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Aquilino Ribeiro o Malhadinha
Aquilino Ribeiro o Malhadinha
Ii
.he 48
III
Aquela noite, tinha-se
acabado de cear, botei o apa-
relho ao macho com cilha do-
brada para maior segurança.
E, depois de meter o baca-
marte e a merenda nos alfor-
ges, fui prendê-lo com nó
singelo, bom de desatar, à
boqueira da quintä de meu tio
Agostinho como viageiro pa-
cato que deixa ali a besta e
vai dar o seu recado, se é
que näo entrou na taverna a
beber meio. O muro era baixo
e quedei-me, cotovelos por
cima da albarda, a espiar a
casa e a vizinhança, à espera
da paz morta de Barrelas,
quando as ruas ficam apenas
para os gatos e as almas do
outro mundo. Estava o ar
fresco e, na hora pasmada que
começara a correr, uns taman-
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cos ao largo a descer o patim
para os cortelhos, o vagido
dum menino de mama, prato a
tinir contra prato, eram como
pedras que caíam num poço e
ficavam afundidas. Aqui e
além, na oficina do Bártolo
sapateiro, no sótäo do Albi-
no alfaiate, a luz da candeia
riscava as portas gretadas e
cosia com seu fio amarelo os
rombos das almofadas carcomi-
das. Entretanto que serena-
va, tanto ia olhando umas
coisas e outras,
:,
.he 49
como me entretinha a deitar
palpites sobre o êxito da em-
preitada, nanja a perguntar
aos meus botöes se fazia bem,
se fazia mal. Estava decidi-
do e mais que decidido, e na-
da deste mundo me desviaria
do propósito, nem o anjo Ga-
briel de espada em riste ou
um santo com as melhores ra-
zöes do céu. Pudera, eu a
chegar do vale de Arouca, no
estado de espírito que os
amigos calculam, e a Maria
Mulata a dizer-me: -- Antó-
nio, se näo andas a horas, a
pássara bate as asas, sem di-
zer por qui me vou!
Tudo se sabe neste mundo,
e eu soube por ela o que näo
gostava, mas bem preciso me
era näo ignorar. Soube que a
Brízida, naquela tarde em
que a ameacei, correu a dei-
tar tudo no regaço da Clau-
dina Bisagra, que trazia ar-
rendada ao Ramos a loja tér-
rea ali ao pé, onde tinha
dois cabos de cetolas e o
monte das batatas e, mais que
tudo, utilizava para fazer os
favores a quem ela queria. E
soube que a zarga, longe de
pô-la da minha banda -- aqui-
lo o padre tinha-a convidado
-- matou-lhe mas foi o bicho
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do ouvido com histórias do
meu mau génio, que algum dia
chacinava um homem e me man-
davam para o degredo, e o meu
ofício näo era de molde a er-
quer casa com soalho. Ao
mesmo tempo, ia-a adoçando à
ideia, que sempre lhe causara
engulhos, de ser ama de pa-
dre.
E, rebatendo-a assim por
um lado, enfatuava-a
:,
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por outro com celebrar-lhe as
virtudes do masmarro, homem
de chaço que seria capaz de
fazer dela fidalga, com boas
chinelinhas nos pés, papo
branco, e filhos no tarde or-
denados ou doutores.
-- Olha-me para o Dr.
Laurindo, que até vai à caça
com el-rei! Näo é filho do
padre Bezerra e duma criada
que levou das Arnas?! Há-
beis e danados para a vida
näo há como filhos de pa-
dre...
-- Meu primo era capaz de
me esfolar -- dissera ainda a
Brízida.
-- Esfolar, esfola ele as
cabras para lhes safar os
odres. O abade de Britiande
também tem unhas.
-- Qual o quê, o António
é uma fera...
-- Apanhes-te tu em Bri-
tiande e que vá lá arrancar-
-te com quanta bófia tem...
