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3 ABELEZA DO MORTO! Ninguém consente voluntariamente em ser enterrado vivo, e a magnificéncia do tamu- lo nao torna a estada mais saudavel. Charles Nisard A “cultura popular” supde uma acaéo nao confessada.” Foi preciso que ela fosse censurada para ser estudada. Tornou-se, entao, um objeto de interesse porque seu perigo foi eliminado. O nascimento dos estudos consagrados a literatura de colportage (0 livro iniciador foi o de Nisard, 1854) esta, de fato, ligado 4 censura social de seu objeto. Ela desenvolve um “sabio intuito” da policia. Uma repressao De colporter (transportar consigo a mercadoria a venda). Designa a literatura veiculada por mcio dos livreiros ambulantes (colporteurs). principalmente nos séculos XVII e XVIII. Manteve-se a palavra francesa em virtude da especifici- dade desse tipo de literatura. lida especialmente pelo povo cm geral. (N.T.) 55 politica esta na origem de uma curiosidade cientifica: a eliminagao dos livros julgados “subversivos” e “imorais”. Temos aqui um aspecto do problema, mas ele coloca uma questao geral. No inicio, ha um morto Os estudos desde entao consagrados a essa literatura tornaram-se possiveis pelo gesto que a retira do povo e a reserva aos letrados ou aos amadores. Do mesmo modo, nao surpreende que a julgem “em via de extincao”, que se dediquem agora a preservar as ruinas, ou que vejam a tranquilidade de um aquém da historia, 0 horizonte de uma natureza ou de um paraiso perdido. Ao buscar uma litera- tura ou uma cultura popular, a curiosidade cientifica nao sabe mais que repete suas origens e que procura, assim, nao reencontrar o povo. Seus resultados e seus métodos traem, no entanto, essa origem, da qual a censura de 1852 nao constitui, como veremos, senao um caso particular. Um grande numero de trabalhos recentes revela-nos detalhes acerca dessa ques- tao, ainda que ignore de onde provém seu discurso. O proprio Nisard nao 0 ignorava. Ele até mesmo se vangloriava desta condicao, a de “secretario adjunto” da policia: “Quan- do, chocado com a influéncia desastrosa que até entao exercera sobre todos os espiritos essa quantidade de maus livros que o colportage espalhava praticamente sem qual- quer dificuldade pela Franca inteira, o sr. Charles de Maupas, ministro da policia geral, concebeu e executou o sabio intuito de estabelecer uma comissaéo permanente para o exame desses livros (30 de novembro de 1852), teve a bondade de me convocar como seu membro, com o titulo de secretario adjunto. Isso me permitiu tanto reunir esses livrinhos quanto estuda-los com o mais rigoroso zelo.” Essa declaracéo vem apés as jornadas republicanas de fevereiro e junho de 1848 e apés 1852, data da restaura- ¢ao do Império. Daquilo que se corrigira podia-se fazer um “objeto” cientifico. Velho reflexo. M. Soriano mostrou que ele havia se exercido a época da Fronda, em 1647-1653, quando a linguagem do “populacho”, minuciosamente apresentado pelos irmaos Perrault em seus poemas burlescos, havia se transformado em zombaria, ao mesmo tempo em que per- mitia ridicularizar os “classicos”. De um lado, esse cavalo de Troia Ihes era util em uma polémica contra os “antigos”: querela entre os letrados, como atualmente entre escolas classicas e modernas. Mas, de outro, esse fundo popular, um momento util, torna-se temivel 4 medida que se desen- volvem as sublevagées populares da Fronda. Também os Perrault os mantém cada vez mais a distancia, irénicos e hostis, 4 proporgao que aderem a Mazarino. O “cémico” ea “curiosidade” desse linguajar vao a par, nesses grandes burgueses ameacados, do triunfo da ordem gracas ao car- deal. O burlesco da o alcance da derrota do povo, cuja cultura é tanto mals “curiosa” quanto menos temiveis sao os seus sujeitos.* Esse sistema ainda funciona, embora de outros modos e nas préprias obras que inspiram hoje convicgées contra- rias as do passado. Outrora, elas eram conservadoras, apaixonada e abertamente, como em Nisard. Sobretudo ap6s 1969, a erudi¢ao posta a servico da cultura popular é de inspiracdo marxista, ou pelo menos “populista”. Ela se insere também no que se segue a uma “historia social” em pleno desenvolvimento ha 30 anos. Ela desenha, enfim, a utopia de uma outra relagao politica entre as massas e a elite.° Mas a operacao cientifica obedeceria a leis diferentes das do passado? Ela parece, ao contrario, estar ainda submetida aos mecanismos de excomunhées muito anti- gas. “A sociologia da ‘cultura popular”, dizia Mihlmann, 57 “comeca com 0 laicismo dos heréticos."