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DENILSON BOTELHO*
Vejamos então o que Lima Barreto tencionava dizer sobre a imprensa do Rio de
Janeiro na Primeira República, que os simples fatos não dizem. No capítulo VIII, Isaías
*
Prof. Adjunto de História do Brasil da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Doutor em História pela
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
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Caminha fora até a redação d’O Globo em busca dos préstimos de Gregoróvitch. Não o
encontrando no local, pôs-se a aguardar por ele. A espera lhe dá a oportunidade de
observar os bastidores da imprensa, que descreve com riqueza de detalhes. Presenciou,
por exemplo, a chegada à redação de um “grande romancista de luxuoso vocabulário, o
fecundo conteur, o enfático escritor a quem eu me tinha habituado a admirar desde os
quatorze anos” (BARRETO, 2001, p. 191), conhecido como Veiga Filho. Convém
observar que O Globo que aparece no romance é um jornal ficcional inspirado no
Correio da Manhã, dirigido por Edmundo Bittencourt, e não – obviamente - o atual O
Globo, editado no Rio de Janeiro a partir de 1925. O motivo da ida do famoso
romancista à redação era para checar se o jornal noticiaria uma conferência que
proferiu. Em meio à discussão sobre quem redigiria o texto dessa notícia, Caminha
presenciou o secretário da redação sugerir que o próprio Veiga Filho fizesse o texto. E
perplexo, viu aquele “homem extraordinário que a gente tinha que ler com um
dicionário na mão” (BARRETO, 2001, p. 191) acatar a sugestão.
Eu demorei-me ainda muito e pude ouvi-lo ler a notícia. Começou dizendo
que era impossível resumir uma conferência de um artista como Veiga Filho.
Para ele, as palavras eram a própria substância de sua arte.
Cessando, lembrei-me que amanhã tudo aquilo ia ser lido pelo Brasil
boquiaberto de admiração, como um elogio valioso, isto é, nascido de
entusiasmo sem dependência com a pessoa, como coisa feita por um
admirador mal conhecido! A Glória! A Glória! E de repente, repontaram-me
dúvidas: e todos os que passaram não teriam sido assim?
[...] Naquela hora, presenciando tudo aquilo eu senti que tinha travado
conhecimento com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie
complicada de tablado de mágica e espelho prestidigitador, provocando
ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com
pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões.
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mágica e ilusão. O Globo não informava sobre os fatos, pois em sua redação os fatos
são criados, recriados e reinventados.
O texto de Lima Barreto está a clamar pela análise dos historiadores, oferecendo
razões de sobra para que dediquemos aos jornais e revistas em geral um olhar mais
cuidadoso e diferenciado que nos obrigue inclusive a participar dos debates
contemporâneos sobre a função social da imprensa, do jornalismo e dos meios de
comunicação em geral.
Um passo importante que é preciso dar no campo da pesquisa na área da história
da imprensa consiste na necessidade de operar um deslocamento. Freqüentemente, os
periódicos são a primeira fonte que cogitamos consultar quando definimos um objeto de
pesquisa. É consensual que uma das formas mais eficazes de entrar em contato com o
passado seja através das páginas da imprensa. Contudo, é possível – e é preciso – fazer
da imprensa o objeto da pesquisa, admitindo que além de ser fonte, ela é também um
tema a ser investigado, que desafia a argúcia do historiador.
Recentemente, a efeméride dos 200 anos da criação da imprensa no Brasil
ensejou uma leva de eventos e publicações sobre o tema e “o aprofundamento dos
debates em torno das questões teóricas e metodológicas que envolvem História e
Comunicação” (RIBEIRO & HERSCHMANN, 2008, p. 13). Desta forma, foi possível
perceber em que estágio se encontra as pesquisas sobre história da comunicação e da
mídia no Brasil, identificando o “estado da arte” nessa seara, bem como os principais
desafios e impasses que os pesquisadores precisam enfrentar, especialmente em termos
de teoria e metodologia.
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Assim sendo, acreditamos que o principal desafio a ser enfrentado nos dias
atuais, por parte dos historiadores inseridos nesse campo de estudos, consiste
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noções de cultura e consciência sem cair na armadilha pós-moderna. Pois Marx não
tratava de outra coisa quando escreveu sobre a alienação, sobre o fetichismo da
mercadoria e sua reificação, bem como quando desenvolveu sua noção de homem
refazendo continuamente sua própria natureza (THOMPSON, 1981, p. 182).
