, suscetível de
interpretação, muito menos uma impostura da razão. Era
um objeto da realidade, que se impregnou em minha
memória e irrompeu subitamente quando me caiu às mãos o
primeiro texto de Emanuel Swedenborg. E Sofia, que se
transformaria em protagonista de minha nova realidade, por
que ela teria que surgir diante de mim exatamente na
ocasião em que explodia em minha mente aquele verso? "Por
Swedenborg, que conversava com os anjos nas ruas de
Londres": o verso vinha na hierarquia das coisas do mundo
pelas quais o poeta dava graças. Assim, Borges se alistava
entre os muitos pensadores que haviam escolhido viver para
além da ilusão de alguma razão pura, o não-lugar que era a
nascente de sua poesia.
Mas eu já não posso fingir uma existência que ignore meu
passado. Por mais que tenha sido, durante três décadas,
capaz de viver efetivamente uma ilusão, sei que me encontro
agora fora dos limites da razão, sem metafísica, sem
passado, sem futuro. Lembro-me do período transcorrido na
Espanha, quando frequentei reuniões da Convergência
Socialista para me familiarizar com esquerdistas exilados.
Tentei me integrar a um grupo de latinoamericanos, cheguei
a participar de reuniões, mas temi ser desmascarado quando
um estudante brasileiro observou minha dificuldade para
usar os jargões e as expressões dos manifestos e das
discussões. Não me saia natural, por exemplo, falar em
"povos oprimidos", "solidariedade", "proletariado". A sutil
observação do brasileiro fora feita em tom de brincadeira, na

65
LUCIANO MARTINS COSTA

mesa de um bar na Calle Comercial em Madri, mas me dei


conta de que corria o risco de ser identificado como um
agente da ditadura chilena. Um "botón", como diziam os
argentinos.
No trem que me levou de volta ao norte da Europa, tentei
encontrar os fundamentos que justificassem minha presença
entre os seres vivos. Primeiro neguei completamente a
validade daquelas palavras de ordem, que denunciavam
uma espécie humana imersa em sonhos, em utopias que, na
mais pura das razões, eu considerava absolutamente
impossíveis. Na sequência desses pensamentos, ocorreu-me
que aqueles jovens que havia conhecido em Madri viviam
uma ilusão tão absoluta que podiam ser considerados fora
do mundo. Então até me parecia lógico que o Chile estivesse
fazendo aquela espécie de faxina, expurgando de sua
inteligência toda uma geração que, devotada a uma utopia
irrealizável, tinha tentado arrastar o país para fora do campo
da razão.
Era uma questão de sobrevivênia da nacionalidade,
imaginei. Acreditava que, se o projeto de Salvador Allende
tivesse avançado por mais alguns anos, o Chile correria o
risco de mergulhar em uma espécie de contemplação
religiosa, principalmente se sua política de estatizações
começasse a apresentar resultados. Demorei muito para me
dar conta de que, na verdade, nunca saberíamos o que seria
aquela aventura socialista, ou o que fosse, pois o governo de
Allende foi acompanhado pelo caos e por uma balbúrdia de
informações desencontradas e indicadores distorcidos. Logo
após o golpe, toda a imprensa chilena parecia ter se mudado
de país. Os artigos e entrevistas, as análises e editoriais que
pouco antes descreviam um país afundado em crise,
transformaram-se imediatamente em detalhadas descrições
de como o Chile se erguia, majestoso, soberano, graças à
profusão de empréstimos do Fundo Monetário
Internacional, de favores do Banco Mundial e dos volumosos
investimentos estrangeiros.

66
CONTRAPARTO

Naquela transição, assim que retornei a Estocolmo, após o


período na Espanha, e tendo cumprido o aprendizado básico
do idioma sueco, muitas vezes tive que me conter para não
denunciar minha descrença e minha contrariedade quando
os ativistas realmente exilados denunciavam o processo de
demolição das esperanças dos chilenos que tinha ocorrido na
preparação do golpe, por parte dos jornais e das emissoras
de rádio e televisão. Vários nomes de radialistas, articulistas
e líderes da imprensa que eu havia aprendido a admirar
eram demonizados nessas reuniões, e me parecia estar em
meio a um redemoinho: precisava conviver com aquelas
pessoas, mas não podia me deixar contaminar por suas
crenças. Foi nas primeiras conversas com Sofia que percebi
que havia outras versões possíveis para a mesma história,
assim como a razão pode ser múltipla.
Certa noite, ao voltar sozinho para o alojamento de
estudantes, após ouvir uma conferência na qual várias
testemunhas descreveram em detalhes as sessões de tortura
que haviam sofrido ou testemunhado, deitei-me de costas e
fiquei olhando o teto, sentindo como minhas convicções se
desmanchavam diante da simples constatação de que
nenhum regime, nenhum governo, poderia se legitimar
sobre tanta violência. E, para mim, aquelas narrativas eram
mais do que realistas: apresentavam uma versão terceirizada
de fatos que eu conhecia de primeira mão. A realidade era
ainda mais brutal e mais extensa, a violência fora banalizada
ao extremo, e quando percebi quão longe do aceitável era
aquilo que ocorria no Chile, pensei que iria enlouquecer.
Durante meu processo de inserção no aparelho da repressão,
eu havia recebido um exemplar do livro de Ludwig von
Mises intitulado Liberalism: A Socio-Economic Exposition, que
os ideólogos do regime de Pinochet utilizavam como se fosse
a própria Bíblia. Jornalistas e outros comentaristas do
sistema que denominavam como a nova economia chilena,
reunidos numa espécie de clube chamado "Instituto Liberal",
martelavam diariamente as cabeças da classe média com
editoriais, artigos, debates e comentários, que ocupavam

67
LUCIANO MARTINS COSTA

todos os noticiários do rádio e da televisão, com os conceitos


da obra. Eu possuía a edição original de 1962, e recebi em
1977 a nova versão, do ano anterior, que o governo havia
espalhado por todas as escolas do Chile, e que me foi
enviada pela embaixada chilena em Estocolmo.
Lembro do susto com que recebi o pacote, já no apartamento
que dividia com Sofia. Ela estranhou o conteúdo, mas lhe
disse que provavelmente era um esforço do governo
Pinochet para influenciar os exilados e parte da propaganda
do regime para superar a oposição que lhe fizera o governo
social-democrata da Suécia, aproveitando o fim do período
em que o partido de centro-esquerda havia controlado o
poder. Foi uma das últimas vezes em que fui contatado pela
ditadura. Quase dez anos depois, voltei a receber uma
mensagem, desta vez por telefone. Meu interlocutor disse
apenas: "Vamos nos vingar daquela intervenção na Clínica
Moncada. Esteja em alerta, pois talvez você precise ajudar a
esconder o anjo da morte. O nome dele é Cristiano. Um bom
cristão que vai ser nosso escudo".
Poucas semanas depois, na noite de 28 de fevereiro de 1986,
o primeiro-ministro Olof Palme, que havia liderado a social-
democracia e trabalhado intensamente pela condenação do
regime de Pinochet nos tribunais internacionais, foi
assassinado à saída de um cinema, no centro de Estocolmo.
Um alcoólatra chamado Christer Pettersson foi condenado
em primeira instância à prisão perpétua, mas em seguida
libertado por inconsistências no processo. A polícia nunca
investigou o envolvimento de agentes chilenos com pessoas
que estiveram no local no momento do crime. Em 1997, a
Suprema Corte da Suécia rejeitou o pedido de novo
julgamento e o assassinato continua sem solução.
Eu tinha voltado da viagem ao Chile e preparava uma
dissertação sobre a influência de Emanuel Swedenborg sobre
as ideias de Immanuel Kant quando ouvi na televisão a
notícia do atentado. Lembro que fazia divagações em torno
do significado do nome comum aos dois pensadores, que
quer dizer "Deus conosco", e imaginando uma conexão de tal

68
CONTRAPARTO

metáfora com a busca que empreenderam pelos limites da


razão. Imediatamente me veio à memória a voz de Alejandro
Ybarra O'Hare, de um barítono irritantemente agudo, e sua
advertência: "Esteja em alerta... o anjo da morte".
Fazia, então, quase quatro anos que não recebia notícias do
governo chileno. A atividade de observação dos exilados
tinha se reduzido desde 1982, quando o embaixador Svante
Törnvall fora chamado de volta a Santiago. Pinochet estava,
então, mais preocupado com os efeitos da política do ex-
presidente americano Jimmy Carter, que mesmo tendo sido
derrotado em 1980 pelo republicano Ronald Reagan, ainda
tinha grande influência sobre o movimento internacional em
defesa dos direitos humanos. A Suécia deixou de ser uma
prioridade em 1982, e a partir daí eu imaginei que estava
livre. O gosto adocicado da ilusão me animou.
O assassinato de Olof Palme me deixou a certeza de que
precisava eliminar da minha história tudo que pudesse ser
relacionado ao Chile, para construir uma nova vida. Apesar
de o noticiário sobre as investigações indicar outras
suspeitas, eu não tinha dúvidas de que havia uma conexão
entre o principal acusado, Christer Pettersson, e os agentes
de Törnvall. Fui cortando as relações com a comunidade de
exilados, tratei de me mudar o quanto antes para o
apartamento no bairro de Ostermalm, troquei o número do
telefone, passei a me dedicar mais à família e à carreira
acadêmica, e o tempo transcorreu sem outros sustos.
A partir daí, entrei no processo que passei a chamar de
"transtópico". Bem antes de Monique David-Ménard ter
descrito as sutilezas da "loucura na razão pura", eu já havia
vasculhado as fronteiras entre a ilusão e a loucura por outros
meios. Mergulhei ainda mais no estudo de Swedenborg, não
por curiosidade intelectual ou para cumprir exigências
acadêmicas, mas para construir um muro entre o que havia
sido minha vida até então e o que se anunciava a partir do
meu encontro com Sofia. Também me detive no trabalho que
o francês Michel Foucault havia publicado no começo dos
anos 1960, sobre as diferenças entre loucura e desrazão, mas

69
LUCIANO MARTINS COSTA

só depois de algum tempo descobri suas reflexões sobre as


novas características do fascismo.
Eu me interessei principalmente pela transição do
pensamento de Swedenborg, do idealismo metafísico que
movia sua busca pela verdade do mundo, para o que ficou
convencionado como o delírio dos sentidos, que, no entanto,
produziu a matriz de uma nova representação coerente do
mundo. Hoje, poderia dizer que busquei conscientemente
uma justificativa para o que, antes de Estocolmo, era para
mim um sistema do mundo. Fui criado num sistema
embalado pela ilusão fetichista do fascismo segundo a qual
pode-se construir e manter para sempre uma sociedade
homogênea em todos os sentidos, imune a outras razões que
não a pura razão do Estado – uma ilusão coerente dos
sentidos, na qual eu tinha passado a juventude, sem saber o
que significava.
Obtive algum sucesso acadêmico explorando sob o ângulo
das ciências sociais a questão da demência culturalmente
aceita versus a loucura considerada patológica. Quanto mais
se intensificava, principalmente no mundo alglo-saxão, a
mania de classificar como doenças certos tipos de
comportamento, mais se valorizavam minhas ideias e as de
outros colegas sobre o esgarçamento da tolerância com
relação a desvios socialmente aceitos ou até mesmo
valorizados na sociedade de massas. Fazíamos conexões com
o triunfo do consumismo consolidado sobre a base de uma
tecnologia disruptiva, mostrávamos como a ênfase na
expansão dos territórios identificados oficialmente como o
terreno da patologia acabava por induzir a medidas de
controle social, operado não nas instituições do Estado, mas
no recôndito das clínicas neuropsiquiátricas. Eu tinha
experiência em controle social, mas era, então, o oposto do
que tinha sido, embora naquela época não tivesse
consciência de haver transpassado uma espécie de muralha
ideológica. Somente em meados dos anos 1990, quando
considerei amadurecida minha carreira acadêmica, e tendo
sido reconhecido pelos trâmites da universidade, comecei a

70
CONTRAPARTO

me dar conta de que, se ainda vivesse no Chile de Pinochet,


aquelas ideias poderiam ter representado minha condenação
à tortura, talvez à morte.
Quando, em 1997, o suposto assassino de Olof Palme foi
definitivamente liberado pela Suprema Corte e a Justiça da
Suécia desistiu de solucionar o crime, imaginei que eu
também estava sendo anistiado e que meu passado nunca
seria revistado por quem quer que fosse. Essa ilusão me
concedeu uma vida relativamente tranquila e feliz com Sofia
e nossos filhos. Essa ilusão durou exatamente vinte anos.

Excluído: ¶

8 – HEBREUS

Miguel Krassnoff Martschenko nasceu em 1946 no Tirol,


Áustria, num campo de prisioneiros onde seu pai, oficial
nazista, aguardava julgamento por um tribunal militar
soviético, por seus atos criminosos durante a Segunda
Guerra Mundial. Semión Krasnov foi executado em 1947 e o
menino acabou enviado ao Chile, com sua mãe, Dhyna
Marschenko, em um grupo de refugiados, sob proteção de
autoridades americanas e britânicas. Essa história foi
contada várias vezes ao menino Miguel por sua mãe e sua
avó, Maria Chipanoff. Ele cresceu obcecado pelo ódio ao
comunismo e aos judeus, e também seguiu a carreira militar.
Em janeiro de 1974, quando o grupo de jovens delinquentes
de que eu participava cercou o argentino Simón Natan
Ordoño-Aguilar em Punta Concón, Krassnoff recebia aulas
de tortura na Escuela de las Américas, o centro de instruções
montado pelo governo dos Estados Unidos para formar
agentes a serviço das ditaduras latinoamericanas.

71
LUCIANO MARTINS COSTA

Foi dele a ideia de convocar os rapazes envolvidos no crime


para o grupo especial de investigações, depois que
Alejandro Ybarra providenciou, junto ao chefe dos
carabineros em Viña del Mar, o arquivamento do caso. Os
registros desapareceram, junto com o cadáver. Krassnoff
havia aprendido, no Panamá, que os interrogatórios seriam
mais eficientes se os agentes tivessem informações pessoais
dos suspeitos, para formar uma tela de conexões emocionais
em torno das questões políticas específicas durante os
questionamentos. Assim, eu e outros acadêmicos fomos
instruídos a observar os relacionamentos entre militantes e
simpatizantes da oposição. Por esse motivo, eu não tinha me
envolvido no núcleo duro da repressão desde o dia 25 de
novembro de 1973, quando fui convocado por Alejandro
Ybarra-O'Hare, até a ocasião em que Miguel Krassnoff
Martschenko preparou para mim uma tarde de despedida
na Casa Yucatán.
Ele costumava dizer que o comunismo não existiria sem a
participação de judeus, argumentando com o fato de que
eram judeus seis integrantes do Comitê Central do Partido
Bolchevique em Petersburgo, que estavam presentes na
reunião secreta liderada por Vladimir Lenin em que foi
decidida a tomada do poder, em outubro de 1917. Krassnoff
citava de cabeça os nomes dos principais ativistas judeus
que ocuparam cargos importantes durante a consolidação do
novo regime: Lev Kamenev, Leon Trotsky, Grigori
Zonoviev, Yakov Salomon, Karl Sobelsohn, Lev Rosenfeld,
Moisei Uritsky, Maxim Wallach e Grigori Sokolnikov. Dizia
que Sokolnikov, formado na Sorbonne, foi o responsável
pela rápida reorganização da economia no novo regime, o
que permitiu transformar a União Soviética numa potência
militar.
Ele gostava de declamar um trecho do artigo publicado por
Winston Churchill em 1920, no qual o político britânico
afirmava que "não há exagero em destacar a parte da ação na
criação do bolchevismo e do atual levante da Revolução
russa por esses internacionalistas e na maior parte judeus. E

72
CONTRAPARTO

é certamente a maior parcela de responsabilidade;


provavelmente pesando mais do que outras. Com notável
exceção de Lenin, a maioria das figuras da liderança são
judeus. Mais ainda, a principal inspiração e poder dirigente
vem dos líderes judeus". Por esse motivo, Krassnoff se opôs
ao acordo proposto por representantes da comunidade
judaica chilena ao general Augusto Pinochet, assim que ele
tomou o poder. Costumava dizer que o governo precisava
reduzir a um número "proporcionalmente correto", a
população de judeus no Chile. Nunca explicou em público,
nem mesmo durante as conversas do grupo, em viagens ou
reuniões, o que ele considerava como uma "proporção
correta" de judeus, mas sua ideia de controle étnico era
muito clara.
Em algumas ocasiões se referiu ao que chamava de
"tribalismo", e citava como exemplo listas de estudantes de
pós-graduação da Universidade de Chile, onde, segundo ele,
se podia observar uma grande desproporção entre hebreus e
gentios. Krassnoff andou por uns tempos obcecado pelo
rabino sefaradi Ángel Kreiman, um dos fundadores do
Comitê pela Paz e Solidariedade, que organizava campanhas
em favor dos perseguidos pela ditadura, mas o líder
religioso estava blindado pelo acordo entre Pinochet e
empresários judeus conservadores. Por mais de uma vez,
planejou o assassinato do arquiteto Miguel Lawner Stelman,
que estava detido no campo de concentração da ilha
Dawson, mas o prisioneiro obteve asilo na Dinamarca antes
que ele pudesse agir.
Acabou se satisfazendo com outros judeus que lhe cairam
nas mãos. Embora eu não estivesse presente, sei que foram
integrantes do seu grupo que assassinaram o engenheiro
David Silberman Gurovitch, ex-gerente da mineradora
Cobrechulqui, em outubro de 1974. Krassnoff participava da
comitiva comandada pelo general Arellano Stark
encarregada de fuzilar os prisioneiros que estavam na cadeia
pública de Calama. Embora não tivesse uma militância de
primeiro grau, o advogado Carlos Berger Guralnik, de 30

73
LUCIANO MARTINS COSTA

anos de idade, também foi incluido por decisão pessoal de


Krassnoff na "caravana da morte", não por ser socialista, mas
por ser judeu.
Mas sua grande proeza, de que costumava se vangloriar nos
raros momentos de euforia, foi a morte de Victor Jara. O
cantor e compositor estava preso no Estádio Nacional. Já
havia sofrido maus-tratos, mas ainda não tinha sido eleito
para o tratamento especial que veio a receber. Foi uma
conversa sobre suas canções de protesto, principalmente a
lembrança de que tinha gravado, em 1967, a música
intitulada "Noche de Rosas", que o condenou. Era nada mais,
nada menos do que "Erev Shel Shoshanin", uma espécie de
hino dos kibutzim esquerdistas de Israel, que ele havia
interpretado com o grupo Quilapayún. O corpo de Victor
Jara foi trucidado, acima de tudo, pelo ódio aos hebreus que
contaminava a ditadura de Pinochet.
E o ódio, como se sabe, pode nascer de um simples malestar,
de um sentimento quase inocente como a inveja. Naquele
tempo, eu compartilhava algumas restrições à mania dos
judeus de se agregar em entidades, como grupos de teatro,
de chamar sempre os seus para compor diretorias de
instituições, como o diretório acadêmico da universidade, de
indicar e apadrinhar pessoas de sua comunidade para os
melhores empregos e as melhores oportunidades.
Mas era apenas um sentimento mau, uma mistura de ciúme
e inveja. Krassnoff quase me convenceu de que a violência
bem administrada era a única maneira de reequilibrar as
oportunidades de sucesso entre os gentios e os judeus
chilenos. Estive muito perto de aceitar que o governo de
Pinochet tinha a missão histórica de extirpar do Chile não
apenas o comunismo e sua versão mais covarde, o
socialismo, mas também de reduzir a influência de grupos
nefastos sobre a sociedade, como o cristianismo humanista, o
tribalismo judaico e os movimentos de homossexuais, que
tinham saído de seus armários durante a aventura libertária
de Allende.

74
CONTRAPARTO

Mesmo observando, já nos primeiros meses do golpe, que a


comunidade judaica era diversificada, abrigando desde
comunistas e esquerdistas mais ou menos honestos até
empresários conservadores, entre os quais muitos que não
faziam questão de dissimular seus pendores fascistas, eu
simpatizava com essas ideias radicais de Krassnoff.
Eventualmente, quando nosso grupo de agentes mais jovens
se reunia para conversar, alguém fazia em uma folha de
papel uma lista de nomes de judeus conhecidos em Santiago,
dividida ao meio por uma linha vertical, colocando os
"comunistas" à esquerda e os demais à direita. A lista da
esquerda era sempre maior. Eu entendia que o jogo dos
judeus se tornara mais sutil e eficiente com as ideias
modernas da Escola de Frankfurt e sua Teoria Crítica, que
considerava uma prova da malícia com que eles procuravam
conduzir seus planos de dominação da sociedade cristã
ocidental. Aprendi com Krassnoff, que por sua vez dizia ter
ouvido de sua mãe e de sua avó, que Hitler foi esperto ao
suspender sua pregação antissemita entre 1924, quando
publicou Mein Kampf, e a eleição de 1933, que venceu com
apoio financeiro de empresários alemães, entre os quais
muitos judeus.
Sim, eu pensava, eram judeus muitos dos líderes da
revolução bolchevique na Rússia, e era igualmente verdade
que também o golpe militar que derrubou Allende teve a
cumplicidade de financiadores judeus. Krassnoff entendia
que Pinochet deveria fazer o mesmo que Hitler, pois, na sua
opinião, judeus não são confiáveis, porque são pessoas
fluidas, capazes de rezar qualquer credo para sobreviver.
Tinha em mente uma estratégia para identificar mais
rapidamente os judeus que deveriam ser expostos: estimular
as rixas entre os ashkenazi e os sefaradi, e com base em
indiscrições, executar um plano específico para neutralizar
os que não contassem com o apoio absoluto da comunidade
hebraica. Essa era a razão pela qual mantinha sob vigilância
extrema o rabino Kreiman, pois acreditava que o religioso
sefaradi era apenas tolerado, mas desprezado, pelos

75
LUCIANO MARTINS COSTA

ashkenazis e pelos judeus mais ricos, que esperavam se


beneficiar com a ditadura.
Eu nunca me demorava nessa questão, porque não era
capaz, então, de produzir uma reflexão mais profunda sobre
o que quer que fosse. Às vezes imaginava o que faria se
encontrasse um ex-colega de colégio numa daquelas listas. E
me ocorria que o destino poderia me colocar frente a frente
com Amanda Escostegui. Invariavelmente imaginava um
artifício para livrá-la do perigo, e daí me assaltavam as
antigas fantasias da adolescência, uma fuga através da
cordilheira, e daí para Miami, onde terminaríamos
abraçados numa cama de hotel, e o delírio acabava em
masturbação.
Alternativamente, se desenhava em minha mente um roteiro
ainda mais ousado, em que eu a resgatava do pau-de-arara,
fugia pelas ruas de Santiago ao volante de um Ford Falcon
roubado da Casa Yucatán, e...
Mas essas conjecturas não me ajudavam, pois eu agia como
autômato, desprendidamente, apenas cumprindo as ordens
sem considerar as consequências de cada missão, de cada
gesto. Numa fila de estudantes, bastava apontar o dedo para
definir o destino deste ou daquele infeliz. Eu nunca me
questionava se, ao identificar alguém num grupo de
suspeitos, eu estava apenas lhe causando um transtorno ou
se condenava à morte um inocente. Demorei para prestar
atenção a certas palavras usadas no núcleo da repressão,
como "desintoxicar", "neutralizar", "pulverizar".
Minha utopia era um mundo sem pessoas que tivessem o
poder de provocar em mim sentimentos negativos. Assim, se
me sentisse desconfortável por invejar um jovem de minha
idade que estivesse em melhor situação na sociedade, como
certo violinista judeu, cuja carreira parecia ser conduzida por
uma constelação de anjos, meu primeiro impulso era incluir
seu nome numa lista de suspeitos. Eu tentara aprender a
tocar violino, por insistência de minha mãe, mas nunca
passei dos guinchos iniciais, e aquilo me fazia muito mal.
Eventualmente, me ocorria que aquele violinista bem

76
CONTRAPARTO

sucedido era amparado por uma comunidade que ia do


lutier polonês ao crítico de música do "Expresso" e da
televisão ao maestro e compositor Horacio Saavedra, que o
levava pelo braço a todos os concertos oficiais do governo de
Pinochet.
Depois de Swedenborg, tornou-se impossível para mim
imaginar outro não-lugar, outra utopia. Meu Chile utópico
era o país da loucura consentida, da desrazão assumida
como razão política de Estado. Aquele sonho dos terremotos
e convulsões vulcânicas foi meu ponto de mutação. Havia
perdido minha utopia insana e flutuava no limbo de um
lugar que não poderia existir, minha Estocolmo serena,
previsível e segura, na qual até mesmo o sexo com Sofia
havia se tornado parte de um ritual tão corriqueiro como o
efeito das estações do ano sobre as árvores da cidade.
Qual foi, afinal, o tempo em que vivi dentro da realidade?
Na minha juventude, nem mesmo podia contar que minha
avó materna, chamada Lucille de Beauséjour, era uma judia
cuja família fugira de um lugar chamado Vivonne, perto de
Poitiers, no sudoeste da França, para o Haiti. E que meu pai
biológico era provavelmente o cristão-novo chamado Tomás
Ordoño, marinheiro desaparecido na Espanha.
Certa vez, quando fazíamos nossa lista de suspeitos num
café da rua Londres, alguém brincou sobre minha origem,
dizendo que meu outro nome, Eyzaguirre, era de origem
basca, provavelmente adotado no tempo da inquisição por
judeus que fugiam para o Atlântico pelas encostas dos
Pirineus. Foi o que bastou para que eu desandasse a falar de
conhecidos judeus, supostamente esquerdistas, desde
antigos colegas do Clube de Golfe Los Leones até amigos de
infância com os quais tinha convivido em Viña del Mar e nas
dunas de Punta Concón. O assunto me desestabilizava.
Naquela época, não pensava no tempo como um fluxo em
direção ao futuro. Dizer que vivia, então, uma espécie de
utopia, pode soar como uma idiossincrasia inaceitável, mas
de fato aqueles meses entre as agitações que antecederam a
derrubada de Allende e minha integração na comunidade

77
LUCIANO MARTINS COSTA

dos exilados em Estocolmo me pareciam a culminância do


processo histórico: o Chile haveria de neutralizar todos os
sintomas de fraqueza daqueles que, em vez de aceitar a
realidade como era, ficavam desviando a energia do país
para delírios de igualitarismo. Esses delírios, em grande
parte, tinham como base teórica as digressões de pensadores
judeus, como nos lembrava Miguel Krassnoff.
Nós sabíamos que a utopia era apenas um exercício banal da
imaginação, e que o Chile não deveria desperdiçar suas
chances de desenvolvimento com essas fantasias. Numa
dessas conversas, cheguei a afirmar que os judeus
esquerdistas ou ditos humanistas tinham interesse em
desviar os chilenos por esses desvãos emocionais, porque
estavam a serviço de uma grande conspiração
internacionalista, como havia alertado Winston Churchill já
em 1920. Sua ideologia não tinha compromisso com a
História, ponderei, mas com o interesse tribal em manter o
resto da sociedade dependente de fantasias utópicas,
enquanto eles se apropriavam dos melhores negócios, das
finanças internacionais, dos melhores empregos e galgavam
posições de destaque nas universidades, nas orquestras e
nos meios de comunicação.
Foi quando Krassnoff decidiu que eu deveria ser integrado
ao núcleo da Casa Yucatán. Poucos meses depois do dia 25
de novembro de 1973, quando fui convocado por Alejandro
Ybarra-O'Hare a participar do sequestro da uruguaia Mirtha
Pucurull, que estava internada na Clínica Moncada, Miguel
Krassnoff Martschenko me conduziu pela primeira vez ao
sinistro endereço da repressão no bairro Paris-Londres.
Lembro-me de ter sido recepcionado pelo próprio Alejandro
Ybarra no corredor de entrada. Ele estava sentado em sua
cadeira de rodas, fez menção de se levantar e em seguida me
saudou em tom jocosamente solene. "Nesta hora é que eu
gostaria muito de ainda ter dois braços. Para cumprimentar
com um abraço um verdadeiro patriota".
Empurrada por seu ajudante-de-ordens, sua cadeira circulou
por salas e corredores, onde havia outros jovens como eu e

78
CONTRAPARTO

um ou outro militar. Ao passarmos por uma porta que


aparentemente conduzia a um porão, ele continuou:
"Primeiro você vai se familiarizar com os procedimentos,
mas o quero quanto antes ali embaixo, onde precisamos de
homens decididos, que não fazem perguntas estúpidas". Foi
meu ingresso no círculo mais íntimo do inferno.

