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TRINTA E SETE ANOS

O ano era 1983, três de setembro. Estávamos no centro cultural Vergueiro, em São
Paulo, e aguardávamos o horário para assistir ao show da Joyce (aquela da Clareana). Eu, a Vilma
e um querido casal de amigos. Pedi um cigarro, pois estava nervoso. Isto sempre acontecia
quando eu tinha que tomar uma decisão importante. Para mim, era como estar na beira da
piscina, e ter que tomar coragem para saltar. Sabia que, ao tomar impulso e tirar os pés do chão,
iria mergulhar de cabeça numa aventura com impactos, muitos deles, irreversíveis. Não me
lembro das trivialidades que conversei enquanto observava o cigarro se consumindo, mas me
lembro muito bem o que planejava, e do compromisso que fizera comigo mesmo: "antes deste
cigarro queimar totalmente, eu hei de falar". Eu era um jovem de 18 anos, e a jovem cobiçada
que estava ao meu lado tinha seus 22. Embora muito jovem, eu já tinha muitas histórias, tristes
e alegres, muitas desilusões amorosas de adolescente, que rendiam poemas e letras de canções,
as quais eu sonhava em transformar em grandes sucessos, tipo os Beatles. Só que eu não queria
mais viver de ilusões, porque era muito dolorido vivenciar a sua dissipação enquanto
atravessava a sólida realidade da vida. Estava na hora, não tinha mais espaço para queimar, a
brasa quase chegava no filtro, então tomei impulso e me preparei para saltar naquela piscina,
sentindo por antecipação o calafrio de me entregar às águas que em segundos iriam me
envolver. Meus lábios finalmente me obedeceram, ainda que balbuciantes:

- Eu prometi que iria falar antes do cigarro acabar.

- Você quer acender outro? - respondeu a moça, não sabendo o que fazer para me
agradar.

- Não, eu tenho uma proposta para te fazer.

- Sim?

A Vilma deve ter pensado: "o que será desta vez?" A última conversa séria que teve com
o Arildo foi intimidadora. Ele era muito grave, suas palavras costumavam ter um peso
desnecessário, ele levava tudo a sério, bem diferente dos seus muitos pretendentes, que sabiam
tratá-la como rainha, que a levavam a festas animadas e restaurantes caríssimos. Com o Arildo?
O melhor programa era rodar pela cidade, quase sem rumo, procurando oportunidades para se
divertir com pouco ou nenhum dinheiro. Nem imaginava quem era aquela cantora... como era
o nome mesmo? (olhando no folheto)... Joyce (aliás, o Arildo também não sabia quem era). Bons
shows, para ela, eram os do Milionário e José Rico, Chitãozinho e Chororó, João Mineiro &
Marciano, mas, com o Arildo? Nem pensar! Se quisesse conquistá-lo, tinha que esquecer todas
aquelas coisas. O mundo agora era outro, completamente diferente.
Suas amigas a criticavam:

- O que você vê neste rapaz? Há tantos bons partidos atrás de você! E aquele advogado,
que voou de Curitiba só para te ver, te trazendo um anel de diamante, querendo oficializar o
noivado?

A Vilma o tinha dispensado, inventou que estava doente e que não poderia recebê-lo.
Desde que viu aquele moço, dois anos atrás, não conseguia mais pensar em outro. Parecia
enfeitiçada, foi amor à primeira vista. Ele, no entanto, já tinha namorada. Isto para a Vilma era
quase irrelevante, não fosse o fato de que ele parecia totalmente imune aos seus encantos.
Como isto era possível? Se havia uma coisa que a jovem loira sabia fazer muito bem, era
encantar. Era muito ciente de sua rara beleza, de seu sorriso cativante, de sua aparente
fragilidade feminina, tudo o que os homens amavam. Mas com aquele aspirante a hippie, nada
funcionava. Sua única esperança era a ajuda dos amigos Wagner e Yara, que eram os seus
consultores na busca quase irracional para conquistar o distraído coração daquele que, quando
estava ao seu lado, lhe deixava completamente desarmada, e que acabara de anunciar que iria
lhe fazer uma proposta.

- Eu sei que você gosta de mim - iniciou - mas eu não gosto de você.

Nossa! Que pancada. Tá bom, já estava se acostumando. Mas, e a proposta?

- Olha, se você concordar, e aceitar esta situação, eu proponho que nós comecemos um
namoro e, com o tempo eu devo aprender a gostar de você.

Opa! Até que não foi tão mal. Não parece ser uma proposta ruim. Que ele não gostava
dela, isso não era novidade. Afinal, ele tinha um estranho antídoto para todos os seus encantos.
Mas sua sinceridade, no final das contas era algo positivo. Era justo. Afinal, era por isto que ela
estava ali, seguindo seu coração, abrindo mão de tudo o mais.

- Sim, eu aceito.

Bem, foi assim que esta história começou. Passados trinta e sete anos, este estranho
contrato ainda vigora. O Arildo aprendeu a amar a Vilma, e a Vilma aprendeu a amar o Arildo.
Aprenderam outras coisas, também, muito mais coisas... e continuam aprendendo.

O Senhor abençoou este jovem casal, que agora tem filhos e netos, todos igualmente
abençoados.

Crônica autobiográfica escrita por Arildo Louzano da Silveira. São José do Rio Preto, SP, setembro de 2020.

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