Assim mesmo a grandessís-
sima madragoa. A Maria Mu-
lata, que tinha casa costas
com costas e nunca mais per-
doou à Claudina ter-lhe re-
laxado o marido, contara-me
isto e forçoso me era acredi-
tar, que nunca foi mulher de
despiques nem de falsos tes-
temunhos. Por isso, toca,
António, a tomar as tuas
disposiçöes. Quais elas fos-
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sem, depois de muito malucar,
väo Vossorias saber...
Por cima da albarda do ma-
chinho observei, tornei a ob-
servar, passou-se um bom mi-
galho, e, quando me pareceu
tudo sossegado, entrei na
quintä do meu tio, o mato
abafava-me os passos, e cha-
mei Brízida.
:,
.he 51
A moça, ainda que há um cer-
to tempo se mostrasse esqui-
vadota, veio logo ter comigo
e sem dar o menor sinal de
desconfiança. Estou a vê-la,
rosto branco que alumiava no
escuro, lenço à volta do pes-
coço caído para as costas so-
bre o xaile, roca espetada na
cinta -- como se erguera de
seroar, sentada no banquinho,
pés virados para a fogueira.
-- Que há, primo?
-- Chega aqui -- segredei,
passando-lhe a manápula. --
Anda comigo...
-- Aonde?
-- Aonde, eu to direi.
Pöe a roca!
-- Quero saber primeiro...
-- Mau!
-- Quero saber...
Senti-a estrebuchar, com
ganas de semear alarme, e ra-
pei da faca:
-- Vês esta folha? Tem-se
farto de matar cabras. Näo
queiras tu espetar-te nela,
depois espetar-me eu!
Acomodou-se, que ela sabia
a rês que eu era, e sem tugir
nem mugir, com pequena resis-
tência, se foi deixando ar-
rastar rente ao muro. Lá na
rua, sentindo que passavam
uns homens com tabuleiros
para o forno, ainda gemeu a
manhosa:
-- Ó primo, para onde me
queres levar?
-- Chiu! Näo dês um pio.
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Se acordas as pedras, temos
o caldo entornado.
:,
.he 52
À ilharga, mais mansa e
mais humilde, nem a minha
sombra. Chegámos junto do
macho, travei dela, enrodi-
lhei-a sobre o albardäo, e de
um salto pus-me à garupa.
Tudo isto fi-lo em menos
tempo do que se gasta a di-
zer. Ia jurar que minha pri-
ma só deu bem acordo do meu
intento quando a tracei pela
cinta e o animal picado ar-
rancou. Entäo, sim, pôs-se a
esbravejar e a ganir. Vieram
cabeças aos janelos, mas já
nem Deus nem Demo lhe acu-
diam. Barrelas fora, trupe,
trupe, podiam largar-me à
perna a cavalaria de Chaves,
que näo me pilhava.
Fora do povo pareceu-me a
noite ainda mais negra, o céu
mal esclarecido pelos foga-
chos da Estrada de Santiago
e por um minguante estreito e
mais vermelho que foice en-
ferrujada. Poucos metros se
viam adiante do nariz, mas o
mulinho era forçudo, valente
dos cascos, e conhecia o tri-
lho melhor que eu às minhas
mäos. Os rumores que se ti-
nham alevantado pela vila es-
moreceram à distancia, cala-
ram de todo, e eu ia na boa
paz do Senhor, com lume sim,
mas mais pimpäo do que se näo
houvesse gente, lobos e medos
por esse mundo além, e uma
rapariga na turquês dos meus
braços. O escuro, que era o
principal, lá o ia cortando o
peito do macho, ora ladeando,
ora direito, sem tropeçar.
Além de teso, por mais de
oito dias lhe dei raçäo de
cevada e a folga toda. A
moça, ao cabo dum certo tem-
po, convencida :,
.he 53
de que nada ganhava em zare-
lhar, deixava-se conduzir sem
resistência, o tronco caído
para a frente sobre a argola
dos meus pulsos, assim como o
girassol à noitinha. Às ve-
zes lá lhe trepava um soluço
do fundo da arca e, por isso
só, eu jurava que vivia.