9 – LIBERAIS

Nesta noite, o jantar vem mais cedo. A refeição foi colocada


num carrinho de chá que encontrei diante da porta.
Ninguém bateu, ninguém me chamou, apenas percebi o
movimento no corredor enquanto retornava da varanda e,
ansioso por alguma companhia, corri para a porta. Puxo o
carrinho para o interior do quarto, saboreando a mescla de
aromas que sobe da bandeja. Um bom carmenère acompanha
o ravioli de ricota e nozes, que repousa sobre um leito de
creme de tomate e vem salpicado com pesto de abacate. Uma
salada de frutas completa a refeição, e me ocorre que aqueles
dias angustiantes não haviam tirado de mim o prazer que
proporciona a boa comida. Decido que este será o melhor
jantar da minha vida, como tantos outros melhores almoços
e melhores jantares que tive o prazer de degustar.
Afinal, sigo sendo um bom burguês. Nem mesmo a
impossibilidade de me mover dali, nem a exiguidade do
espaço a que estou confinado há quase uma semana é capaz
de apagar o prazer que sempre me deu a combinação
perfeita de sabores de que pode usufruir um cidadão branco,
educado e com posses suficientes nestas terras da América
do Sul. Um gole do carmenère amplifica as potencialidades
da massa fresca, e o recheio desmancha-se na boca, enquanto
os pedacinhos de nozes desafiam os maxilares a alguma

79
LUCIANO MARTINS COSTA

ação. Melhor seria se as nozes estivessem moidas, penso,


porque eu não precisaria mastigar, e simplesmente me
deixaria invadir por aquela sensação de bem-estar. Então,
vem à minha mente o verso de uma velha canção de Simon e
Garfunkel: "After changes upon changes, we are more or less
the same".
O que constitui efetivamente o sujeito? Neste momento, sou
constituído por um prato de raviolis recheados com ricota e
fragmentos de nozes. Quando secciono cada um desses
pequenos recipientes de felicidade e o trago à boca
umedecido no creme de tomate e coroado pelo pesto de
abacate, deixa de existir a ordem cronológica que condiciona
a vida real, aquilo que eu chamaria de realidade. Sou, então,
apenas, um homem que se delicia com uma refeição perfeita.
Um ser humano que tem o privilégio de perceber as nuances
presentes naquele prato, que consegue discernir a
singularidade de cada um dos ingredientes e os conjuntos
que eles compõem. E me ocorre que o conjunto só existe
porque posso determinar a natureza de seus elementos.
Por isso, neste momento, só existo porque cada um dos
elementos presentes na bandeja forma comigo o conjunto no
qual sou o sujeito. Aquele que observa a si mesmo e o
entorno, mas sabe que deixará de existir se esse conjunto for
destruido por qualquer outro elemento de realidade capaz
de desfazer a harmonia dessa composição. Portanto, não
posso me flexibilizar para além deste conjunto, não devo
permitir que meu pensamento se distancie do prazer
complexo proporcionado pela refeição. O fluxo da minha
consciência deve circular apenas no tempo da degustação,
sem articular outro pensamento, então será infinito esse
prazer.
Sendo um bom burguês, habituado a buscar e reter o melhor
que a realidade me pode proporcionar, sei muito bem
controlar o tempo da minha consciência, para que nenhum
distúrbio externo ao conjunto perfeito da apreciação da vida
venha a desorganizar a ordem simbólica que assegura o
usufruto deste momento. Por isso, é importante viver a

80
CONTRAPARTO

sensação do prazer, pois só Deus pode se relacionar


diretamente com a realidade. Cabe ao homem se relacionar
com os símbolos, e nisto me apego porque aprendi desde
criança a manter afastado do fluxo de consciência tudo que
possa afetar o prazer.
Para essa eventualidade, sempre tivemos a religião e nosso
credo liberal. São dois recursos que se completam para nos
defender da má consciência. Precisamos do credo liberal
para nos convencer de que tudo que temos e que falta aos
outros é de nosso merecimento. Precisamos da religião para
nos dar o conforto moral, ou melhor, para autenticar nossa
superioridade moral sobre aqueles que nada têm, porque
nada mereceram. E, para não ter que enfrentar a outra
hipótese, a de que este prazer, ou melhor, a capacidade de
usufruir deste prazer, seja um privilégio, temos a
simbologia.
Mas a palavra privilégio tem o poder de romper a narrativa
que a consciência produz para apaziguar o meu espírito.
Ainda há muito vinho na garrafa e essa palavra começa a
corroer o conjunto perfeito, ao se inserir entre a consciência e
a realidade. Deve ser por isso que lidamos com simbologia,
não com a realidade. Se pudéssemos, apenas com o
pensamento, condicionar a consciência e reconciliar o sujeito
com seu tempo, seríamos deuses. Mas a palavra, esse
artifício que nos faz humanos, não passa de construção
metafórica, mera tentativa de conciliar a consciência da
realidade com a realidade propriamente dita.
Se a palavra privilégio, com sua simbologia plena de censura
e condenação, não for capaz de romper o conforto da
consciência alienada da realidade, é sintoma de que nos
afastamos da condição humana e nos deslocamos para o
primeiro círculo do cinismo. O último gole do carmenère tem
o poder de me remeter de volta à humanidade, e me dou
conta de que continuo preso ao labirinto.
Daqui não posso sair por minha própria iniciativa. Posso
apenas dar alguma liberdade à minha consciência, e para
isso é necessário explorar a palavra que foi capaz de romper

81
LUCIANO MARTINS COSTA

minha vida ao meio. Mas como refletir sobre o significado de


contraparto e manter a lucidez de modo que valha a pena
continuar vivendo? Como mergulhar no universo que essa
palavra dissimula, se o seu significado representa também
tudo que veio depois dela, assim Sofia como nossos filhos e
netos e toda a vida que imaginei ter construido?
Não, não posso buscar nesse ponto de ruptura o fio do
labirinto nem tenho suficiente coragem para saltar a guarda
da varanda e me estatelar no pátio la embaixo. Não que
tenha aspirado em algum momento à imortalidade; o mais
próximo que estive dessa hipótese foi no período alienado
de minha juventude, quando imaginava que meus
privilégios nunca teriam fim. Eu era feliz, na medida em
que, não conhecendo a culpa, considerava que tudo estava
em seu lugar. O meu lugar era o centro do mundo, mapu,
como diziam os nativos do Chile, o ponto cósmico onde o
bem e o mal se equilibram para formar a vida, e eu
imaginava que meus privilégios eram só uma consequência
natural de uma longa linhagem de gente que fez por merecer
o bem-estar.
Eu não precisava ler um livro para saber disso, mas tinha me
ajudado muito a leitura de Von Mises. Para mim, era
perfeitamente claro que nenhuma utopia deveria se interpor
entre a vontade dos homens bons e competentes e a missão
de conduzir o Chile ao seu soberano e glorioso destino.
Sentimentos patrióticos sempre me assaltavam durante a
Copa América e nos jogos classificatórios para a Copa do
Mundo, e até em episódicas disputas eleitorais que
acompanhei a partir da pré-adolescência. Mas minha
compreensão sobre como deveria ser a política e sua obra, a
economia, se consolidou apenas quando tomei consciência
de que o médico marxista Salvador Allende Gosssens
poderia ser eleito presidente da República.
À medida que as pesquisas de intenção de voto
demonstravam que Allende poderia vencer a eleição, minha
acomodada alienação foi sendo sacudida pelos longos
discursos de meu pai, pelas vociferações dos editorialistas

82
CONTRAPARTO

no rádio, na televisão e nos principais diários. Meus amigos


e eu começamos, então, nossas atividades contra-
revolucionárias. Identificamos o automóvel de certo
professor universitário, sociólogo comprometido com a
esquerda, no estacionamento de um restaurante de Viña del
Mar, e furamos os quatro pneus. Depois, passamos a ações
mais violentas, como espancamentos, depredação de teatros
onde se apresentavam grupos alternativos, agressões e
ataques aleatórios a qualquer um que se parecesse com o
inimigo, homossexuais, prostitutas, mendigos. Quando dois
integrantes do nosso grupo puseram fogo em um velho
mapuche que dormia sob o pórtico do cine teatro Condell,
em Valparaíso, resolvi recuar.
Já estava, então, envolvido com o movimento de sabotagem
ao recém-inaugurado governo de Salvador Allende,
incendiando armazéns, inutilizando caminhões nos
terminais de distribuição de alimentos, provocando
paralisações nos serviços públicos. Foi, portanto, um ato
natural o ataque ao jovem argentino em Punta Concón. Com
aquele jeito de hippie, violão e saco de dormir, de cabelos
compridos e cantando aquela música de Victor Jara, ele não
podia ignorar onde se encontrava. Estava pedindo para
morrer.
Éramos liberais, defensores da liberdade individual,
oponentes da outra banda, aquela que começa por se apiedar
de um vagabundo e acaba por lhe dedicar a mais gorda fatia
do orçamento público, que deveria estar financiando a
iniciativa dos que realmente têm condições de produzir
riqueza. Pois sabíamos todos que, se você der a mão a um
pobre, ele logo vai querer o braço, como costumava dizer
meu pai. O ministro Eyzaguirre tinha desenvolvido uma
lúcida teoria para conciliar a ideia de compaixão católica
com as urgências deste mundo: fazer o bem sem olhar a
quem, desde que o beneficiário reconheça tacitamente a
superioridade moral daquele que o beneficia. Ou seja, que o
beneficiário saiba seu lugar.

83
LUCIANO MARTINS COSTA

Porque também é preciso saber receber e, ao receber,


reconhecer que ninguém obriga o outro à caridade. O que é
dado é dado de boa vontade, sem nenhuma espectativa de
retribuição que não o reconhecimento da superioridade
moral de quem tem para dar. Meu pai costumava dizer que
a Igreja Católica errava ao prometer compensações para a
caridade: o próprio ato caridoso, em si, é consequência de
uma designação divina para cada indivíduo na sociedade
humana, já que a condição moral superior de quem doa está
preestabelecida por sua posição social.
"O status quo ante" – ele dizia – "é uma realidade que não
pode ser contestada, por evidente. Ela define o direito que já
havia antes da relação social com o indivíduo que está numa
condição inferior, por escolhas suas ou de seus ancestrais". O
ministro orientava suas decisões judiciais por esse princípio,
desde a primeira e humilde comarca que lhe coube, onde
soube defender os interesses dos poderosos, até as cortes
superiores a que o conduziu o casamento afortunado com a
filha de Lucille de Beauséjour. No seu entendimento, essa
era a essência do liberalismo, e qualquer que se opusesse a
essa lei natural deveria ser retirado do poder, se no poder,
ou neutralizado, se tivesse alcançado alguma relevância
social.
Era assim que eu pensava, quando pensava, pois a excitação
dos acontecimentos quase não deixava espaço para
reflexões. Estávamos sempre em ação, e os poucos
momentos em que tínhamos a oportunidade de avaliar
nossos atos eram dedicados a sôfregas comemorações, às
fanfarronices, a rompantes de valentia, às jactâncias de uma
autoestima exacerbada. Mesmo que a ação tivesse sido o
calcinamento de um mendigo aleijado e alcoolizado, éramos
os super-heróis que iriam garantir a sobrevivência da
sociedade liberal no Chile.
Se alguém tivesse que justificar o valor intrínseco de uma tal
ação política, sempre haveria o recurso do pragmatismo:
quanto vale a vida de um índio velho, cuja perna foi
entortada numa mina de cobre, e que teima em viver sob

84
CONTRAPARTO

condições que nem um cão aceitaria, se a própria vida lhe


demonstrava que seu período de validade havia terminado?
Ou, sob a metafísica do desembargador Eyzaguirre, o
destino do infeliz estava definido desde muitas décadas,
quando seus avós se recusaram a viver nas reduções que o
governo lhes reservou no Sul, e achando que tinham o
direito de viver nas cidades, insistiram em estender seus
panos nas calçadas da Capital Federal, onde se dedicavam a
emporcalhar o caminho dos bons cidadãos com suas fezes e
os dejetos de seus cachorros.
Ainda assim, atingi o meu limite. Depois do assassinato do
mapuche em frente ao cine Condell, passei alguns dias
recolhido, mesmo porque precisava encaminhar documentos
para a universidade, em Santiago. Não que a cena do
araucano se contorcendo sob as chamas tivesse afetado meu
discernimento, mesmo porque saímos correndo assim que a
gasolina derramada sobre os seus trapos explodiu num
festival de tons vermelhos e azuis. Apenas me recolhi
porque ouvi as ponderações de meu pai sobre a
conveniência de ascender a algum posto mais relevante do
que o de arruaceiro. Já era um acadêmico quando voltei a
Valparaíso naquele verão. Talvez esse tenha sido meu ritual
de passagem.
Nesta noite, não há muito que fazer a não ser esperar. Eu
sabia que aquele impasse não demoraria: afinal, os chilenos
acabam de eleger novamente à Presidência da República o
inatacável empresário Sebastián Piñera, dono da Chilevisión
e sócio da empresa aérea que me havia transportado de
Estocolmo. Era o triunfo do liberalismo, a senha entregue
pelo povo para dizer: não importa quantos chilenos foram
assassinados pelo fascismo a serviço de Piñera e seus sócios,
não importa que Victor Jara tenha sido torturado e seu corpo
arrastado pelo terreno do Estádio Nacional a reboque de um
jipe militar, os chilenos querem "El Club de La Comédia" na
quarta-feira, querem "Histórias del alma" todo santo dia, não
podem passar sem "La Divina Comida", ainda que não
tenham dinheiro para comprar os ingredientes.

85
LUCIANO MARTINS COSTA

Sebastián Piñera foi reeleito, apesar de ter mentido sobre as


casas que prometeu construir em 2010, logo depois do
terremoto e do tsunami que deixaram mil mortos e dezenas
de milhares de desabrigados. Foi reeleito porque os chilenos
escolheram não olhar para trás. Não percebem que foram
convencidos pelo dono da Chilevisión a votar no dono da
Chilevisión. Não por acaso, nas mensagens que enviam à
emissora perguntando sobre protagonistas de telenovelas e
sobre o destino desta ou daquela celebridade, muitos
chamam "audiência" de "reiting". Os chilenos escolheram o
liberalismo porque imaginam que a História se escreve com
Semtex e TNT.
De certa maneira, sinto-me reconfortado por essa escolha.
Nada tenho a ver com essa gente, e se o pesadelo de algumas
noites atrás se revelar premonitório, tanto faz se o Chile for
apartado do continente pela convulsão dos vulcões e o
entrechoque das placas tectônicas e se transformar numa
nau de pedra a balançar eternamente no Pacífico. Conduzido
Piñera novamente ao comando do país, o sistema não
precisará de mim numa próxima disputa, mesmo porque os
esquerdistas também se resignaram à alienação do poder.
Aqueles que contavam foram mortos. Os sobreviventes estão
destinados a lidar com o mal-estar de estar vivo quando os
melhores foram detonados e sua poeira espalhada no
deserto.
O Chile é, para mim, uma nau de parafrênicos, condenados
ao delírio crônico de ricas e elaboradas fantasias
nacionalistas de grandeza, embaladas por velhas canções
românticas de Roberto Carlos porcamente traduzidas e
repetidas eternamente no Festival Internacional da Canção
de Viña del Mar, todo mês de fevereiro, no qual brilham
como astros de primeira grandeza os artistas contratados
pela Chilevisión. Vão despertar algum dia?
O vinho acabou. Preciso dormir.
Viva Chile!

86
CONTRAPARTO

10 – FASCISTAS

Foi quase por acidente que descobri o capítulo 10 do livro de


Von Mises, quando o encontrei numa das caixas que havia
utilizado para transferir minha pequena biblioteca para a
nova residência no bairro de Ostermalm. Era o ano de 1997,
período em que já imaginava ter me despedido
definitivamente do Chile e suas lembranças. Nem sei por
que motivo ainda conservava aquele exemplar, que nunca
havia manuseado nos dez anos anteriores. Ao seu lado, na
mesma caixa, encontrei também um exemplar do panfleto
intitulado "Manual do perfeito idiota latinoamericano",
produzido a muitas mãos por um cubano e dois peruanos,
um deles filho do escritor Mario Vargas Llosa. Vargas Llosa
assinava o prefácio, oferecendo seu prestígio para dar ao
trabalho do pimpolho alguma relevância. Comparava-o a
obras de Voltaire, Blaise Pascal, Cesar Vallejo, Jean-Paul
Sartre.
Esse eu sabia do que tratava, pois me fora presenteado por
um amigo de Sofia, militante da social-democracia sueca.
"De um idiota sueco para um idiota latinoamericano", dizia a
dedicatória, que incluía um comentário sobre o risco que
corria Llosa, pai, ao colocar sob a sombra do Prêmio Nobel
aquela traquinagem do seu primogênito. Naquela ocasião,
apenas li algumas páginas e o deixei de lado. Mas, ao
encontrá-lo por acaso junto com o trabalho mais revelador
do guru do liberalismo, a coincidência me deixou curioso, e
passei a folhear os dois livros paralelamente.
Curiosamente, notei que eles se completavam: no capítulo 10
de Liberalism: A Socio-Economic Exposition, Ludwig von Mises
declara que o capitalismo precisa lançar mão do fascismo,
eventualmente, para combater as ondas de delírio socialista
das massas. Mais: ele justifica o fascismo, afirmando que os
fascistas salvaram a civilização europeia na primeira metade

87
LUCIANO MARTINS COSTA

do século 20 e lamenta, sem qualquer sutileza, que esse


recurso não possa ser usado por longo prazo. O livro
panfletário do filho de Vargas Llosa e seus dois amigos se
configura, na prática, como um recurso típico do fascismo,
ao abdicar do embate de ideias para tentar desmoralizar o
pensamento antagonista por meio de blagues e deboches.
Compará-lo, porém, aos panfletos que inundavam a Europa
no advento da modernidade, foi uma licenciosidade do
célebre escritor peruano, que o reduz à vala comum daquilo
que o sociólogo Gunder Frank chamou de lumpenburguesia.
Nesta manhã, demoro-me na cama a pensar em como andei
longe da razão durante quase toda a juventude, e concluo
que não poderia ter sido diferente, pois não encontrei entre
familiares e amigos alguém que propusesse um olhar
diferente sobre a realidade chilena dos anos 1970. Sofia foi
quase um acidente, um evento singular que perturbou meus
planos. Estou para me conformar com essa possibilidade,
quando a imagem de Amanda se interpõe entre minha
consciência e essa linha condescendente de raciocínio:
Amanda havia saltado daquele misto de torpor e excitação
que acompanhava as farras e arruaças do nosso grupo logo
depois do episódio em Punta Concón. Provavelmente não
chegou a tomar conhecimento da morte do jovem argentino
chamado Simón Natan Ordoño-Aguilar.
Eu também poderia ter percebido a loucura em que
estávamos mergulhados, mas não fui educado para sair da
zona de conforto. Lembro do grande incômodo que senti no
dia em que me vi obrigado a abreviar minha estada em
Madri porque um estudante brasileiro notou minha pouca
familiaridade com o linguajar típico dos esquerdistas e dos
chamados humanistas, que se preocupam com questões
como a desigualdade social e a democracia. Talvez porque
foi a primeira vez que convivi com gente da minha idade
que tinha uma visão de mundo oposta à minha.
Demorei muitos anos para confrontar minhas duas vidas, e
na verdade nunca encarei de fato essa dicotomia. Aceitava
passivamente uma história que agora me envergonha, pela

88
CONTRAPARTO

mesmíssima razão que me manteve paralisado enquanto as


forças ao meu redor me conduziam para o centro do
triturador de vidas fascista que atuava no Chile como
instrumento do liberalismo. Agora que o liberalismo não
precisa mais da violência institucional, porque conseguiu
transformar a maioria dos chilenos em zumbis embalados
por telenovelas idiotas e músicas adocicadas empurradas
orelhas adentro pela máquina massificadora da mídia, tenho
duas alternativas: enfrentar meu passado, para exorcizá-lo
de vez, ou continuar fingindo esse distanciamento, nessa
ilusória resignação a uma vida partida ao meio.
Até poucos dias atrás, eu mal me lembrava que sou chileno.
Agora me pergunto se a eleição de Piñera, que consolida a
obra da ditadura e realiza o sonho de Von Mises, poderá me
devolver a serenidade perdida. Posso, afinal, voltar para
casa sem ter que contar para Sofia quem fui, o que fiz, o que
escondi? Não, sei que nunca poderia explicar para ela por
que a palavra contraparto tem esse imenso poder sobre mim,
por que a densidade de seu significado é capaz de alterar a
trajetória que havíamos imaginado para nossa velhice, como
o buraco negro que engole galáxias inteiras. Mesmo que o
projeto fascista-liberal seja, como me parece, um triunfo para
muitas décadas, diante da passividade e estupidificação do
povo chileno, parece-me agora tão impossível continuar
distanciado desse passado quanto preservar o presente ou
vislumbrar um futuro.
Ocorre-me que a carta recebida dois dias atrás seja parte da
estratégia para a consolidação desse poder. Imagino, em
seguida, que o núcleo fascista da ditadura, que conduziu das
sombras a eleição do empresário Sebastián Piñera, dono da
Chilevisión, vai precisar de novos ícones num futuro
próximo para corrigir o processo de depreciação que sofrem
todos os governantes por conta da inevitável corrosão
produzida pela realidade sobre as promessas eleitorais e o
auto-engano dos cidadãos. Se isso é uma possibilidade real,
eu não estou livre de uma nova convocação. A mensagem de
Ybarra-O'Hare se referia a "um plano seguro para as

89
LUCIANO MARTINS COSTA

próximas cinco décadas" e me considerava uma


possibilidade futura, para o caso de o sistema vir a precisar
de alguém capaz de transitar com naturalidade pelo outro
lado do espectro ideológico.
Imagino, então, que, se fosse o caso, eu poderia ter minha
história pessoal reconstruída pela mídia, de modo a ser
apresentado como um chileno que viveu no exílio e retorna
para contribuir com a condução do país rumo ao seu
inevitável destino de glória. Já faz alguns meses que a
imprensa hegemônica da América Latina espalha em artigos
e editoriais o mito de que o Chile está se transformando num
país desenvolvido, dando repercussão a relatórios otimistas,
cuidadosamente selecionados por um economista chileno
plantado no Banco Mundial. Por trás dessa mistificação
desenrola-se o projeto a que acabo de ser convocado, que
consiste em esconder a história dos horrores cometidos pela
ditadura fascista a serviço do liberalismo e convencer a
sociedade de que, afinal, tudo está certo quando acaba bem.
Mas a realidade é a das poblaciones callampa, como La
Pincoya, no norte de Santiago, onde, na década de 2.000, um
menino declarou a um grupo de jornalistas: "Aqui somos tão
pobres que não temos nem cárie". Mas o que, afinal, teria
levado jornalistas a La Pincoya naquela ocasião? Estavam
cobrindo uma operação de desratização, na rotina nacional
que periodicamente redescobre a pobreza em períodos
eleitorais, ou depois de terremotos e incêndios de grandes
proporções. Embora as estatísticas manipuladas insistam em
cobrir com uma cortina as comunidades da miséria, elas
continuam lá. Por isso, o projeto em que fui incluído por
O'Hare necessita historicamente de uma alternativa que
possa, ao menos no discurso, enfrentar o tema delicado que
é a impossibilidade de reduzir a desigualdade social através
da economia de livre mercado, com seus agentes no controle
do Estado.
Então, sou parte das "forças democráticas nacionalistas e
cristãs, defensoras da livre iniciativa", como dizia a carta
cujos fragmentos repousam lá embaixo, no asfalto, na areia,

90
CONTRAPARTO

no oceano, espalhados pelo vento. Mas quem sou eu?


Segundo aquela carta, sou Inácio Beauséjour de Eyzaguirre,
cientista social com PHD em Ciência de Sistemas por uma
das mais respeitadas universidades do mundo, pai de
família exemplar, oficialmente exilado, mas, para os íntimos
da Casa Yucatán, homem confiável, "comprometido com os
valores cristãos testados ao extremo nas árduas condições da
guerra ideológica". Um homem que não quer ser o que é.
Sou o solitário absoluto, o que não pode ser socialmente, o
indivíduo por excelência, o ápice da cadeia evolucionária do
liberalismo. Imagino como deve se sentir o homem mais rico
do mundo, para quem as angústias da vida comum são
apenas uma notícia, chegada de um lugar distante, habitado
por seres chamados humanos e de cuja existência ele toma
conhecimento por meio de planilhas e relatórios. Sei que sua
contraparte, o homem mais miserável do mundo, sofre da
mesma inexorável solidão, já que lhe falta o requisito
mínimo para se integrar à humanidade, ou seja, para esses
dois indivíduos não existe o outro, um rosto diferente no
espelho, aquele que possibilita a experiência da alteridade,
única janela para a percepção do ser em si. Os dois nunca se
encontrarão. Os dois estão sós.
Li num romance, não lembro se o autor era português ou
brasileiro, mas posso afirmar que a frase foi escrita no
idioma que certa vez me emocionou, em Madri, quando
deram o violão para aquele estudante brasileiro que acabaria
me desmascarando, e a primeira música que ele dedilhou foi
uma canção de Tom Jobim. "Águas de Março" me encantou
desde essa primeira audição, e muitos anos depois, instalado
em Estocolmo, voltei a ouvi-la muitas vezes, em outros
idiomas, mas quero dizer apenas que foi na língua de
brasileiros ou portugueses que li essa expressão: "Penso,
alguém me pensa, logo existo". Essa é a antítese do que sou.
Penso, mas ninguém neste planeta pode me pensar como
realmente sou. Por isso não posso compreender exatamente
o que sou, como num espelho, mas posso imaginar, ainda
que de maneira difusa, como a multidão de zumbis que

91
LUCIANO MARTINS COSTA

habitam o Chile consegue tocar a vida para diante, como se


não repousassem no fundo do oceano os resíduos dos
cadáveres insepultos cobertos de cracas e, misturado às
areias do deserto de Atacama, o pó dos mortos incinerados
que são parte do patrimônio histórico do Chile, ainda que os
chilenos não os reconheçam como seres humanos. Como
homem natural do fascismo, olho para esses indivíduos
alienados de si mesmos e da humanidade e me compadeço
de suas existências. Não posso reconhecê-los como
integrantes da humanidade, as circunstâncias também me
colocam à parte do gênero humano, que já não sei o que é. O
homem natural do fascismo não pode ter consciência de si, e
por esse motivo está também impossibilitado de existir
socialmente.
Esse estranhamento é o único vínculo possível entre nós.
Somos o liberalismo em estado de arte, o individualismo
levado ao extremo em que o indivíduo não se completa, não
vem a ser, é uma das muitas sombras no teatro da sociedade
projetada para servir ao capital, um fantasma de si, não um
ser em si, e por isso me convenci, ao ler concomitantemente
Von Mises e o panfleto do playboy Vargas-Llosa, de que
realmente o Chile realizou o ideal liberal, de uma sociedade
reduzida à condição de mercado, em que os indivíduos são
levados a abdicar voluntariamente da condição humana
para se conformarem com o estado de consumidores,
consumidores de telenovelas e outros lixos televisivos,
condicionados a uma existência na qual a História nacional
foi amputada de seu episódio mais grotesco, mais relevante,
e por essas duas razões mais elucidativos da nacionalidade.
Pode-se ainda falar de nacionalidade em uma multidão de
zumbis?
Na imprensa que determina o que pensam os indivíduos
descerebrados, o Chile é uma pátria. Miguel Krasnoff, Sergio
Arellana Stark e seus asseclas, como Enrique Erasmo
Sandoval Aranciba, Marcelo Moren Brito, Augusto Pinochet
e toda sua caterva de monstros, são referências distantes,
cada vez mais distantes, a cada geração de alienados

92
CONTRAPARTO

progressivamente mais difusos e fantasmagóricos, e não


apenas pela ação da máquina midiática, mas principalmente
porque é da natureza dos zumbis repudiar os incômodos da
consciência. O produto perfeito e acabado do liberalismo é
exatamente essa espécie que se desfaz voluntariamente da
condição humana e se deixa conduzir pelas ideias geniais de
um produtor da mídia que se inspira em carreiras de cocaína
para escrever roteiros intensos e convincentes sobre os
malefícios da droga.
A caravana da morte nunca foi interrompida. Ela apenas não
produz diretamente os cadáveres físicos, corpóreos. Produz
mortos-vivos, seres alienados de si mesmos, cujas mentes
foram sequestradas e incorporadas à nova nacionalidade,
composta de fantasias. Os zumbis idolatram as celebridades
da cultura de massa, e não há distinção entre eles e os
colonizados que outrora idolatravam o retrato do
colonizador. Porque a História foi revertida e esse é o triunfo
do liberalismo: a extinção da política, a substituição da
divergência pela acomodação de interesses. Tendo atuado
no núcleo do sistema operacional do fascismo, posso afirmar
com mais autoridade do que aqueles autores de anedotas
equiparadas por alguns insensatos às ironias geniais de
Voltaire ou Pascal: não existe vida inteligente após a morte
da consciência.
A caravana da morte atua nos meios de comunicação, onde
se consolidam os novos valores morais da sociedade,
ensinando às novas gerações como virar as costas para seus
semelhantes para obter vantagens no competitivo mercado
da sobrevivência, enquanto os servidores do sistema de
poder gozam das sinecuras de empresas expropriadas do
Estado e entregues àqueles que financiaram o golpe e o
terror. Não é mera coincidência que os arautos do credo
liberal-fascista sejam presenteados com cargos de
representação de empresas de mídia no exterior, onde
podem desfilar seus cabelos engomados, e que os mesmos
donos das empresas de comunicação que pregam a
amputação do Estado ganhem muito dinheiro com

93
LUCIANO MARTINS COSTA

investimentos nos altamente rentáveis fundos de pensão


privatizados. Todo neoliberal, ao envelhecer, se torna
fascista. O fascismo é a doença senil do liberalismo.
Um silêncio de morte acompanha o avanço desses ideais
cuja matriz foi implantada a ferro e sangue, o sangue de
Victor Jara e outros milhares de homens e mulheres que um
dia compuseram o melhor que poderia produzir a
mestiçagem chilena. Apanho um livro no fundo da mala. O
único livro que trouxe, um livro em sueco, de papel, porque
a leitura na tela de um desses aparelhos sempre me dá sono.
"Ecce homo" é uma forma de retornar a Swedenborg, pelo
contraste das palavras de Nietszche. "Eis o homem", e é
como se eu estivesse ainda tentando encontrar um lugar
para mim dentro dessa história macabra. Mas sob esse
silêncio insuportável, minha mente se atropela na sucessão
de torturantes reflexões que dominam o tempo, e passo o
resto da manhã enfurnado neste apartamento encastelado
diante do Oceano Pacífico, sobre a Avenida Borgoño, ao lado
de Punta Concón. Foi bem ali que tudo começou, e me
parece irônico que tudo tenha que se acabar neste mesmo
cenário.