° O mesmo processo de eliminagao continua. O saber permanece ligado a um poder que o autoriza. O que esta, portanto, em causa, nao sao ideologias nem op¢ées, mas as relagGes que um objeto e os métodos cientificos mantém com a sociedade que os permite. E se os procedimentos cientificos nado sao inocentes, se seus objeti- vos dependem de uma organizacgao politica, o proprio discurso da ciéncia deve admitir uma fungao que lhe é concedida por uma sociedade: ocultar 0 que ele pretende mostrar. Isso quer dizer que um aperfeigoamento dos méto- dos ou uma inversao das convic¢6es nao mudara 0 que uma operacao cientifica faz da cultura popular. E preciso uma acao politica. Um pouco de histéria nos esclarecera, ademais, esses recomecos atuais. Nascimento de um exotismo (0 século XVIII) Como nasce esse exotismo do interior, esse olhar que considera oprimida a realidade a que ele visa e idealiza? Dois momentos privilegiados sao reveladores dessa 6tica: 0 fim do século XVIII, de um lado, os anos 1850-1890 de outro. Uma espécie de entusiasmo pelo “popular” toma conta da aristocracia liberal e esclarecida do fim do século XVIII. Porém essa rusticofilia que se reencontra nos roman- ces de Louvet e Rétif € também 0 avesso de um temor: a da cidade perigosa e corruptora porque as hierarquias tradicio- nais ai se dissolvem. De onde esse retorno a uma pureza original dos campos, simbolo das virtudes preservadas des- de os tempos mais antigos. Mas esse selvagem do interior que é o camponés francés — a espessura da histéria subs- litui aqui a distancia geografica — apresenta a vantagem de ser ao mesmo tempo civilizado pelos costumes cristaos: a 58 proximidade da natureza ligada a séculos de moral crista produz esses “sujeitos fiéis, déceis e laboriosos”” que pode- mos ver, por exemplo, em Salancy ou na Picardia, onde, todos os anos, em 8 de junho, coroa-se uma rosiére: Salancy, lugar favorecido por Deus, se for um dia escrita a historia da Virtude, tua festa sera célebre dentre seus fastos. La, dir-se-a, sabios e bons cida- daos vivem em uma simplicidade digna da Epoca antiga. La, longe das falsas necessidades, maos laboriosas fornecem a corpos vigorosos um alimen- to frugal. La, castas esposas proporcionam horas felizes a esposos honrados. La, uma donzela leva como dote para seu pretendente apenas sua sabe- doria, sua docura e a gloria de haver merecido a Rosa. La, enfim, sob um Pastor sabio, um povo industrioso, sob leis brandas. cumpre em paz todos os deveres do cristao e do cidadao. Festa da Rosa, instituigao consagrada pela sabe- doria e pela honra! Augusta solenidade, onde o prémio mais singelo é concedido a inocéncia mais pura! A moda das festas das rosiére, a partir dos anos 70 do século é o retorno a um Povo ao qual se cortou a palavra para melhor domesticar.® A idealizagao do “popu- lar” é tanto mais facil quanto se efetua sob a forma do mon6logo. Por outro lado, se 0 povo nao fala, pelo menos pode cantar. A moda das cangdes populares — Dame Poitrine revelou, em 1781, a corte de Luis XVI. Marlbrough s’en va-t-en guerre, que Beaumarchais deveria colocar nos labios de Cherubin trés anos mais tarde — € um outro indicio desse confisco de um tesouro perdido. O prazer sentido no halo “popular"!° que envolve essas melodias “ingénuas” funda justamente uma concepcao elitista da * Rosire: virgem premiada pela sua virtude com uma coroa de rosas e um dote. (N.T) 59 cultura. A emogao nasce da propria distancia que separa 0 ouvinte do suposto compositor. Mas a atitude assim desprendida nao constitui o unico fato de uma aristocracia mais ou menos masoquista. E também a dos constituintes. O questionario que o abade Grégoire, cura do Embermesnil, langa em agosto de 1790 sobre o patoa da Franca e que resulta no seu famoso relatério de Prairial ano II: Sur la nécessité et les moyens da ‘anéantir, les patois et d'universaliser l'usage de la langue francaise’! revela suas preocupacoes. O que conta aqui sao menos os ensinamentos — que o historiador pode e deve tirar para uma analise da cultura popular — do que a intencéo manifestada pelo investigador e seus correspon- dentes. Trata-se, ao mesmo tempo, de coletar (“Tendes obras em patoa, impressas ou manuscritas, antigas ou moder- nas?.. Haveria possibilidade de envia-las, sem muita dificuldade?”)