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Louco, selvagem ou infantil.

1
O fetichismo e as exclusões da razão.
Antonio Herci2

Vamos acompanhar o uso do termo FETICHISMO, recorrente e fundamental na evolução da ciência


e da estética modernas.
O termo foi proposto em 1757 pelo francês Charles De Brosses (1709-1777), adotado depois pelo
discurso iluminista, pelo pensamento alemão, psicanálise e acabou se tornando uma marca
recorrente e fundante nas ciências e nas artes até a contemporaneidade. Desde que pronunciado,
na Académie des Inscriptions et Βelles-Lettres o termo se referiu a pessoas que:

1. Não tem conhecimento adequado ou científico e guiam-se por pensamento mágico;


2. Portanto não podem ser agentes ou sujeitos e devem obeder ordens e ser educados, regulados
ou presos: de fato até no direito ao próprio corpo não é reconhecido seu direito e decisão;
3. Mas são altamente funcionais e o seu trabalho, fruto de inconsciência, desumanidade e
brutalidade, pode produzir muita riqueza, que pode ser valorizada, trocada ou acumulada, inclusive
na coação ou contratação de mais trabalho.
Acusar alguém de fetichista sempre visa prescrever ajuda ou atribuir punição: a pessoa imputada
fetichista ou precisa de algo que a qualifique — por exemplo, falta-lhe uma consciência ou
entendimento; ou deve se livrar de algo que a desqualifica — por exemplo, gostar de pés e não
vaginas ou pênis como deveria.
O termo FETICHISTA nasceu do choque entre colonizadores e colonizados e tornou-se um operador
necessário à afirmação da ciência e da estética modernas: a delimitação do campo da exclusão da
razão.

Vamos propor uma inversão de foco: não é o fetichista que se vai interpretar, mas sim o
DISCURSO QUE O ACUSA.

Um discurso epidictico, que tem por fim acusar alguém — de FETICHISTA — para censurar ou
excluir seu direito à fala, planejamento e gerências dos negócios humanos, seja nas artes, nos
ofícios ou nas atividades sociais. Utilizado por diversas e diversos intelectuais desde o iluminismo,
chega à contemporaneidade na crítica estética, ao alijar da categoria de “arte” o que considera
incorrer no fetiche da comunicação.
Nesta aula-ensaio, vamos interpretar o discurso que tem por fim a censura da ou do outro, um
dispositivo de subjetivação que depende, intrinsecamente, da privação da subjetividade da
alteridade para afirmação de si. E interpretar em músicas, filmes e fragmentos essa crítica.
A seguir faço uma indicação de leitura do artigo de Motary e destaco alguns trechos e fragmentos
importantes no material bibliográfico que estou compartilhando em PDF. Quem puder e quiser
pode se aprofundas nos textos remetidos.

Saudações a todas e todos e com trabalho.

1
Preparatório para aula em 15 de outubro de 2020, ministrada no curso Alterciência, no Núcleo de Estudos das
Diversidades, Intolerâncias e Conflitos – DIVERSITAS/USP, sob orientação geral e coordenação do Prof. Dr. Artur
Matuck.
2
Antonio Herci é Filósofo, mestre e doutorando em Artes pelo Programa de Pós Graduação em Estética e História da
Arte (PGEHA), da Universidade de São Paulo. É dramaturgo e compositor do Coletivo de Galochas (grupo de teatro de
ocupação) e Membro Titular do Museu de Arte Contemporânea, como Representante Discente.
Indicação de leitura:

1. MATORY
Marx, Freud, e os deuses que os negros fazem: a teoria social europeia e o fetiche da vida real
MATORY, J. Lorand. "Marx, Freud, e os deuses que os negros fazem: a teoria social europeia e o
fetiche da vida real". Revista Brasileira de Ciências Sociais 33, no 97 (Julho de 10, 2018).
doi:10.1590/339701/2018.

O texto foi disponibilizado na íntegra, quem puder leia, particularmente atentem ao termo que
utiliza, tirando do alemão: Schadenfreud etnológica.
Tentem descobrir por que ele diz isso, será um aspecto central de nosso encontro.

Indicações de fragmentos:

1. BROSSES.
GENERALIZAÇÃO.
Tantos fatos semelhantes, ou do mesmo tipo, estabelecem com
muita clareza, que a religião dos negros africanos e de outros
bárbaros de hoje é como antigamente era a dos povos antigos; e é
a mesma em todos os séculos, assim como em toda a terra que
vemos surgir esse culto diretamente prestado, sem figura, nas
produções de animais e vegetais.3

EXCLUSÃO DO CAMPO DA RAZÃO.