Investigar a história da imprensa implica numa operação teórica que consiste em
juntar as noções de cultura, consciência e experiência:
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ações, são tão “sujeitos” (e não mais) de sua própria consciência afetiva e
moral quanto de sua história geral. Conflitos de valor, e escolhas de valor,
ocorrem sempre. Quando uma pessoa se junta ou atravessa um piquete
grevista, está fazendo uma escolha de valores, mesmo que os termos da
escolha e parte daquilo que a pessoa escolhe sejam social e culturalmente
determinados. (THOMPSON, 1981, p. 194)
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Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar são fechados e
não aceitam nada que os possa lesar.
Dessa forma, quem, como eu, nasceu pobre e não quer ceder uma linha da
sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à
Morte.
[...] Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na
minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.
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jornalismo brasileiro naquele período. Trata-se de uma tendência que tem entre seus
expoentes “os escritores, artistas, jornalistas que, colocando-se contra a corrente
dominante, propuseram uma imagem alternativa de Nação” (COUTINHO, 2008, p. 66)
ou que sonharam com uma sociedade brasileira que acabou não se concretizando nas
primeiras décadas republicanas (BOTELHO, 2002), num movimento que Eduardo
Granja Coutinho define como processos contra-hegemônicos na imprensa daquele
período.
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Tendo em vista que a pretensão, em certa medida positivista, de descrever a
história da imprensa de modo factual e abrangente, como uma espécie de grande síntese,
já mostrou seus resultados e limitações (SODRÉ, 1966; BAHIA, 2009), o desafio que
temos pela frente consiste em destrinchar o ambiente das redações e a fabricação da
notícia.
1
Essa hipótese consta da comunicação de minha autoria, intitulada “Lima Barreto, imprensa e contra-
hegemonia”, apresentada no Simpósio Temático História e Imprensa, realizado no Encontro Regional
de História da ANPUH-PI, em outubro de 2010.
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Ainda que produzir o esquecimento possa contribuir para a harmonia e a coesão
social (REIS, 2000, p. 71), é preciso enfrentar essa habilidosa operação empreendida no
campo da memória no sentido de não obscurecer a compreensão do passado e dos
conflitos que lhe são inerentes. Esquecer que a ditadura contou com o apoio de parcela
significativa da sociedade civil significa abrir mão de identificar aqueles que
referendaram o regime militar. A Lei da Anistia, de 1979, ensejou certas reconstruções
históricas que se fixaram na memória nacional como verdades irrefutáveis: “a sociedade
se reconfigurou como se tendo oposto, sempre, e maciçamente, à ditadura, transformada
em corpo estranho. Redesenhou-se o quadro das relações da sociedade com a ditadura,
que apareceu como permanentemente hostilizada por aquela” (REIS, 2000, p. 71). E
mais do que isso:
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competem entre si no interior das próprias redações. Além disso, é claro que o público
leitor, a maneira de trabalhar, o contexto do trabalho e as técnicas de contar histórias
também influenciam o texto jornalístico. Mas não há nada como flagrar o jornalista em
plena atuação, operando o manejo da mídia e as condições que interferem objetivamente
na elaboração de reportagens. É esse o desafio que a história social tem que enfrentar.
Longe de pretender reunir nesse breve artigo o arcabouço teórico de uma
história social da imprensa, explicita-se aqui uma linha de abordagem e alguns dos seus
princípios e possibilidades. Uma história que sirva ao mesmo tempo para desmontar o
que Lima Barreto chamou de “engenhoso aparelho de aparições e eclipses”, bem como
para combater “a estupidez das multidões” que tanto preocupava o literato há cerca de
um século.
Referências bibliográficas:
BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. 5. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2009. 2v.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
_____. “Recordações do escrivão Isaías Caminha” in Lima Barreto: prosa seleta. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
_____. “Elogio da morte” in Toda Crônica: Lima Barreto. Rio de Janeiro: Agir, 2004. Volume
1, p. 390-391.
BOTELHO, Denilson. A pátria que quisera ter era um mito: o Rio de Janeiro e a militância
literária de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, Departamento
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Biblioteca Carioca, 44)
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BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 3.
ed. ver. e ampliada. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia
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KAMEL, Ali. Não somos racistas; uma reação aos que querem nos transformar numa nação
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MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República consentida: cultura democrática e científica do
final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (Edur), 2007.
REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2000.
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