? e de restringir ("Qual seria a importancia religiosa e politica de destruir inteiramente esse patoa?... O povo do campo sao muito preconceituosos e com relacdo a qué?... De 20 anos para ca, sao mais esclarecidos?”). A maioria das respostas (provinda, na sua maior parte, de burgueses — magistrados ou curas) se pronuncia a favor de uma eliminagao dos patoas. Sem diivida a razdo mais frequentemente alegada para a universalizagado da lingua francesa é a da destruicao da odiosa feudalidade que seria mantida, 4 revelia, pela sobrevivéncia dos particularismos. Mas esses citadinos esclarecidos nao retomam, sem o saber, a tocha da campanha escolar levada pela Igreja da Reforma catélica: a unidade nacional — exatamente como no passa- do o retorno do herético — sera feita pela instrucao, isto é, pela eliminacao de uma resisténcia devida 4 ignorancia. Inquestionavelmente, alguns temem pela “pureza” dos cos- tumes rusticos; porém, como observa um deles, 0 patoa ja esta condenado: 60 Os costumes de nossos bons avés eram singelos como 0 patoa e este parecia feito para figurar a singeleza e a bonomia. Sendo assim [talvez devés- semos] deixar-lhes as virtudes singelas e naturais antes que essa mudanca funesta se operasse; mas agora a ignorancia unida a corrupg¢ao seria o pior de todos os males. Aconstatacaéo se confirma: € no momento em que uma cultura nao mais possui os meios de se defender que o etnélogo ou o arquedlogo aparece. Como diz 0 préprio Gré- goire, em seu relatério 4 Conven¢ao: “O conhecimento dos dialetos pode lancar uma luz sobre alguns monumentos da Idade Média... Quase todos os idiomas possuem obras que desfrutam de uma certa reputacao. Ja a Comissdo das Artes, em sua instrucao, recomendou que se recolhessem esses monumentos impressos ou manuscritos; devemos procurar as pérolas até na esterqueira de Ennius.” Charles Nisard (1854) O periodo 1850-1890 definiu uma segunda etapa desse culto castrador votado a um povo que se constitui. a partir de entao, como objeto de “ciéncia’. Falta ainda indagar acerca dos postulados subjacentes ao “folcloris- mo”. E exatamente no momento em que 0 colportage € perseguido energicamente que as pessoas cultas se de- brucgam deleitosamente sobre os livros ou os contetidos populares. Em uma circular de aplicacao da lei de 27 de julho de 1849 sobre a imprensa, o ministro do Interior escrevia aos prefeitos: “A caracteristica mais comum dos escritos que se tenta espalhar no momento e aos quais se da a forma mais popular é dividir a sociedade em duas classes, os ricos e os pobres, representar os primeiros como tiranos, os segundos como vitimas, incitar a inveja e ao dio uns contra os outros e preparar, desse modo, na 61 nossa sociedade, que tanto se preocupa com a uniado_e a fraternidade, todos os elementos de uma guerra civil.” 8 De onde a criagao, pelo ministério da Policia Geral, em 30 de novembro de 1852, de uma “comissao para exame dos livros do colportage”: nado mais bastava espionar os colpor- teurs, era preciso controlar, por meio da concessao de selos, o conteudo das obras difundidas, verificando se ele nao era contrario “a ordem, 4 moral e 4 religiao”. Ora, € a Charles Nisard, secretario dessa comissao, como lembramos mais acima, que devemos a primeira Histoire des livres populaires et de la littérature de colportage. 16 No prefacio de sua primei- ra edicao, o autor confessa suas intengdes com uma candura desarmante: “Eu avaliava que se, no interesse das pessoas facilmente influenciaveis, como os operarios e os habitantes do campo, a Comissao nao devia deixar de proibir trés quartos desses livros de colportage, essa proibicao nao dizia respeito aqueles que estavam a salvo das leituras perniciosas, isto é, os eruditos, os biblidfilos, os colecionadores e até mesmo simples curiosos da literatura excéntrica. Julguei, portanto, ser meu dever fazer algo que seria agradavel a uns e outros ao reunir todos esses livrinhos sob um unico ponto de vista e salva-los todos do naufragio no qual estavam sujeitos a pere- cer quando isolados.” ig Desse modo, portanto, 0 povo era uma crianca cuja pureza original convém resguardar, preservando das leitu- ras perniciosas. Mas os amadores esclarecidos podem reservar a secao “curiosa” das suas bibliotecas as coleta- neas dos folcloristas, exatamente como no passado os aristocratas mandavam encadernar os almanaques com suas armas. O interesse do colecionador é 0 correlato de uma repressao que exorcisa 0 perigo revolucionario que as jornadas de junho de 1848 haviam mostrado estar sempre a espreita. 62 A liclle époque do folclore (a II Reptiblica) Vinte e cinco anos mais tarde, a primeira onda folclo- sta é contemporanea dos inicios da II] Republica. Ela plora um mundo rural que a via férrea, o servico militar {menos ainda os meios de comunicagao de massa) ainda nao haviam posto em contato com a cidade: um mundo que se deslocara rapidamente apoés a Primeira Guerra Mundial. 