O fetichismo é do tipo dessas coisas tão absurdas que se pode dizer
que elas nem deixam de lado o raciocínio que gostaria de combatê-
las. Em princípio, seria difícil alegar causas plausíveis de uma
doutrina tão tola.4

ESTADO ESTACIONÁRIO.
Depois de ter exposto como é o atual fetichismo das nações
modernas, farei uma comparação com a dos povos antigos; e esse
paralelo naturalmente nos leva a julgar que as mesmas ações têm o
mesmo princípio, nos fará ver claramente que todos esses povos
tinham a mesma maneira de pensar, uma vez que tinham a mesma
maneira de agir, que é uma consequência daquela.5
3
BROSSES, Charles de. Du Culte des Dieux Fétiches ou parallèle de l’ancienne Religion de l’Egypte avec la religion
actuelle de Nigritie 1760. (Ouvrage publié avec le concours du Centre National des Lettres du Ministère de la
Recherche et du Ministère de la Culture. Corpus des Oeuvres de Philosophie en Langue Française). Paris: Fayard,
1988, página 95 [Tant de faits pareils, ou du même genre, établissent avec la dernière clarté, que telle qu’est
aujourd’hui la Religion des Nègres Africains et autres Barbares, telle étoit autrefois celle des anciens peuples ; et que
c’est dans tous les siècles, ainsi que par toute la terre, qu’on a vû régner ce culte direct rendu sans figure aux
productions animales et végétales].
4
Ibid., página 95 [Le Fétichisme est du genre de ces choses si absurdes qu’on peut dire qu’elles ne laissent pas même
de prise au raisonnement qui voudroit les combattre. A plus forte raison seroit-il difficile d’alléguer des causes
plausibles d’une Doctrine si insensée].
5
Ibid., página 14 [Après avoir exposé quel est le Fétichisme actuel des nations modernes, j’en ferai la comparaison
avec celui des anciens peuples ; et ce parallèle nous conduisant naturellement à juger que les mêmes actions ont le
INSENSIBILIDADE E APATIA.
Sabemos que eles [os fetichistas] vivem em uma insensibilidade
que advém da apatia, nascida do pequeno número de idéias que
não se estende além das necessidades atuais: não sabem nada e
não desejam saber: eles passam a vida sem pensar e envelhecem
sem sair da infância, dos quais retêm todas as falhas. 6

2. MARX.
FETICHISMO, SOCIEDADE PRODUTIVA DOS HOMENS, SEQUESTRO
DE SUBJETIVIDADE.
Portanto, os homens relacionam entre si seus produtos de trabalho
como valores não porque consideram essas coisas meros
envoltórios materiais de trabalho humano da mesma espécie. Ao
contrário. Ao equiparar seus produtos de diferentes espécies na
troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como
trabalho humano. Não o sabem, mas o fazem.7

3. FREUD
NÃO É RECONHECIDO COMO DOENÇA.
Não se suponha que essas pessoas tenham recorrido à análise por
causa do fetiche, pois ele é reconhecido como anormalidade por
seus adeptos, mas raramente percebido como sintoma de doença;
em geral parecem bem satisfeitos com ele, e chegam a louvar as
facilidades que traz à sua vida amorosa. 8

FETICHE E CASTRAÇÃO.
Se eu afirmar agora que o fetiche é um substituto para o pênis,
certamente causarei decepção. Apresso-me então a acrescentar
que não é o substituto de um pênis qualquer, mas de um especial,
bem determinado, que nos primeiros anos infantis tem grande
importância, porém é perdido depois. Isto é: normalmente seria
abandonado, mas o fetiche se destina exatamente a preservá-lo.
Colocando isso de maneira mais clara, o fetiche é o substituto para
o falo da mulher (da mãe), no qual o menino acreditou e ao qual —
sabemos por quê — não deseja renunciar.9

4. ADORNO.
FETICHISMO E DEPRAVAÇÃO.

même principe, nous fera voir assez clairement que tous ces peuples avoient làdessus la même façon de penser,
puisqu’ils ont eu la même façon d’agir, qui en est une conséquence].
6
Ibid., página 114 [Sabemos que eles vivem em uma insensibilidade que advém da apatia, nascida do pequeno número
de idéias que não se estende além das necessidades atuais: não sabem nada e não desejam. saber: eles passam a vida
sem pensar, e envelhecem sem emergir da infância, dos quais retêm todas as falhas].
7
MARX, Karl. O capital: Crítica da Economia Política. Tradução: Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006, página 200. Livro I, sec I, cap I, § 4.
8
FREUD, Sigmund. "O fetichismo [1927]". In: Obras Completas, Vol. 17 [1926-1929]. Tradução: Paulo César de
SOUZA. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, página 245.
9
Ibid., 246.
As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam em bens
de cultura sofrem, mediante este processo, alterações
constitutivas. Tornam-se depravadas. 10

ETICHISMO COM INFANTILIDADE, REGRESSÃO, DEFORMAÇÃO.


Para tais ouvintes, elabora-se uma espécie de linguagem musical
infantil, que se distingue da linguagem genuína porque o seu
vocabulário consta exclusivamente de resíduos e deformações da
linguagem artística musical.11

FETICHISMO E ESCRAVIDÃO.
Sempre de novo os indivíduos ainda não inteiramente coisificados
querem subtrair-se ao mecanismo da coisificação musical,estão
entregues, porém na realidade cada uma das suas revoltas contra o
fetichismo acaba por escravizá-los ainda mais a ele.12

10
ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição. Tradução: Luiz João Baraúna. São Paulo:
Abril Cultural (Os Pensadores), 1980, página 81.
11
Ibid., página 96.
12
Ibid., página 98.

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