Eu, boca calada.
Falar-lhe, para quê? O ga-
viäo näo diz à perdigota:
"Deixa-te ir que vais bem".
Leva-a tolhida, céus fora,
até o recato dos montes. A
rédea arrepanhada para a pal-
ma da mäo, a alma a cantar
uma aleluia mais alta que a
dos padres no sábado da
Ressurreiçäo com o folar à
entrada da barra, lá íamos.
Piavam para os outeiros as
corujas excomungadas: deixa
piar! As ferraduras do ma-
chinho feriam lume nas fragas
escorregadias: tem-te nas
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gâmbias, que mais melindrosa
só uma carga de ovos!
Dobra que dobra, depois
trota que trota, breve passá-
mos a aldeia do Touro, en-
tanguida de sono, com a igre-
ja branca do caio a fralde-
jar, e o rio por ali abaixo,
roçando as pedras, abocanhan-
do as rincolheiras que säo a
madre das trutas, chocalhando
umas águas mais tagarelas que
mulheres à boca do forno.
Saltaram-me os cäes ao ca-
minho, béu, béu, só me lar-
gando para lá das hortas.
Depois, a subir a serra, só
ouvia o choutar da besta;
atrás, em volta, a todo o re-
dondo da boca de cuba, que é
o que me lembrava
:,
.he 54
a terra, parece que o ermo e
a noite se fechavam sobre nós
para nos engolir. Lá no al-
to, figurou-se-me que estava
a cair orvalhada; eram as lá-
grimas de Brízida a esba-
goar-se-me para as mäos.
-- Ora adeus! -- trauteei
com os meus botöes. -- Cho-
ras, deixa-te chorar! Antes
tu chores ao toledo do que eu
ficasse a tocar berimbau, lo-
grado na minha boa fé.
No topo dos montes que
olham Touro e Carvalhas --
Adomingueiros lhe chamam --
e onde há cortes de gado para
os pastos de veräo, pus pé em
terra.
-- Segura a rédea -- ro-
guei para minha prima.
Charriscando palitos sobre
palitos, às apalpadelas, lá
topei o cardenho onde era
costume acoitar-me quando os
temporais me colhiam à volta
de Lamego.
-- Abaixo, Brízida -- vim
a dizer-lhe. -- Vamos aqui
pernoitar. A noite está es-
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cura como breu e caminhos
mais estuporados näo os tri-
lhou Cristo quando veio a
este mundo para salvar os pe-
cadores. Amanhä, com a alba,
rompemos.
Entrámos para a cortinha
bem lastrada de mato, com um
alpendre de giestas a agasa-
lhá-la do cieiro. Entrámos é
um modo de dizer, que foi-me
preciso dar-lhe um bom empur-
räo. Acomodei o machito ao
fundo; com a roupa do apare-
lho armei a cama. E ali, sem
mais testemunhas que Deus do
céu, depois de breve briga --
tinha de ser -- da coitanaxa
fiz dona.
:,
.he 55
Mal luziu a telha, nós,
que näo tínhamos pregado
olho, largámos das mantas.
"Porque eu era um malvado!
Porque a bem nunca o seu
corpo havia de ser meu, quan-
to mais minha muller! Antes
moça de porta aberta!" -- e,
porque torna, porque deixa,
ali me atirou com quantos
diabos e maldades lhe vieram
à cabeça. Näo chorava. As
palavras que proferia parece
que feriam lume. Só depois,
quando a baldeei de novo para
cima do albardäo e que, dei-
tando olhos, só viu ermo, gi-
estal e mato a boiar no ne-
grume, desatou -- vejam o
disparate -- a carpir-se e a
rogar-me que a matasse.