94
CONTRAPARTO

Desperto da sonolência com uma imagem persistente no


fundo de meus olhos: a imagem de um pacote de cigarros da
marca Monza, de cabeça para baixo. Essa era, segundo a
teoria conspiratória espalhada desde o começo do governo
de Salvador Allende, a senha para a revolução comunista
que iria assassinar os membros das famílias mais ricas do
Chile, expropriando seus bens e distribuindo-os entre os
pobres. Também seriam mortos os oficiais das forças
armadas que não compactuassem com tal plano. Histórias
sobre reuniões secretas em sindicatos corriam por todo lado,
como parte da disputa eleitoral, e logo depois da posse de
Allende essa fantasia se consolidou no pacote de cigarros:
virada de cabeça para baixo, a marca Monza se transformava
em "AZ-Now", que em espanhol se traduzia como Plan Z-
Ahora. Na insanidade que ocupou as mentes degeneradas de
centenas de milhares de chilenos, quando os militantes
esquerdistas saissem às ruas com o maço de cigarros
invertido no bolso da camisa, começaria a carnificina.
Imbecis de todas as classes sociais chegavam a enxergar a
imagem de Che Guevara junto à roda de um carro de corrida
que ilustrava a embalagem do cigarro. E não apenas os ricos
passaram a acreditar nessa fantasia: até mesmo famílias da
baixa classe média se perguntavam se sua casinha de dois
quartos seria dividida para abrigar mendigos sem teto. Eram
sinais claros do verdadeiro ethos chileno, que viria a se
revelar em sua inteireza nos anos seguintes.
De tanto repetir a história, mesmo eu e meus amigos, que
sabíamos desde o princípio tratar-se de uma estratégia para
desestabilizar o governo recém-eleito, acabamos repetindo
esse delirante enredo até depois da queda de Allende. Desta
vez, como justificativa para a violência institucional extrema
que se deflagrava contra qualquer cidadão suspeito de
preservar sentimentos de empatia com os inimigos da pátria.
Na edição de 22 de setembro de 1973, logo após o golpe, o
diário La Tercera saiu com a manchete: "Al decubierto el

95
LUCIANO MARTINS COSTA

siniestro Plan Z" – seguindo-se um longo relato sobre a


suposta chamada para a guerra civil planejada pelos
comunistas. Em 2 de novembro do mesmo ano, a revista Qué
Pasa repetiu a dose, com detalhes ainda mais fantásticos.
Fatos corriqueiros da rotina de governo acontecidos durante
o curto mandato de Allende, como a recepção a uma
personalidade estrangeira ou reuniões públicas de
trabalhadores, eram citados por comentaristas da imprensa e
lembrados como incontestáveis "provas" da conspiração.
Hoje em dia, com milhões de pessoas grudadas o tempo
todo a telefones digitais, muita gente se espanta com a
profusão de bobagens que se transformam em histórias reais
nas mentes degeneradas pela falta de consciência de si.
Embora não tenha tido contato com o Chile nas últimas
décadas, posso bem imaginar a quantidade de asneiras que
percorrem as tais redes sociais. Como a embalagem de
cigarros dos anos 1970, outros ícones devem estar sendo
manipulados toda vez que ocorre uma disputa eleitoral, ou
mesmo nas temporadas de decisão dos torneios de futebol.
Assim a cultura de massa se consolida em perigosa ficção.
A memória da conspiração Monza deveria aterrorizar as
noites dos imbecis que, como eu, levaram adiante essa
fantasia, mas é certo que uma das qualidades do idiota é o
poder de se justificar, seja qual for a besteira que tenha feito.
Nada como o tempo, senhor da memória, para manter
ocultas as sujeiras da consciência. Todo homem, mesmo o
mais vil dos seres, quer integrar o panteão dos bons e justos.
É condição para a sobrevivência, para o ingresso na vida
social, para fugir à condição de marginal, se sentir correto.
Talvez tenha sido Bergson, não tenho comigo as anotações
do último artigo que pubiquei em Estocolmo, mas com toda
certeza tem este sentido o pensamento que me faz
finalmente sair da cama e procurar a bandeja com o café da
manhã. Era algo como "a memória humana é individual,
mas é também a memória da espécie e, ainda mais
profundamente, a memória da vida". Insistimos sempre em
objetivar a realidade, e por isso nos escapa a hipótese de que

96
CONTRAPARTO

a realidade seja apenas a consciência de si e das


circunstâncias, onde estão os outros, a geografia, a cidade, as
artes, o vento, a luz com suas cores, os odores, ruídos e
sabores, e as memórias dessa relação. Ao obstruir a relação
do indivíduo com suas circunstâncias, substituindo a
percepção consciente pelos simulacros que constrói, o
sistema da mídia que representa o poder bastardo impede o
contato do ser com a realidade, lançando-o em uma vida
falsa, uma espécie de programa televisivo no qual passa a
viver a vida dos personagens de ficção.
É nesse ponto que as massas desumanizadas perdem, na
sequência, primeiro a memória da vida, em seguida a
memória da espécie e, finalmente, cada um de seus
indivíduos perde a memória individual, que se mescla às
das personagens de ficção, das celebridades, dos atores e
suas caracterizações, e por isso o sistema precisa eliminar as
divergências, o senso crítico, a dialética, precisa extinguir a
arte e substituí-la pelo movimento ilusório das performances
apoiadas em pareceres esclarecedores do curador
credenciado pelo próprio sistema. E assim se constrói a
sociedade dos mortos-vivos.
A própria ciência se transforma em parte do espetáculo,
ofertando periodicamente, através da imprensa, suas
fantasias de um futuro assombroso que é puramente
entretenimento para ignorantes que ainda acreditam em
seres mitológicos. As revistas televisivas das noites de
domingo amortecem as consciências com promessas
mirabolantes de cura para o câncer, tratamentos miraculosos
para o demenciamento, sem resvalar no fato de que é a
própria mídia a principal autora do processo de
ensandecimento geral.
Ainda me resta alguma memória. Preciso dela para manter
alguma sanidade, ou a ilusão da sanidade que talvez me
permita romper o limbo em que estou imerso. Quem sabe,
começando por uma frase de Amanda Escostegui: "Se você
não se interesssa por política, a política perde o interesse por
você". A partir daí, posso me lembrar de alguns detalhes

97
LUCIANO MARTINS COSTA

daquela noite nas dunas de Punta Concón. Eu só tinha olhos


e ouvidos para ela, e no meio das bobagens que os outros
diziam, captei uma frase que ela enfiara numa conversa à
parte com Isadora. Minha irmã acabava de dizer que estava
cansada daquelas correrias infantis e pretendia passar mais
tempo em Santiago. Amanda ponderou que estava
frequentando um grupo de estudos políticos e que pretendia
se tornar jornalista. Foi quando declarou seu interesse por
política, o que em alguns meses haveria de ser sua perdição.
Na ocasião, eu não achava que o que fazíamos era política
ou, melhor dizendo, uma forma de interferir na política para
extinguir a democracia. Entendia que os outros, aqueles que
sonhavam com uma sociedade igualitária, eram totalmente
idiotas: como eu, Inácio Beauséjour de Eyzaguirre, poderia
ser igualado, por exemplo, aos mapuches que empesteavam
com seus corpos fétidos as portas dos restaurantes e as
escadarias das igrejas? Mesmo não sendo religioso,
considerava muito sábia a compreensão do meu pai, para
quem a elite de um país cumpre os mesmos desígnios
divinos que justificam as monarquias: o homem comum
necessita de um modelo superior, um ser que possa admirar
e que esteja mais próximo de Deus, para buscar sua
emancipação. Por isso o povo adora homens e mulheres bem
sucedidos.
Se a questão exigisse, eu poderia até mesmo sacar como
argumento o super-homem de Nietzsche, aquele ser que
deveria inspirar os demais na busca de qualificação mais
elevada como indivíduos. Cheguei a pontificar sobre o
assunto, e mais de uma vez justifiquei o nazismo com
alguma criatividade, por exemplo, lembrando que Nietzsche
acreditava, inicialmente, que a seleção natural produzia essa
espécie de seres superiores. Em outras ocasiões, usei a
suposição tardia do filósofo, de que o indivíduo superior,
que naturalmente se sobrepõe à mediocridade geral, se
constrói mais pela educação e o esforço do que pela seleção
natural. Um credo liberal.

98
CONTRAPARTO

Carreguei esse patrimônio do meu pai durante toda a


juventude, desprezando o conceito de humanidade como
uma abstração sem qualquer respaldo na realidade. Na
grande e confusa oficina do mundo, o formigueiro humano
busca inutilmente um sentido de espécie, de coletividade, eu
pensava. E dizia em altos brados, nos bares que frequentava
com os amigos, que o Chile só poderia se tornar um país de
primeiro mundo se investisse com prioridade naqueles que
já tinham como herança genética os bons costume de
higiene, o conhecimento erudito, histórias de avós e bisavós
alfabetizados e letrados, o savoir faire dos privilegiados de
longa data, um piano de cauda na sala e algum sotaque
inglês ou francês no almoço de domingo. Os demais, que
seguissem esses exemplos luminosos.
Por isso, todo governo deveria priorizar o estímulo aos
melhores, oferecendo oportunidade de especialização no
exterior para os bons acadêmicos das escolas de elite, em vez
de desperdiçar dinheiro com bolsas de estudos para alunos
esforçados de escolas públicas. Uma elite formada em
Harvard, em Princeton, era disso que o Chile precisava, não
de uma multidão de estudantes medianos que iriam apenas
aumentar a concorrência pelos cargos burocráticos do
Estado. Formar líderes, os super-homens, eu dizia.
Lembro que, durante a campanha eleitoral que colocou no
Palácio de la Moneda o socialista Miguel Allende, eu me
engalfinhei numa briga com um grupo de estudantes da
Capital Federal que passavam o verão em Valparaíso, depois
que a política tomou o lugar de uma conversa sobre futebol.
Discutíamos sobre o que daria melhor resultado, se os
talentos individuais do Club Universidad de Chile, "La U",
ou a celebrada organização da equipe do Colo-Colo. Eu dizia
que a organização e o jogo em equipe eram importantes, mas
o essencial em qualquer atividade humana era ter elementos
de destaque, inspiradores, capazes de fazer qualquer perna-
de-pau jogar acima de suas potencialidades.
Allende foi eleito, mas só foi empossado pelo Congresso,
vencendo a oposição da democracia cristã, porque nós, os

99
LUCIANO MARTINS COSTA

fascistas do grupo Pátria y Libertad, matamos o comandante


das Forças Armadas, general René Schneider Chereau, e,
com o Exército dividido, até mesmo o governo americano
preferiu respeitar as urnas e deixar o golpe para mais tarde.
Por ironia, o Colo-Colo acabou vencendo o campeonato
nacional daquele ano, com uma equipe mediana mas bem
organizada e tendo como único destaque o brasileiro Elson
Beyruth. "La U" ficou em terceiro lugar, atrás da Unión
Española. Eu creditei esse resultado ao momento de loucura
que vivia o país, imbecilizado pelo discurso populista de
Allende. Nos anos seguintes, "La U" seguiu penando nos
torneios importantes, e só não fez pior porque contou com o
talento do paraguaio Eladio Zárate, o que confirmava minha
teoria.
Antes disso, a infância e minha mãe com seus olhos sempre
úmidos, como se fossem constantemente regados de certas
visões que não podia compartilhar. Talvez a visão de um
marinheiro chamado Ordoño, de um amor que foi
interrompido pelo mar. Talvez seja eu essa planta, talvez
não, e os sonhos que eu tinha, de me lançar ao oceano e
navegar pelo mundo se acabaram no fim da adolescência. O
imenso poder do desembargador Eyzaguirre sobre a família
fez naufragar meus delírios de navegante, assim como havia
afogado em olhos úmidos a mulher que minha mãe poderia
ter sido.
Mas as memórias desse tempo foram encobertas pela densa
realidade em que mergulhei assim que começou o projeto
para a derrubada de Allende. Agora se torna penoso demais
resgatá-las. Além disso, parte dessas lembranças vem
comprometida pelo patrimônio que carrego. Há dentro de
mim o condicionamento que me causa repulsa quando vejo
mendigos nas ruas de cidades europeias, jovens drogados ou
ciganos, que relaciono com os mapuches de minha
juventude. É também a contaminação da memória pelo
patrimônio, que produz em mim um grande desconforto ao
ouvir qualquer canção de Victor Jara. Foi isso que me
motivou, certa vez, a deixar na porta de um vizinho, de

100
CONTRAPARTO

presente, um desses fones de ouvido sem fio: o jovem


estudante costumava ouvir, em alto volume, todas as tardes,
uma tal Radio Victor Jara, e me causava pesadelos. Aquela
voz e aquela guitarra me faziam recordar constantemente
que o artista foi morto por 44 tiros antes de ter seu corpo
destroçado. No entanto, sua guitarra e sua voz ainda são
ouvidas em Ostermalm e em muitas outras partes do
mundo. Sua irritante, aguda e incisiva voz.
Não posso mais. O café da manhã impede que eu caminhe
para a varanda, onde o abismo me espera, para onde me
empurram os pensamentos e a memória. Sob o prato com o
pão marraqueta encontro um envelope. Dentro do envelope
há uma carta, e imagino que sejam as instruções de
Alejandro Ybarra-O'Hare para me tirar daqui. Mas já não sei
se quero sair, pois não saberia para onde ir. No envelope
também há um voucher para o vôo Latam 704, saindo às
19h15 com destino a Estocolmo e escala em Madri. Um carro
virá me buscar às 13 horas. Pela Rota 68, serão quase duas
horas até o aeroporto, que fica um pouco antes da capital
federal.
A mensagem é curta: o novo presidente assegura que está
habilitado a conduzir o Chile definitivamente para o
glorioso estado de desenvolvimento a que está
inevitavelmente predestinado desde o começo dos tempos,
ou seja, desde que os europeus ocuparam a terra e
trucidaram os nativos. Não prosperou o plano do grupo da
Casa Yucatán de me incluir no governo, como uma reserva
para futuros embates. A vitória de Sebastián Piñera foi
convincente, e nas semanas seguintes à da sua posse o Chile
vai assistir a um movimento de mudanças, a começar pela
reversão do projeto de sua antecessora, Verónica Michelle
Bachelet, de acabar com as universidades privadas e
estabelecer o ensino público e gratuito para todos. A carta
recomenda que eu volte à hibernação e espere por novas
instruções. Ou talvez ele se contente em consolidar o sistema
de previdência privada que enriquece os ricos, tira o futuro
dos jovens pobres e leva ao desespero os velhos assalariados.

101
LUCIANO MARTINS COSTA

Sinto algum alívio ao me dar conta de que o pesadelo vai


acabar ainda neste dia, quando o avião decolar de Santiago-
Pudahuel. Mas uma sucessão de pensamentos me inquieta:
Quem serei eu ao desembarcar em Estocolmo? Quem será o
homem que irá abraçar Sofia? Que transformações terão se
operado no sujeito que há cinco dias foi internado neste
hotel? Quem é o sujeito desta espera? Quem será o sujeito
que viaja de volta, se o que constitui o sujeito é a experiência
de si mesmo, ou seja, sua memória? Quais lembranças vão
prevalecer quando eu retomar minha rotina em casa? Agora
que sou definitivamente dois, como conciliar o passado que
já não posso ignorar com aquela atmosfera de bem-estar em
que vivia até outro dia? Depois de ter visto outra vez as
dunas de Punta Concón e ter me lembrado do menino
argentino que se chamava Simón Natan Ordoño-Aguilar,
aquele que nunca mais voltou para sua casa, como poderei
outra vez me deitar ao lado de Sofia e dormir serenamente?
Faço a mala com calma e me surpreendo ao perceber que
minhas roupas foram lavadas e estão dobradas, como se a
laboriosa providência tivesse conhecimento de que eu iria
viajar ainda hoje. Tenho algum tempo. Apanho cada peça,
vou organizando no fundo da pequena mala, e encontro o
telefone celular entre duas camisas. Sei bem que isso
significa uma espécie de alforria. Agora eu poderia falar com
Sofia, dizer a ela que estarei a caminho do aeroporto em
poucas horas, inventar uma história verossímil para a
ausência de notícias.
Mas não preciso me esforçar. Alguém já havia se antecipado
para lhe dar uma satisfação. "Seu primo me explicou que
você esteve bastante ocupado, viajando para o Sul", ela diz.
"Eu não sabia que sua família tinha propriedade naquela
região, você nunca me disse", completa. "Ah, sim", respondo.
"Uma antiga chácara do meu avô, totalmente abandonada.
Tive que ir até lá para assinar uns papéis. Há tantos
impostos atrasados que foi mais conveniente transferir a
propriedade para a família que explora as terras", invento. E
me sinto mais livre, como se uma conversa tão distante da

102
CONTRAPARTO

realidade pudesse me transportar do limbo em que fui


lançado para um terreno mais firme, mais denso, mais real.
Então me ocorre que lá onde vive Sofia também não pode
mais haver um lugar para mim. Depois desta experiência de
uns poucos dias que me fez reviver uma existência renegada
há muitos anos, já não posso simplesmente retornar àquela
vida absolutamente feliz, porque entre o presente e o futuro
se interpõe essa memória de um passado que eu desejava
não ter vivido. Essa memória profunda cria um abismo,
como as rachaduras que no meu sonho afastavam o
território chileno do continente, empurrando-o para o mar.
Agora sei que o Chile daquele sonho sou eu mesmo,
inexoravelmente arremessado oceano adentro, como uma
nau de pedra.
A estabilidade que eu construí ao lado de Sofia ao longo dos
últimos quarenta anos está assentada sobre o lodo, a areia
movediça que foi minha curta juventude. Sinto, pela
primeira vez, objetivamente, como viver é muito, muito
perigoso. O perigo está dentro de mim mesmo, e tenderá a
crescer ainda mais quanto mais eu tentar ser feliz, porque
quanto maior meu bem-estar, maior será a perda. A imensa,
insuperável contradição que se revela em minha vida recusa
a felicidade, porque jamais serei capaz de conciliar o fluxo
dos pensamentos e dos sentimentos com a vida exterior,
porque minha memória está definitivamente contaminada
por imagens, sons e odores que ninguém pode suportar.
Meus sentimentos e pensamentos estão contaminados por
essa memória profunda. A dualidade que sou pode se
projetar na exterioridade como a do sujeito que se constrói
indefinidamente, como uma ponte que se projeta sobre o
vazio? Posso seguir adiante, movido apenas pela memória
imediata, por uma representação de mim mesmo e daqueles
que me cercam? Posso encarar os poucos anos que me
restam criando a cada dia uma representação bem
estruturada da vida, como um sujeito que se reinventa a
cada manhã?

103
LUCIANO MARTINS COSTA

Sei que não. Sei que esse é o caminho da loucura, e embora


Swedenborg tenha demonstrado que se pode viver fora do
que a sociedade considera real, não creio possível uma vida
assim em família, uma vida onírica conciliada com as
demandas da vida social e familiar. Posso alimentar a ilusão
de possuir dentro de mim um deus cartesiano que me ajude
a manter a vida de aparências que me espera, mas sei que
essa dualidade é o caminho da catástrofe. Sei que não temos
essência, que a essência a gente persegue, ou garimpa, no
movimento do ser, que a construimos em cada contradição,
dialeticamente. Então, o que virei a ser daqui para a frente,
se não posso sequer produzir uma perspectiva de realidade?
Minha saída é o aeroporto, mas para onde? O voucher que
repousa sobre a mala é salvação ou perdição? Estou fazendo
o caminho de volta ou me afastando demais daquilo que sou
e que, afinal, é tudo que pude oferecer a Sofia e aos filhos?
Não sei exatamente em que ponto desse trajeto eu me perdi
do que poderia ter sido, em que momento da existência
cruzei o portal das dimensões e penetrei neste universo em
que as minhas memórias não servem a quem sou, como se
eu carregasse um estranho dentro de mim e já não soubesse
dizer se vive ele em mim ou se sou eu que habita essa outra
criatura.

12 – VIAGEM

O carro sobe a Rota 68 em marcha uniforme, conduzido por


um homem silencioso, que usa as palavras de forma
comedida, apenas o necessário para deixar claro que está ali,
ao volante, cumprindo seu dever. Entendo que foi instruído
para nada saber sobre mim e não deixar que eu saiba alguma
coisa de si. Dirige com tanta precisão, acompanhando com
suavidade as curvas, sem freadas bruscas, que me imagino

104
CONTRAPARTO

em um desses carros sem motorista que começaram a


circular por aí. De certa maneira, faz lembrar a vida que
levava em Estocolmo: tudo fluindo naturalmente, sem
imprevistos, sem rupturas, de vez em quando uma criança
com febre, tendo ao fundo a certeza de que haveria logo
adiante algum médico disponível, e vivíamos pequenos
sobressaltos como esse com a intensidade que exige o
espírito humano para cumprir sua cota de emoções.
Lembro-me disso e de Sofia, de Estocolmo e seus parques e
bicicletas, sua organização e sua gente bonita e ilustrada,
então me ocorre: Pinochet seria possível na Suécia?
Deixando de lado os imbecis das milícias nazistas, que
compõem a porção de insanidade que toda sociedade
produz, seria possível que um dia a Suécia viesse a escolher
a estupidez como modelo político? Imagino que o estado de
bem-estar pode levar muitos espíritos à exaustão, como se o
tecido social fosse se esgarçando pelo excesso de conforto, e
as pessoas pouco a pouco se tornassem menos tolerantes às
pequenas dificuldades. Então, sim, pondero, sim, seria
possível que uma sociedade imersa em pleno bem-estar
viesse a se enojar de seus privilégios, e num surto de
autoflagelação, resolvesse conscientemente colocar no poder
um tirano.
Mas o súbito alívio que me alcança não dura muito. Ainda
que eu tente alimentar essa perspectiva, porque de certa
forma me conforta, sei que tal circunstância representaria a
impossível convivência, no mesmo ethos, na mesma
identidade social, do desejo de civilização com a escolha
espontânea da barbárie. Uma pessoa que vive entre
oposições metafísicas abdicou da razão, ou foi expelida para
fora da razão. Pode viver em outra dimensão, como fez
Swedenborg ao experimentar os limites da realidade. Mas
uma sociedade não subsiste, não tem autonomia, porque não
produz cultura, se permanecer nesse território indefinido
das oposições metafísicas. Uma sociedade só existe se
rejeitar a barbárie.

105
LUCIANO MARTINS COSTA

Agora, embalado pelo ronco suave e quase imperceptível do


motor do carro, posso revisitar o mal-estar que me dominou
durante estes dias naquele apartamento de hotel. No espaço
obscuro entre oposições metafísicas não pode existir vida
real, a vida como processo de distanciamento da natureza e
construção do homem consciente – a única ambição legítima
de um ser humano. Não se pode ser ao mesmo tempo sujeito
e objeto, concreto e abstrato, razão e loucura. Se a existência
tem uma dimensão trágica, ela se configura nessa
impossibilidade, que no entanto parece ser uma escolha
prazerosa de muitos indivíduos.
Por isso não há mais Chile. O que há é um aglomerado de 13
milhões de contradições metafísicas – salpicadas aqui e ali
por consciências deprimidas, e com esse conjunto não se faz
uma sociedade. Mas isso já não me interessa. O motorista
pergunta se quero parar na Casa Botha, digo que ainda é
muito cedo para almoçar ou tomar um vinho. Talvez mais
adiante, um café. Ele diz: "Millahue, então. Um meringue
delicioso e enorme, ou um bolo, e um café". E se cala. Não
comento, prefiro o silêncio, e mesmo a perspectiva de um
bom café e a possibilidade de esticar as pernas é insuficiente
para me animar a uma conversa mais longa com ele. Sei que
em uma ou duas frases vai deixar escapar o cabedal de
ignorâncias que enfiaram na cabeça dos chilenos nos últimos
anos. Mas também me aborrece o detalhe do "meringue
enorme". Parece que tudo está ficando muito, muito grande,
e essa classe média alimentada a telenovelas cultiva sua
obesidade com muita, muita porcaria. Concreta e abstrata.
A convicção de que preciso repensar minha vida nas
próximas horas incomoda muito mais, agora que me sinto
avançar rumo ao norte. Serão três ou quatro horas de espera
em Santiago-Pudahuel, depois mais 23 horas de vôo para
cobrir os 13 mil quilômetros até o aeroporto em Arlanda,
contando o tempo da conexão em Madri. Em seguida, terei
que percorrer ainda 40 quilômetros entre Arlanda e minha
moradia em Ostermalm, provavelmente o trecho mais
penoso. Imagino o roteiro de um filme no qual o

106
CONTRAPARTO

protagonista retorna para casa, voltando da guerra. "The


Best Years of Our Lives", esse era o título, mas me parece
mais apropriado, porque mais irônico, o nome do livro em
que foi baseado: "Glory for Me", um raro romance escrito em
versos brancos.
Mas a ironia me faz mal. A única possibilidade de
comparação seria a guerra interna que venho travando com
minhas memórias, a batalha de um homem maduro contra
suas próprias lembranças de juventude. Mas não apenas
lembranças: uma realidade que não pode ser simplesmente
negada ou esquecida, porque é parte de mim, do que sou.
Quanto dessa amarga realidade, dessa realidade inaceitável
no campo da razão, terá que ser dissimulada, sublimada,
omitida, talvez embutida num carcinoma, sim, com certeza
seria bem-vindo um câncer que me eximisse da
responsabilidade de continuar vivendo nesse território de
contradições metafísicas. Mas, não. Nem posso contar com
essa felicidade.
Mas posso contar com a discrição do motorista. Ele me deixa
sentar sozinho numa cadeira de plástico, sob um guarda-sol
branco, e desfrutar de um café preto e um merengue
recheado com doce de leite. Um cardápio que Sofia
certamente condenaria, e que aprecio com uma sensação de
quase elegria, é o alívio por estar deixando o Chile
misturado à perspectiva de passar algumas horas suspenso
entre o céu e a terra, o céu e o oceano, antes de ter que
enfrentar uma vida que, imagino, me será absolutamente
impossível.
Mas uma possibilidade se infiltra em meus pensamentos: eu
não tenho obrigariamente que ir para Estocolmo. Não
saberia dizer o que vem primeiro, se essa ideia ou a
lembrança que se conecta a ela: a lembrança do poema de
Borges onde se lê: "Por Swedenborg, que conversava com os
anjos nas ruas de Londres". Então me ocorre que não há
casualidades lineares, que o ser está sempre na interseção
entre o bem e o mal, e essa relação há de se realizar em
triplicidade: a intenção, a causa e o efeito, sendo que o efeito

107
LUCIANO MARTINS COSTA

não será obrigatoriamente resultado de uma causa, mas a


causa virá parcialmente condicionada pela intenção.
Tenho que ir a Londres, não a Estocolmo. Em Londres eu
teria a chance de colocar em ordem os pensamentos antes de
reencontrar Sofia e aquilo que não posso voltar a ser por ter
sido antes o que fui na juventude. Porque a lâmina de
Adolfo Schmidt, ao seccionar a garganta do jovem Simón
Natan Ordoño-Aguilar em Punta Concón, cortou também a
linha da minha existência. Naquela ocasião, eu não sabia
disso, mas agora sei e já não posso simplesmente fingir que
não tenho consciência desse fato.
Talvez em Londres, onde Swedenborg desafiou a razão e se
tornou interlocutor de anjos, eu possa descobrir um meio de
cumprir o que me resta de existência sem ter que admitir o
inadmissível. O carro retomou a estrada há muito tempo e o
motorista guarda um silêncio respeitoso. Não vi passar a
conhecida paisagem de encostas e vinhedos, não me lembro
do sabor do meringue ou do café. Estamos a poucos minutos
do aeroporto, onde pretendo alterar o curso da viagem que
planejaram para mim. Não vou mais diretamente para
aquele casulo onde me ocultei por quarenta anos. Vou fazer
uma pausa para reflexão, uma conexão não planejada, uma
pausa poética demais para ser analisada racionalmente.
Despeço-me rapidamente do motorista junto à calçada da
área de embarque, sem lhe dar tempo de apanhar minha
bagagem. Tento lhe passar uma nota de vinte dólares, mas
ele não a aceita. Amasso o dinheiro contra a alça da mala e
passo rapidamente pela porta de vidro, mas posso ver de
relance outro carro parado logo atrás daquele que me
conduzira até ali, e poderia jurar ter vislumbrado no banco
traseiro o perfil esquálido de Alejandro Ybarra-O'Hare.
Dirijo-me ao primeiro conjunto de sanitários no saguão,
observando as pessoas que circulam por ali, procurando
memorizar a cor de uma camisa, um ventre mais volumoso,
um corte de cabelo. Espero uns poucos minutos sentado no
vaso sanitário, atento ao movimento das pessoas, apenas
dois outros homens que haviam entrado antes, eles logo

108
CONTRAPARTO

saem então fico sozinho mais um pouco. Deixo o lugar,


ainda buscando na memória as características das pessoas
que tinha visto ao entrar, e caminho para o balcão da Latam.
Uma funcionária me informa que posso, sim, fazer uma
conexão extra em Londres, saindo de Frankfurt, porque
faltam alguns minutos para o prazo de três horas antes do
embarque. Digo que pretendo ficar uns dias na Inglaterra e
que depois pegarei a sequência do vôo até Estocolmo. Pago a
taxa correspondente a 7% do valor do bilhete e ela me indica
o salão vip, onde poderei repousar e tomar um lanche. Faço o
check-in rapidamente, porque tenho apenas a bagagem de
mão, e subo até o quarto andar.
Há revistas de negócios, revistas de celebridades, jornais do
dia, pequenos recipientes com castanhas e outras guloseimas
e, principalmente, pessoas que se entreolham com a evidente
intenção de comprovar que estão sendo vistas. É como se
cada rosto fosse um espelho, com um par de olhos que vê e a
superfície polida onde o outro quer ver a si mesmo, num
jogo estranho em que ninguém parece ser uma pessoa se não
houver outro a assegurar que ela ou ele está ali, porque estar
naquele salão é imprescindível para o valor social de cada
um; não apenas estar, mas principalmente deixar claro que
se está, o que se confirma pelo reconhecimento do outro.
É um microcosmo do Chile que conta, aquela minoria para a
qual existe a mídia, pela qual se faz a política e,
eventualmente, também se desfaz a política, substituindo-a
pelo simulacro fascista da política. Chega a ser divertido, por
explicitar essa necessidade de reconhecimento mútuo, e
alguns já passam à fase das auscultações: "Você, para onde
vai?", "Eu desembarco em Madri", "Vou visitar minha filha
em Barcelona", "Não perco a temporada de zarzuelas",
"Passo um mês, não mais, morro de saudade dos meus
gatos".
Meu lugar é uma poltrona de canto, de onde posso observar
o cenário inteiro, distante o suficiente dos vizinhos à direita
e à esquerda para não ter que participar das conversas. Uma
mulher de cinquenta anos alheia-se do marido ao lado e

109
LUCIANO MARTINS COSTA

busca o contato visual comigo, finjo que não percebo,


apanho uma revista peruana, "Caretas", tem um texto
moderno, opinativo, às vezes irônico, nota-se que os editores
se esforçaram para dar algum colorido ao tedioso jogo das
bravatas e negociações que fazem a rotina do poder.
Olho por sobre as páginas abertas, a mulher parece estar
esperando uma oportunidade para chamar minha atenção, e
penso que preciso reservar um hotel em Londres para a
noite seguinte. Apanho o telefone, aciono um aplicativo de
viagens e aparece na tela o Rembrandt Hotel, onde Sofia
esteve uns dias comigo durante um curso da minha pós-
graduação. Foi quando comemoramos vinte anos de
casamento, e lembro que ficava muito perto do Hyde Park, a
pouca distância do Palácio de Buckinghan e de como uma
tarde fui ao Speakers Corner e fiz um discurso só para ela,
uma longa e divertida arenga sobre nossa história de amor
abençoada por Emanuel Swedenborg. Então constato que fui
feliz um dia.
A classe executiva está quase vazia. Dos rostos que pude
vislumbrar na sala VIP, reconheço apenas aquela mulher de
cinquenta com o marido, e mais três ou quatro passageiros.
Aceito uma taça de champanhe e uma seleção de castanhas e
frutas desidratadas. Escolho um filme na tela, mas não me
animo a assistir. "Lucky", a história de um homem que se
defronta com a finitude. Talvez mais tarde, penso, e me
decido por um programa de "pegadinhas" completamente
estúpido.
A mulher de cinquenta observa quando faço meus pedidos,
e parece ansiosa por uma palavrinha, e lamento que o vôo
não seja direto para Londres. Cochilo o suficiente para não
ter que pensar até a chegada a São Paulo. Os brasileiros que
embarcam são ruidosos, todos parecem se conhecer de longa
data, buscam seus lugares trocando brincadeiras como se
tivessem passado o tempo na sala de espera a contar
anedotas uns sobre os outros, um homem de meia-idade
chama outro de gambá, este retruca qualificando-o como
porco, todos parecem se divertir muito com isso, me ocorre

110
CONTRAPARTO

que estavam numa conversa sobre futebol. Quando um


deles, o mais jovem, faz uma piada sobre um político ao qual
falta um dedo da mão esquerda e todo o grupo que busca
seus lugares irrompe em gargalhadas e comentários em voz
alta, me lembro do alemão chamado André Gunder Frank e
sua interessante tese sobre a lumpenburguesia da América
Latina.
Não entendo quase nada do que dizem, porque o português
falado no Brasil contém uma enorme diversidade de tons e
uma palavra pode ter mais de um sentido, segundo a
entonação que se lhe dá, ou a ligação que se faça com um
complemento. Imagino que a celebrizada malícia do
brasileiro nasce nessa língua complexa, multifuncional, que
abre um leque enorme de possibilidades, especialmente
quando vem acompanhada de trejeitos, esgares, expressões
faciais que às vezes reforçam um sentido, outras vezes
propõem o sentido inverso, como se o idioma, em si, fosse
um conjunto de contradições performativas. Imagino que
também a música brasileira se enriquece com essa
prolixidade de significados.
Escolho o filet au poivre com salada verde, batatas sautées e
arroz, acompanhado de um Malbec de Mendoza, Cristóbal
1492 Seleção 2013, para acompanhar o jantar. Traz aromas de
tabaco, sabor que lembra chocolate e defumado, mas sem o
acento fumé que marca alguns Cots chilenos, um pouco mais
duros e rústicos para o meu paladar.
Saboreio cada momento, sem me dar conta de que estou, na
verdade, valorizando o tempo que me resta para o encontro
que devo evitar. O filé vem selado, e noto a inteligência do
autor daquele prato ao identificar um punhado de açafrão ao
lado das batatas e uma fatia de abacaxi no prato de salada.
Antioxidantes acompanhando a carne, como deve ser e
como deveria ser a rotina em todos os restaurantes. Assim
me pego cuidando de sutilezas e detalhes que mantêm meus
pensamentos longe de mim e da ruptura que sou.
Dessa forma ocupo o tempo, apreciando o que pode
conceder a condição material em que me é dado viver. Não é

111
LUCIANO MARTINS COSTA

ocasião de hermenêuticas e ontologias. Lamento apenas que


o vôo não seja direto para Londres, porque eu poderia
repetir o sorvete de tapioca com calda de goiaba, que
brasileiramente me oferece a comissária, – o mais próximo
que um ser humano pode conceber como um manjar dos
deuses – e então dormir placidamente até a chegada.
Dormir, dormir, talvez sonhar, pois abdico do café e, com o
cálice do vinho doce que coroa a refeição, posso invocar
Hamlet, melhor Hamlet que Nietzsche. Um doce Moscatel
do Château Ksara, vindo do Vale de Bekaa, no Líbano.
Apenas me aborrece saber que ainda haverá Frankfurt antes
de Londres.
Mas a algaravia logo se reduz, e o tilintar das taças sendo
guardadas marca o fim da refeição. Finalmente, a classe
média latino-americana adormece placidamente. Eu com ela.