0 cuidado folclorista, no entanto, nao esta isento de segun- das intengées: ele deseja localizar, prender, proteger. Seu interesse € como que o inverso de uma censura: uma integracdo racionalizada. A cultura popular define-se, des- se modo, como um patriménio, segundo uma dupla grade hist6rica (a interpolacao dos temas garante uma comunida- de historica) e geografica (sua generalizacéo no espaco atesta a coesdo desta). A genealogia e o comparatismo vém, portanto, reforcar a existéncia de uma unidade do reper- lorio francés, no qual uma mentalidade francesa se exprime. Assim arrumado, o dominio popular cessa de ser o mundo inquietante que Nisard se esforcava por exorcisar e circunscrever havia menos de um quarto de século. O folclore garante a assimilagao cultural de um museu desde entao tranquilizador: “Ouvir nossas cangdes camponesas nado sera de pouca utilidade para os musicos e os poelas. Eles perceberao melhor, ao ouvi-las, que o segredo para comover e encantar no consiste na busca de sonoridades e de vocabulos bizarros, mas na exatidao do acento e na sinceridade da inspiragao proclama essa mesma revista que nega todo interesse a etnologia colonial e lembra, afinal de contas, “mas, sobretudo, permanecamos franceses"!' Esse interesse é, por outro lado, ambiguo de uma outra maneira. As conota¢des do termo popular que reen- contramos nas revistas folcloristas da época sao esclarecedoras: 0 popular ai esta associado ao natural, ao verdadeiro, ao ingénuo, ao espontaneo, a infancia. Muitas vezes, 0 zelo folclorista desdobra-se em preocupacoes fede- 63 ralistas, cujo sentido politico é evidente. Nao por acaso, o popular é, desde entao, sempre identificado com 0 campo- nés. A cultura das elites, as proprias elites sao ameagadas em um outro fronte: as classes trabalhadoras e perigosas das cidades, e antes de mais nada de Paris, constituem a partir de entao uma outra ameaca presente. G. Paris nao procura escondé-lo quando, em um discurso solene na Sorbonne, define a arte popular: “Tudo aquilo que se produz ou se conserva no povo, longe da influéncia dos centros urbanos.”!® A reivindicagao de uma restauracao da vida provinciana, sancionada por um medievalismo meritério, a exigéncia de uma renovacao social que devera reencontrar ° camponés no operario e conhecer as virtudes primitivas da terra,?° a vontade de um retorno as fontes estéticas contra o “refinamento preocupante e o equivoco intelec- tual”: os mesmos temas que anunciam os da Revolucao nacional — Vichy, essa outra idade de ouro da tradicao e do folclorismo — e que, de imediato, manifestam a existéncia de um populismo dos poderosos, em busca de uma nova alianga. Encontramos seu eco nesse entusiasmo curiosa- mente atual e, no entanto, fortemente acentuado de Dérouléde: “Sim, vamos aos operarios e aos camponeses; melhor ainda, se pudermos, tornemo-nos nés mesmos cam- poneses, operarios, misturemo-nos em suas festas; fag¢amos com que renascam aqueles que a intolerancia ou o esqueci- mento mataram; criemos outros novos.”2! A Franca burguesa, uma imensa quermesse? Um beneficio nunca se perde. Espontaneo, ingénuo, 0 povo, uma vez mais, € uma crianca. Nao mais essa crianca vagamente ameacadora e brutal que se quis mutilar: o filho prédigo retorna de longe e se adorna com os enfeites do exotismo. Com sua distancia também. Para G. Vicaire, “a tradigao, um mundo de sensa- ¢ées inéditas” deve nos dar novamente a conhecer “a alma tao obscura, tao dificil de penetrar do camponés”.2? 0 povo é uma porcelana japonesa: devemos despertar-Ihe nova- 64 mente o gosto do canto; é um rio, € preciso matar a sede nele.?° &, sem sombra de duvida, uma mulher que precisa- mos revelar a ela propria: “Em suma, toda criagao do espirito humano deve, para se aperfeicoar, percorrer trés estagios: em primeiro lugar, concepgao quase espontanea de um ideal nas imagens populares, isto é, Tradicao e Inconsciéncia; depois, organizacaéo racional desse ideal na obra de génio, isto €, Consciéncia e Artes; enfim, encarna- cao desse ideal na realidade, isto é, Progresso Social... Em um grande homem, ha sempre e deve haver um inconscien- te nervoso e sentimental como uma mulher; mas ha e deve sempre haver nele, allem disso, uma perspicaz e preponde- rante virilidade..."?4 Elogio do estupro dialético? Em todo caso, confissao apenas travestida de uma violéncia antiga que oscila agora entre 0 voyeurismo e a pedagogia. Nesse campo, tudo € possivel. O liberalismo um tanto desdenhoso de alguns grupos aponta precisamente que “o espirito novo nao despreza ninguém; na natureza, na humanidade nada lhe é indiferente”.