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“Quando se quer liquidar os povos, se começa a lhes roubar a memória.


Milan Kundera
▪ O que é ler?
▪ O que é o Arquivo?
▪ Como funciona a circulação?
O termo “arquivo” origina-se do latim “archívum”, lugar em que se
guardam documentos sendo sua acepção mais corrente a que o
concebe como conjunto de documentos (papéis oficiais, manuscritos,
cartas, fotografias, etc.), referentes a um determinado evento ou
período histórico. Nessa acepção, privilegia-se o aspecto físico,
material, concreto e técnico, marcado pela positividade e por uma
concepção “científica” de história que visa à transcrição sistemática
das fontes com vistas à descrição dos fatos ou momentos históricos.
Pode assim ser compreendido como um lugar institucional de
armazenamento e acesso de dados e fatos, tendo como finalidade a
preservação da memória.

(JANAINA CARDOSO BRUM E ARACY ERNST-PEREIRA. E O TWITTER


CRIOU...DEUS! ARQUIVO, GÊNERO E HUMOR EM REDES SOCIAIS)
• CONEXÃO LETRAS - A noção de arquivo em Análise do Discurso:
relações e desdobramentos.
▪ O arquivo não é visto como um conjunto de "dados" objetivos dos
quais estaria excluída a espessura histórica, mas como uma
materialidade discursiva que traz as marcas da constituição dos
sentidos. O material de arquivo está sujeito à interpretação e, mais do
que isso, à confrontação entre diferentes formas de interpretação e,
portanto, não corresponde a um espaço de "comprovação", onde se
suporia uma interpretação unívoca.

(JOSÉ HORTA NUNES, LEITURA DE ARQUIVO: HISTORICIDADE E


COMPREENSÃO, p. 02)
Todo arquivo é uma prática social constituída por gestos de interpretação
que, como tal, tem como premissas as condições materiais de produção que
permitiram sua efetivação e a ideologia predominante na sua elaboração. Um
arquivo, qualquer que seja ele, é o resultado de práticas sócio históricas, e por
isso passível de silenciamentos conscientes e de equívocos inconscientes por
parte dos sujeitos que o elaboram e o organizam. Por outro lado, também a
manipulação do arquivo se submete a todas essas determinações que sofre o
sujeito que a realiza. Como diz Mariani (2010, p. 89), sobre a organização do
arquivo “há sentidos colocados para serem lidos e repetidos [...] e há também
sentidos recalcados, silenciados interditados, censurados. Podemos pensar,
então, que nos arquivos se inscrevem sintomas da época em que foram
organizados e é com esses sintomas que um pesquisador se depara”.