13 – LONDRES

O Hotel Rembrandt fica realmente muito perto de Hyde


Park. Decido comer uma fruta e caminhar por ali. Preciso
organizar meus pensamentos, ou seja, preciso fazer uma
agenda de reflexões. Em poucas horas Sofia saberá que não
fui direto para Estocolmo e não poderei passar muito tempo
sem uma explicação para a demora em voltar para casa. O ar
da cidade está leve, e conforme me embrenho para o interior
do parque, reduz-se o som dos automóveis, distanciam-se as
sirenes que eventualmente cortam o zunido urbano.
Em Londres espero poder mergulhar na diversidade
humana onde, quem sabe? – talvez possa encontrar outro
modelo de mim. Porque já fui mau e injusto, e então me
imaginava o rei do mundo. Depois me tornei bom e justo, e
eis que sou o mais inútil dos seres, tão inútil a ponto de me
tornar em não-ser. Insondável é a estupidez dos bons, disse

112
CONTRAPARTO

Zaratustra. Não há mais metafísica em mim, e um humano a


quem falta toda metafísica é um ponto perdido na
caminhada entre o primata e o primeiro Homo sapiens.
Portanto, vejo-me lançado para seis milhões de anos no
passado.
Não posso simplesmente deixar para trás a barbárie e
caminhar para a civilização, porque o bárbaro ainda vive no
indivíduo que pensei ter chegado a ser. Estou em Londres e
agora me sinto como o símio que chegou à borda da floresta,
no noroeste da África. Se der o passo adiante, ingressarei nas
savanas, onde aprenderei a controlar o fogo, fabricar
instrumentos e dominar o planeta. Se der um passo atrás,
seguirei sendo macaco antropoide, sem direito a banho
quente, ao pudim de tapioca, a um telefone celular com
acesso universal a todas as irrelevâncias que os humanos são
capazes de produzir. Mas não posso ficar indefinidamente
nesta linha divisória do destino, porque em Londres é
preciso escolher.
Também não é coincidência que meus dedos, na busca de
um hotel na cidade, tenham tocado a tela justamente no
ponto em que se oferecia o Rembrandt, junto a Hyde Park: o
lago do parque, sinuoso, é como o trajeto da minha vida, o
parque é o lugar onde muitas famílias acampavam, durante
a peste negra, na esperança de ter suas vidas poupadas.
Também eu caminho por suas aleias, agarrado à crença de
que poderei expulsar da mente o mal que sinto se
aproximar. É como se soubesse, de alguma maneira, que a
escolha a ser feita nada tem a ver com o passado que me
angustia, e essa percepção começa a se apresentar
justamente quando me aproximo do Speakers Corner, onde
um homem idoso, vestido à moda do século 18, faz uma
preleção para algumas dezenas de transeuntes também
trajados à maneira antiga.
Sinto, de imediato, calafrios e tontura e percebo que de meu
corpo sobem vapores, como se estivesse saindo da sauna
para o ambiente exterior em pleno inverno. A cinquenta
metros do pequeno tablado de um metro de altura, de onde

113
LUCIANO MARTINS COSTA

discursa, ele se volta e aponta para mim: "Vejam, eis o


homem do futuro. Ele pode confirmar facilmente o que estou
dizendo". Quando passo ao lado do grupo, quase envolto
numa pequena nuvem, ele se dirige diretamente a mim:
"Então, meu bom homem, diga-nos se é verdade que o
mundo acaba na alvorada do século 20". Sem hesitar, paro,
volto-me para ele e respondo: "Eu vivo no século 21. Pelo
que sei, o mundo não acabou, apesar das guerras sem fim,
das pragas que se renovam, da insensatez humana". E minha
voz parecia sair por sua boca.
O orador se volta para a plateia e gesticula, como
evidenciando a verdade que acabava de proferir. Em
seguida, virado novamente para mim, faz outra pergunta:
"Diga-me, bom homem, acaso a ciência confirmou minhas
afirmações, feitas neste ano do Nosso Senhor de 1734, na
obra que intitulei Principia, de que os planetas do sistema
solar foram nascidos de partículas lançadas pelo sol, em
movimentos espirais, assim como planetas de outros
sistemas semelhantes? Da mesma forma, pode dizer se
foram confirmadas minhas hipóteses sobre a teoria atômica e
a natureza ondulatória da luz?"
Imaginando ainda se tratar de uma performance artística, e,
sabendo exatamente de quem ele estava falando, respondo:
"Sim, senhor. O astrônomo britânico Thomas Wright, seu
contemporâneo, copiou sua obra; Immanuel Kant, que o
senhor veio a conhecer, escreveu um estudo mais profundo
sobre sua teoria nebular e, ainda antes do século 19, suas
ideias se tornaram conhecidas como Teoria Nebular de Kant
e Laplace; o francês Pierre-Simon Laplace fundamentou sua
intuição com teoremas que criaram uma nova cosmologia e,
no começo do século 20, o judeu alemão chamado Albert
Einstein consolidou definitivamente esse conhecimento com
formulações revolucionárias sobre a gravitação. Ainda no
primeiro terço do século 20, sua teoria atômica era
amplamente conhecida, deu origem a uma fonte de energia e
gerou uma arma poderosa, capaz de oferecer outra resposta

114
CONTRAPARTO

à sua primeira pergunta e acabar de vez com este mundo, ou


pelo menos com a vida humana que empesteia o planeta".
Ouço rumores enquanto me afasto dali. O homem do
palanque é aplaudido enquanto parece encerrar seu
discurso: "O espírito desse homem viajou no tempo trazendo
apenas o espectro do seu corpo, para nos oferecer as
respostas do futuro. Quem ainda duvida de que a alma
humana pode transitar com segurança pelas eras?"
Interrompo a caminhada para observar melhor e constato
que não há mais ninguém, nem o orador nem sua plateia de
coadjuvantes fantasiados. Por ali pode-se ver apenas o
costumeiro movimento de turistas. Também já não sinto
calafrios ou tontura e a nuvem de vapor que emanava de
meu corpo desaparece. A sensação de leveza, quase
incorpórea, que sentia até poucos minutos atrás é substituída
gradualmente pela percepção de um peso que cresce e
cresce, como acontece quando a gente está num elevador
que acelera para cima.
Apresso o passo e volto ao hotel. Enquanto caminho, tento
me concentrar naquele acontecimento. Tenho a convicção de
que conheço aquele homem, mas não é possível que eu o
tenha realmente visto minutos atrás discursando no Speakers
Corner. Ao ingressar no saguão do hotel, estou seguro de que
aquele homem é Emanuel Swedenborg, que morreu aqui
mesmo, em Londres, no dia 29 de março de 1772.
Para onde fui naquele instante? Para a mesma esquina do
Hyde Park, no ano de 1734? Para onde foi minha mente?
Teria sido para isso mesmo que decidi parar em Londres?
Sei, intimamente, que preciso de um lugar onde possa
reorganizar minha consciência, e esse lugar é Londres. Aqui
talvez possa encontrar minha essência, se é que um dia tive
uma essência. Então — quem sabe? — eu possa apanhar o
tênue fio da minha humanidade e começar a caminhar de
volta para o núcleo original da minha existência.
Sinto-me cansado, como se estivesse retornando de uma
longa peregrinação. Cansado e solitário, solitário como só se
pode ser em Londres, onde as pessoas nunca se miram nos

115
LUCIANO MARTINS COSTA

olhos, onde é possível integrar uma horda de hooligans


bêbados e ser ao mesmo tempo um indivíduo isolado.
Minha cabeça parece dividida ao meio, meus ombros pesam
como se eu tivesse caminhado quilômetros e quilômetros
com um fardo nas costas; sinto ao mesmo tempo frio e calor,
e ainda tenho na lembrança as palavras do homem que
discursava no parque: "Vejam, eis o homem do futuro". Mas
que futuro, se não consigo encarar meu passado e, por
consequência, não posso viver meu presente? Gostaria muito
de me atirar na cama e dormir. Dormir, morrer, talvez
sonhar. Então, do sonho, nascer outra vez, correr para os
braços de Sofia e me entregar, pela primeira vez e
definitivamente, ao bem-estar que nunca pude aceitar por
inteiro.
Mas ressuscitar, eu, que vivo num sepulcro? Apenas onde há
sepulcros há ressurreição, disse o filósofo, então me ocorre
que essa é a esperança que me resta. Mas essa esperança não
pode se realizar sem a experiência da morte. Tenho que
eliminar todos os traços do que fui na juventude para vir a
ser pelo resto da vida aquele homem que era o marido de
Sofia, o burguês tranquilo, civilizado, bom pai, avô
carinhoso, pacífico, incapaz de suportar injustiças.
Lembro que um dia acreditei em Deus. Um deus soberano e
discricionário, que sabia diferenciar os bons e justos do resto
da humanidade. Os bons e justos podiam fazer o que bem
entendessem como justo e certo, porque, no extremo de suas
ações estavam defendendo o legado divino contra a barbárie
e a estupidez dos igualitários. Portanto, era justo e certo
eliminar aqueles que subversivamente desejavam repartir
com a ralé os privilégios merecidos por nós, outros, que por
séculos havíamos protegido a boa doutrina no íntimo de
nossos lares, de nossos clubes exclusivos e nossos quartéis.
Enquanto acreditei nesse deus, não precisei imaginar outras
verdades. Mas Sofia inseriu em minha vida o paradoxo
fundamental, porque deduziu que eu era um chileno exilado
pela ditadura e se compadeceu. Então ocorreu a empatia, na
leitura de Swedenborg; em seguida, naturalmente, o sexo

116
CONTRAPARTO

que em tudo se diferenciava dos intercursos carregados de


culpa, quase roubados, a forma de relacionamento íntimo
entre duas pessoas que conheci no Chile. Deixei-me levar,
permiti que ela continuasse acreditando que eu era o que
nunca poderia ter sido, e o engano se fez rotina e verdade.
Sinto-me miserável, porque não posso preservar essa ilusão
e ao mesmo tempo não tenho coragem de dizer quem fui,
quem sou realmente e até que ponto absurdo permiti ser
arrastado pela insanidade que governou os chilenos durante
minha juventude. Se ao menos o Chile tivesse olhado para
suas culpas e admitido a necessidade de virar a face e
encarar a vergonha de sua história, eu poderia, em um
momento especial e adequado, levantar o dedo e dizer para
Sofia: "Eu também, eu também cometi crimes".
Mas os chilenos que ainda raciocinam afundam cada vez
mais no cinismo, enquanto a maioria retrocede para a
floresta ancestral, manada de alienados. Sobre eles ainda
paira o espírito santo daquele deus que tudo justifica, desde
que você saiba se persignar e dizer alguns mantras. Não
importa se as massas idiotizadas agregam a suas rezas
outras crendices, o que interessa é que acima de tudo esteja
presente essa figura protetora das más consciências.
E Deus? Que dizer de sua culpa em toda essa miséria? O que
ele diria em sua defesa? Talvez a grande verdade esteja
numa anedota de Stendhal: "A única desculpa de Deus é não
existir". Sim, não existir, ser uma fantasia que o homem criou
para justificar sua própria maldade, talvez seja a melhor
conjectura para a contradição metafísica da natureza de
Deus. O paradoxo que neutraliza a contradição primordial: a
mais honesta, a mais higiênica, a mais cristã, é a hipótese do
ateu.
Seria essa também a minha única saída? Simplesmente não
ser? Mas deixar de existir não é não existir, é ter sido e deixar
de sê-lo para ser o outro que poderia ter sido desde o
princípio. Sempre há um demais comigo, diz o solitário. O
outro é quem quero ser. Por isso sinto agora a compulsão de
caminhar de volta à origem da minha existência até o ponto

117
LUCIANO MARTINS COSTA

em que, ainda não havendo, possa deixar de vir a ser,


desviando-me, em outra dimensão, para o que experimentei
depois que conheci o amor em Sofia, e nela a humanidade.
Sim, isto me parece um caminho menos penoso para as
reflexões que preciso conduzir. Para isso devo estar só,
preciso me assegurar de que ninguém fale ao meu lado, de
não permitir que sequer pensem nas minhas proximidades,
como o filósofo, para que meus pensamentos sejam livres,
para que todo o meu organismo esteja empenhado nessa
tarefa de reencontrar minha essência. É bom estar aqui em
Londres, e talvez tenha sido a melhor decisão que tomei
desde que parti, porque nesta cidade impessoal cada ser é
uma ilha.
Estando só, posso reorganizar meus pensamentos no sentido
dessa construção. Talvez, de Swedenborg a Bergson, eu
possa encontrar na espiritualidade, que sempre reneguei,
algum fundamento para fugir ao determinismo do tempo
vivido e reinventar um tempo futuro. Devo tomar posse
dessas reflexões e evitar algum desvario. Mas não conheço
palavras capazes de demarcar cada uma das etapas desse
caminho, muito menos de significar os momentos em que
me fui desviando do que era, do que deveria ser, para me
tornar o que fui, o que sou, e que é inadmissível.
Mas onde fica a espiritualidade? Como Swedenborg, posso
enlouquecer e me transferir para outro estado da existência,
onde a razão tem outro sentido sem deixar de ser razão. As
razões do espirito, ele as procurou primeiro no sangue e nos
demais fluidos do corpo. Quando se esgotaram todas as vias
físicas para o lugar da alma, ele se mudou para o território
inefável dos espíritos. Também terei que me transferir para
outro plano, a fim de me encontrar?
Mas antes de mudar, é preciso romper o ciclo que iniciei ao
me apartar da condição humana. O momento da ruptura,
quando me exilei da humanidade para me tornar o que fui,
esse momento estaria mais bem conduzido ao som de
"Tannhäuser". Porque eu me considerava superior, por haver
experimentado a volúpia da violência como quem se

118
CONTRAPARTO

compraz com o sexo das deusas, um ser acima do bem e do


mal, ou melhor, tão convictamente a serviço do suposto
bem, um bem tão incontestável que o mal resultante de suas
ações se justificava pelos fins. Foram os outros, foi a viagem
a Estocolmo, foi Sofia e aquele maldito estado de bem-estar,
tolerância, civilidade, que vivi na Suécia, que me fizeram
perceber como barbárie o estado de barbárie em que
vivíamos no Chile. Retornar, para seguir adiante?
O prelúdio de Tristão e Isolda, do mesmo grandiloquente
Richard Wagner, seria a trilha sonora desse trajeto rumo ao
princípio, onde eu poderia compreender tal questão
primordial: como alguém se torna o que é? Essa é uma
questão que na minha juventude conturbada eu nem
suspeitava existir, o que pressupõe que nem de longe podia
saber quem ou o que eu era. Ou um poema — já que um
verso de Borges me lançou neste labirinto —, provavelmente
o poema de Alexander Pope, pois me encontro nesta profunda
solidão e prisão terrível, onde habita a contemplação celestial do
pensamento, ansiando pela imensa felicidade da virgem sem
culpa, esquecendo o mundo e pelo mundo esquecida, esplendor
eterno de uma mente sem lembrança. Ou seria o esquecimento
segundo o filósofo? Bem-aventurados aqueles que esquecem,
porque acabam esquecendo-se também da insensatez que
cometeram.
Há uma cesta de frutas na mesa do meu quarto. Apanho a
maçã e contemplo sua casca lisa e brilhante. Imagino a
polpa, seu sabor levemente ácido, sua textura macia. Nego-
me a dar a primeira mordida porque sei que esse é o
momento de que preciso para interromper o fluxo de meus
pensamentos. Preciso me concentrar para entender o que foi
aquele episódio bizarro no parque. Sei que o homem que
discursava no Speakers Corner não podia ser Swedenborg, sei
que aquilo foi um delírio, ou apenas me distraí e não vi
quando o artista e sua plateia se dissolveram entre os
turistas.
Mordo a fruta, e o sabor é levemente ácido. Sua polpa tem
uma textura macia, suculenta, não esfarela. Olho-me no

119
LUCIANO MARTINS COSTA

espelho em busca de sinais de estresse, mas meu olhar é


sereno, a imagem é até curiosa, eu com a maçã diante da
boca. Não saem vapores de meu corpo, simplesmente
porque as pessoas não andam por aí emitindo nuvens. Tudo
está bem, vou tomar um banho e dormir. O único vapor que
percebo é o da água quente lavando minha alma. Amanhã
caminharei por Londres, amanhã pensarei em mim.

14 – AMALIEL

No meio da noite, me dou conta de que Sofia pode rastrear a


conta do meu cartão de crédito e descobrir onde estou
hospedado. Por isso, logo após o café da manhã encerro a
estadia e saio para a cidade, arrastando minha pequena
bagagem. Sei que devo obter o perdão, ou pelo menos a
compreensão de Sofia e de meus filhos, porque tudo
começaria a apodrecer se eu me sentasse em cima desse
entulho. No entanto, como pedir perdão se não consigo me
perdoar?
Dirijo-me à estação de South Kensington. Penso num lugar
como Greenwich, onde estive algumas vezes com Sofia
quando fazia um curso na London School of Economic and
Politic Sciences, ou Woolwich, onde também se encontram
boas alternativas a preço razoável. Imagino que numa região
onde se concentram estudantes eu possa ser tido como um
passante anônimo. Os jovens costumam andar tão ocupados
consigo mesmos que provavelmente não notariam um quase
velho nas redondezas.
Que não me alcancem com suas palavras, que não me
percebam, que eu mesmo me esqueça de mim, essas são as
condições para que eu encontre a mim mesmo. Sabedor de
que o homem é apenas passagem, entre o símio e o ser do

120
CONTRAPARTO

futuro, quero descobrir onde me encontro nesse transe, para


conversar comigo mesmo, e então decair para a velhice e o
final. Sei que não posso seguir adiante, não posso cumprir
esse ciclo natural, sem revisitar com profunda honestidade o
que fui, o bárbaro que fui, o troglodita, o anti-humano, sem
fazer essa genealogia do mal que se tornou o Chile, e eu nele.
Preciso dessas condições para merecer o amor de Sofia e de
meus filhos, para ao menos suportar estar em mim.
Se, de fato, o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma
passagem e um declínio, por que eu não teria direito a ser essa
passagem, essa decadência, para envelhecer sem envilecer,
ao lado da mulher que imagino que amo? Quero essa leveza,
esse direito ao esquecimento, para criar uma nova ficção que
possa chamar de vida. Fui, na juventude, o leão que captura
a liberdade, fui senhor em meu próprio deserto ainda antes
de ser o camelo que carrega o fardo de existir. Mas não
enfrentei o dragão das impossibilidades, o "não-farás",
apenas disse "eu quero", e fiz o que quiseram que fizesse.
Agora preciso que o espírito leão se torne criança mais uma
vez, porque inocência é a criança, esquecimento, um novo
começo.
É exatamente por isso que anseio: pelo retorno à inocência
anterior ao pecado contra a humanidade. Alguém que
praticou, testemunhou ou simplesmente se omitiu diante do
contraparto pode almejar a inocência? E se negar a existência
de Deus, o que resta como referência sobre o que é certo, o
que é errado? Como olhar para o alto, sem uma ideia de
Deus, ainda que apenas mito? É preciso acreditar na
existência da alma porque é o único meio de comunicação
com o transcendente — o que expele o indivíduo para fora
da condição humana é a negação da alma, não a negação de
Deus.
Se existe um Deus, ele certamente criou o homem só porque
estava entediado com a eternidade. Como uma criança que
olha seus peixinhos no aquário, deve ficar triste quando um
deles morre; sim, também o criador se entristece com suas
perdas, mas ao mesmo tempo se alegra, porque logo haverá

121
LUCIANO MARTINS COSTA

outros peixinhos que ele vai ver nadando, e comendo e


morrendo, e assim preenche o tédio de sua eternidade com
nossa finitude. Vive, por assim dizer, em instantes, a curta
transitoriedade de seus peixinhos, e assim pode ter uma
percepção do tempo e é a única coisa que conhece dos
homens. Sem o homem, Deus nem sabe que existe.
Carregando essas reflexões, caminho por Woolwich, com um
mapa da cidade e o endereço de uma pousada. Sei muito
bem dos riscos desse esforço. Sei que coloco minha sanidade
em perigo quando me dedico a transmudar sofrimento em
conhecimento, em busca de uma nova consciência de mim.
A recepção da pousada, tranquila, renova minha confiança.
Peço um quarto no primeiro andar, fundos, longe do
refeitório e da rua. O preço de uma diária no Rembrandt
paga quase a semana aqui, pois adianto um mês de
hospedagem com o dinheiro que saquei no caixa eletrônico
aqui em frente. Assim, Sofia vai demorar um pouco mais
para me localizar.
Uma cama larga e confortável convida ao repouso depois
que as poucas roupas que carrego são distribuídas por
gavetas e cabides. O sono vem delicadamente, relaxando os
músculos doloridos das pernas e das costas. O lugar é
silencioso, uma cortina estampada com cenas de caça em
suaves tons de verde e bege é suficiente para cortar a luz
externa, e me sinto próximo da serenidade que procuro.
Então, ainda desperto, percebo o espectro de um homem,
que se revela como uma mancha suspensa sobre a cômoda,
bem diante de mim, junto à parede oposta. "Sou Amaliel",
ele diz. Percebo que outra vez meu corpo emite um vapor
esbranquiçado, como uma nuvem particular a me envolver.
Sinto um cheiro adocicado que lembra o jasmim. "Sou
Amaliel, seu guia nesta peregrinação em busca do que
transcende aquilo que você é. Mas só poderemos seguir
adiante se você admitir a existência do mistério. É possível,
para você, pensar um deus? Ou conversaremos sobre deuses
mais antigos?"

122
CONTRAPARTO

"Os judeus inventaram o deus único por pura preguiça, e


para economizar velas", ele continua, num tom mais afável.
"Mas os romanos criaram a inflação de santos, e assim
desequilibraram outra vez a economia do sagrado". E sorri,
mas não vislumbro sua face, percebo apenas seu sorriso e o
odor de jasmim, que parece se espalhar por todo o ambiente.
"Deus é único e múltiplo, porque pode se revelar de todas as
maneiras", acrescenta. "Você aceita esse postulado?"
Não preciso responder. Ele mesmo responde: "Neste
momento, você não pode pensar em um deus, porque sua
alma foi sequestrada por um huecufe há muito tempo". Nada
digo, mas lembro das histórias de terror contadas pela velha
ama mapuche na casa de meus pais, sobre o ser maligno que
ronda as casas enlutadas para roubar o espírito dos mortos.
Penso ponderar que tampouco acredito em mitos indígenas,
e Amaliel, ou aquele espectro que diz chamar-se Amaliel, ri
do meu espanto e desaparece.
No entanto, ainda ouço sua voz em minha cabeça, como se
estivesse usando um par de fones de ouvido: "Sou o anjo da
virgindade. Fui enviado para iniciar sua alma no processo
do renascimento" — e soa mesmo como uma voz humana,
natural, até um pouco professoral, como alguém que
conversa com uma criança. "Você não precisa acreditar em
Deus, já que se trata de criar para você uma alma que nunca
teve ou que perdeu muito cedo. Uma alma virgem".
Ocorre-me uma frase do filósofo: "Eu acreditaria somente
num deus que soubesse dançar", e tudo isso me parece
absurdo, ao mesmo tempo em que me dou conta de que não
há distinção entre o que penso e o que parece entrar pelos
meus ouvidos: "É necessário nascer de novo, superar o
homem que precisa de um deus, pois o homem dependente
de uma ideia de deus deve ser superado, e o homem comum
sabe que será superado, por isso inventa os deuses" — e já
não consigo dizer se penso isto ou se Amaliel pensa por
mim.
A terra está inchada de supérfluos, a vida é deteriorada
pelos excessivos, portanto é necessário afastar do convívio

123
LUCIANO MARTINS COSTA

dos homens verdadeiros aqueles que anseiam por uma vida


eterna, e só por isso venho a você, porque você não pode
esperar pela vida eterna. Tudo a que ainda pode aspirar é a
alguma vida, pois a que você construiu é uma farsa. A
verdade nunca andou ao seu lado, pois a você foi dado o
direito de escolha e você escolheu o mal, tomando-o por
bem. Mas, como a humanidade é um ensaio, não uma
determinação, ter andado em erro por sua própria escolha
representa algum valor, pois pequeno é o homem que não
tem vontades nem faz escolhas, e você fez escolhas, ainda
que eventualmente equivocadas.
Portanto, no seu caso não importa nem um pouco se existe
ou não um deus. O pior inimigo que você pode encontrar é
você mesmo. A culpa que você carrega é imensa, e apenas o
mais perverso dos deuses a poderia suportar. Já pensou
nisso? — Penso, alguém me pensa, logo existo, sim, entendo
perfeitamente o que isto significa, mas também sei que só
posso vivenciar a mim mesmo, ainda que pelos olhos dos
outros. Aqueles que só conseguem se pensar diante de um
poder divino são fracos, são os excessivos, os descartáveis
para os quais é preciso manter o mito da vida eterna, porque
não lhes basta a vida como é.
Mas no momento, o outro sou eu mesmo ou mescla-se
comigo este que diz chamar-se Amaliel? Já não sei, nem
posso desejar esse conhecimento, porque minha necessidade
é exatamente o contrário: preciso me desfazer do que sei, do
que fui, então se desenha em minha mente o rosto de
Amanda e tudo se torna ainda mais doloroso. Percebo que
estou sentado em um caixote, no beco ao lado de um
restaurante. A face de Amanda rompe o transe, e sinto fome.
O cheiro de fritura torna a fome insuportável, então me
levanto e caminho para a rua em frente, viro à direita e
busco uma mesa vazia.
Peço um prato simples, o que há de mais corriqueiro, uma
contrafação de frango ao curry como o que se oferece em
milhares de falsos restaurantes indianos de Londres, e aceito
a tentação de uma cerveja densa e amarga. "Half pint", digo, e

124
CONTRAPARTO

fico ali a observar o movimento. As pessoas que passam não


têm a menor importância: estão todas mortas. Nenhuma
centelha, nenhuma aura, nenhum olhar luminoso, apenas as
faces macilentas de quem anda cansado da vida. Mas no
lado oposto da rua passa um homem velho, muito velho, tão
idoso quanto a velha Aubion, e parece haver nele mais vida
do que nos jovens que cruzam, risonhos e falantes, o
horizonte da minha visão. Que me importa? Amanda ainda
domina todo meu entendimento, e a vejo, bela, caminhando
ao meu lado no bairro Paris-Londres, em Santiago, ela, sim,
iluminando o mundo ao redor, e ao redor era tudo escuridão
mas eu, cego, não sabia porque não conhecia a luz. E, por
desconhecer, temi sua luminescência, porque intuitivamente
sabia que aquele brilho iria revelar o que eu era.
O que era? O que você é. Você, por acaso, pode se negar a
ver dentro de si? Você viveu a juventude como o indivíduo
pré-histórico, anterior à moral, para quem os atos do homem
são considerados por suas consequências. Depois, saltou
para uma sociedade pós-moral, onde as ações humanas são
medidas pela ética. Imagina que pode seguir vivendo assim,
como se não tivesse que prestar contas a si mesmo de todos
os males que praticou? Sou Amaliel, o primeiro visitante; se
quiser prosseguir em busca de si, você tem que voltar atrás e
reviver seus atos imorais. Só depois disso poderá ir em busca
de sua consciência, revirginada. Você lembra?
Sim, eu me vejo na Ilha Dawson, no Estreito de Magalhães,
desembarcando de um helicóptero da Marinha, ajudando a
descarregar numa cadeira de rodas o tenente Alejandro
Ybarra-O'Hare. Estávamos chegando para um fim de
semana esportivo. Tínhamos meia dúzia de visitantes
ilustres, dois americanos, dois brasileiros, um argentino, um
alemão vindo do sul do Chile. Era a primeira temporada de
caça humana, que, pelo que sei, nunca se repetiu.
Sim, eu me lembro do excelente almoço servido aos
visitantes, lembro do passeio para observar os prisioneiros.
Foram selecionados uns poucos, colocados à frente de um
dos barracões. Um jovem oficial apontou de longe, um por

125
LUCIANO MARTINS COSTA

um, fazendo um breve relato, dizendo "aquele é filósofo, o


outro ao seu lado é o ex-secretário de um sindicato, o mais
alto, de gorro, é ator de teatro, no outro grupo estão dois
advogados, um ex-ministro e junto com eles, de cachecol,
um arquiteto". O empresário brasileiro perguntou: "Algum
deles é judeu?" — e o militar apontou três ou quatro, então o
publicitário, também brasileiro, riu e comentou: "Você não
quer encrenca, é isso?", ao que o empresário emendou: "Isso
mesmo. Deixem os judeus nos alojamentos. Vamos precisar
só de dois ou três para cada um de nós".
Todos tinham trazido armas de precisão, com miras
telescópicas, exceto o publicitário. Este carregava uma
pistola automática — segundo disse, a mais valiosa de sua
coleção de armas —, e uma antiga balestra italiana do
começo do século 19, com setas modernas de metal no
alforge de couro. O resto do dia foi gasto com caminhadas
pela ilha, visita à igreja que fora reformada pelos internos.
Lembro que o publicitário dobrou levemente os joelhos e se
persignou ao entrar, e ainda me surpreendo por não ter
estranhado esse detalhe na ocasião, considerando-se o que
estava para acontecer.
Doze prisioneiros foram chamados para um coquetel de
boas-vindas aos visitantes. Lembro claramente, agora, as
expressões desconfiadas de uns, o sorriso descontraído de
outros, quase todos convencidos de que o esvaziamento do
campo estava em curso e que em breve voltariam ao
continente, onde poderiam ser visitados por seus familiares.
A conversa transcorreu de maneira amistosa, com
provocações leves sobre assuntos banais, até que o
publicitário questionou um dos presos, jovem filósofo,
dizendo que a filosofia deveria ser banida das escolas,
porque perpetua certas ilusões sobre o sentido da vida. O
prisioneiro retrucou, dizendo que pior do que alimentar
certas ilusões é a perspectiva derrotista dos que abdicam de
pensar livremente. Fiquei impressionado com sua coragem,
pois não podia ignorar a situação de extrema
vulnerabilidade em que se encontrava, e, mesmo consciente

126
CONTRAPARTO

de que qualquer palavra poderia significar sessões de tortura


ou até a morte, defendeu vivamente seu ponto de vista. Eu
era jovem como ele, e me senti um velho derrotado sem luta.
Justamente por isso, desenvolvi por aquele indivíduo um
ódio imediato.
A conversa se encerrou com o publicitário brasileiro, em pé,
propondo um brinde à verdade. "Hoje mesmo vou provar
para você que é melhor viver uma convicção equivocada do
que morrer pela liberdade da dúvida". Mais não declarou
porque uma cotovelada de O'Hare, seu vizinho de mesa, o
fez perceber que estava passando dos limites. Fazia parte do
jogo deixar os alvos tranquilos, por isso ele se dirigiu a outro
integrante do grupo de prisioneiros, o ator. "E você, também
acha que o teatro é necessário, como este que defende a
filosofia nas escolas?" — O ator, um homem de seus
quarenta anos, respondeu com uma frase que agora
ricocheteia em minha mente: "Mas não é isto exatamente um
palco? Não é esta a perfeita tragédia da estupidez latino-
americana?" — e o coquetel terminou abruptamente.
Os prisioneiros foram conduzidos de volta aos barracões,
mas ficaram isolados dos demais. Uma hora depois, quando
escurecia, um comando os retirou e tangeu, aos trancos, para
o bosque cuja borda ficava perto da igreja. O tenente O'Hare
disse apenas que eles tinham meia hora de vantagem. Quem
estivesse de volta àquele local às seis da manhã ganharia um
lugar no primeiro transporte para Punta Arenas. Alguns
perguntaram o que iria acontecer aos outros, mas foram
empurrados para a mata. O ator foi o único que se recusou a
caminhar e levou uma coronhada que abriu um corte em sua
testa. Em menos de dois minutos, todos tinham se
embrenhado por trilhas entre as árvores baixas, em fila
indiana. Não os vi quando se separaram, não sei sobre o que
conversaram, porque fiquei distante, junto com os visitantes.
"O filósofo e o ator são meus", disse o publicitário. E acendeu
um charuto.

