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Conto | Itamar Vieira Junior

Conto
Publicado em
17/03/2020

Labirinto de rosas
Itamar Vieira Junior

“E estas que estão penduradas?”, perguntou a mulher, apontando para as


plantas sem folhas ou flores dispostas como roupas em um varal.

“Estavam com as raízes apodrecidas, não completamente, apenas parte delas. O


jardineiro dispôs neste varal, uma espécie de UTI, depois de retirar a parte
comprometida e cauterizar com canela em pó, para evitar que o apodrecimento
se alastrasse. Parecem estar mortas?”, disse o botânico voltando suas mãos para
tocar as plantas de dimensões medianas.

“Parecem, sim. Não fosse essa cor verde dormente, que é como a cor do nosso
sangue por baixo da pele enquanto ainda vivemos.”

“Mas a seiva da rosa do deserto é branca, como leite. O verde que você vê é a
clorofila no processo de fotossíntese, não é o ‘sangue’”, riu sutilmente da
comparação que ela fazia.

“Algo me transmite que ela está viva, foi o que quis dizer.”

A mulher então se afasta em direção ao grande jardim, com muitas espécies


plantadas diretamente no solo, diferente do galpão onde se encontravam há
pouco. Entre uma e outra, de tamanhos variados, do vaso ao arbusto, havia
colunas com plantas de diferentes formas em sua base. A mulher, a princípio,
não avistou nenhum desenho na paisagem, mas, à medida em que se afastava,
percebia que as plantas estavam dispostas em intervalos matemáticos, como se
quisessem desenhar no espaço daquela chácara um labirinto, embora não
pudesse chamar aqueles corredores assim por não serem tão eficientes como os
de murtas.
 

Ilustração: Aline Daka

De fato, a mulher estava impressionada com a estranha beleza daquela espécie.


Imaginava-a agora na decoração de seu apartamento, impressionando os que se
permitissem. Ouviu seu amigo botânico explicar como através da poda correta
poderia forjar uma copa mais volumosa e, consequentemente, com mais flores:
lilases, vermelhas, brancas, e tinha avistado mesmo uma de cor negra. Se
crescesse um único caule, como ouviu na explanação, bastava decepar na altura
correta para estimular a planta a criar novos ramos que compensarão a perda,
“ah, como na vida...”, ela sorriu. Os troncos nodosos que evidenciavam formas
estranhas, quase bizarras, não eram caules, mas raízes que estiveram
enterradas no solo e se metamorfoseavam em tronco, em um processo, se ela
não se engana, chamado de “levantamento de caudex”, que nada mais é que
colocar um “degrau” de pedras e substrato deixando as raízes robustas à vista,
retirando com cuidado as auxiliares, mas tendo cuidado de deixá-las na parte
que permanecerá enterrada para que possam alimentar a planta. O encanto não
estava só na aparência, mas na natureza e nos artifícios que os homens
utilizavam para domá-la.

Mas o que a mulher não ouviu do botânico , e o jardineiro permaneceu em


silêncio apenas executando as ordens e escutando as explicações dadas pelo
patrão, é que aquela escultura da natureza abrigava em sua seiva um poderoso
veneno. Ninguém imaginava que nas horas vagas este homem simples, tido
como inculto, se dedicava a encontrar a fórmula correta para embeber as flechas
que seriam disparadas contra os madeireiros que arruinavam sua terra natal, e
que, mesmo à distância, recebia notícias frequentes dos crimes ignorados pelos
que deveriam zelar pela floresta.

Já antevia, com contentamento, o grande alvoroço que sua batalha causaria no


coração da selva. Ele, que nunca havia manejado arco e flecha, nem mesmo
nunca tinha visto ninguém fazê-lo, intuía que na remota vida de seus ancestrais
aquela era uma habilidade que havia sido desenvolvida, e transmitida, agora, por
sua seiva. Tudo porque havia descoberto, num dos livros do botânico, aquela
particularidade sobre a rosa estrangeira a que foi destacado para cuidar já há
algum tempo. Descobriu, por exemplo, que nômades da África utilizavam a seiva
curada após longa fervura para macular suas armas. Que tornavam aquele leite
da terra uma espessa calda escura para aderir sem dificuldade à ponta das
lanças. E o jardineiro, inspirado, testava sua pontaria na imagem do ditador e
suas caretas replicadas ao infinito pelos jornais. Quando se encontrava só, e
longe do patrão subserviente, pendurava as folhas num suporte para que lhe
servissem de alvo. Atirava uma, duas, muitas vezes. Estava cada vez melhor,
tinha consciência, assim como tinha consciência de que estava protegido pelo
seu silêncio e pelas pessoas que o cercavam e percebiam-no quase inofensivo,
“homem de pouco vocabulário”, um jardineiro servil, incapaz de fazer algo
diferente do que lhe determinava o seu senhor.

A mulher estava fascinada pela beleza da rosa. O botânico, envaidecido pela


fascinação que o objeto de sua devoção provocava. O jardineiro só tinha mente e
coração para o que poderia ser mudado.

ITAMAR VIEIRA JUNIOR é autor dos livros de contos Dias (2012) e A Oração do
Carrasco (2017) e do romance Torto Arado, vencedor do Prêmio Leya 2018.

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