-- Prima -- disse-lhe eu
em boas maneiras, que meia
partida estava ganha -- à
face do Senhor que nos vê,
amanhecemos casados; uma cruz
sobre nós e duas lengalengas
de latim é quanto falta; va-
mos por elas à Penajóia que
näo é lá para que se diga no
cabo do mundo. Está lá o
cara-unhaca dum padre que
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prefere ir de catrâmbias para
o inferno a deixar de fa-
zer-me a vontade.
Cavalgámos novamente. Já
cantava a cotovia, embora se
näo visse a torre que vai er-
guendo quando sobe ao céu.
Às duas bandas a serra come-
çava a dilatar-se e a bran-
quear, com o negro todo a es-
correr para os corgos e a su-
mir-se pelos matagais. E,
com o clarear, o mato tin-
gia-se, vermelho, amarelo,
roxo, consoante, que chegara
a Primavera. O caminho näo
:,
.he 56
tinha que o estudar, assina-
lado pelas rodeiras, sempre
deserto, sempre adiante de
nós direito à casa de Deus e
à Penajóia. E eu täo ufano
ia da sorte que até aos pene-
dos redondos, que nos iam fi-
cando à desbanda e me pareci-
am às vezes ladröes acocora-
dos, depois de os reconhecer,
eu sentia ganas de salvar.
Ela, näo, mantinha-se na
muda languidez, mal gemendo,
mal chorincando, olhos fecha-
dos ao abril, ouvidos surdos
aos pássaros que, de púlpito
nos ramos das urgueiras, er-
quiam suas ladainhas. Eh,
cantavam pelas pássaras, como
no meu peito se cantava pela
minha, feliz felizardo que a
pilhara no laço.
-- Porque fungas, menina?
-- perguntei ao cabo de muita
paciência.
-- Choro o meu triste
fado.
-- Que fado?! Näo estava
escrito e com a tua letra?
-- Nunca te julguei täo
desumano...
-- Outros o säo mais do
que eu.
-- Quem? Nem os matadores
dos caminhos... Porque me
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näo arrancas a vida?...
Arranca-ma, que te perdoo!
Olha, atira-me do aparelho
abaixo para cima duma rocha e
acabou-se. Näo te gozaste já
de mim? Atira-me, e per-
doo-te a morte e o mal que me
fizeste! Atira!
E, agora dizes tu, logo
digo eu, a rapariguinha
foi-se adiantando no palavre-
ado, até que tive de lhe
:,
.he 57
mandar calar a sanfona com
mau modo. Ao descer para
Mondim, encontrámo-nos com a
Ana Malaia oveira, que vi-
nha da cidade.
-- És tu? -- exclamou ela.
-- Volta para trás,
António, que caminhas à per-
diçäo. Teu tio Agostinho já
lá vai estrada fora mais os
capangas dos Maçäzeiros, ar-
mados até os dentes. Väo-te
no encalço...
-- Essa é boa! Quem diria
a meu tio que cortámos desta
banda?
-- Deram conta e meteram
para aqui ao palpite. Sabem
que é teu amigalhaço o padre
da Penajóia e fazem-te nesse
rumo.
-- E näo se enganam.
-- Já vês que aventaram a
ariosca.
-- Mas meu tio andava lá
para a Bezelga...
-- Tu a saíres e ele a en-
trar. Escapaste por um cabe-
lo. Agora, se te pilha, es-
fola-te vivo. Pois roubas-
-lhe a moça, a ele, teu se-
gundo pai? Bem diz o outro:
cria o corvo, tirar-te-á o
olho. Carrasco, näo podes
ser ajudado de Deus!
-- Onde se cruzou com
eles, santinha?
-- No Castanheiro do
Oiro. Olha, sabes que mais,
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a Brízida que torne comigo e
tudo pode ficar em águas de
bacalhau.
-- Qual, para a frente é
que é Almeida... Saudinha!
:,
.he 58
-- O anjo da guarda te
acompanhe... Eu cá näo adi-
antava mais um passo!