127
LUCIANO MARTINS COSTA

15 – ANAND

Sou testemunha desse horror porque me deixei conduzir


além do ponto de controle. Vejo-me agora na curva do
eterno retorno, e compreendo que estou condenado a este
círculo para sempre, ou até me tornar capaz de experimentar
toda a carga de ódio e desprezo que aqueles fatos deveriam
suscitar. Entendo que não adiantaria dormir, mas imagino
que posso furar esse bloqueio com duas ou três doses de
uísque. Volto ao hotel a passos lentos, sob a garoa fina que
limita a poucos metros o alcance da visão, e isso não faz
diferença, pois as únicas cenas que vejo são aquelas do dia
da caça, que se desenham em meus olhos emolduradas pela
neblina.
Elas se repetem continuamente, a partir do ponto em que os
caçadores faziam as escolhas de seus alvos, e não consigo
controlar meus pensamentos. Vejo-me outra vez descendo
do helicóptero, ouço todas aquelas conversas, até o momento
em que o caçadores fazem suas escolhas. O ciclo se repete até
eu me atirar na cama, e antes que me disponha a levantar e
apanhar a garrafa no armário, percebo o vapor que exala de
meu corpo e a figura que se desenha no ar, diante de meus
olhos. "Sou Anand", diz o espectro — e já não sinto
estranheza. "Sou o anjo da beatitude e devo conduzir seu
espírito para a compreensão do que pode ser a felicidade".
Não me questiono mais sobre a minha sanidade. Relato o
que me resta de percepção, enquanto acontece, e o faço em
tempo presente pelo simples fato de que, neste exato
momento, ainda experimento o estado de dupla realidade e
não poderia dizer de outra maneira. Posso me alegrar
porque tudo isto acontece sob um céu vazio, pois reviver

128
CONTRAPARTO

esses acontecimentos debaixo do escrutínio de uma crença


religiosa seria insuportável. Sigo com a narrativa porque não
há outra coisa a ser feita. Estou agora refém de outro anjo, ou
sou eu mesmo que busco, em algum recôndito armazém de
ideias, resquícios de especulações filoteológicas de
Swedenborg?
Tenho que me esforçar para manter o espírito ao alcance dos
pensamentos. Quero dizer, preciso crer que ainda existe em
mim alguma essência que busca a superfície da vida, certa
leveza associada a uma grande vontade de ser senhor de si e
da circunstância, apenas o suficiente para assegurar que
nenhum mistério, nenhum fenômeno, venha a perturbar
essa paz constituida de não saber. Esta perda de controle
sobre o direito de não saber me assusta mais do que a
imperiosa necessidade de vasculhar meu passado
inadmissível, inaceitável e incompatível com a condição
humana.
"A beatitude só pode ser alcançada pela abdicação da
condição humana", observa Anand. "Abdicar dessa condição
é o mesmo que renunciar a esse dilema, e então você será
capaz de se perdoar", continua. Mas sei que também os anjos
dissimulam suas intenções, como alerta Swedenborg. Há
uma razão até mesmo na metafísica de anjos e demônios,
pois eles têm a mesma origem, e invejam os humanos. O
engodo fica muito claro porque sei que não posso mais
abdicar da condição humana, com toda sua carga de
angústia, porque perdi a possibilidade de acreditar em um
deus, pelo simples fato de que essa crença aumentaria ainda
mais minha angústia.
De qualquer maneira, já não me impressionam essas
pirotecnias de vapores exalando dos poros, de espectros que
cruzam os séculos e de anjos que vêm falar aos meus
ouvidos. Levanto-me e me sirvo de uma dose generosa de
uísque. Um copo de água ao lado me ajuda a manter a
temperança. Pois sei que não sairei deste círculo enquanto
não tomar o controle das minhas memórias mais funestas.

129
LUCIANO MARTINS COSTA

Anand, puxe uma cadeira, ou, se preferir, fique aí flutuando


e depois me diga se é possível algum momento de beatitude.
Será possível alguma felicidade, alguma capacidade de ficar
contemplando beatificamente a face de Deus, depois de ter
participado daquela caçada na Ilha Dawson? Sei que não, e a
única estranheza que resta é o fato de eu não haver trazido à
lembrança esses fatos nos últimos quarenta anos, e ter vivido
por tanto tempo a ilusão de que esses fantasmas estavam
enterrados no fundo do oceano ou espalhados na poeira do
deserto de Atacama.
Esses são os acontecimentos que é preciso trazer à razão: a
caçada durou pouco, porque os alvos não conheciam o
território da ilha, não tinham roupas apropriadas para
enfrentar o frio nem calçados adequados para evitar os
cepos, as armadilhas do terreno. Mas também porque não
possuíam a inteligência instintiva dos animais: eram por
demais civilizados, eram representantes da casta que
primeiro rompeu a borda da floresta no noroeste da África e
enfrentou as savanas. Nós, os caçadores de Dawson, somos
aqueles que ficaram para trás no processo civilizatório,
somos aqueles que se beneficiam da modernidade mas
seguem sendo macacos antropoides. Somos aqueles que
caminham eretos mas deixam no chão pegadas de macacos e
sujeiras de macacos.
Cada caçador tinha que localizar seus alvos, e não podiam
disparar nos alvos dos outros. Assim foi que o valente
publicitário brasileiro, armado apenas com a balestra e sem
sacar do coldre a pistola automática, passou pelo arquiteto,
que estava encolhido e tremendo ao pé de um ñirre, e tinha o
rosto todo arranhado pelas ponteiras da árvore. Ele o
apanhou pelo braço e o fez caminhar consigo para dentro do
bosque, segundo disse mais tarde, para dificultar um pouco
a tarefa de seu oponente. Tenho que parar aqui para
explorar o aspecto lúdico que representava aquele exercício:
o oponente não era a caça, mas cada um dos outros
caçadores; no caso, o membro do grupo que tinha escolhido
o arquiteto como alvo. Então, o publicitário arrastou o

130
CONTRAPARTO

homem trêmulo e frágil e o enfiou num buraco, cobrindo-o


com folhas secas. Em seguida, continuou no rastro daqueles
que havia escolhido.
O ator foi localizado menos de dez minutos depois, quando
já se tinham ouvido três disparos. Aparentemente, tinha
corrido pelas trilhas até uma pequena elevação, onde
simplesmente parou e ficou esperando. O publicitário o
alcançou, levantou a balestra, atirou. A seta penetrou em seu
pescoço e ele desabou, agonizante. O caçador se aproximou
e lhe disse ao ouvido: "Este é o seu último ato. É uma pena
que haja tão pouco público. Pano". Mas o ator não podia
falar. Só esboçou um sorriso, e o jorro de sangue espirrou de
sua boca enquanto as mãos se juntaram num arremedo de
aplauso.
O brasileiro precisava correr. Se dois daqueles três disparos
tivessem partido da mesma arma, já havia um vencedor, e
ele não era do tipo que aceitasse derrota. Então, decidiu
subir a pequena encosta, de onde poderia olhar um bom
trecho do bosque, apesar da pouca luminosidade àquela
hora e com a chuva fina que caía. Apanhou o binóculo e
varreu o horizonte, até vislumbrar, à direita, o casaco azul de
sua vítima, exatamente quando dois outros disparos
ecoavam no vale abaixo. O filósofo estava sentado ao pé de
uma daquelas árvores que predominam na região. O caçador
tinha pressa, mas desceu cautelosamente, dando a volta.
Quando se posicionou atrás do alvo, o jovem adivinhou sua
presença e disse: "Demorou para me encontrar. É
matematicamente certo que você já perdeu. Ainda precisa
me matar?" —e se ergueu calmamente, enquanto falava.
"Você sabe por que esta árvore se chama ñirre? É o nome que
os mapuches dão à raposa, e chamam a árvore pelo mesmo
nome do animal que costuma fazer sua toca embaixo dela; a
raposa provavelmente é atraída pela cera de aroma doce que
cobre as folhas, veja".
O publicitário levantou a balestra mas não atirou
imediatamente. "Vire-se para que eu veja seu rosto", disse,
irritado. O filósofo se voltou lentamente para ele e a seta se

131
LUCIANO MARTINS COSTA

enterrou em seu peito. O jovem tombou de costas sobre o


declive do terreno e ficou estirado, a respiração arquejante.
Conforme seu peito inflava e se exauria, esguichos de
sangue saltavam pelos orifícios do tubo de aço. Então, o
publicitário se aproximou e falou junto ao seu rosto: "É
melhor viver uma vida equivocada". E, num fio de voz,
ouviu de volta: "Você está mais morto do que eu". O caçador
sacou a pistola com raiva e disparou o sexto tiro daquela
tarde.
O alemão venceu a disputa, merecidamente. Foi o primeiro a
provar que havia cumprido a missão e, enquanto os outros
entregaram como troféus pedaços das roupas de suas
vítimas, ele apareceu com duas orelhas esquerdas. "Do lado
em que ouviram a pregação comunista a vida inteira", disse,
e Alejandro Ybarra-O'Hare soltou uma gargalhada: "Eu sou
a contraparte, pois só me resta no corpo o lado direito".
Depois, como se estivessem voltando de um passeio, os
esportistas passaram a falar do vinho, a se vangloriar de
suas armas e de suas pontarias, a trocar confidências sobre
bons lugares para caçar africanos, boas cidades para matar
mendigos, estradas onde costuma haver acampamentos de
posseiros e índios e onde alguns cadáveres a mais não
costumam mobilizar a polícia ou a imprensa.
Passo por esse episódio como quem vai a uma tourada. É a
primeira vez que relembro esse acontecimento, a única vez
em que me refiro a ele, embora esteja preso a um solilóquio,
pois me resta sanidade suficiente para saber que não existem
anjos e estou a falar comigo mesmo. Mas não consigo me
convencer de que Amaliel, Anand e quem mais aparecer,
terá sido tão somente um artifício de minha mente
conturbada para organizar as memórias que preciso
enfrentar. O que me move é apenas a esperança de poder
voltar para Sofia, olhar em seus olhos e dizer quem sou,
quem fui.
"Pela beatitude se chega à felicidade. É o único caminho",
sussurra Anand. Mas já não lhe dou atenção. Alguém bate à
porta e me dou conta de que são dez horas da manhã. Acabo

132
CONTRAPARTO

de virar a noite nesse delírio e me sinto um pouco mais


aliviado. Levanto-me e percebo que havia deitado com a
roupa do dia. Desço para o café da manhã sem me barbear,
deixo o quarto livre para a limpeza. Um sol tímido revela o
cenário de Woolwich e na parede junto à mesa há um cartaz
indicando os locais mais perigosos do bairro, onde nos
últimos meses houve 326 agressões, assaltos e ataques com
facas e punhais.
Preciso me lembrar dessa imagem. New Charlton, todo o
trajeto da Woolwich High, a zona próxima do rio, essa é a
região a ser evitada. Por que esse cuidado? Porque não sou
um suicida, tenho pavor de violência e não suporto nem
mesmo pessoas destemperadas que se expressam aos gritos.
Resquício de quarenta anos em Estocolmo, onde tudo é
conduzido com poucas palavras, às vezes bastando um
gesto, uma indicação. Eu não suportaria, por exemplo, viver
na Itália, cujo povo parece sempre à beira de um ataque de
nervos. Imagino que por essa razão, por não serem capazes
de romper a barreira da algaravia e histeria, os italianos
costumam fazer escolhas estúpidas baseadas na espuma dos
acontecimentos e das opiniões e periodicamente colocam no
poder os piores candidatos, fascistas, mafiosos, demagogos e
populistas.
Por que enveredo por esses pensamentos? Porque meu
espírito precisa se ausentar um pouco de mim, precisa
respirar outras questões que não se relacionem comigo
mesmo e com meu desespero. Aproveito, então, a ausência
temporária dos espectros que me visitam, para relaxar.
Caminho até o mercado e o cartaz do salão de cabeleireiro
me recorda que preciso cuidar um pouco da aparência.
"MuYem Hair&Beauty", diz a enorme placa azul com letras
douradas. Entro sem me dar conta de que é um
estabelecimento temático, encomendo um corte tradicional e
um ajuste nas costeletas e fico imaginando por que aqueles
orientais cruzaram o mundo até ali. De certa maneira, sinto-
me incomodado, como se tivessem me enfiado à força num
bote de refugiados.

133
LUCIANO MARTINS COSTA

Quinze minutos depois, saio pelo calçadão em direção à


praça do mercado, agora sob um sol ameno e acolhedor. As
bancadas de comida montadas sobre tambores estão cheias
de jovens em suas roupas coloridas, e o odor variado dos
temperos me enche de intensa alegria. A sensação é de
novidade, de um estado de espírito com o qual não estou
familiarizado. Nem mesmo quando meus filhos nasceram
fui tomado por tamanha excitação, quase uma epifania, que
parece brotar do ambiente, ao mesmo tempo em que me
ocorre que essa pode ser a amostra de uma vida possível.
Percorro os corredores, trombando aqui e ali com elásticos
corpos jovens, aspirando as cores e sabores que parecem
saltar dos pratos, dos sanduíches, e por algum tempo
imagino a possibilidade de ficar para sempre envolto nesta
atmosfera de puro prazer sensitivo, sem pensamentos, sem
culpas, apenas satisfazendo os instintos mais primitivos,
alimentando meu corpo com essas fragrâncias.
Sei, no entanto, que não há outra vida possível para mim.
Toda vida que recebi eu a gastei até os vinte e cinco anos.
Primeiro com minha infância protegida, mimada, sem livros,
sem boa música, com a curiosidade embotada pelo discurso
autoritário de meu pai sepultando sob uma grossa camada
de concreto os silêncios de minha mãe. Depois, com a
juventude armada de soberba e ódio contra todo sinal de
inteligência, solidariedade e compaixão.
Não se imagine que sou, hoje, o oposto do que era naquele
tempo. Continuo convencido de que a ideia de uma
sociedade igualitária, como a que movia os adeptos de
Salvador Allende, é apenas uma ilusão, um entretenimento
que desvia o indivíduo de suas possibilidades, de uma
perspectiva de vida necessariamente realista. Assim como a
religião, é uma bengala que entorta o passo, faz o
caminhante tomar um atalho à esquerda ou à direita,
quando deveria seguir adiante.
Sofro em dobro, porque imagino poder dirigir meu espírito
para uma vontade fundamental, a determinação talvez
obsessiva de encontrar o ponto de equilíbrio entre a

134
CONTRAPARTO

consciência de que fiz o mal imaginando estar na senda do


bem e o conhecimento de que o mal que pratiquei não pode
sequer ser imaginado, muito menos ser relatado. A caçada
na Ilha Dawson foi apenas um capítulo nessa interminável
crônica de crimes dos quais fui cúmplice ativo ou por
omissão.
Sigo buscando uma maneira de conduzir meu espírito para
essa vontade fundamental de redenção porque sei que a
alternativa seria simplesmente acabar com tudo, atirar-me
sob as rodas de um trem, lançar-me de uma ponte. Deixaria,
então, para Sofia e para meus filhos a lembrança de um pai
distante mas afetuoso, de um marido meio calado mas
carinhoso, e a ninguém iria ocorrer vasculhar meu passado
para revelar o monstro que lá ficou. O que me impede de
acabar com esse dilema é, eu ia dizer, essa curiosidade por
conhecer o que pode haver nas profundezas deste ser. Mas
na verdade estou paralisado de terror.
Sim, tenho medo daquele instante final, quando a vida se
esvai e a consciência se apossa da eternidade, e tudo se torna
abruptamente concreto, sem essa maleabilidade do espírito,
sem essa capacidade de alguém iludir a si mesmo pela
manipulação das lembranças e pela boa articulação das
palavras. "No momento final, basta crer e eu estarei presente
para conduzir seu espírito em plena beatitude", diz Anand.
"Não há pecado que não possa ser perdoado por Deus",
sopra outra vez em meu ouvido aquele que sou eu mesmo.
Inútil, pois sei que nem Deus, se vivo fosse, seria tão
estúpido e condescendente. Sem Deus, resta ao homem
esperar o sol do meio-dia, porque é o único momento em
que pode ser e estar só, sem sua sombra, sem referência de
outro homem; ao olhar para baixo não verá outra verdade
que não a sua própria infeliz natureza, e ao levantar a cabeça
para o céu, da mesma forma saberá que não há uma verdade
superior. Por isso preciso estar só, sob o sol do meio-dia,
quando tiver que enfrentar o horror que sou.

135
LUCIANO MARTINS COSTA

16 – GEORG

Os corpos foram alinhados no chão de um dos barracões


vazios e preparados para o funeral. Uma cerimônia simples,
sem orações, sem flores, sem velas. Mecanicamente, com
olhares indiferentes, os agentes os colocavam dentro de
sacos que em seguida eram amarrados com arame. Por cima
do peito era presa, também com arame, uma barra de ferro
seccionada de um trilho de trem. Os corpos foram
embarcados em um helicóptero Puma, que decolou em
direção ao oceano. O helicóptero voltou sem sua carga.
Foram sepultados no Pacífico, no fundo do oceano foram
plantados.
Operações desse tipo se repetiram até muito tempo depois,
quando eu já estava vivendo em Estocolmo. Mas no dia 9 de
setembro de 1976, um desses cadáveres retornou ao mundo
dos vivos. Soube por um relato lido numa das reuniões do
Clube dos Cronópios, e dissimulei como pude meu
desconforto. O corpo da professora Marta Lidia Ugarte
Román foi encontrado por um pescador na praia La Ballena,
entre os povoados de Los Molles e Los Vilos.
O cadáver, com sinais de torturas e espancamentos, escapou
da peça de ferro em que fora amarrado com arames e
flutuou, constituindo-se na primeira prova daquele método
usado para fazer desaparecerem muitas vítimas da ditadura.
Sua autópsia revelou o elevado grau de brutalidade a que se
havia lançado o Estado chileno, mas eu sei, e já sabia, então,
que a barbárie tinha ultrapassado todos os limites.
A imprensa hegemônica inventou uma história fantasiosa
sobre crime passional, mas três décadas mais tarde alguns

136
CONTRAPARTO

dos responsáveis, entre eles Miguel Krassnoff Martschenko,


foram a julgamento. Ainda hoje, agentes do sistema da
justiça chilena encontram subterfúgios para amenizar as
condenações e ganham abrigo da imprensa. Em geral se
levanta a questão humanitária sobre a punibilidade de
velhos e doentes, e muitos chilenos, cujas mentes são
degeneradas por propagandistas da ditadura, se alinham
entre os que acenam com a bandeira da concórdia, do
esquecimento e do perdão.
Enquanto isso, dá-lhe música alienante, e dá-lhe telenovela,
e dá-lhe a cultura consumista do lixo. E a ninguém ocorre
que é nesse terreno contaminado que viceja o fascismo, raiz
da insanidade. Só agora sei, e de pouco me vale, pois não
posso desfazer aquilo que fiz ou deixei acontecer, que o mal
absoluto precisa do solo arrasado da ignorância para
estabelecer o dominio da insanidade, o primado da loucura.
Não há falar em questão humanitária para quem abdicou da
condição humana, para quem aderiu ao mal radical, mal
absoluto, ao mal sem limites. Mesmo sob o argumento de
que estávamos convencidos de estar do lado certo, do lado
do bem, contra as forças do comunismo internacional, não se
pode ignorar o pressuposto de que o bem sem alternativa, o
bem ao qual se sucumbe, é apenas um aspecto do domínio
do mal. A autonomia da vontade nos condena, mesmo
porque éramos cientes de que aquelas pessoas não
representavam um risco real para o Chile. Muitos eram
poetas, artistas, filósofos, cantores, na maioria jovens que
não tinham como escapar das garras do Estado.
Tomado por esses pensamentos, atravesso ruas, passo por
grupos de pessoas às portas dos pubs e dos restaurantes,
enquanto sinto outra vez calafrios e tremores. Paro na
entrada de um beco, esperando que meu corpo não volte a se
cobrir de vapores, quando um espectro me sopra ao ouvido:
Se assim é, por que você não buscou a redenção pelo
castigo? Bastava se apresentar a um juiz e confessar seus
crimes. Em vez disso, fica a se lamentar feito uma velha
carola.

137
LUCIANO MARTINS COSTA

Sim, é uma boa questão, e a resposta é simples: porque tenho


medo do julgamento, porque sou covarde como todos
aqueles agentes civis e militares que nos últimos anos
tiveram que se apresentar, trêmulos, diante das comissões
que investigam os crimes da ditadura. Na minha covardia,
não existe a hipótese de confessar e enfrentar a justiça,
porque isso significaria revelar a Sofia e aos nossos filhos
que nunca fui de verdade um exilado político, que fui
plantado em Estocolmo para espionar os opositores do
regime, que produzi dezenas de relatórios estúpidos
denunciando gente inocente.
O mal radical, o mal absoluto, que está muito além do mero
ato maléfico, significa a rejeição da humanidade e de seu
destino fatal, um processo civilizatório. O fascismo quer a
dissolução do próprio Estado, que passa a funcionar como o
sistema destruidor da diversidade de opiniões e passa sobre
todos, sem uma razão moral, como uma motoniveladora.
Sim, diz, solene, a voz em meu ouvido, o processo
civilizatório foi feito para os homens, não para nós, os anjos,
e aqueles outros, os caídos, porque não aspiramos a nada a
não ser o ser em si, o que somos feitos para ser; nosso ser é
nossa missão.
Meu nome é Georg, sou o anjo da terra, da agricultura,
venho plantar em você a semente da mudança, ajudá-lo a
enfrentar a razão maligna que orientou sua vida. Ouço-o
muito claramente, mas me esforço para ignorá-lo, pois sei
que não existem anjos por aí a soprar fragmentos de
reflexões metafísicas, ainda que mal conectadas e descabidas
como improváveis concordâncias entre Kant e Nietzsche
sobre a moral.
Então, venho lembrá-lo de como você se excitava ao enterrar
na areia do deserto restos de seres humanos sob pneus
velhos e gasolina e de como gostava de vê-los queimar, para
depois semear, sob a forma de pó, de volta ao pó, aquilo que
fora gente. Você foi, ou ainda é, um tipo de agricultor, um
semeador de aniquilações, pois também quer aniquilar a si
mesmo. Tolo. Não há metafísica no mal absoluto, há

138
CONTRAPARTO

simplesmente o território dos paralógicos e psicopatas que,


exploram temores e desejos da maioria, substituindo a moral
da criação por uma moral que desconhece a razão lógica.
Sim, sei disso, o que me diferencia daqueles com quem me
associei na prática do mal, porque tenho consciência do mal
que fiz. O fascismo se instala como doença no vazio de
pensamento, e só por isso pode ser diagnosticado antes de se
espalhar como epidemia social, antes que se estabeleça como
uma sociopatia coletiva. Mas você sabe disso só agora, e sou
eu que lhe digo, o que nos remete de volta à sua negação da
minha existência e de todos os anjos, pois é natural que tente
ignorar nossa voz. No entanto, não há como chegar por sua
própria conta ao entendimento que busca. Ainda que
fôssemos meras invenções de sua mente, seremos reais para
você, porque somos imprescindíveis.
Que seja. Tanto faz se estou a falar comigo mesmo ou com
um dos velhos amigos de Swedenborg, pois ainda que sejam
alucinações, estes que se insinuam em meu discernimento
estavam presentes no bilhete que encontrei no bolso do
jovem argentino. "Por Swedenborg, que conversava com os
anjos nas ruas de Londres" é mais que um verso: é a senha, o
ingresso no universo dos que ousaram ir além da razão
objetiva, ou que estão cagando se a realidade é racional em si
mesma ou não — simplesmente fazem acontecer a realidade
e medem seu valor moral pelo que resta em pé.
Pouco me importa se as vozes que ouço entram pelo ouvido
externo ou se nascem diretamente no cérebro, pois sou eu
quem escolherá o que ouvir. Entendo que estive doente do
mal descrito pela ponerologia, a ciência da maldade natural,
ou da natureza da maldade, sei que o nível de mal que
pratiquei me coloca além da ontologia e da própria filosofia,
porque se instala no vazio de pensamentos, onde não se
desenvolveu o mínimo de humanidade.
Nós, os perversos fascistas à direita ou à esquerda do
espectro político, não somos ignorantes. Ao contrário, somos
altamente especializados em um só tema; não nos falta
leitura, como dizem nossos detratores. Só nos falta

139
LUCIANO MARTINS COSTA

diversidade: aliás, não sentimos falta da diversidade, porque


a diversidade gera dúvidas e enfraquece a vontade de
potência: em geral, somos grandes leitores de um livro só, e
isso nos ensina que só existe uma maneira correta de ver a
vida e avaliar os outros humanos — a nossa própria visão.
Veja só: tenho ou não alguma metafísica? Há ou não certa
metafísica no mal absoluto? Ou a filosofia começa apenas no
Homo sapiens? Não havia filosofia no símio antropoide que
liderou o primeiro bando a trocar a floresta pela savana? Era
um mal absoluto sua prática de rachar o crânio dos
retardatários, deixá-los como alimento para os leões e assim
salvar a espécie e seguir em frente? E a parábola das batatas,
o campo de batatas e as duas tribos famintas, no romance do
brasileiro Machado de Assis? Se o indivíduo são bolhas
transitórias, onde está o mal? E tudo isso é Swedenborg,
onde Machado colheu o Humanitismo de Quincas Borba.
Como vê, anjo agricultor, quando se semeia dúvida colhe-se
contradição. Posso dizer, em defesa do que fui, que ajudei a
estabelecer um paradigma, e só me vejo na condição de
apátrida, de indivíduo errante, por causa de Sofia e do que
ela representou depois. No Chile, eu hoje seria um senador
da República, um grande empresário, ministro da Corte
Suprema ou presidente da República.
O moço do foodtruck espera que eu termine o solilóquio e me
entrega o sanduiche de salmão que apontei. Também me
basta um olhar e ele entende que eu quero uma soda para
acompanhar o gravlax no pão de centeio. Fica olhando meu
rosto, à procura de alguma coisa, um detalhe que o faça se
certificar de que eu não estava falando sozinho. Assim me dá
a ideia de comprar um desses fones de ouvido, coisa que
farei assim que terminar de comer.
Como é mesmo seu nome? Georg. Sim, Georg, o agricultor, é
como você se chama. Veja, Georg, esse discurso moral sobre
as graduações do mal tem um fundo teológico, e como tal é
um sistema de preconceitos morais. No limite, eu posso
dizer que nossa atuação fez nascer o Chile de hoje, feliz em
sua idiotice e realizado em sua alienação. É o Chile possível,

140
CONTRAPARTO

o país ideal para aquela terra impossível. Os únicos cidadãos


que ainda sofrem no Chile são exatamente aqueles que
cultivam alguma consciência social, porque infelizmente não
foi possível exterminá-los. E por que? Porque em
determinado momento de nossa história, o regime
enfraqueceu, deixou-se contaminar por pruridos da
democracia cristã, que é essencialmente covarde e travada
por essas escalas de moral.
Mas isso não nos impediu de seguir adiante, agora posso
afirmar. Piñera novamente no trono e uma nova geração de
oficiais generais bem disciplinada, educada desde o berço na
boa escola americana de convencimento, tudo justificado por
uma imprensa engajada no projeto de pacificar a sociedade à
força, é a realidade objetiva de que devemos nos orgulhar.
Por que acha que fomos capazes de criar esse Chile
moderno, empreendedor, que inova sem ser perigosamente
revolucionário? Porque a discussão sobre moral que
filósofos e outros inúteis ainda travam em busca de
significado, nós interrompemos no ponto em que não cabe
mais nenhuma subjetividade na questão do estabelecimento
de uma necessidade universal da razão pura. Partimos do
dogma segundo o qual a razão se demonstra pelos
resultados, se impõe pelos resultados. A única concessão que
fazemos se refere à necessidade de continuar investindo na
homogeneidade social. Vê como somos compassivos?
Admitimos que até mesmo pessoas de segunda classe, de
raças inferiores e comportamento bizarro, como os
homossexuais, possam participar do projeto nacional,
incentivamos empresas a patrocinar programas sociais e
projetos de sustentabilidade, e estamos apostando no
compliance, uma evolução dos antigos programas de
qualidade. Mas o Estado não será mais usado em programas
demagógicos de "resgate" disto ou daquilo. Tiramos as terras
dos mapuches? — a razão pura demonstra que todo mundo,
inclusive eles, acaba ganhando com mais produtividade,
mais fartura e qualidade de alimentos do que se tivéssemos
deixado que ficassem por lá comendo raízes.