“” O povo é, como um todo, 0 bom selva- gem: o confinamento cultural pode ser seguido da reserva ou do museu. O olhar dos letrados pode se querer neutro e — por que nao? — simpatico. A mais secreta violéncia do primeiro folclorismo foi ter camuflado sua violéncia. Ela nos transporta para o presente. O mito da origem perdida O que significa “popular”? Em seu estudo sobre “popu- lar e povo”, Marcel Maget fala da “impossibilidade de definir” e de “aporias légicas”. Ele adiciona e multiplica os critérios que sua gritica remete a outros, indefinidamente, até a vertigem.” © Quanto 4 historia, ela se sai melhor, quando se poe em busca da literatura popular sob o Antigo Regime? Pode-se duvidar, apesar do reforco de estudos admiraveis de Robert Mandrou, Geneviéve Bolleéme, Marc Soriano etc. 65 Nesse fluxo de livros eruditos, a literatura popular nem sempre diz seu nome. Com outros, mais claramente do que outros, M. Soria- no distingue, na literatura dita popular, os “escritos para uso do povo” e as “obras autenticamente populares”. No entanto, os préprios textos — os contos escritos pelos Perrault, sem sombra de duvida, e também os almanaques (G. Bolléme o mostra) — tém profissionais como autores.78 Eles revelam, portanto, a mentalidade dos intelectuais. Mas esses especialistas, esses letrados, nado seriam eles mais adaptados ao gosto de seu ptiblico? Em outras palavras, 0 “popular” deveria ser procurado entre os leitores? E pouco provavel, apesar da difusdo dos almanaques durante o Antigo Regime (72 mil exemplares para o de Colombat, de 150 mil a 200 mil para outros). Em uma Franga ainda com 60% de analfabetos, por volta de 1780 (80%, em 1685), os almanaques encontram-se antes na biblioteca das classes médias — R. Chartier observou-o”? e muitos dos arquivos 0 confirmam. Esses livrinhos do século XVIII parecem, por- tanto, ocupar a mesma posicao que a atual literatura de bolso: atenderiam a um numero maior de leitores, mas, parece, sem ultrapassar a fronteira das classes favorecidas e médias. Onde colocar, pois, “o autenticamente popular”? Uns verao nele o tesouro oculto de uma tradicdo oral, fonte “primitiva” e “natural”, que desagua na literatura escrita. Outros postulam uma unidade da cultura, mas prolongada no curso de um movimento que faria da literatura de elite anunciadora das evolucgées globais. Ha, portanto, varios sistemas de explicagao. Para Bolléme, a literatura de elite do Antigo Regime degradou-se em uma cultura “popular”, elaborada por letra- dos especializados, mas possui, assim, a funcao transitoria de despertar no povo uma necessidade de saber e de felici- 66 dade. Uma vez cumprido esse papel, em fins do século XVIII, o almanaque nAo teve mais razao de ser; torna-se “antiqua- do, obsoleto”, pois 0 povo se poe entao a falar a filosofia unica, “conjuga¢ao do bem viver, da ciéncia, da pesquisa e do gosto pela verdade, do desejo de felicidade, do esforgo em direcdo a virtude”*! Porém, para Bolléme, tudo isso funcio- na porque hd, no povo, um “gosto”, o do saber ou o “de ser instruido”,°* de cuja sonoléncia os almanaques despertam. Esse “gosto”, correspondente a uma “necessidade” ou a uma natureza profunda, é trazido a luz pelo que ha de excitante nos almanaques que inicialmente apresentaram 0 povo como o lugar onde habita um Deus pobre e onde uma sabedoria interior se transmite a si mesma. Mas, afinal, nao se deveria concluir que o Deus oculto nao é outro senao esse “gosto” e essa “necessidade”, sol que a trombeta dos intelec- tuais tira da escuridao? Em M. Soriano, o esquema parece o inverso. Para ele, €a propria literatura popular, “muito antiga”, enraizada nas origens da historia e transmitida por uma tradicao oral, que emerge na literatura classica. Ela transparece pouco a pouco na obra dos letrados, exatamente quando, tal como os Perrault, deixam de sentir qualquer “simpatia especial pelas massas trabalhadoras” e creem somente utiliza-las. Contrariamente a hipétese de G. Bolléme, M. Soriano vé 0 movimento remontar as profundezas da tradigdo popular até as obras classicas, e nao descender de uma literatura de elite para produzir uma vulgarizacao estimulante. Essa ascensao tira sua forga de “necessidades funda- mentais” e de “aspiracdes profundas”. A expressao popular € sua manifestacao primeira.*? A historia literaria encontra ai sua “origem” natural. Segundo a perspectiva de M. Soria- no, essa “origem” nado é totalmente invisivel nem redutivel a evocacaéo de aspiragées populares. Ela possui, mais préxi- ma de si do que as obras de letrados, uma expressdo “auténtica” na arte popular. A busca da origem se faz, 67 portanto, mediante uma pesquisa dos textos “primitivos”. Um método textual, alias bastante extraordinario, deve, pois, pressupor que esses textos primitivos sejam caracteri- zados por um “estilo sdbrio, enérgico e eficaz”. Desse modo, torna-se possivel hierarquizar as versées do mesmo conto e recuperar “o autenticamente popular” na literatura das elites. A “sobriedade”, a versao curta, 0 vigor: todos esses tracos, atribuidos a uma genialidade fundamental, permi- tem dizer onde se encontra 0 “primitivo”. E verdade que essa construcdo repousa inteiramente naquilo que pretende provar. Ela pressupde que o popular seja o comeco da literatura e a infancia da cultura; que a pureza de uma origem social esteja enterrada na historia; que uma