(BELMIRA MAGALHÃES E HELSON F. DA SILVA SOBRINHO. PRÁTICAS


SOCIAIS, DISCURSO E ARQUIVO: A MÍDIA E OS GESTOS DE LEITURA
SUBJACENTES)
• CONEXÃO LETRAS - A noção de arquivo em Análise do Discurso: relações e
desdobramentos
▪ AD: disciplina de interpretação, voltada para a leitura do arquivo (década
de 80);
▪ Leitura de arquivo: considerar a relação entre “língua como sistema
sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como
inscrição de efeitos linguísticos materiais na história” .
▪ O autor afirma que o aspecto cultural politicamente problemático dos
“bancos de dados” dirige uma reflexão baseada em uma pesquisa
multidisciplinar, que remete às “aporias de uma semântica puramente
intralinguística (ou de uma pragmática insensível às particularidades da
língua), e as reflexões sobre a especificidade do arquivo textual”.
▪ Pêcheux ressalta a importância de se estudar a história da distinção
dos gestos de leitura que nortearam a construção do arquivo, o
acesso aos documentos e ainda a maneira de apreendê-los.
▪ Possibilidade de reconstituição das práticas de leitura marcadas nos
efeitos da escritura. Esse trabalho “consistiria em marcar e
reconhecer as evidências práticas, que organizam estas leituras,
mergulhando a ‘leitura literal’ (enquanto apreensão-do-documento)
numa ‘leitura’ interpretativa – já que é uma escritura”.
▪ Isso provocaria um trabalho polêmico e produtivo ao relacionar maneiras
distintas de ler o mesmo arquivo, relacionando-as às memórias históricas
e às conjunturas ligadas a cada gesto de leitura.
▪ De acordo com Pêcheux:
“não considerar os procedimentos de interrogação de arquivo como um
instrumento neutro e independente (um aperfeiçoamento das técnicas
documentais) é se iludir sobre o efeito político e cultural que não pode
deixar de resultar de uma expansão da influência das línguas lógicas
de referentes unívocos, inscritos em novas práticas intelectuais de
massa”.
▪ Divisão social do trabalho de leitura
▪ Os profissionais da leitura de arquivos, por um lado, seriam os "literatos"-
historiadores, filósofos, pessoas de letras – com o hábito de contornar a
própria questão da leitura, porque praticariam uma leitura própria,
singular e solitária construindo o seu mundo de arquivos, ou seja, conforme
referido em nota: uma leitura em que predomina a decodificação e que
repousaria sobre o postulado da evidência e da transparência do sentido.
▪ A questão da leitura permaneceu quase sempre implícita: há, entretanto,
fortes razões para se pensar que os conflitos explícitos remetem em
surdina a clivagens subterrâneas entre maneiras diferentes, ou mesmo
contraditórias, de ler o arquivo (entendido no sentido amplo de "campo de
documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão").
▪ Surge, em disputa com a primeira vertente, outra forma de leitura de
arquivos que mostra a existência de um “enorme trabalho anônimo,
fastidioso, mas necessário, através do qual os aparelhos do poder de
nossas sociedades geram a memória coletiva”.
▪ Desde a Idade Média essa divisão começou no meio dos clérigos,
colocando de um lado os autorizados a ler, falar e escrever em nome
das pessoas e, portanto, portadores de uma leitura e de uma obra
própria, e de outro lado o conjunto de todos os outros, concentrados
nos gestos de “cópia, transcrição, extração, classificação, indexação,
codificação etc.” que produziam outra forma de leitura, isto é, uma
leitura que impunha ao sujeito-leitor seu próprio “apagamento atrás da
instituição que o empregava”.
▪ Como exemplo o autor diz que haveria um grande número de escrivãos,
copistas e "contínuos", particulares e públicos, os quais teriam sua prática
de leitura sobredeterminada por uma “renúncia a toda pretensão de
"originalidade"” e também sobre um “apagamento de si na prática
silenciosa de uma leitura consagrada ao serviço de uma Igreja, de um rei,
de um Estado, ou de uma empresa”.
▪ No cerne da questão estaria a ambígua palavra de ordem “ler e
escrever”, que segundo o autor, visaria ao mesmo tempo à apreensão de
um sentido unívoco inscrito nas regras escolares de uma assepsia do
pensamento, mas também o trabalho sobre a plurivocidade do sentido
como condição de um desenvolvimento interpretativo do pensamento.
▪ Tomando posição sobre a necessidade de não se silenciar processos
redutores em relação à leitura de arquivo, mas de se promover um
trabalho no entremeio das questões sustentadas na materialidade da
língua (constantemente ignorada pelas duas culturas e por isso
mesmo produzindo uma brecha da qual os políticos se
aproveitariam), o autor dirige-se criticamente tanto aos literatos,
quanto aos cientistas.
▪ Em relação aos primeiros, o autor aponta que por sua familiaridade
mesma com o escrito, estes transportariam uma “evidência de
leitura” que atravessaria a materialidade do texto atribuindo a ele o
estatuto de ser linguisticamente transparente.
▪ O caso dos poetas, romancistas, escritores etc. é profissionalmente
diferente, na medida em que, não tendo necessidade da pura narração
de um pensamento, estes últimos são forçados a "habitar" sua língua
sem se contentarem em marcar e reconhecer nela
aparições/desaparecimentos de palavras, funcionando como menções,
referências ou designações. De maneira que são, frequentemente, os
poetas ou romancistas que "dão ideias" aos linguistas. Além disso, a
difusão das concepções psicanalíticas, (em particular lacanianas),
favorecem, pelo menos em certos casos, este reconhecimento da
materialidade da língua como constituindo o incontornável do
pensamento.
▪ Na cultura científica, que assumiria uma precaução metodológica
ignorando o fato mesmo da língua e considerando-a como uma
materialidade qualquer, Pêcheux (1994) lembra que também há
“evidências de leitura”, contudo de outra ordem, ou seja, inscritas no
espaço lógico-matemático em que “a materialidade da língua é
denegada, através das ilusões da metalinguagem universal”.
▪ O foco de Pêcheux recai sobre a necessidade de se considerar o
primado da materialidade da língua nos gestos de leitura de
arquivos, pois seria “esta relação entre língua como sistema
sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade
como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história”, que
constituiria o nó central de um trabalho de leitura de arquivo.

▪ Não é demais lembrar o empenho de Pêcheux na construção da


Análise Automática de Discurso e, sobretudo, sua paixão pelas
máquinas e, em decorrência, pela informática, e seu gesto de
pensar estes procedimentos de leitura sem que eles silenciassem
as práticas de leitura inscritas nas culturas que ele analisa
criticamente.
▪ Nem ceder às facilidades verbais da pura denúncia humanista do
"computador", nem se contra-identificar ao campo da informática (o
que tornaria a reforçar o projeto desta), mas tomar concretamente
partido, no nível dos conceitos e dos procedimentos, por este
trabalho do pensamento em combate com sua própria memória, que
caracteriza a leitura-escritura do arquivo, sob suas diferentes
modalidades ideológicas e culturais, contra tudo o que tende hoje a
apagar este trabalho. Isto supõe também construir procedimentos
algoritmos informatizados, traduzindo, tão fielmente quanto possível,
a pluralidade dos gestos de leitura que possam ser marcados e
reconhecidos no espaço polêmico das leituras de arquivo

▪ Os embates analisados por Pêcheux sobre a divisão social do


trabalho da leitura ainda hoje são determinantes para a compreensão
do funcionamento do arquivo na produção de sentidos.

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