141
LUCIANO MARTINS COSTA

Então Sofia é a culpada? Não se preocupe. Com esse par de


fones brancos nos ouvidos, ninguém vai imaginar que você
conversa com anjos em sueco. Vão achar que está ao
telefone. Você mesmo diz que, sem ela, poderia ser hoje
presidente da República. Ele mesmo, o atual presidente, não
é como você, segundo seus próprios termos, porque nunca
teve a firmeza de um autêntico fascista. É um bosta de um
democrata-cristão, chacal da política, daqueles que no
momento da crise correm para debaixo da batina do padre
em vez de enfrentar as adversidades. Mas culpar a mulher
que o reintroduziu na sociedade humana, que o tornou um
homem, não seria mais um dos seus típicos atos de
covardia?
Experimento não responder, e a voz nos meus ouvidos só
ecoa, não evolui, desvanescendo-se lentamente ao ponto de
se transformar em uma espécie de chiado, como o ruido de
fundo da cidade, sem a sirene que eventualmente rasga essa
espécie de cortina sonora. Estou fatigado, como se estivesse
voltando de uma corrida. Chego à hospedaria me arrastando
pelas ruas de Woolwich, e me sinto confortado por ter
escolhido um quarto no primeiro andar. Mas o rapaz na
recepção avisa que há uma mensagem para mim, não
exatamente para mim, mas sobre mim, e diz que alguém em
tal número de Estocolmo deve ser avisado assim que eu
aparecer. Digo que eu mesmo ligarei e peço o bilhete. É o
número de Sofia, o que significa que ela me localizou.
De repente, toda minha convicção se esvai. Sinto-me como se
estivesse correndo para trás, de volta à inquietação do
primeiro dia. Sou como um raio de luz que dispara em
direção ao big-bang, à explosão original, ao momento em
que vi escrito num cartão a palava contraparto. Minha
mente, então carregada de certezas e mesmo de alguma
arrogância, vai murchando rapidamente até o momento em
que me lanço na cama, sem tirar as roupas nem os sapatos.
Do chiado em meus ouvidos evolui a conhecida voz que me
acompanhara durante a tarde. Então? Não vai telefonar para
casa? — e me parece ouvir um riso abafado, o que soa

142
CONTRAPARTO

inusitado, depreciativo. Um anjo sarcástico era o que me


faltava. Deixe-me descansar. Quero ver o que vai dizer para
Sofia. Não estou pronto para conversar com ela. Mas está
pronto para justificar seus atos diante de mim. É diferente, é
como falar comigo mesmo, sem antagonismo. E como
imagina que seria com ela? Teria que alegar insanidade,
dizer que não tinha consciência do que acontecia. Depois de
metade de um curso de Direito, pós-graduação em
Sociologia Econômica e doutorado em Ciência de Sistemas?
Afinal, para que serve essa ciência? No meu caso, serve para
desenvolver sistemas de inteligência artificial aplicados à
gestão de negócios entre serviço público e setor privado,
para buscar o máximo de eficiência com muita segurança
contra a corrupção e outros desvios.
Então você virou uma espécie de paladino de uma certa
moral aplicada ao interesse público. E para que computador
e inteligência artificial? Não basta colar nos quadros de aviso
as normas de procedimento? É um sistema à prova de erros
e de má-fé, permite checar as ações e omissões dos agentes
públicos, pela análise de suas decisões e despachos. E como
esse sistema moral funcionaria quando fosse registrada certa
operação de retirada de bancos e do tanque extra de
combustível num helicóptero Puma para acomodar em seu
interior seis ou sete cadáveres amarrados a trilhos de ferro?
O sistema emitiria um alerta de irregularidade na operação
do aparelho, e antes que decolasse um sinal eletrônico
cortaria o motor até que uma inspeção fosse realizada. Então
essa seria uma missão a ser observada por Gregor, o
vigilante, não por mim. Foi um grande estímulo ter estado
com você.
Desperto pouco antes das dez da noite, com uma forte dor
cabeça. Lavo o rosto, demoro-me olhando no espelho e desço
para tomar uma sopa. Sofia deve chegar a qualquer
momento. Preciso me lembrar de fazer a barba de manhã.

143
LUCIANO MARTINS COSTA

17 – GREGOR

Esteja alerta para os sinais, digo para mim mesmo logo pela
manhã. De fato, não gostaria que Sofia me surpreendesse
numa dessas conversas com anjos ou seja lá o que for. Não
se preocupe, sou Gregor, seu novo visitante. Sou sua última
oportunidade de encontrar o caminho da razão, de uma
razão possível na sua circunstância. Sou o vigilante que não
dorme, sou os olhos e ouvidos da consciência. Estou alerta
para ajudar a iluminar seus pensamentos. Você é apenas eu,
ou parte de mim, respondo, contente por cortar logo nos
primeiros sinais as alucinações.
Sim, não tenho dúvida de que são apenas alucinações, ou,
menos do que isso, refrações do meu próprio pensamento: se
uma ideia inadmissível, como o suicídio, atravessa minha
mente, sofre um desvio como um raio de luz que entra num
lago cristalino. Então, bate no fundo e retorna, como um
reflexo, alterando minha compreensão. Você e todos os
outros anjos que me visitam são apenas isso, uma espécie de
defesa contra o impensável. O arbítrio ainda é meu.
Então não há muito o que questionar: ou você rompeu todos
os limites da ética, considerada como imperativo categórico,
ou simplesmente foi fiel a si e à sua circunstância,
escolhendo o melhor para seu bem-estar individual,
independentemente de consequências sociais. No primeiro
caso, você se obriga a dizer para Sofia que agiu como um
monstro. No segundo caso, segue vivendo sem mais
questionamentos, e todo esse sofrimento é sem sentido. Não
há conciliação possível entre essas duas possibilidades,
nunca houve, e você não poderá dizer "duas almas, oh!,
habitam em meu peito", porque isso é uma fala do Fausto,

144
CONTRAPARTO

você não é Fausto e ninguém está disposto a fazer uma


mísera oferta pela sua alma.
Fui um jovem impulsivo. Não, a palavra não define o que
você era, porque se refere a um ímpeto, a um ato ou
movimento inesperado, uma ação que se contém em
seguida, tem curta duração. Você agiu compulsivamente,
não impulsivamente, no sentido do mal. Você tinha prazer
no mal, isso lhe faz perverso, e é dessa verdade que você
tenta fugir. Mas eu poderia ter ficado, não era obrigado a me
mudar para a Suécia. Não há mérito nisso, porque não foi
uma decisão sua ou uma escolha. Mesmo que diga que
estava ficando enojado com toda aquela violência, não foi o
contraparto que o colocou diante desse limite, porque você já
tinha ultrapassado todos os absurdos. Foi por acaso...
Amanda?
A palavra mais branda é a que traz a tempestade; apenas um
nome e a desordem se estabelece, todo controle se esvai, o
que era antes um pressuposto de objetividade desanda em
desrazão e já não é possível manter a ilusão de alguma
serenidade nesta busca. Amanda se transforma em causa sui,
ela é causadora de si mesma, está na origem da ordem e do
caos que é ela mesma. Amanda é meu único afeto, o único
momento em que posso dizer que tive alma, essa estrutura
dos impulsos e afetos, o único fenômeno que me perturba,
que me alcança, meu calcanhar-de-Aquiles, apego e rejeição,
paixão e desafeição, enfeite e anormalidade, em si mesma
atração e repulsa, por isso não posso sequer pensar em
Amanda.
Sofia é diferente. É o sexo com naturalidade, como um
direito biológico, sem culpas nem regressões, sem imagens
de santos e virgens, sem o pecado original. Amanda foi tudo
que representa afeto, o que afeta porque toca, porque
penetra na couraça de proteção, e que mesmo nunca tendo
se realizado fisicamente enriqueceu-se de possibilidades
sonhadas com tal ênfase que eram quase reais. Mas Amanda
pode ser apenas vislumbrada, sua memória não pode ser
invocada, só deve ser admitida como uma fantasia da

145
LUCIANO MARTINS COSTA

adolescência. Por isso você precisa de mim, o eterno


vigilante Gregor. Admita-me, e construirei uma fortaleza em
torno do seu espírito, para que Amanda não possa se
imiscuir em sua consciência e você não tenha que admitir o
inadmissível.
Mas os pensamentos não vêm quando nós queremos, diz o
filósofo; eles vêm quando querem. O pensamento pensa a si
mesmo, somos apenas sua montaria, seu cavalo, o transporte
com que ele se imiscui no mundo real. Penso, logo existo, ou
penso, logo o pensamento existe? No princípio era o
pensamento, e ele estava inscrito no signo do verbo, pois o
verbo em si é apenas representação do pensamento. Quem
pensou o primeiro pensamento, se não existe Deus?
Por Swedenborg sabemos do Homo maximus e por aí
chegamos ao supraHomem, onde encontramos terreno firme
para afirmar que o homem precisa de uma ideia de deus mas
não precisa necessariamente de um deus. Por isso
construimos o deus que é nossa imagem e semelhança
idealizadas — pois queremos ser assim, queremos o poder
da criação. Nossa potência de vontade se justifica, portanto,
numa ideia de deus, e toda tradição nos indica que será
sempre um deus absoluto em sua bondade ou em sua
perversidade, então pode haver um sentido moral no mal
como no bem.
Você está desenhando o esboço da sua defesa? Estou atento,
como sempre, ao significado de suas reflexões. Será que você
acredita mesmo que há uma razão na existência ou um
sentido mais profundo do que meramente existir? Acredito
que... não, não creio em nada. Sim, posso crer que caminho
por ruas de Woolwich, em Londres, e que tenciono ir outra
vez ao mercado, onde poderei me misturar aos ruidosos
visitantes, de modo que não precise ouvir meus próprios
pensamentos. Sim, uma vez que os pense, são meus e com
eles sei que poderei mudar a realidade, criar uma
interpretação da realidade onde me sinta confortável, ou,
pelo menos, reinventar o passado.

146
CONTRAPARTO

Então pensemos sobre o passado. Falemos dessas mulheres


que definem quem você é. Uma delas é aquela com quem
você constituiu uma família. Com ela você teve contato, teve
afinidades e intimidade, harmonia e desarmonia, sonhos em
comum, desejos e frustrações, enfim, o que chamam vida. A
outra você nem chegou a tocar, a não ser por acidente, e foi
como apanhar uma brasa com a mão, mas desenvolveu por
ela uma profunda afeição; sim, então há aqui uma diferença
abissal entre sensação e sentimento, entre tato e contato, o
que significa que a mulher que tem sido minha companheira
de toda a vida é quase uma estranha, para a qual não posso
sequer dizer quem sou, porque não estou seguro de que seja
capaz de perdoar. E a outra? Aquela que nunca toquei é
justamente a que mais afeta minha vida. Ela me perdoaria?
Isso é tergiversar. O mal pune a si próprio, de tal modo que no
mal está a pena do mal. Só você pode corrigir o mal que
infligiu aos outros e, portanto, a si mesmo. Mas, como só se
morre uma vez, você não precisa temer a morte — só deve
temer a própria vida, principalmente o instante derradeiro,
quando sua consciência irá viajar na velocidade da luz, o que
significa paralisar o tempo e experimentar a eternidade.
Nessa circunstância muito especial você terá a oportunidade
de compreender a grandiosidade desse mal, o absoluto desse
mal. Isso é um privilégio.
Não quero saber disso. Claro, ignorância é vontade de não
saber. Mas nem esse direito você tem, porque você sabe,
apesar de haver sacrificado o intelecto à ignorância e daí à
ignomínia, como fazem os religiosos. Você teve vontade de
ignorar qualquer limite em seus atos. Uma vontade
arbitrária que é também uma forma de sacrificar o intelecto.
Sei disso, mas eu era jovem. Ninguém é jovem demais para
desconhecer a relação entre causa e efeito. Causa e efeito são
a essência dos fenômenos, de tudo que acontece no mundo
físico, e suas escolhas da juventude são a causa de sua
agonia na maturidade. Fora do mundo físico, você
simplesmente desconsiderou a moral, que abrange todas as
vivências humanas, sentimentos, atos, pensamentos,

147
LUCIANO MARTINS COSTA

escolhas, tudo que não é físico. Portanto, você construiu um


calabouço para si mesmo e que agora, você entende, o
mantém isolado do resto da humanidade, o que inclui, é
claro, Sofia, seus filhos, seus netos e até mesmo a pessoa que
você gostaria de continuar sendo.
Tudo isso sou eu mesmo que penso. Posso até desenhar o
trajeto, de Swedenborg para Kant, de Kant para Nietzsche, e
sei que nada disso pode ser sabedoria de anjos. Pois se foram
anjos como eu que sopraram muitos pensamentos nos
ouvidos deles e de tantos outros... Onde você acha que
nascem todos os pensamentos, toda criação? Quem sopra a
equação perfeita com que o cientista irá resolver os mistérios
do mundo físico? Somos uma instância entre o homem e o
que ele um dia virá a ser, se o mundo não for destruído no
caminho.
Swedenborg era um lunático que registrava suas alucinações
e dizia que eram sopradas por anjos. Sim? E quem colocou
um verso de Borges no bolso daquele menino argentino que
vocês mataram? Quem escreveu aquele bilhete? Por que
você o encontrou, e nenhum outro daqueles delinquentes do
seu grupo? Não é isto o eterno retorno, que Swedenborg
ensinou a Kant e que Nietzsche pintou com outras cores? Se
tudo gira e se repete no ciclo das forças cósmicas—porque a
energia do universo nunca se esgota—, como você acha que
o verso de Borges foi parar nas suas mãos, determinando
que você saísse em busca de Swedenborg naquela biblioteca?
Sim, foi onde conheci Sofia. O bilhete me remete a
Swedenborg, que define meu encontro com Sofia. E acontece
no exato momento em que se dá a ruptura com Amanda.
O que tudo isto quer dizer? Que estou preso numa
armadilha do tempo, de onde só poderei sair quando
encontrar o ponto de fuga desse círculo cósmico. Então você
terá aberto um novo ciclo, em espiral, um novo imperativo:
viva como quem é capaz de afirmar, a cada e toda
ocorrência, que não quer isso mais uma vez, mas dirige toda
sua vontade de potência no sentido de uma nova vivência,
pois o destino não se faz repetindo o que se fez. Foi o que

148
CONTRAPARTO

tentei em Estocolmo durante quarenta anos. Mas você não


rompeu o círculo cósmico porque nunca se perguntou: Por
que? Por que não fui capaz de dizer não para o demônio que
me tirou o direito ao sono por todo esse tempo? Porque não
sou o supraHomem e porque desconhecia que a vida, como a
filosofia, é apenas experiência, tentativa e erro. Amei os
fatos, não os aceitei a contragosto. Isso me condena
irremediavelmente? Então, sofro por ter sido humano. Não,
seu sofrimento nasce das escolhas que implicaram romper
com a humanidade, porque ao humano nem tudo é
permitido; atentar contra a dignidade de outro humano é
cobrir de indignidade a si próprio. Seu mestre, meu antigo
interlocutor aqui, por estas mesmas ruas de Londres, revelou
que o humano é bem mais do que cada indivíduo, é também
grupos de pessoas, pequenas e grandes comunidades, como
repúblicas, monarquias e impérios e até mesmo essa grande
comunidade que abrange todo o universo, uma vez que são
todos humanos — O que deve ter um profundo significado
para mim, não? — pois, sendo isso verdade, o mal cometido
contra um indivíduo alcança toda a humanidade.
Ainda não é desta vez que você rompe o círculo do eterno
retorno. Se não posso ser ao mesmo tempo o sujeito e o
objeto do conhecimento, de que me vale tudo isto? Fico aqui
a girar em torno de mim mesmo; tudo que sei é que fui
capaz de monstruosidades tão inaceitáveis, que condenam
não apenas a mim, mas todo um povo, que está para sempre
amaldiçoado, a acumular sobre sua história novos e novos
capítulos sem significado, porque se nega a preencher e selar
o livro das indignidades, o livro do mal, e assim perpetua
essa nódoa que contamina todo o ambiente humano. Sabe os
crimes de pedofilia da igreja católica? Não são crimes de
padres e bispos — são crimes de toda a religião, crimes que
não prescrevem enquanto toda a comunidade católica se
negar a refletir a fundo sobre suas causas, seu significado.
Preciso respirar um pouco. Não posso permitir. Para isso me
chamam Gregor, o vigilante, porque vigio os pensamentos
do paciente e o mantenho em alerta para que não desvie

149
LUCIANO MARTINS COSTA

suas reflexões do objetivo a que se propõe. Não posso


desistir? Não. Apenas a interrupção dos pensamentos, ou
seja, a ruptura da vida mesma, poderia silenciar o que é sua
consciência. Por que? Porque você amou grandemente sua
loucura e nela se deleitou de tal maneira que se tornou razão
da própria existência. Fui influenciado desde menino. Meu
pai se orgulharia de tudo que fiz. Sua mãe, da mesma
forma? Não, minha mãe apenas calava, rezava e tinha
pesadelos. Então: você poderia ter escolhido ser filho de sua
mãe.
É tarde. Gastamos todo o dia, mal comi, devo estar com as
roupas amarfanhadas, o rosto pálido, a barba por fazer, dói-
me todo o corpo, doem-me as pernas como se tivesse subido
e descido continuamente uma montanha. Você não é
Zaratustra. Preciso de um banho, uma sopa quente, preciso
dormir. Ainda não conversamos sobre Amanda, precisamos
falar sobre Amanda. Não, só preciso pensar em Sofia, é para
ela que devo contar o que fui, o que sou. Amanda era um
desejo, uma quimera. Foi o único amor que você conheceu, e
no entanto... No entanto, o que? Não era Amanda, não fui eu
que fiz aquilo. Eram apenas os olhos de Amanda.
Você está cansado, vou me retirar. Sofia já sabe onde você
está. Há câmeras por toda parte, você anda por aí como um
zumbi, a conversar com anjos, e esses fones de ouvido
conectados a nada, com a ponta enfiada num bolso, não
impedem que as pessoas percebam o quanto você está
perturbado. Há os funcionários da recepção, a camareira que
faz sua cama todas as manhãs, a garçonete, o jovem que
prepara sanduíches, a vendedora de queijos no mercado,
uma multidão de pessoas pelas quais você passa todos os
dias. Seu tempo está curto. Vou me retirar, porque nada
mais tenho a ponderar.
Fico só? Não, você pode invocar outros anjos. Agnes, anjo da
pureza e da castidade, seria de grande valor para o caso de
você conseguir finalmente fazer a epistemologia de si
mesmo, vencer a barreira entre o ser inerte que tem sido e se
transformar no ser indagativo, capaz de se questionar sobre

150
CONTRAPARTO

suas razões. Já cumpri minha tarefa: alertei sua consciência a


respeito das contradições, estive atento a todas as suas
manobras diversionistas, e chegamos juntos ao ponto de não
retorno. Daqui para a frente, é buscar a pureza do
pensamento e a castidade das reflexões, para ganhar direito
à compreensão. Só o conhecimento de si pode trazer
libertação.
A sopa de peixe aquece meu espírito. O sono se impõe já no
banho, e mal consigo vestir o pijama antes de me enfiar na
cama. A inconsciência avança como uma nuvem de chuva
sobre a floresta em chamas. Sinto estalar em meu cérebro
cada uma das brasas em que se consomem minhas razões.
Há um crucifixo na parede em frente, eu não o havia notado.
Tenho os olhos semicerrados, do crucifixo sai uma luz
azulada, uma aura que se expande e se contrai, e me sinto
em paz.

18 – AGNES

Dormi ininterruptamente por mais de dez horas. Desperto


relaxado e em poucos minutos desço para o café da manhã.
O dia está claro, luminoso, uma dessas raras ocasiões em que
a capital britânica desmente sua fama. Tenho desejo de
novidade, decido ir até Covent Garden, porque de alguma
forma me lembra bons tempos, embora não possa definir
exatamente a causa desse sentimento. Sem pensar muito,
tenho claro que preciso preservar esse estado de espírito.
Uma curta lembrança dos dias anteriores me faz balançar a
cabeça como se pudesse, com esses movimentos, expulsar da
mente os pensamentos que me assediam.
Caminho até Bereford Square e tomo o ônibus que, segundo
o aplicativo do celular, me levará a Aldwich Kingsway. Dali,

151
LUCIANO MARTINS COSTA

com mais cinco minutos de caminhada, passo em frente à


Royal Opera House e chego ao meu destino. O mercado está
cheio de turistas e me enfio por ali, aspirando os odores da
humanidade, ouvindo a algaravia de idiomas, e me ocorre
que é como estar de volta à casa. Há muitos dias vinha me
sentindo estrangeiro entre os humanos, mas não agora.
Agora me sinto um recém-nascido, percebo a fresca energia
que emana das pessoas em volta, e uma alegria autêntica se
apossa de meu espírito. Não me lembro de uma experiência
semelhante, sei que nem mesmo quando, jovem, vagando
irresponsavelmente por Santiago ou Viña del Mar, pude
experimentar essa leveza, esse legítimo contentamento sem
uma causa compreensível. Talvez o movimento de palhaços,
malabaristas, músicos e cantores, talvez a inocência e
castidade daqueles espíritos que buscam apenas o
entretenimento e o prazer de estar próximos, ainda que
evidentemente diversos, qualquer uma ou todas essas razões
me levam a um estado quase de êxtase, de enlevo, e entendo
o que é uma epifania.
É isso a felicidade dos anjos, esse é o estado de castidade, diz
a voz em minha mente. É outra voz, mais suave, como o
timbre de uma harpa. Então não é meu este sentimento? É
um sentimento que concedo, para que você saiba como seria
a pureza. Mas como ser puro alguém que já corrompeu a
alma com o que há de mais perverso, alguém que
vilipendiou corpo e memória de seus semelhantes? De onde
venho, a pureza é possível, como um novo impulso no ciclo
da vida. Justifique-se diante da consciência e tudo será novo,
como se estivesse recebendo uma alma virgem. Depois de
visitar suas memórias mais horrendas e de ter enfrentado
algumas de suas culpas, é possível começar outra vez, como
alguém que acaba de chegar. Essa é sua penitência. Basta
fazer o mesmo trajeto na presença daquela que mais lhe
importa e compartilhar com ela seu arrependimento. Sofia
não suportaria metade das minhas verdades. Ela é feita de
outra natureza, é como um organismo que nunca foi exposto
a uma bactéria. Seria como internar alguém assim numa

152
CONTRAPARTO

floresta tropical infestada de malária. O risco é seu preço.


Mas o risco tem de ser meu, não dela, e também não tenho
certeza de estar totalmente arrependido, quero dizer, sei que
não cometeria aqueles atos novamente, mas tenho
consciência de que nada poderia alterar aquilo que foi feito.
A pureza a que me refiro é o estado de uma alma
completamente nova. A isso chamamos ressurreição. Eu
precisaria acreditar que existem almas. Tudo que há tem
uma essência, assim como tudo que é deve estar; portanto,
você tem uma essência, a sua alma, e ela está presente em
tudo que você faz, toca ou pensa. O que venho ensinar é que
se pode renovar a essência, criar uma nova alma. Gosto
disso, gosto dessa ilusão. Tudo é ilusão. Por que não tornar
verdade a ilusão de um renascimento? Você me parece meio
cínica para um anjo. Agnes, não é? E há outra maneira de
lidar com o conceito de pureza e castidade? Como seria
possível um homem casto, se vocês nascem em pecado,
segundo a doutrina? O que seria um homem casto, se
houvesse? Acidente no processo evolutivo, um jardineiro no
Éden, esculpido à imagem e semelhança de um deus que a
própria humanidade criou, ou uma fantasia?
Estranho ouvir isso de um anjo. Sou seu anjo, sou vulnerável
à contaminação por suas convicções e conveniências, como
um advogado. Reflito o que você é, pois só assim se pode
fazer justiça. Você se mescla comigo, se transforma em meu
alter ego? Sim, a única maneira de um anjo experimentar a
paixão humana é mesclando-se com um ser humano. A
alegria que me invade desde a manhã? É a parte de mim que
transfiro para você na nossa relação. Seria isso como um ato
sexual? Sim, a epifania dos santos e dos devotos é o que
corresponde a um intercurso das almas humanas com nossa
espécie. Podemos fazer isso durar para sempre? Não, pois
isso nos transformaria em uma espécie híbrida, e esse
fenômeno não está previsto nos planos da criação ou da
evolução.
Sigo por uma rua lateral ao mercado de Covent Garden, em
direção à London School of Economic and Politic Sciences.

153
LUCIANO MARTINS COSTA

Hoje só busco boas lembranças, o tempo da pós-graduação é


cheio delas, Sofia e eu em Londres. No caminho, tomo
assento numa das mesinhas externas do Café Murano, noto
que suas cadeiras ainda são verdes e brancas, e de certa
maneira essa observação me tranquiliza. Londres existe para
nos lembrar de que algumas coisas não devem mudar.
Na esquina, a menina observa o motorista por trás do vidro
do carro. Ouço sua voz frágil, pede uma moeda. A mãe,
sentada na calçada, sorve o cigarro e olha para cima, para
nada. O motorista não ouve, não vê, eu me desloco para o
assento do carro, agora sou eu ao volante, acelero e vejo o
rosto apagado da criança se desvanecer lá fora. Não lhe dou
a moeda, nada lhe digo, desvio dela meu olhar vazio como a
calma da mãe, largada, vadia, naquela esquina do mundo
onde parecem caber todos os seres humanos. Engano seu,
muitos estão mortos e seguem caminhando por aí. Mãe e
filha nem sabem se vivem, entendo que essa calmaria pode
dissimular tempestades, meu dilema é maior que a miséria
delas, e o que sei sobre elas? Que se instalam naquela
esquina diariamente, depois de uma longa travessia por toda
a Europa, talvez por metade do planeta, desertos e mares.
Ou que tomam o trem todas as manhãs para ludibriar os
passantes e no fim da tarde voltam para seu acampamento, a
contar o dinheiro recolhido.
Sentado à mesa verde e branca, nem posso me compadecer
delas porque a cena não oferece nenhuma concretude. Nada
na face da mãe, nada no vulto da filha, será mesmo sua filha,
ou uma criança emprestada, roubada? Tudo que quero é
esse nada para mim. Essa espécie de virgindade, um nada
abrangente, absoluto, que vem acoplado ao ser. Se eu fosse
aquele motorista, entenderia que a consciência é o que cabe
na fina espessura do vidro do carro. Basta o vidro da janela
do carro para nos distinguir uns dos outros, para determinar
quem vive e aqueles que apenas vagam por aí, mortos-vivos
sem alma.
Se nos dá algum conforto, estendemos a mão no vão da
janela e doamos uma moeda, mas o melhor é seguir em

154
CONTRAPARTO

frente, ignorar a miséria, ou o que parece miséria, e


continuamos sendo puramente humanos, fieis à nossa
vontade de isolamento. Puros humanos, castos, indiferentes
ao semelhante, eu diria. Estranho conceito de pureza e
castidade, vindo de um anjo. Pois não é essa a única teologia
que o homem foi capaz de imaginar? Puro é o que não se
mistura, não se contamina com o diverso, aquele que
preserva sua essência. No máximo, revela o caminho da
castidade para que o outro também o siga e tenha a
oportunidade de se juntar aos castos. Contanto que aceite a
doutrina e entregue sua alma, assim deixará de ser o que foi
e será outro indivíduo, ressurreto, novo. Mas sempre
indivíduo.
Gostaria de uma cerveja. Há muito em que pensar, Agnes,
porque encontro muitas verdades naquilo que me diz. Não
há mais anjos na sua agenda. Agora cabe a você abrir o
caminho e encontrar sua nova essência. A culpa é uma
escolha da vontade fraca. A vontade de potência ignora os
destroços e ruínas que deixamos para trás. Half-pint, meia
taça de uma Guiness muito escura e muito densa. É disso
que preciso. Ou não, estou no Café Murano, devo pedir um
Chianti acompanhado de uma salada de polvo.
Lembro de quando Sofia e eu fomos comemorar nosso
aniversário de casamento no restaurante Zafferano e a chef
Hartnett nos ofereceu um Chianti e a salada de polvo. Soube,
agora, pelo bookatable, que ela está no Murano. Naquela
ocasião, Angela adivinhou nossa felicidade, talvez devesse
dizer a felicidade de Sofia, pois nunca fui realmente feliz; o
máximo que conseguia era exprimir uma aparência de
serenidade. Aquele dia foi especial, uma rara experiência de
felicidade na vida adulta. Fugaz, mas real.
Você só foi feliz na perversidade. Tem consciência do que
isso significa? Sim, que não conheço a felicidade moralmente
aceitável, uma condição de bem-estar que não seja fundada
no mal-estar do outro. Você foi feliz vivendo um delírio de
autonomia, justificado apenas pelo amor a si, então pode-se
dizer que não estava no domínio da razão enquanto atuava

155
LUCIANO MARTINS COSTA

no campo do mal. Como anjo e sua advogada, esta é a defesa


que apresentaria. Sim, eu vivia e agia baseado numa ética do
dever, segundo uma lei moral que considerava de valor
inconteste, universal. Então, por que se culpar pelo resto da
vida, se, havendo ainda uma História em curso, ninguém
pode assegurar que aquilo era o mal absoluto?
E tudo que foi dito sobre a incompatibilidade de um amor a
si, ou amor de si, com o amor a Deus, ao qual corresponde a
compaixão pelos outros? Se, para salvar sua alma, é
necessário negar o amor a Deus, que seja esse o preço. O
próprio Deus, se deus houvesse, seria obrigado a aceitar esse
negócio, porque tudo que lhe interessa é receber de volta o
máximo de almas que entregou em consignação a humanos.
Essa é a lei fundamental da economia do sagrado. Agnes,
não seria você o anjo caído? Não, sou o anjo da castidade.
Essa é a única pureza possível para os humanos: negação da
culpa, construção de um novo ethos, isto é, ressurreição.
Durante a juventude, quando se dedicava a fazer o mal sem
olhar a quem, você agia de forma egoísta, o que era
naturalmente compatível com sua condição de jovem.
Sempre em primeiro lugar a satisfação das pulsões, isso é o
comum dos homens. Mas eu deveria ter compreendido que
aquela barbárie era inadmissível. Por que? Acaso você é o
além-Homem? Se a humanidade ainda não se efetivou como
uma comunidade de seres morais em pleno século 21, por
que acreditar que você, um ser comum, poderia se
comportar como o homem do futuro imaginado por
sonhadores do século 19? De fato, seria esperar muito de
alguém que cresceu protegido da humanidade, educado
para desprezar os desiguais. Quase creio que sou inocente
de tudo de que acuso a mim mesmo.
Então pense nisto: se o imperativo moral, que prendia você
ao sentimento de culpa, deve ser invocado de modo
autônomo, ou seja, não condicionado pela vontade dos
outros, a escolha é sua, entre a autonomia ou a servidão
moral. Você é quem decide sobre o valor do julgamento
alheio. Ser livre e incondicionado pelo exterior me faz puro?