Estas palavras näo eram
ditas, cheguei espora ao ma-
chinho: quem tem medo compra
um cäo. Lá adiante, voltei a
cabeça para trás. A Malaia
oveira lá estava, estática no
meio do caminho, de bochechas
aparvoadas, a ver-me tropi-
car. Era uma pobre de Cris-
to, em nada e por nada má mu-
lher, que, segundo depois
constou, morreu santa.
Morreria. Do que morreu à
certa foi de fome, quando já
näo podia trabalhar. Pelo
repouso da sua alma: padre
nosso que estais no céu...
À ponte de Dalvares havia
dois caminhos: um directo,
estrada fora, pelo Casta-
nheiro do Oiro; outro pela
Ucanha e Gouviäes, ambos
com passagem por Lamego.
Este oferecia a vantagem de
desviar-se de Britiande,
onde o tio Agostinho, näo me
encontrando rasto, poderia
ter feito alta e reunir a si
o abade maila tropa fandanga.
Mas perdia umas boas horas
e, com a moça que era gordu-
cha e eu que näo era estopa,
talvez o machito näo aguen-
tasse o estiräo até a Pena-
jóia. Boa rota deixara ao
sair de Barrelas -- Pendi-
lhe, Meijinhos, Penude,
serra, sempre serra -- mas
quê, näo tocava em nenhum
Adomingueiros!
Obra de cem passos da pon-
te de Dalvares levei
:,
.he 59
na incerteza: rompo à frente,
tomo à mäo esquerda? Chegado
à primeira guarda, ora, ani-
mei-me e meti afoito pela es-
trada, como se comigo näo
carregasse contrabando de tal
vulto. O que fosse soaria, a
cachopa já era mais minha do
que doutrem e, quanto a mor-
rer, a gente só morre quando
chega a data assente no livro
de Deus.
Pela estrada fora, toca
que toca, alcançámos e deixá-
mos à retaguarda mulheres que
carregavam à cabeça a canas-
trinha do negócio; burros
tropiqueiros, ajoujados de
carqueja para a cidade; vian-
dantes, de saquitel ao ombro,
passo largo, na sua rotina
com Deus ou o Diabo; reses
para o talho, arrebanhadas a
granel de aldeia em aldeia,
com as cabras a barregar pelo
pegulhal, um moço à frente a
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chamar, atrás o marchante, de
pau e manta, a tanger, e täo
embrulhados na nuvem de poei-
ra que mal se viam. Cava-
leiros todos farófias, que
näo davam a salvaçäo, rompiam
por nós e desapareciam num
rufo. Eu, ainda que martela-
do de cismares, a todos tira-
va o chapéu, e também a cape-
linhas, nichos de almas e
cruzes de homem morto, que
sarapintam o caminho, como
passageiro que vai em paz e
dia bom. O Sol subiu no
céu, doirou a natureza, mor-
deu-nos a pele, e com a alga-
zarra da Primavera e o banzé
do mundo näo puderam ir mo-
lhados por mais tempo os
olhos da lagoia. Embezerrada
sim, pouco caso fazendo à
:,
.he 60
promessa de lhe comprar na
cidade um bom xaile de lä
mais um par de ciganas de
oiro.
Obra de meia manhä apeámos
numa tasca e puxámos do far-
nel para almoçar. A estala-
jadeira pôs-se a olhar muito
fita para nós a pontos que eu
lhe disse:
-- Parece que nunca viu
gente!
Ela, sorrindo, replicou:
-- Passaram aí uns homens
a cavalo e estiveram a tirar
informaçöes dum sujeito e
duma rapariga que pelos si-
nais säo vossemecês.
-- Já lá väo há muito?
-- Estaria a nascer o
Sol. Já botaram a Lamego
se era esse o destino...
Contou como eram e näo
eram: um meio velhote, alto e
grosso, olhos azuis, guedelha
espessa que nem a murça dum
cónego, e dois moços, duas
vergastas tesas, com ares de
poucos amigos. Estava tirado
.he 60-61
o retrato de meu tio Agos-
tinho e dos dois mequetrefes
dos Maçäzeiros.