genialidade primitiva seja incessantemente adap- tada pela literatura e deva ser incessantemente preservada e reencontrada; que, enfim, a tradi¢do popular articule as profundezas da natureza (as “aspiragdes profundas” e as perfeigdes da arte — sobriedade, vivacidade, eficacia da narra¢ao). Com um pouco de psicanilise, explicaremos facil- mente o recalcamento dessa origem e 0 retorno do recalcado na propria linguagem da repressao. O impressionante nessas andalises nado sao, como dizia M. Maget, as “aporias” resultantes dos termos do problema tal como é colocado, mas 0 alcance desse problema: encon- trar a origem perdida. Seja qual for o seu tratamento cientifico, essa fascinacao do objeto perdido toma posse dos métodos na vertigem da sua contradi¢ao interna. Ela os captura na sua impossibilidade. Antes de criticar a abordagem — consideravel, como sabemos — dos estudos apontados, nosso exame visa 4 pressao quase obcecada que exerce sobre eles essa questao da origem. Ela parte do préprio conceito de “cultura popular”. De onde vem, portanto, essa sombra? Como se cons- tituiu essa forma que parece se apresentar as pesquisas 68 apenas como evanescente e inapreensivel? Na sua bela e crudita “Introdugao 4 cangao popular francesa”, como vi- nos, Henri Marrou ja dizia que, em ultima anilise, “a cancao folclorica extrai de seu carater distintivo um halo popular que a encobre aos nossos olhos”.** Qual o sentido, pois, desse fantasma que designa a origem ao oculta-la, desse “halo” que mostra ao “encobrir"? Uma hip6tese impde-se, ainda que ela nao explique tudo. Esses estudos sobre a cultura popular tomam por objeto sua propria origem. Eles perseguem na superficie dos textos, diante de si, aquilo que €, na realidade, sua condigao de possibilidade: a eliminagao de uma ameaga popular. Nao surpreende menos que esse objeto de interesse tome a figura de uma origem perdida: a ficcao de uma realidade que deve ser encontrada conserva 0 trago da agao politica que a organizou. A literatura cientifica faz funcionar como uma representacao mitica o gesto que esta em seu nascimento. Ela nao poderia, portanto, introduzir no discurso, como um objeto ou um resultado de procedimentos rigorosos, 0 ato inicial que constituiu uma curiosidade ao eliminar uma realidade. E, sem sombra de dtivida, ela nao solucionara suas contradi¢des internas enquanto esse gesto fundador for “esquecido” ou negado. Leituras eruditas de temas populares Reencontra-se, no nivel da andlise e da interpretacao dos temas, a ambiguidade do objeto cultura popular que ja deixavam transparecer as formulagées contrarias e, no entanto, solidarias, ao problema da origem. O primeiro momento é o do recenseamento. Ele é util e necessario, 0 que nao quer dizer que por isso seja evidente. G. Bolléme e R. Mandrou constituiram repertérios, alias aberios, temas essenciais que reencontravam nos almanaques ou nos ca- 69 talogos da Biblioteca Azul: “Explorar os temas principais, as presengas e as auséncias no interior do repertério da Biblio- teca Azul é obter, com certeza, em larga medida, os proprios temas da cultura popular francesa sob o Antigo Regime... a Muito bem. Mas ha quem suponha que esses temas se apresentem por si mesmos como pertinentes e que as “unidades significativas” assim inventariadas realmente o sejam. Deparamos aqui com o problema irritante e classico que se coloca aos historiadores, como a outros praticantes das ciéncias humanas, a modéstia agressiva dos folcloristas — da classificagdo de Aarne-Thompson no Manuel de Van Gennep: solidamente encastelados em um positivismo pro- clamado, na recusa em interpretar ou em concluir, esses inventarios nao serdo a artimanha extrema e como que a vinganga da interpretacao? Sabe-se atualmente muito bem que ninguém esta livre disso. De onde surge uma dupla interrogacao: de onde falam os historiadores da cultura popular? E, por conseguinte, que objeto constituem? Nao é indiferente observar que as nog6es que serviram para constituir sua grade de inventario sao todas tomadas emprestadas as categorias do saber (em G. Bolléme) ou, de uma maneira mais ampla, 4 cultura erudita 4 qual R. Mandrou quis restituir o alétropo,*© “um nivel cultural menosprezado, esquecido”: 0 feérico, o mara- vilhoso, 0 pagdo, os conhecimentos cientificos ou ocultos definem menos o contetido de uma cultura popular do que o olhar que langa sobre ele o historiador. “A inclinagéo em diregao ao real, ao atual, ao humano” que G. Bolléme lé nos almanaques do século XVIII, a que real, a que histdria, a quem ela conduz? A recusa da duracao, na qual se vé, por outro lado, a caracteristica desse fundo cultural*”, nao sera antes o reconhecimento, pela cultura erudita de hoje, de sua temporalidade essencial e, finalmente, uma confissdo espantada diante de seu outro? A reconhecida incerteza quanto as fronteiras do dominio popular quanto 4 sua homogeneidade diante da unidade profunda e sempre rea- 70 lirmada da cultura das elites poderia justamente significar que o dominio popular nado existe ainda porque somos incapazes de falar dele sem fazer com que ele nao mais exista. R. Mandrou escreve que as “incoeréncias fazem parte dessa visao do mundo que a Biblioteca Azul espalhou durante mais de dois séculos”.