156
CONTRAPARTO

Sim, e vim apenas para convencê-lo disso. Nenhum outro


das falanges poderia oferecer estes esclarecimentos. Mas
Swedenborg nos alerta que os espíritos mentem e
dissimulam. Os espíritos comuns, dos homens, não os anjos.
Aprendi que a autodeterminação do sujeito racional o
emancipa, o coloca acima de interesses externos à sua
vontade. Assim é, e o homem livre é casto, puro, se
emancipa, nunca será usado como um meio, mas será livre
para saber o que quiser. Sapere aude, ousar saber, iluminar-se
e aprender a pensar por conta própria, esse o destino do ser
humano, se é que a vida humana tem algum sentido. Este é o
ponto de ruptura, onde você quebra a rotina do eterno
retorno e abre uma perspectiva em espiral, na qual será
possível acumular novas vivências sobre uma alma casta,
livre de antigos pecados e da culpa.
O Chianti está gelado no balde e Angela Hartnett se posta
diante de mim. Desculpe interromper a conversa ao telefone,
apenas gostaria de saber se o vinho está bom, se a salada de
polvo estava a contento. Você é sueco ou alemão? Ou é outro
idioma? Retiro os fones de ouvido, olho para ela e imagino
que estou sorrindo. Vivo em Estocolmo. Sua comida me traz
lembranças maravilhosas. E o que podemos fazer para
tornar sua felicidade ainda mais completa? A tainha com
erva-doce e abobrinhas tornaria este momento perfeito. Ela
move a cabeça, em sinal positivo, e se retira, mas deixa no ar
um reflexo do seu sorriso. Sei que Angela vem pouco ao
Murano, agora que é uma celebridade, e dizem que não sorri
muito. Mas agora seu sorriso se irradia, interfere no
ambiente, produz uma espécie de luminosidade que
permanece diante de mim por alguns segundos.
Você está pronto para receber uma nova alma? Sim, Agnes,
agora posso aceitar que sou um novo homem, sem precisar
pedir perdão a mim mesmo, porque já não sou aquele que
cometeu monstruosidades. Estou pronto a começar uma
vida completamente nova. Já não penso mal de mim. Sou o
que sou, e o simples fato de existir me faz bom, ou pelo
menos inocente, no sentido anglo-saxão de not guilty. O

157
LUCIANO MARTINS COSTA

julgamento político não se aplica a quem vive plenamente


sua individualidade, sem ser por isso sujeito a escrutínios.
Quando se refere a alguém que rejeita ou abdica da vida
social, o julgamento político é uma contradictio in adjecto, ou
seja, uma contradição semântica na qual um dos termos, ou
ambos, conduzem a significados nulos: não se pode julgar
politicamente quem não participa do jogo político, quem se
afastou voluntariamente do embate ideológico e apenas vive
a cada dia seu próprio mal ou seu próprio bem. Você fala
latim. Entendemos naturalmente latim, grego, sânscrito, os
idiomas de cada tempo, porque lemos os pensamentos dos
homens.
O garçom estranha quando pago a conta em dinheiro vivo.
Esse fato reforça em mim aquela convicção: estão todos tão
viciados nesse jogo das opiniões, como está o comércio
acomodado a negociar mercadorias e serviços mediante a
apresentação de um cartão de plástico ou um código
digitado no aparelho celular. Apenas um reparo: você ainda
pode ser julgado por atos que praticou quando era um
ativista político, porque todo ato tem consequências e seus
atos deixaram rastros que podem ser facilmente revelados.
Não com o presidente que os chilenos escolheram. Em
poucos meses ele terá feito desaparecer o que restar de sinais
daqueles tempos. Foi para me tranquilizar que me
convocaram. Se chegaram a cogitar meu retorno, como
possível candidato a cargo público, é porque sabem que meu
perfil está limpo.
Então você está livre politica e metafisicamente, pode se
beneficiar da formação tardia da consciência moral de toda a
sociedade ocidental, talvez até desenvolver a potência de
responsabilizar-se por si e pelo futuro do povo chileno. O
que impede que você construa sobre o seu passado
inadmissível uma história edificante sobre o exilado que
volta ao lar para contribuir com o grande projeto nacional?
O que resta de senso crítico no Chile está enfurnado nos
cafés, nos saraus inocentes de poetas e sociólogos, enquanto
brilham na mídia as mentes sem lembrança dos idiotizados

158
CONTRAPARTO

da pós-modernidade. Nunca acreditei na pós-modernidade,


Agnes. Já é tempo de se convencer de que a modernidade se
esgota com o triunfo da sociedade de massas, meu caro. Mas
a sociedade de massas não seria um retrocesso no processo
civilizatório? Sim, por isso é rematada estupidez classificar
como pós-moderno o comportamento alienado, apolítico,
individualista, alimentado a memes e mitos bombardeados
pelas mídias digitais. Você parece um anjo pós-moderno,
Agnes. Muito engraçado, mas não resolve nosso problema,
Inácio. Você precisa fazer uma escolha, e para isso deve
renegar o que aprendeu sobre a natureza humana em
Estocolmo. Reconheça que o conhecimento imparcial e
objetivo da realidade é uma fantasia. Uma utopia? Não, uma
alegoria religiosa, filha bastarda do iluminismo. No entanto,
para ser intelectualmente honesto... Ora, ora, não há
honestidade intelectual no contexto que vocês, humanos,
desenharam para a sociedade contemporânea. Para existir
honestidade intelectual é preciso haver atividade intelectual
livre, profunda, criadora, e isso é uma impossibilidade, pois
exigiria condicionantes éticas absolutas, o que eliminaria a
hipótese da autonomia do sujeito que pensa. Construímos
uma sociedade sem saída? O que você imagina que acontece
quando se rompe o contrato social, como vocês fizeram no
Chile? Mas houve eleições depois, e no entanto os chilenos
seguem escolhendo o mesmo programa. Isso porque vocês
apagaram o contraditório, desequilibraram o jogo,
eliminaram o senso crítico. E o livre arbítrio, não seria
natural do ser humano, ainda que apenas em pensamento?
Não existe livre arbítrio nem cativo arbítrio. O que há é só o
que se manifesta, e o que se manifesta nunca resulta de uma
escolha puramente individual, porque o homem natural saiu
da caverna há milênios, embora o individualismo continue
tentando sobreviver. Mas basta olhar outro ser humano, e
mais uma vez se restabelecem os laços de dependência
mútua. É isso o eterno retorno? Estamos condenados a
repetir eternamente o bem e o mal que fazemos? Essa é a
armadilha que vocês criaram e que só pode ser rompida pelo

159
LUCIANO MARTINS COSTA

mal. Tenho lido que vivemos uma distopia, o contrário da


utopia. Não. Não seja ignorante. Distopia, na melhor das
hipóteses, é um paralogismo. Na hipótese mais provável, é
um embuste. Por que? Ora, se utopia é o não-lugar onde a
realidade contempla os melhores sonhos de harmonia e paz,
distopia não pode significar o oposto de utopia. Distopia é
apenas o status quo, o que há, o lugar dos humanos, não tem
relação com a ideia de um estado idealizado de bem-estar
geral. O contrário de utopia é ilusão. Então, se para mim,
naquele tempo, utopia era uma sociedade em absoluta
ordem, onde a paz e a harmonia haveriam de reinar porque
todo opositor teria sido neutralizado, por que eu me sentiria
culpado? É esse o ponto: você não tem de se sentir culpado.
Você não é pior do que suas vítimas. Tem certeza de que
você é um anjo? Sim, sou Agnes, o anjo da castidade e da
pureza. Vivo, como todos os anjos, em estado de graça, que é
o grau mais elevado a que uma alma pode aspirar. E o
estado de arte? Bom, esse estado nos é vedado, pois não
temos arbítrio. Tudo que somos nos é concedido. Então o
homem pode mais? Pode, por exemplo, aspirar ao estado de
arte? Sim, mas o homem é mortal, prefere se resguardar na
fé em vez de arriscar a alma no conhecimento de si, tarefa
interminável. Mesmo assim, a maioria não alcança mais do
que alguma graça ao longo de sua curta existência. Quanto
vive um anjo? No tempo dos homens, séculos, milênios,
teoricamente enquanto pudermos cumprir nossas missões.
Mas também nós declinamos, então temos que nos reciclar, e
eis-me aqui observando este espantoso mundo dos
humanos. O que é necessário para viver em estado de arte?
Primeiro, é preciso emancipar-se da tutela divina. Negar a
Deus? Não, é viver além dos preceitos divinos. Você quer
dizer: cumprir os mandamentos sem necessidade de
coerção? Sim, e não posso dizer que não há um deus, porque
sou um anjo. Pense no seu caso: se há um deus, se vocês só
podem compreendê-lo pela religião, se a religião é
normatizada pela teologia, não deve haver dúvida de que a
ressurreição só é possível com a negação da culpa, a

160
CONTRAPARTO

construção de um novo ethos, que dá direito a uma alma


completamente nova, em estado de castidade. Se não há um
deus, quem vai se importar com a castidade? Basta eu estar
arrependido para recomeçar? Depende. Você se sente
preparado para defender esse direito? Sim, estou convencido
de que tenho direito a uma nova oportunidade. Então,
escolha bem as palavras quando reencontrar aquela mulher
com quem deseja seguir vivendo até seus últimos dias. Não
se traia, nada confesse, invente uma desculpa para o seu
retiro, pense e aja como se nada tivesse acontecido. Você é
um novo homem, assuma-se como indivíduo autônomo,
aprenda a mitificar a si mesmo, já que em sua própria
natureza você seria um ser desprezível. Faça constantemente
a afirmação de si, você acaba de descer da montanha com o
grande segredo. Se você puder dizer, como o poeta, talhado
em penumbra sou e não sou, mas sou, então terá conquistado o
direito a viver nessa sombra de si mesmo, o homem ao meio-
dia, solitário por opção, porque à direita ou à esquerda, à
frente ou atrás está a dor. Se há alguma legitimidade nos
anseios do homem, a rejeição da dor é seu ponto central.
Fuja da dor de ser essa fantasmagoria.

Formatado: Normal, Recuo: Primeira linha: 0 cm

19 – SONATA

Eu sonhava com Sofia quando soou o interfone no quarto.


Nada muito estranho, apenas caminhávamos pelo
Kungsträdgärden, em Estocolmo, num dia ensolarado. Eu
empurrava o carrinho onde repousava Maria, ainda bebê.
Gustaf, quase três anos mais velho, andava solto, logo à
frente. Lembro-me bem dessa cena, que se repetiu muitas
vezes, ano após ano, sempre que começava o verão, até que
as crianças cresceram, foram para a universidade e daí para

161
LUCIANO MARTINS COSTA

o mundo. Mas, no sonho, Sofia virou o rosto para mim,


repentinamente, e perguntou: "O que você acha mais
elevado, o estado de graça ou o estado de arte?"
É Sofia, informam da recepção. Peço que suba, e me dirijo ao
banheiro. Lavo o rosto sem pressa e me olho no espelho:
meu rosto está relaxado, depois de uma longa noite de sono,
e pareço bem, apesar da barba por fazer. Ainda tenho tempo
para me trocar, o relógio da cabeceira marca quase 10 horas.
Nada me ocorre, a não ser a inevitabilidade de uma longa
conversa e algumas queixas, e depois tudo será como antes,
a velha harmonia dos muitos anos de vida conjugal
assentada sobre um estado de pleno bem-estar.
Quando bate à porta, estou pronto. Ela entra com o rosto
afogueado, larga a pequena mala e a bolsa no chão e se atira
em minha direção. Me abraça e soluça como uma criança, e
não sei se ri ou se chora, pois suas palavras soam calmas
para a circunstância. Pela primeira vez em muitos dias
também me sinto sereno, como se nada houvesse acontecido
de anormal. Por que você não deu notícias? O que está
fazendo aqui em Londres? Por que não deixou ligado o
telefone? Precisei pedir a ajuda de amigos, da embaixada,
liguei para a operadora do celular, do cartão de crédito — e
suas palavras iam se acumulando, sem que eu sentisse
qualquer incômodo. Fiz com que se sentasse numa poltrona,
apanhei suas coisas e fechei a porta. Quer um café? Temos
todo o tempo pra conversar, não se apresse. Quero um café,
sim, diz, aparentando estar se acalmando. Por sorte, seu
último sinal de vida foi aqui em Woolwich, pude localizar
pelo saque que você fez, mas antes estive naquele Hotel
Rembrandt, lembra? Ainda tenho o cartão, veja. Me abraça.
Pelo menos parece estar bem, fisicamente. Mas o que houve?
Tive um, como se diz, mesmo? Um kollaps, senti necessidade
de pensar, de ficar sozinho por um tempo. Mas por que não
me disse? Eu teria compreendido, você quer um tempo do
nosso casamento, é isso? Ou tem alguma outra pessoa na
história? Ela faz uma expressão de angústia que nunca tinha
notado em seu rosto. Não, Sofia, não quero um tempo do

162
CONTRAPARTO

nosso casamento, e não há ninguém nessa história além de


mim mesmo. No meio da viagem, senti necessidade de
repensar minha vida. Você quer um ristretto ou um café mais
suave? Quero um ristretto, ou algum mais intenso, se houver.
Vou fazer dois cafés fortes, acho que também estou
precisando. Tenho de ligar para os meninos, Gustaf e Maria
ficaram muito preocupados, queriam vir comigo, mas
imaginei que seria melhor termos uma conversa privada, só
nós dois. Vai ao banheiro, com o celular na mão, enquanto
preparo os cafés. Ouço sua voz, tem um tom mais calmo,
parece conversar com Maria, e me vem à cabeça o denso
diálogo entre Charlotte e Eva, Ingrid Bergman e Liv
Ullmann, é Sonata de Outono diante de mim. Maria é como
eu, reservada e contida, nunca chegou a desenvolver uma
relação próxima com Sofia, que claramente prefere nosso
filho, desde sempre um menino alegre, expansivo, que
pouco ligava para minha presença. Talvez ela buscasse em
Gustav a suposta descontração dos latino-americanos que
nunca encontrou em mim. Maria, ao contrário, procurava
minha companhia, e nós dois precisávamos apenas disso, a
percepção da proximidade um do outro, sempre nos
entendemos com poucas palavras. Melhor: nem
precisávamos de fato nos entender. Bastava a ela saber que
eu estava ali, para mim era suficiente olhar de vez em
quando e ver que estava lendo, ou se distraindo com um
brinquedo. De certa forma, a família havia se ajustado ao
meu modo de ser, à minha necessidade de viver quase
clandestinamente em minha própria casa. Como em todas as
ocasiões em que as duas foram obrigadas a estabelecer uma
conversação mais séria, estariam agora se desentendendo.
Maria estaria dizendo: As falhas da mãe são pagas pela filha. A
infelicidade da mãe é a infelicidade da filha. Será que a infelicidade
da filha é o triunfo da mãe? Mãe, será que a minha tristeza é a sua
satisfação secreta? — enquanto Sofia, se justificando por sua
frieza, responderia: Eu não queria ser sua mãe, eu queria que
você soubesse que sou tão indefesa quanto você. Eu me aproximo
com a bandeja do café e constato que não se repete ali o

163
LUCIANO MARTINS COSTA

filme de Ingmar Bergman: a conversa flui tranquila, Sofia diz


que me encontrou bem, que apenas precisei de um tempo
para refletir. Talvez o choque do encontro com o passado,
alguma lembrança que o fez procurar um pouco de
isolamento. Sabe como é seu pai, sempre muito fechado, de
poucas palavras. Maria quer falar com você, e me passa o
telefone. Oi, filha. Tudo bem? Ainda não foi desta vez que
consegui me livrar de vocês, não é? Pai, o que aconteceu?
Você está bem? Sim, filha, estou bem, quero ficar aqui em
Londres mais uns dias, vamos ver se sua mãe concorda,
depois marcamos um almoço com toda a família, lá em casa.
Sim, pai, que susto você me deu. Por que não me avisou que
precisava se isolar um pouco? Nós estávamos sufocando
você? São as crianças? Não, querida, ninguém me sufoca,
muito menos você ou as crianças. Então está bem, pai,
esperamos vocês nos próximos dias. Um beijo. Devolvo o
telefone para Sofia, ela senta na poltrona e toma o café
lentamente, enquanto volta a ligar, desta vez para Gustav.
Encontrei, sim, filho. Ele está bem, apenas estava precisando
refletir um pouco. Não, não sei, mas vamos ficar aqui em
Londres uns dias e aos poucos ele vai se abrir. Fique
tranquilo, ele está bem, até engordou um pouquinho.
Termino meu café e vou ao banheiro fazer a barba. Quando
volto, a conversa já deriva para outro assunto, era sempre
assim entre mãe e filho, uma necessidade de se falar, de um
ouvir a voz do outro, que nunca entendi. Neste momento,
interpreto esse desperdício de palavras como um retorno ao
ponto de partida. A família vem em meu resgate, e não me
resta alternativa a não ser aceitar aquele aconchego, mãe e
filho se entendendo no meio de uma profusão de
concordâncias, mãe e filha atritando-se uma à outra mesmo
com poucas palavras, filha e pai dialogando em silêncio,
aceitando-se mutuamente em silêncio.
Volta à minha mente a hipótese da sonata e imagino que
essa forma musical representa bem a composição desta
viagem. Foi a estrutura predileta de Beethoven, que nasceu
quando Swedenborg fazia a exegese de suas conversas com

164
CONTRAPARTO

anjos nas ruas de Londres. Mas se assim for, este não é o


capítulo derradeiro, pois as sonatas clássicas se encerram
com um movimento rápido, allegro, e devo lembrar que a
volta para casa significa muito menos intensidade. Se tivesse
de definir nossa rotina doméstica em termos musicais, eu
diria que vivemos de andante a moderato. Talvez alguma
composição tardia de Beethoven, em que o princípio trágico
se desfaz em conflitos harmonizados organicamente, sirva
como metáfora do que me espera em Estocolmo. Mas sei que
não existe no meu horizonte nada que se possa chamar de
maestoso. No máximo, devo contentar-me com uma ou outra
passagem em allegretto, pois, ainda que consiga manter na
sepultura do silêncio aquilo que fui, sei que precisarei me
manter atento à minha própria consciência, às armadilhas do
pensamento. Sofia deita a cabeça no meu colo, me acaricia, e
uma súbita ereção é a reação orgânica aos sentimentos que
se acumulam desde minha partida de Estocolmo. Ali mesmo
no pequeno sofá praticamos aquele sexo de muitos anos
antes, feito de doação e compartilhamento, sem arroubos
nem excessos, apenas um sexo bom e reconfortante.
Você me perguntou se prefiro o estado de arte ou o estado
de graça. Como assim? No sonho, pouco antes de chegar,
estávamos passeando no parque com as crianças, você me
perguntou: O que você acha mais elevado, o estado de graça
ou o estado de arte? E o que você respondeu? Nada, o
interfone tocou e você subiu. Agora estou pensando nisso.
Abraçados no sofá, ela tem a perna esquerda sobre as
minhas, está completamente nua. Seus olhos azuis parecem
tão transparentes que imagino poder enxergar seus
pensamentos. O estado de graça só se aplica a quem acredita
num deus, num ser superior a toda a humanidade, assim
como no tempo do absolutismo se aceitava que o rei era
senhor da vida e da morte de seus súditos, podendo
conceder esta ou aquela graça, conforme um merecimento
que ele mesmo arbitrava. Isso se aplica apenas a uma relação
de subserviência, o que limita claramente o alcance da graça.
Mas o estado de arte também não depende da capacidade

165
LUCIANO MARTINS COSTA

humana de criar, imaginar, inventar? Claro, querido, mas


nesse caso estamos falando de uma capacidade evolutiva de
cada indivíduo, de talento, vivência, conhecimento e
liberdade, sem o condicionamento de dogmas religiosos ou
dos parâmetros de fé.
O que houve com você no Chile? Tivemos um diálogo muito
parecido há um mês, quando os meninos estiveram lá em
casa, lembra? Sim, agora me recordo, e o que eu disse? O que
você disse naquele dia foi exatamente isso que repeti agora:
que uma das provas de que a religião limita a potencialidade
humana é a diferença entre estado de graça e estado de arte.
Citou até o Swedenborg, nosso velho padrinho Swedenborg.
Sim, eu falei da minha interpretação de sua teologia. Achei
muito interessante, você disse que os seguidores de
Swedenborg não entenderam que ele estava falando de
metafísica, não dos espíritos. Isso mesmo, entendo que ele
chegou ao limite do que poderia ser dito naquela época sem
ofender as autoridades da igreja e do estado ou mesmo a
consciência comum. Para quem já tinha desvendado alguns
enigmas do universo, como a natureza ondulatória da luz, a
teoria atômica e a origem dos planetas a partir de espirais de
imensas nuvens de poeira e gás, não fazia sentido recuar
para um olhar religioso sobre o cosmos. Ele deixou muitas
pistas de que estava se referindo ao mundo físico e a certas
potencialidades da natureza humana quando falava de
anjos. Estou bem convencido de que agiu mais ou menos
como Thomas More ao publicar sua Utopia, que dissimulou
com muita ironia suas concepções sobre a sociedade perfeita,
o que levava a comparações evidentes com o governo
despótico de Henrique VIII. A diferença entre os dois é que
ele viveu até os 84 anos e More foi decapitado aos 57.
Você passou todos esses dias estudando Swedenborg? Não,
mas usei muitas de suas ideias nas minhas reflexões. E o
que, exatamente, te perturbou tanto no Chile? Neste ponto
me levanto, lembrando como Sofia é capaz de adivinhar
meus pensamentos, de auscultar os sentimentos mais
reclusos de minha alma. Vou tomar um banho, que tal a

166
CONTRAPARTO

gente ir comer no restaurante de Angela Hartnett? Sim, boa


ideia, fomos lá quando você estava terminando o curso de
economia política. Como se chama mesmo? Zafferano, não
é? Não, ela agora está em outro endereço, o Café Murano,
em Covent Garden. Você foi lá sozinho, sem mim? Querida,
nestes dias só não estive completamente solitário porque os
anjos de Swedenborg vieram conversar comigo. E o que eles
disseram? Que eles não são necessários porque tenho você.
Entro no banheiro, deixo a porta aberta e ainda ouço: Você
está diferente, mais leve, mais falante. Pelo jeito, esses anjos
te fizeram muito bem. Ainda antes de cair sobre mim a
ducha quente, meu corpo exala vapores e estremeço, como
na ocasião em que quase morri de insolação em Punta
Concón.
Reconheço, projetado no vidro esfumaçado do box, o
espectro de Amaliel. Não tenha medo, ela não pode nos
ouvir. Nossa conversa acontece apenas na sua mente, eu
nem existo fora destes encontros. Sou ativado como um
desses aplicativos de inteligência artificial, por suas próprias
angústias. E o que você quer de mim? Já não cumpri todo o
seu protocolo? Sim, venho apenas para dizer que você está
livre de suas memórias mais tenebrosas, você tem uma alma
virgem e pode gravar nela uma nova vivência. Obrigado, já
notei que estou mais leve, como se fosse outra pessoa.
Preciso me assegurar de que você entendeu o que isso
significa, as sequelas que você poderá enfrentar. Como
assim? Vou ser o mais claro possível. Você se sente outra
pessoa porque é outra pessoa. Originalmente, você tem uma
fratura no cérebro, um fracionamento nas operações
cerebrais. Você quer dizer que sou esquizofrênico? Não,
você era esquizofrênico, e teve a oportunidade de funcionar
numa fração socialmente aceitável enquanto viveu sua boa
vida burguesa em Estocolmo. Na volta ao Chile, retornou à
porção perversa, e o conflito se estabeleceu, porque você não
podia mais aceitar aquilo que havia sido. Quando isso
aconteceu? Naquele sonho em que o território chileno sofre
uma sucessão de fraturas e sai à deriva, lembra? Sim, era eu?

167
LUCIANO MARTINS COSTA

Você, a ruptura com sua origem. Meio óbvio, me parece. Até


um pouco banal, pseudamente científico. Mas é simples
assim, porque você é um clássico. Sim, eu me sentia
fragmentado. Depois, ao mergulhar progressivamente nos
fundamentos do mal, enfrentando suas memórias, você
desenvolveu uma nova racionalidade, pela qual a vida só faz
sentido se mantiver a negação daquilo que foi. Se não sou
mais esquizofrênico, o que sou, um homem normal? Defina
normal. Alguém que é capaz de viver uma existência
comum, contentar-se com o estado de bem-estar que a vida
lhe proporciona. Sim, nesse sentido você pode se considerar
um homem comum, apesar de dissociado. Como assim?
Assim: você superou o fracionamento do cérebro assumindo
uma personalidade dissociada, depois do processo mental
complexo no qual seu ego se desintegra, criando um alter
que irá lidar com a situação estressante. Quer dizer que uma
nova anomalia cura minha patologia original? Eu chamaria
de transtorno. Um transtorno dissociativo de identidade
pode evoluir para um transtorno de dupla identidade, se
não houver um afastamento completo da razão. Mas tudo
isso é completamente subjetivo. E o que não é subjetivo?
Onde fica a realidade, na sua história pessoal? Ou você quer
dar o passo atrás e falar de Amanda e contraparto? Não, eu
não quero e não posso. Então, tome as rédeas da sua nova
identidade, trate de incorporar à sua nova percepção tudo
que lhe pareça real e seja prazeroso. Faça como seus
compatriotas chilenos, evite quanto possível enfrentar as
questões mais profundas, alimente-se de platitudes,
acostume-se a viver na superfície do pires emocional e
intelectual, assista muitos programas estúpidos na televisão,
nada de Bergman, fuja do teatro de Ibsen, abomine
Strindberg, contente-se em apreciar a arte apenas por prazer
estético, gostei-não-gostei, leia os jornais diariamente e
procure neles somente as opiniões que confirmem suas
convicções, e mesmo assim evite os autores muito densos,
não se aproxime de escritores que não contam historinhas e
se demoram no relato do fluxo de consciência de seus

168
CONTRAPARTO

personagens — esses são veneno mortal para seu ego


fragilizado, como para todos os fracos. Por que todo esse
cuidado? Porque você tem pouca tolerância a sofrimento;
curiosamente, para quem infligiu e admitiu tanto sofrimento
a seus semelhantes. Do que você está falando? Nada, nada.
Na verdade, esse seu diagnóstico me parece confuso e
sujeito a controvérsia. Claro, sou um anjo, não um
psiquiatra. Se você é, deve estar em algum lugar. Onde,
exatamente, você vive, em que parte do meu cérebro? Vivo
no seu mesencéfalo, também chamado de pedúnculo
cerebral. Nós, os anjos de Swedenborg, somos uma espécie
de guarda de fronteira, fiscalizamos os estímulos que entram
ou saem do sistema da sua mente, como um antivírus. Só
mais uma recomendação: evite emoções fortes.
Sofia bate na porta de vidro. Está lavando a alma? Por que
essa demora? Também quero tomar banho e estou morrendo
de fome. Refaço mentalmente o trajeto até o Café Murano, e
esse exercício me parece o primeiro passo para minha volta à
casa, o retorno a mim mesmo.

20 – LAR

Pai, estive lendo um artigo seu, publicado há bem uns dez


anos, em que você fala em saudade do futuro. Mas você não
se aprofundou nessa questão, parece que usou isso só pra
inserir o tema central. O que queria dizer com essa
expressão? Tenho apenas uma vaga lembrança desse meu
artigo. Acho que era sobre um debate em torno da política
econômica da Suécia. Eu queria dizer que o mais comum é
termos saudade do passado, porque em geral tendemos a
idealizar aquilo que chamamos de os velhos bons tempos,
mas também é possível desenvolver uma perspectiva

169
LUCIANO MARTINS COSTA

nostálgica de alguma coisa que ainda não aconteceu, ou seja,


quando temos uma visão de futuro, coisa que fazemos quase
toda hora, criamos uma memória dessa possibilidade, e essa
memória pode se tornar tão forte quanto a lembrança de um
fato ou sentimento que realmente aconteceu. Interessante, é
um tema que você podia desenvolver melhor. Já não tenho
tanto interesse nessas lucubrações. Mas é interessante pensar
que a gente pode ter saudade de alguma coisa que ainda não
aconteceu e que provavelmente nunca irá acontecer, como se
fosse uma nostalgia de um sonho. Você não tem sonhos que
gostaria de sonhar novamente? Filha, nesta altura da vida só
me resta a contabilidade dos sonhos que realizei. Não tenho
nenhuma necessidade além do que me cerca nesta casa. Sua
mãe, você e seu irmão, meus netos e a biblioteca, que, aliás,
está quase totalmente obsoleta. A gente quase nunca fala de
sua origem e de sua infância no Chile. Entendo que não
queira lembrar o tempo da ditadura, nem imagino o que
seria viver num lugar onde uma simples discordância
política poderia significar a perda do emprego, da liberdade
ou mesmo a morte. Mas talvez fosse bom trabalhar essas
memórias, conversar com a gente, com um profissional,
sobre seus sentimentos nessa época; não só as lembranças,
mas também isso, exatamente esse tema que aparece no
artigo, a saudade que você sente ou sentiu de um Chile que
poderia ter sido mas foi amputado pelo golpe militar.
Maria, já tentei fazer seu pai enfrentar esses fantasmas,
passei boa parte do vôo tentando convencê-lo a se abrir, até
para evitar que volte a ter esse piripaque e acabe
conversando com espíritos nas ruas de Londres. Anjos, eram
anjos, não espíritos, Sofia. Swedenborg, outra vez? É,
Gustav, falamos muito de Swedenborg nesta casa, e se não
fosse ele vocês talvez nem existissem. Seríamos apenas
lembranças do futuro, certo, Maria? Isso, mano. Eles
estariam agora sentados aí, sozinhos, olhando fotos de nós
dois, crianças, que na verdade nem teríamos nascido. Ou
estamos aqui e de repente, as fotos do álbum começam a se
desvanescer, e nós mesmos nos tornamos cada vez mais

170
CONTRAPARTO

transparentes, até desparecermos totalmente, com nossos


filhos, porque papai e mamãe confessam que Swedenborg
era uma invenção deles.
A conversa segue em tom de brincadeira entre os dois
irmãos e a mãe; os netos estão em outro cômodo, e me sinto
tranquilo neste ambiente. Acho que posso manter essa
serenidade pelo resto da vida, até que, talvez, a senilidade
venha bater em minha porta. Aí, então, nada mais vai ter
importância, porque tudo que eu disser será tido na conta da
insanidade. Também estou seguro de que ninguém vai se
lembrar de mim no Chile, porque os chilenos encontraram a
fórmula mágica para abortar qualquer sonho idiota de
emancipação e estão completamente satisfeitos com o
arremedo de democracia que criaram.
Ouço as risadas, acompanho distraidamente os comentários
de Sofia, aprecio o bom humor de Gustav, observo que até
Maria está mais falante, mais solta, parece ter se formado
uma certa cumplicidade entre ela e a mãe, o que me
surpreende agradavelmente. Imagino que essa mudança se
deve ao susto que provoquei por ter deixado de me
comunicar com a família durante duas semanas, então ouço:
Mas onde ele se enfiou durante o mês inteiro? — e me dou
conta de que muito mais tempo havia se passado desde que
embarquei para Santiago. Resolvo entrar na conversa para
evitar que entrem em especulações. Passei muitos dias na
varanda de um hotel, simplesmente olhando o mar. Sozinho,
pai? Claro, filho, com quem estaria? Já perguntei sobre isso,
ele disse que não tinha mais ninguém nessa história. Foi a
primeira coisa que você quis saber quando me encontrou em
Londres. Claro, essa seria minha primeira pergunta se meu
marido ficasse sem dar notícia por tanto tempo. Por falar
nisso, onde está seu marido, Maria? No estaleiro,
preparando a Bibi para nossa viagem de verão. Sim, a
família chama o barco de Björn, meu genro, por seu nome de
batismo. Neste ano, o plano é navegar até Gotland,
contornar a ilha e passar um tempo em Visby. E Ingrid,
Gustav, onde está? Por que não se juntou a nós? Foi visitar a

171
LUCIANO MARTINS COSTA

família dela em Lund, pai; a mãe dela tem estado doente. Ela
nos ajudou a te localizar e depois que mamãe avisou que
tinha te encontrado, foi passar uns dias em Lund.
Aliás, o que você teve foi uma crise de ausência? Teria sido a
crise de ausência mais longa de toda a história da medicina,
Gustav. Crise de ausência demora alguns segundos. Crise de
ausência, não sei, você que é médica. Não, Gustav, acho que
foi só uma crise emocional, talvez provocada pela
constatação do que poderia ter sido minha vida se eu não
tivesse vindo para cá, se não tivesse conhecido sua mãe. Que
bonitinho, né, mãe? Se nunca tivesse ouvido falar de
Swedenborg, né? Certo, Gustav, você nem tem ideia de
quanto isso tem sido crucial na minha vida. É mais ou menos
como a brincadeira que vocês fizeram: todo bem-estar que é
minha vida seria só um sonho e eu estaria, sei lá se ainda
estaria vivo. Então, já que nos deve a vida e a felicidade, que
tal começar a pagar minha parte com mais uma taça desse
vinho?
As horas passam depressa quando se está tranquilo. Lembro
da resposta de Einstein quando Roosevelt pediu uma
explicação sucinta para a relatividade do tempo: se você
caminhar sobre brasas, um segundo vai parecer uma
eternidade, mas se estiver na cama com uma bela mulher, o
tempo vai passar muito mais rápido. Bom, acho que está na
hora de ir. Daqui a pouco Björn deve estar de volta e ainda
preciso comprar alguma coisa pro jantar.
Os filhos se despedem, ganho abraços incomuns na rotina da
família, ganho beijos dos netos, Sofia e eu vestimos nossos
casacos e os acompanhamos até a rua, então proponho dar
uma caminhada, o ar está fresco e nossa rua é tranquila, sem
os cafés e clubes noturnos que ocupam o lado mais ao sul do
bairro. A conversa me cansou um pouco. Também me
ressinto do estresse dos últimos dias, do mês inteiro, na
verdade, e me distraio com a hipótese de que este momento
seja mais um capítulo da fantasia que venho vivendo, então
Sofia chama a atenção para a coloração das árvores, me
lembro que estamos entrando na primavera.

172
CONTRAPARTO

Um fiozinho de angústia ainda me incomoda e pergunto a


ela se não lhe ocorre que podemos viver duas realidades
simultâneas e acreditar nas duas possibilidades. Desde
Platão, pelo menos, os humanos confrontam essa
possibilidade de viver em dois mundos, o mundo das ideias
e o mundo sensível. Simultaneamente? Não, de forma
complementar. Sim, lembro do mito da caverna e tudo o
mais, apenas me questiono se aqueles pensamentos que me
ocuparam nas últimas semanas têm alguma relação com a
realidade. Têm relação com sua realidade naquele momento,
ou com as memórias que você invocou. Se algumas dessas
memórias fazem você sofrer, é porque estão incrustadas na
opinião que você tem de si mesmo, e essa opinião é negativa,
condenável. Neste momento, desde que voltei, eu me sinto
tranquilo, sereno, e nenhuma daquelas ideias voltou a me
atormentar. Você pensou em suicídio? Não, pelo menos não
como uma possibilidade concreta, mas em alguns momentos
me passou pela cabeça a opção de fechar os olhos e dormir
até que a angústia passasse. E você ainda não sabe o que foi
que provocou essa angústia? Sei e não sei, ou sei e não posso
admitir. Acho que você deveria consultar um
psicoterapeuta, pelo menos para pedir uma orientação.
Preciso de uns dias para respirar. Ainda estou processando
tudo isso e tenho que organizar a memória desses dias.
Semanas. Sim, dessas semanas, para selecionar o que
realmente me incomodou nesse episódio. A aprendizagem
nos transforma, e você pode usar essa vivência pra dar um
passo adiante, se aceitar como um homem maduro que
adquiriu dignamente o direito ao bem-estar. Mas no fundo de
todos nós, lá embaixo, existe um destino espiritual, de decisões e
respostas predeterminadas a seletas perguntas predeterminadas —
o pensamento me ocorre como vindo de fora, o que me
assusta um pouco, e digo apenas nem tudo se transforma, a
essência do que somos, a alma, ou como a chamarmos,
permanece até o fim da vida, embora eu acredite que
podemos aceitar certas imposições. Aceitar que você merece
um destino melhor do que os chilenos que ficaram lá, velhos

173
LUCIANO MARTINS COSTA

amigos, parentes, é disso que eu falo. Sim, sei que posso


aceitar esse bem-estar sem questionar se seria um privilégio.
Sugeri procurar ajuda profissional porque sei que você está
fragilizado e lembrei de um ditado, acho que ouvi naquele
filme biográfico sobre Margareth Thatcher: vigia teus
pensamentos pois eles se tornarão palavras; vigia tuas
palavras pois elas se tornarão atos; vigia teus atos pois eles
se tornarão hábitos; vigia teus hábitos pois eles se tornarão
teu caráter; vigia teu caráter, porque ele se tornará teu
destino. A grande mágica da psicanálise está justamente em
propor a verbalização dos sentimentos, ou seja, o controle da
primeira etapa desse processo de construção ou
transformação de um destino. Você diz que ao falar sobre
alguma coisa em que estamos pensando podemos
influenciar os atos que virão em decorrência desses
pensamentos? Sim, e daí por diante, você adquire algum
controle sobre os atos costumeiros, o hábito, que afinal
define o que você vai ser. Mas no fundo de todos nós existe
um destino espiritual, composto de decisões e respostas
predeterminadas a seletas perguntas predeterminadas.
Inácio, sei que você adora Nietzsche, mas não pode
interpretar literalmente sem lembrar o que ele disse um
pouco antes: que a aprendizagem nos transforma. E depois,
Sofia, não esqueça o que ele diz em seguida: em todo
problema cardinal fala um imutável "sou eu", onde acaba
chegando o pensador que pretende realmente saber sobre o
ser humano, saber de si, porque nada se aprende sobre o
homem se não se for até o fim, até aquele ponto em que se
manifesta a fé, talvez chamada de "as convicções". Olho de
soslaio para ela e me pergunto quantas pessoas no Chile
teriam o privilégio de uma conversa assim com a mulher, em
quantos casais um cônjuge em crise teria a oportunidade de
ser acolhido num acolchoado de compreensão tão pleno de
sentimento e racionalidade, então prendo os ombros dela e a
beijo, abafando a frase que ela ia dizer, ela me beija de volta
e continua: e mais adiante encontramos nas conviccções
apenas algumas pistas para o auto-conhecimento — então

174
CONTRAPARTO

complemento: mais exatamente, para a grande estupidez


que nós, os humanos, somos, para aquele fado espiritual, lá
no fundo, o que não aprende. O auto-conhecimento pode
espantar, ela diz.
As luzes que se lançam a partir da Storgatan, logo adiante,
atraem meu olhar como a uma mariposa e puxo Sofia pela
mão, suavemente, para a rua comercial, mas ela resiste,
indicando que prefere ir para o lado oposto. Então,
passamos outra vez em frente ao prédio onde moramos e
observo que o jardim foi remexido há pouco, ela diz logo
teremos rosas novamente, passamos pelo portão e ela me
empurra para dentro do Shinjuku. Uma travessa cheia de
sushi, é disso que precisamos agora, não de filosofia
derrotista.
Sofia retoma a conversa no ponto onde havíamos parado
para falar do tema que mais a incomoda em Nitzsche: a
questão feminina. Não consigo me conformar que ele diga
que a busca de afirmação da mulher provoca o enfeamento
geral da Europa! Ele parece assustado com o movimento
feminista do século 19, que chamou de "grosseiras tentativas
de cientificidade". Ele estava preocupado com algumas
mulheres que tentavam explicar como deveriam ser tratadas
pelos homens, inclusive nas relações íntimas. Você nunca
teve medo disso, né, Inácio? Não. Bom, pra falar a verdade,
no começo fiquei um pouco assustado com sua
espontaneidade, como ia me conduzindo, pegava minha
mão, indicava onde tocar. Estava acostumado com a sem-
vergonhice envergonhada das chilenas, que normalmente só
se submetem, se satisfazem com o que sobra da satisfação do
homem. Você sonhava com um mundo onde o "eterno
feminino" fosse a eterna dependência do homem? Sonhava,
não, ainda espero que você aprenda a ser uma mulher
submissa. Ela me dá uma cotovelada. Chegamos ao portão
de entrada e observo que as roseiras estão cheias de botões.
Ela diz: ainda espero que você se torne mais falante, que
demonstre um pouco mais de afeto, como fez ainda há
pouco, na conversa com Maria e Gustav. Nesta noite,

175
LUCIANO MARTINS COSTA

fazemos sexo com interesse e desprendimento, com calma e


entrega, como havia muito tempo não acontecia. Sinto-me
leve e feliz, como se de fato estivesse experimentando uma
alma nova em folha, uma alma virgem e sem culpa, num
estado de plenitude e paz.
O sono vem naturalmente, depois de um caldo verde que
Sofia aqueceu para nós dois, mas antes de mergulhar na
inconsciência me ocorre que estou vivendo este dia como um
sonho. Adormeço com o temor de que essa serenidade não
seja para sempre, mas apenas um hiato no inferno que abriu
suas caldeiras quanto bati os olhos naquela palavra escrita
no verso de um cartão de hotel. A mente tem dessas
armadilhas, e essa derradeira sensação determina o resto da
minha noite: por mais que tente imaginar situações mais
amenas, são imagens de guerras, acidentes, violência que se
sucedem. Como uma música de fundo, ouço constantemente
uma voz a repetir: a vida do homem, solitária, pobre,
sórdida, brutal e curta. Não sou capaz de identificar de onde
vem, quem seria o autor, ou se é uma invenção de minha
própria consciência. Sei apenas que essas palavras vão
corroendo inexoravelmente as lembranças do reencontro
com minha família, o carinho de Sofia, o doce convívio
reconquistado com meus filhos e netos. Então vejo como
num quadro-negro daqueles que havia antigamente nas
escolas este conjunto de palavras: Inke tan magrov stak farsin
los kret fajne kaserte mjotron presete. Reconheço,
imediatamente, a cena de Morangos Silvestres na qual o
doutor Izak Borg enfrenta a consciência de sua frieza e de
seu desamor pela mulher e o filho. Passo algum tempo
tentando entender o que essa imagem tem a ver comigo, pois
sei que a frase não faz sentido em sueco nem em qualquer
idioma conhecido, então me lembro da explicação que Borg
recebe: a frase representa o primeiro dever de um médico, e
o primeiro dever de um médico é pedir perdão. Mas o que
poderia haver de culpa em alguém que se dedica a aliviar o
sofrimento de outra pessoa? Vai alta a madrugada quando,
exausto, consigo um pouco de paz. Mas é uma paz frágil,

176
CONTRAPARTO

que sobressalta meu espírito. Tento ainda editar um novo


sonho que se delineia, sombrio, originado em cenas de outro
filme antigo que eventualmente vem me perturbar, chama-se
After hours, sou eu nas ruas de uma Los Angeles conturbada
pela violência urbana, tentando voltar para casa mas é muito
tarde, as ruas estão tomadas pelas gangues, ou seria outro o
enredo, Warriors, em que um congresso de meliantes
irrompe numa guerra civil, e eu nela, da mesma forma
querendo encontrar o caminho de volta, fugindo no escuro,
procuro escapar do enredo inserindo um pouco da
lembrança de Sofia e do sexo gostoso que tivemos poucas
horas atrás, mas quem vejo, claramente, é outra mulher. Ela
tem um nome sonoro e doloroso, Amanda, é protagonista do
filme, foi apanhada pelos bandidos, está sendo estuprada, a
violência me excita insuportavelmente, me leva ao limite da
dor física, então a câmera dá um big close-up e vejo seu rosto
coberto de sangue, ela abre os olhos, aqueles olhos verdes
amendoados.

Excluído: ¶

21 – CONTRAPARTO

O passaporte veio num envelope que continha também um


talão de cheques de viagem em dólar americano e um maço
de notas graúdas de coroas suecas. Minha bagagem já estava
pronta quando recebi o telefonema me convocando a
comparecer à Casa Yucatán. Venha ao hotel às sete da noite,
disse o interlocutor, que se declarou a mando do tenente
Alejandro Ybarra O'Hare. Imaginei que iria receber
orientações, uma lista com nomes de exilados a serem
observados na Suécia, coisa assim. Eu já tinha em mãos
todos os documentos necessários à minha matrícula na
Universidade de Estocolmo, que me foram enviados a
domicílio, devidamente vertidos em sueco e inglês por

177
LUCIANO MARTINS COSTA

tradutores oficiais. Iria embarcar dali a dois dias. Estava


tomado por uma espécie de torpor, que se seguia a muitas
semanas de intensa atividade, o que incluía a caçada
humana na Ilha Dawson e muitas noites de interrogatórios,
dos quais haviam restado seis ou sete cadáveres a serem
pulverizados ou lançados ao mar.
No momento em que evoco estas lembranças, estou sozinho
em casa, tomando o café da manhã, que foi deixado por
Sofia sobre a mesa tendo ao lado um bilhete: Fui à academia,
volto às onze. Faz um pouco de frio, decido que em seguida
vou dar uma caminhada até o Parque Berzelii, aproveitando
o sol tímido que alivia um pouco o clima de final do inverno.
O sonho desta madrugada ainda me incomoda, e temo a
volta das alucinações. Por isso, tenho de levar adiante estas
recordações, pois sei que a melhor maneira de lidar com elas
é tomando o controle dos meus pensamentos. Tenho plena
consciência do homem que vim a ser nas últimas décadas e
agora me percebo observando aquele passado obscuro como
o ser civilizado do futuro olharia seu avatar da Idade Média.
Preciso reconhecer que fui condicionado por uma
circunstância imperativa, a autoridade do meu pai, que
viveu uma inteira vida na obsolescência, sem a mínima
curiosidade por outras visões de mundo, versus o espírito
outrora vivaz de minha mãe, apagado pela condição
subalterna do casamento arranjado para salvar sua
reputação. Sim, preciso enfrentar as evidências de que sou
filho do marinheiro Tomás Ordoño, não do desembargador
José de Eyzaguirre, e me conheço o suficiente para entender
que minha juventude poderia ter sido bem outra se eu fosse
mais Beauséjour e menos Eyzaguirre. Ou não: Lucille, minha
avó, contava que sua família partiu da Nouvelle-Aquitaine
no fim do século 18 para explorar a escravidão no Haiti, de
onde se mudou para o Chile durante a revolta dos escravos.
Há alguns anos, quando a seleção chilena venceu a Copa
América Centenário, nos Estados Unidos, Gustav perguntou
se o futebolista Jean Beausejour, de origem haitiana, poderia
ser meu parente, eu lhe disse que provavelmente era

178
CONTRAPARTO

descendente de alguma das dezenas de mulheres negras


engravidadas por um ancestral remoto de minha mãe.
Portanto, considerando-se qualquer uma de minhas raízes,
trago comigo, inevitável, o germe do mal, levando-se em
conta a profusão de horrores praticados pelos colonizadores
franceses no Haiti, eternizados por uma elite de mestiços
que tomaram o poder depois da independência,
transformando aquele país num lugar amaldiçoado pelos
séculos afora. Estas reflexões não me aliviam, mas de certa
maneira preparam meu espírito para a tarefa de encarar o
episódio que me angustia. Sou herdeiro de uma antiga casta
de perversos que se deleitam em transformar o mal e a
destruição do outro em atos banais. Além disso, como tenho
experimentado nas últimas semanas, quando se atravessa a
fronteira do absurdo moral e se ingressa no território onde
impera o amor ao ódio, não existe caminho de volta, porque
o perdão seria um luxo ao qual ninguém nessa condição
poderia aspirar. O que resta é a autoextinção, ou
simplesmente seguir adiante. Ainda não sei qual será meu
futuro imediato.
Cheguei à Casa Yucatán naquele começo de noite e fui
recebido com um espumante. Imaginei que seriam
oferecidos canapés, ouviria alguns discursos e seria
oficialmente dispensado do serviço. O que houve foi
exatamente isso, mas quando me despedia do grupo, Miguel
Krasnoff colocou a mão sobre o meu ombro e me conduziu
discretamente para o porão. Logo ao pousar os pés no piso
inferior, recebo de um dos plantonistas uma carreira de
cocaína numa pequena bandeja de metal. Estava um pouco
mareado pelas três taças que havia bebido, e sou tomado por
uma súbita euforia, como se um milhão de rojões estivessem
explodindo em meu cérebro. Meu coração dispara, minha
visão está anuviada por eflúvios coloridos, que são como
nuvens espalhadas pelo ambiente. Há poucas pessoas ali,
apenas eu, Krasnoff e dois outros homens, vestindo jalecos
brancos, com manchas de sangue. Um deles é Schmidt, meu
amigo de infância, que tem um estetoscópio pendurado no

179
LUCIANO MARTINS COSTA

pescoço. No meio do salão posso ver uma maca de metal,


com um corpo em cima, uma mulher, nua, parece ter o braço
esquerdo fraturado, sua pele está manchada em muitos
lugares por hematomas, seu rosto coberto de sangue
coagulado, escuro, que parece ter escorrido de sua cabeça. O
primeiro dever de um médico é pedir perdão. Entendo que
estou mergulhando no processo de cura de mim mesmo, e
para isso é necessário me fragmentar, sou ao mesmo tempo
médico e paciente, parte de mim necessita cuidados, a outra
parte é a que alivia minha angústia, no entanto aquele que
cura tem o dever moral de pedir perdão, porque, ao aliviar
sua contraparte do sofrimento também está assumindo uma
superioridade moral da qual o paciente se sente devedor.
Portanto, pede perdão por invadir a intimidade e o arbítrio
de quem sofre, e, como um deus, impor o alívio, o que priva
o sofredor de sentir de fato a dor, que é sempre inaceitável
porque ninguém aceita merecê-la. O ato de curar,
principalmente os males do espírito, as dores emocionais, é
mais ou menos como impor o bem a um indivíduo sem lhe
perguntar se de alguma forma esse sofrimento não o
compraz. O bem ao qual se sucumbe, o bem imposto, é um
bem sem caráter ético. E o que é o Bem sem caráter ético, senão
um aspecto da legislação do Mal? Coloco-me, assim, na
condição em que, herdeiro dessa longa linhagem de
perversos que começa no Haiti, sou predisposto à tendência
ao mal, que me foi imposta pela genética Beauséjour e
consolidada pela circunstância Eyzaguirre. Dessa forma,
minha história é um conto de maldição em que o postulado
do filósofo se apresenta como em um espelho: o mal a que
se sucumbe, o mal imposto, é um mal sem caráter ético, um
mal isento de julgamento; portanto, como tal, um aspecto da
legislação do bem. Inimputável, porque inescapável como
um destino.
Apesar dos clarões que passam diante dos meus olhos e da
confusão de sons que se sobrepõem, de vozes, da porta que
se fecha lá em cima, posso ver sobre uma mesa, junto à
parede oposta à da escada, alguns instrumentos de tortura,

180
CONTRAPARTO

um pequeno gerador de eletricidade, alicates, grampos de


metal, pedaços de mangueira, baldes com água, cabos e um
conjunto de lâminas cirúrgicas, provavelmente material de
trabalho do doutor Schmidt. Mas o que chama minha
atenção é o urinol que eu havia trazido da Clínica Moncada,
e noto que tem pendurado no bico um rolo de fita adesiva.
Enquanto caminho rumo ao Parque Berzelii, lembro como
essas memórias foram abruptamente desenterradas durante
uma conversa banal com Sofia. Entro no parque pelo portão
que conduz diretamente à estátua de Jacob Berzelius e penso
em como estou cercado pelo legado de Swedenborg, já que
grande parte das descobertas de Berzelius no campo da
química se deve a teorias publicadas por Swedenborg quatro
décadas antes de seu nascimento. Mas a conversa com Sofia
era sobre outro tema. Eu havia partido de uma observação a
respeito da questão do eterno retorno no pensamento
swedenborguiano, mas ela estava louca para comentar o
livro da francesa Elisabeth Roudinesco, que tinha acabado
de ler. Era um estudo sobre uma história dos perversos,
intitulado La part obscure de nous-mêmes. O que a havia
impressionado ao nível do horror, além das práticas do
Marquês de Sade e das confissões dos comandantes de
campos de extermínio nazistas, foi o relato de Freud sobre a
introdução de ratos no interior do corpo de prisioneiros, no
século 19. Quando ela, contra meus protestos, insistiu em ler
aquele trecho, comecei a suar frio, fui tomado por tremores e
vomitei ali mesmo onde me encontrava, na nossa cozinha.
Sofia se desculpou, limpou meus lábios com uma toalha de
papel, me fez tomar um pouco de água e depois me trouxe
uma taça de Porto. Mais tarde, voltou a pedir desculpas e
comentou que devia ter levado em consideração minhas
trágicas lembranças do Chile.
Sim, ela estava certa, mas pelas razões erradas. Essa quase
conversa sobre a perversidade aconteceu mais ou menos dez
anos antes de eu receber aquele envelope que me levou de
volta ao passado. Agora me sinto na contingência de
revisitar esse período como alguém que mete o dedo na

181
LUCIANO MARTINS COSTA

garganta para analisar o conteúdo de seu estômago, porque


as últimas semanas me ensinaram que não devo, não posso
continuar fugindo de minha própria história.
O que vejo sobre aquela maca é uma mulher jovem, bem
feita de corpo, com a cabeleira negra empapada de sangue
espalhando-se na superfície fria do metal. Parte do couro
cabeludo está exposta, deixando ver um corte de dez
centímetros, e um chumaço de cabelo pende da beirada da
mesa. Ela tem a perna esquerda afastada, de maneira pouco
natural, como se tivesse sido fraturada na junção com o
quadril. No entanto, geme e parece se mover, em espasmos
curtos, e seu ventre liso denuncia uma respiração irregular.
Surpreende-me que ainda viva, mas não me ocorre que
esteja sofrendo dores atrozes. Penso que já não tem
consciência do que se passa com seu corpo.
Você chegou na melhor hora. A vaca está prenha mas não
podemos esperar la horabuena. O que ela leva aí dentro é uma
cria daquele judeuzinho que logrou escapar para a Suécia. A
voz de Miguel Krasnoff soa estranhamente triunfal, como se
ele tivesse diante de si não uma jovem quase morta, mas um
perigoso guerreiro alienígena armado com um fuzil de raios
desintegradores. Conta que dois soldados haviam capturado
a mulher quase na fronteira com a Argentina, graças à
desconfiança de um agente postal de Vicuña, que observou
um jipe se desviando da estrada poeirenta que conduz ao
Paso de Água Negra, ao cair da noite. Fazia muito frio
naquele trecho, a 4.780 metros de altitude, e ela só foi
identificada pela manhã, com a chegada de um helicóptero
com a equipe liderada pelo próprio Krasnoff. Seus
acompanhantes, um estancieiro que lhe dava carona e seu
filho adolescente, foram fuzilados ali mesmo e seus corpos
enterrados a 500 metros do posto de vigilância. Ela
permaneceu ao relento durante toda a noite, e ao amanhecer,
quando foi algemada e jogada no interior do helicóptero,
começou o tratamento. O doutor aqui diagnosticou a
gravidez e uma pneumonia, mas ela vai viver o suficiente
pra conhecer o contraparto — e desta vez Krasnoff está

182
CONTRAPARTO

eufórico. Sou tomado por uma sensação estranha, como se


meus olhos se negassem a reconhecer aquele rosto. Se me
esforçasse, se tivesse alguma lucidez, eu poderia descrever
seus traços harmoniosos, os cabelos ondulados e,
principalmente, aquele par de olhos amendoados, de uma
cor esverdeada. Schmidt se aproxima com uma expressão
séria, ausculta seu tórax com o estetoscópio: considero que a
paciente está apta para o prosseguimento do interrogatório.
Não me dou conta do que acontece em volta, até que um dos
agentes, aquele que me oferecera a carreira de cocaína, entra
no meu campo de visão com o urinol de metal nas mãos e o
coloca entre as pernas da mulher, tirando a tampa que cobria
o bico e pressionando-o contra a vulva. Krasnoff e Schmidt
afastam suas pernas e envolvem o instrumento com a fita
adesiva, prendendo-o nas coxas. Então, Krasnoff me entrega
um garfo comprido, do tipo que se usa em churrasqueiras e
ordena: comece a batucada. Fico paralisado e ouço um ruído
no interior do urinol, como se alguma coisa se mexesse ali,
arranhando a superfície de metal. Anda logo, que o Mickey
Mouse está louco pra entrar no túnel. Impaciente, ele toma o
garfo de minhas mãos, bate sucessivamente no urinol e o
devolve. Vamos! Este é o vestibular da sua vida, é a sua
passagem para o mundo dos homens de verdade, isto é a
libertação! Então, apanho o garfo e bato furiosamente no
urinol, e ouço guinchos, então a mulher estremece, um fio de
sangue escorre de sua vagina, ela geme, seu ventre parece se
avolumar, e ela se contorce. O bicho vai comer seu
judeuzinho, querida. Krasnoff tem na mão a bandeja, aspiro
outra carreira, o mundo inteiro se acende, seguro o urinol e
bato, bato, depois arranho com as pontas do garfo, o sangue
agora escorre, em um jorro escuro, empapando a mesa entre
suas coxas. Ela murmura alguma coisa, tem os olhos abertos,
apesar de inchados e avermelhados parece me ver, parece
que me reconhece, Schmidt aproxima o ouvido de sua boca,
que merda está dizendo? Então, cola o estetoscópio em seus
lábios mas ela se cala, então volta a auscultar o peito, me
passa as olivas auriculares e ouço o coração dela

183
LUCIANO MARTINS COSTA

descompassado e disparado, imagino um cavalo manco


correndo numa pista de cascalho e digo: parece um cavalo
manco galopando numa pista de cascalho, eles acham muito
engraçado mas estou simplesmente hipnotizado, ela tem o
ventre estendido para cima, o corpo arqueado, ela transpira,
estremece então tudo para. O coração emite uma espécie de
arroto, é como uma bolha estourando na superfície de uma
panela de chocolate quente, ela relaxa e expira longamente.
Fico estático, ouvindo no estetoscópio o silêncio absoluto da
morte, não sei por quanto tempo fico assim, até que Shmidt
o retira delicadamente de minhas mãos e o desprende de
meus ouvidos. Ganho uns tapinhas nas costas enquanto me
dirijo para a escada. Quando me volto, alguém limpa o rosto
dela com um pano e vejo os olhos verdes, amendoados, de
Amanda.
Sigo linearmente a memória de meus passos. No salão térreo
recebo os aplausos e os votos de boa viagem. Corro para o
banheiro e lavo o rosto. Um carro me espera na calçada. Peço
ao motorista que me leve ao Cerro San Cristóbal, mas mudo
de ideia a meio caminho e pergunto se pode me conduzir até
Viña del Mar. Tenho a cabeça completamente vazia, a
sensação de serenidade apaga toda a excitação de minutos
atrás e menos de duas horas depois estou subindo as dunas
de Punta Concón. Ali encontro um grupo de garotos que se
divertem com suas pranchas. O motorista me observa à
distância. Fico sentado, olhando o movimento e me
despedindo mentalmente de minha juventude. Depois de
meia hora, levanto-me e retomamos a viagem de volta. O
motorista continua calado durante quase todo o trajeto e
compreendo que o silêncio é condição de sobrevivência até
para quem se colocou ou foi colocado na máquina de matar.
Parece que isso aconteceu em outra vida, e tudo se passa
como num longo filme que eu me negava a rever.
Pronto, eis tudo. Posso seguir adiante com minha vida? O
parque Berzelii está cheio e o ruído das crianças me faz
lembrar que devo voltar. Faltam apenas quinze minutos
para as onze e daqui a pouco Sofia estará em casa. Enquanto

184
CONTRAPARTO

caminho, decido que hoje jantaremos fora, num lugar


especial. Vou fazer uma reserva na Brasserie Godot. Tenho
que me lembrar de dizer a Sofia que desta vez não teremos
que ficar esperando, porque tomei o cuidado de fazer a
reserva. E ela vai responder que não se importará de ficar
esperando Godot, se Göran Dyrssen estiver no papel de
Estragon e vou fingir que estou com ciúmes e então vamos
rir juntos da mesma anedota de sempre, e minha vida
voltará a ser o que era, o que sempre foi, porque antes dela o
que havia era um pesadelo, do qual escapei por obra do
acaso, ou por manobras de algum anjo de Swedenborg e
mereço a boa vida que levo em Estocolmo. Entendo que
termina neste ponto a maldição dos Beauséjour ou seja lá
que mistérios tenham conduzido minha existência. Não sou
um perverso, sou um pai de família exemplar, um professor
respeitado que se conduziu magistralmente da matemática
para as ciências sociais e daí para o campo da tecnologia e
aprendeu que os sistemas inteligentes se auto-regulam,
portanto não é necessário que eu remexa o passado porque o
passado não existe, e tudo que houve se reciclou, o que foi
pó ao pó voltou e ninguém sabe o que é feito das almas que
os habitavam. Os cadáveres que apodrecem sob a
consciência dos chilenos são um problema deles. Aliás, eles
nem se importam em saber quantos foram pulverizados ou
quantos foram lançados ao oceano e eu não tenho nada a ver
com isso, minha única preocupação será espantar da mente
esta canção que se aninhou aqui e insiste em dizer te recuerdo
Amanda, la calle mojada... la sonrisa ancha, la lluvia en el pelo,
esta maldita canção que segue as batidas de meus pés nas
calçadas de Artillerigatan. Como tudo tem de ser consumido
na fogueira da minha memória, junto com a canção de Victor
Jara vem o poema de Paulo Baudouin, Mujeres que cargan
desiertos con sus ojos vendados, una pequeña semilla. Mujeres que
cargan embriones tan invertebrados como la luz. Era Amanda a
mulher que sucumbiu à brutalidade obcena do contraparto?
Que diferença faria, afinal, na conta dos crimes que
cometemos para defender um regime orientado para a morte

185
LUCIANO MARTINS COSTA

e alimentado pela mais estúpida covardia? Se eu conseguir


anestesiar minha consciência, vou seguir em frente, pois
tudo é hipocrisia e ilusão. Fui um instrumento, não tinha
maturidade para fazer escolhas, merda, por aí não chego em
nenhum lugar minimamente confortável.
Tenho que passar o resto da vida nessa gangorra? Não, vou
viver sem pensar muito, sem me cobrar essa racionalidade
insuportável. Mas se tiver de pensar um pouco mais, talvez
venha a considerar que tudo começou no poema de Jorge
Luis Borges. Ali está a pista inicial que me conduz à certeza
de que o eterno retorno é o significado mais profundo da
existência. Se Swedenborg diz que o homem conversa com
anjos, e que da mesma forma dialoga com demônios e tem o
arbítrio para escolher suas companhias, opto por viver entre
os anjos que formam minha família, esta família que
construí, não a que me foi imposta pelas circunstâncias.
Aquela outra família honrei da forma que foi possível
enquanto vivi no Chile, com todos os horrores que os
chilenos tentam ignorar. Este futuro pertence aos que estão
aqui comigo. Vivi entre demônios e consegui romper o
círculo do eterno retorno. Agora estou entre os anjos e nada
mais tenho a ver com o inferno de que fui parte. Devo ser
grato, não a um deus, mas ao divino labirinto dos efeitos e das
causas, e nesse labirinto identificar Emanuel Swedenborg,
que me há de guiar. Apanho as Obras Completas de Borges e
lá está o Outro Poema dos Dons, que um dia arranquei do
bolso de um jovem assassinado. Então, como Borges tenho
de dizer: graças também por Swedenborg, que conversaba con
los ángeles en las calles de Londres. E a Borges somar Baudouin,
lembrando Mujeres que cargan embriones tan invertebrados
como la luz. Sou autor e testemunha de crimes que nenhuma
literatura pode descrever. Não tenho sequer o direito de
interromper o fluxo destas memórias com um tiro em minha
cabeça ou um salto no abismo. Devo viver cada instante com
este horror dentro de mim, até o dia em que a verdade irá
romper a couraça da minha covardia. E será por Amanda,
por Martha Pucurull, e, em nome de todas as outras, será

186
CONTRAPARTO

também por Marta Lidia Ugarte Román, que retornou das


profundezas do Pacífico para não permitir que esqueçamos.
Não, seria muito cinismo e não posso fingir essa grandeza
que nunca tive. Não que eu precise ser honesto comigo
mesmo, pois enquanto eu viver ninguém saberá de mim, do
que fui, do que sou. Porque simplesmente está além de
minhas possibilidades fingir essa nobreza feita de
compaixão, porque há muitos anos perdi a condição
humana, abdiquei da humanidade, deixei-me levar para o
território da absoluta singularidade e só me resta esta
solidão. Sou aquele rato que morre sufocado nas entranhas
de uma mulher, personagem de uma história inaceitável que
insiste em se desenrolar outra vez, e outra vez, e outra vez.

187
LUCIANO MARTINS COSTA

LUCIANO MARTINS COSTA, jornalista, escritor Formatado: Centralizado


e dramaturgo, é autor do livro de contos Histórias sem
salvaguardas, dos ensaios Escrever com criatividade, O Mal-estar
na globalização e O Diabo no poder, além dos romances Satie,
As Razões do lobo e Sanctus Cunnus.

188

Você também pode gostar