** Sao, paradoxalmente, os termos dos antigos censores. Essas incoeréncias sao, con- tudo, o inverso da nossa impoténcia em reencontrar a coeréncia de uma totalidade cultural: eis os nossos primiti- vos. Disso resulta, 0 que € mais grave ainda, uma desqualificagao do objeto assim classificado, ressituado e desde entao tranquilizador. O popular na histéria social Porém ha mais ainda. Os problemas do inventario remetem mais profundamente aos da interpretacao dos temas e, antes de mais nada, aos colocados pelo préprio estatuto da interpretacao. O que dizem os textos trazidos desse modo 4 luz, 0 que podem dizer? A tematica da litera- tura popular apresenta-se nas nossas obras como a manifestacdo de algo diferente que a sustentaria, 0 popular. Nada mais esclarecedor, a esse respeito, do que o capitulo sumario consagrado por M. Soriano 4s massas camponesas e ao folclore do fim do século XVII;°° ele questiona, ao aumentar os problemas, a propria existéncia de uma hist6- ria social da cultura: uma evocacao rapida do “sombrio século XVII", algumas generalidades acerca das tensoes sociais no campesinato francés (as revoltas) e acerca de sua suposta derivacao ideolégica (a feitigaria), alusébes ao mun- do da crenca e da supersti¢ao tomadas emprestadas aos autores recentes acabam por servir de caucao historica 4 investigacdo. “E”, diz Soriano, “nesse contexto que é preciso situar o folclore, isto €, o conjunto das manifestacées artis- ticas desse campesinato: dangas, ceriménias, cangées e, 71 naturalmente, contos.”*° Além de nao ser evidente a identi- dade entre “artistico” e “popular”, vé-se muito bem que a cultura popular define-se aqui de maneira apenas tautold- gica: € “popular” aquilo que reflete imediatamente a situa¢ao histérica do povo sob o Antigo Regime. O trabalho consiste, nesse caso, em reencontrar na histéria cultural os préprios temas da histéria social. Entra-se em um sistema sem fim de glosas e de retornos. A invencao fecha-se no reconheci- mento, e 0 corpus torna-se repertério de citacdes. Nem o folclore nem a historia encontram explicagao. Como funciona a expressao cultural com relagado a sua insercao social? Se for verdade que aquilo a que chamamos cultura popular penetrou todos os aspectos da vida campo- nesa no século XVII, em que sonhos, em que mitos ela se organizou?*! Respondendo a uma pergunta de E. Le Roy Ladurie, Soriano aspira a poder restituir a grade segundo a qual Perrault teria bebido no repertorio folclorico; é, com efeito, uma das chaves dos Contos.’ Como € possivel, por conseguinte, supor o problema resolvido por aquilo que é do proprio repertorio? Nao é surpreendente que os temas, isto €, 0 proprio popular, oscilem entre a descric¢ao social positi- vista (“o contetido social dos contos”) e a alusao ao contetido inapreensivel de um dominio falaciosamente 6bvio. De ma- neira muito sintomatica, Soriano desvia-se do problema da coeréncia e do funcionamento da cultura popular em dire- cao a pesquisa genealégica do texto primitivo. Durante todo o tempo, a cultura popular esta pressuposta no desenvolvi- mento que ela deve garantir. Desse modo, ela esta sempre em outro lugar; ao fim e ao cabo, nao é nada. Algumas observa¢ées, aqui ou 1a, dao no entanto a ideia daquilo que poderia ser uma analise tematica. Traba- Ihando com corpus bastante préximo, R. Mandrou e G. Bolléme, historiadores mais atentos, observam que, na repre- sentacao inflexivel e imposta do alto que dao da sociedade, livros e almanaques deixam transparecer uma fenda: a 72 luncao do pastor, marginal social por profissao, sujeito e objeto natural, cuja simplicidade se rege segundo a evidéncia evangélica, cuja inocéncia, ao mesmo tempo em que garante ii festa, carrega a violéncia, poderia justamente revelar inci- dentalmente o olhar langado pelo outro para uma sociedade que se constroi sobre o siléncio e a exclusao do outro. Em outra passagem, também. G. Bolléme observa que “o catolicismo € a religiao dos pobres” e que 0 Deus dos ulmanaques € o “Deus dos pobres”: tema evangélico, lugar- comum ao rico passado, mais rico ainda no futuro, sem duvida; sentimo-nos tentados, contudo, a ver ai um grupo social ocupado em fazer ouvir sua verdade (isto é, antes de mais nada a se situar na verdade) por meio da sua partici- pacao alegorica nos sofrimentos do Evangelho. Somos tanto mais tentados ainda a fazé-lo quando o autor observa a importancia aparentemente paradoxal de uma linguagem religiosa (por guiro lado, secularizada) nos almanaques do século XVIIL*> E possivel ver ai, assim como 0 indicio de uma religiosidade popular em expansao, o refluxo de uma cultura popular em diregdo 4 unica linguagem que ainda Ihe permite exprimir-se diante do triunfo da razao que desejaria nega-la. A linguagem da religiao poderia, nesse caso, ser 0 ultimo recurso de uma cultura que nado pode mais se manifestar e que deve se calar ou se disfargar para que se faca ouvir uma ordem cultural diferente. Reencon- tramos aqui a prépria raiz do nosso problema: a cultura popular apreende-se apenas segundo o modo de desapare- cimento porque nosso saber se impée, qualquer que seja o caso, ndo mais ouvir e nado mais saber falar disso. Enfim, para além dos métodos e dos contetidos, para além do que ela diz, uma obra julga-se por aquilo que cala. Ora, € preciso reconhecer, os estudos cientificos — e, sem duvida, também as obras que eles privilegiam — compor- tam estranhas e vastas regides de siléncio. Esses brancos desenham uma geografia do esquecido. Eles tragam em 73 negativo a silhueta das problematicas expostas em preto e branco nos livros eruditos. Uma geografia do eliminado Para ficarmos apenas em um esboco dessa geografia, trés regides parecem ausentes desses estudos, embora por diferentes motivos: a criancga, a sexualidade, a violéncia. A ccriancga Auséncia da crianga? Parece paradoxal dizé-lo, uma vez que esses estudos tém exatamente como leitmotiv a associacdo “crianga e povo”. Eles passam muitas vezes, além disso, da literatura infantil 4 literatura popular. Lite- ratura para criangas, literatura provinda da crianga e das origens do homem, literatura pedagégica: todos esses temas favorecem a assimilacgao do povo a crianga e explicitam seu sentido. Mas tornam apenas mais sintomatico tudo aquilo que é dito da crianga, figura que serve de alegoria daquilo que se pensa do povo. M. Soriano mostrou magistralmente que o problema do pai é uma das chaves da obra de Perrault. Sem duivida é preciso fazer dessa tese uma hipotese muito mais geral e estendé-la a um numero bastante grande de contos e len- das. Porém sera indubitavel, como cré M. Soriano, que se deva interpretar esse fato como 0 indicio de uma “morte” ou de um apagamento do pai? Ele ai vé a prova do nascimento de uma geracao privada de pais e sem “ancestrais”, desde entao abandonada a si prépria, educada apenas pelos livros que lhe sao apropriados. A literatura infantil substituiria a presen¢a dos pais. Ha muitos indicios do contrario. Em primeiro lugar, ha muito poucas criangas na literatura resgatada. Antes, os 74 ucdultos fazem de si, no espelho de textos supostamente destinados a criangas, a imagem de si mesmos tal como a laginam. Eles se oferecem sua propria lenda, por intermédio los adultos apresentados as criancas. Certamente, devemos hos perguntar também se nao ocorre 0 mesmo com os membros das classes médias que se reproduzem e ideali- zim na imagem que pretendem oferecer de si proprios ao “bom povo”. Seria menos surpreendente, nesse caso, 0 yrande prazer que os nobres e os burgueses sentem em ler essa literatura, quando se supe que tenham constituido i parle mais importante de sua clientela. O adulto agiria do mesmo modo ao comprar, “para agradar as suas crian- cas”, contos concebidos para Ihe dar prazer. Uma nutossatisfacao, que € também uma tautologia de adultos, (aria das criangas seu mero pretexto, seu instrumento e sua sustentagao. Porém, muito mais ainda, a crianca, quando aparece, possui exatamente o saber ou as virtudes do adulto. O “bruxinho”, o “pequeno magico” etc.** ou “a crianca sabia aos trés anos”"” sabe ja tanto quanto os grandes, e mais ainda. E por esse motivo é contestadora? Nao, ela repete seus predecessores, ainda que os antecipe. Ela confirma, portanto, que nao ha duas sabedorias nem duas morais, mas que aquelas dos pais permanecerao sendo as das criancas, as do futuro, as de sempre. O fundo “natural”, na crianga, reencontra o dito dos pais e mais o comprova do que ameaca. Supée-se que a espontaneidade infantil escape aos adultos, mas esse distanciamento é um artificio que lhes assegura melhor seu saber. Do mesmo modo, os autores dessa literatura infantil — os “pais” desses folhetos —, ao se referirem a uma “natureza” infantil, confirmam assim suas concepcées e suas aspiragées, as quais devem passar pelo outro para ser mais bem reconhecidas. As criangas, portanto, nao teriam “mais pais” e nao encontrariam mais diante de si a violéncia 75

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