-- Pois se eles iam em
busca de nós, estäo com sorte
que nos encontram.
-- Lá se avenham...
Dali a Britiande era um
salto; cavalo bem disparado
cobria a distância num quarto
de hora. Fui-me afrouxando o
passo para que o animal pu-
desse deitar o fôlego todo se
lho pedisse, e desta feita
confesso -- que o receio näo
é cobardia -- confesso que me
:,
.he 61
encomendei a todos os santos
e santas da minha devoçäo, em
especial ao milagroso Padre
Santo António, que tem o
mesmo nome que eu, é padroei-
ro de namorados, e quando
quer fazer um milagre näo
pergunta quem tem razäo. Näo
me esqueci de me encomendar
também aos Santos Mártires
de Marrocos que lhe levam a
perna numa dificuldade.
Muitas vezes ouvi dizer a
minha mäe: roga ao santo até
passar o barranco. E medo
para trás das costas. Toque,
toque, Britiande lá avulta-
va, apertada às bandas da es-
trada, com casas caladas, ca-
sas antigas de pedra bruta,
mulheres a catar-se às por-
tas, e meninos nus pelos pa-
tins a esganiçar-se pelas
mäes. Estava tudo em sosse-
go; pelos vistos näo era ali
que eu quebrava osso. Já
dava graças a Deus quando,
ao desandar da última esqui-
na, uma porta se abriu e meu
tio Agostinho, os Maçäzei-
ros, o padre e uma choldra
sem conta me saltaram à fren-
te. Deitei a mäo ao baca-
marte, de cara para a patu-
leia que estarreceu com o meu
.he 61-62
rompante:
-- Olá, amigos, que é
isso?
Aquilo lá se lhes afigurou
que eu ou havia de segurar a
moça ou combater, ou que re-
cobrassem ânimo, facto é que
cresceram para mim depois de
terem hesitado. Entestei o
bacamarte ao peito do mais
adiantado, que por sinal era
o meu tio:
-- Tenha-se, senäo morre!
:,
.he 62
-- Hás-de pagá-las, cäo!
-- Tenha-se, tenha-se, se-
näo morre!
Já eu tinha o dedo no ga-
tilho quando o homem estacou.
Estacou, e acobardado com o
ineu rasgo, vendo os púrrios
mais irresolutos que ele,
pôs-se a gaguejar a distan-
cia:
-- Pula abaixo, Brízida!
Pula abaixo!...
A maluquinha ia a mexer-
-se... Näo custou muito tê-
-la queda, pouco menos queda
do que se jazesse entre as
mäos da Ana Malaia que era
quem amortalhava os defuntos:
-- Ó Brízida, tu pulas
abaixo, mas és a primeira a
cair. Se näo tens amor à
vida, faz lá! Agora vosse-
mecês deixem seguir quem vai
seu caminho... que eu morrer
morrerei, mas a trouxa näo a
largo...
-- Isso é que larga! --
rosnou o abade.
-- Assim eu largue a luz
dos olhos! Para mais, o se-
nhor chega ao destempo. Quer
saber?... Quer saber? Ove-
lha que tinha de ser do lobo
foi do lobo. Quem aqui vai
näo é nenhuma donzela... näo
senhor, que eu näo sou parvo.
Quem aqui vai é a mulher que
Deus escriturou no seu livro
.he 62-63
para ser minha e que já o é.
Se Vossa Reverendíssima
nos quisesse abençoar.. ?
Quando estas falas ouviu,
o padre rompeu para mim, mais
branco que a neve antes de
derreter. Meti a arma à
cara.
:,
.he 63
-- Mata, ladräo! -- gri-
tou-me.
-- Näo mato, mas ponha-se
de largo!... De largo!!
O abade näo se intimidou e
se näo é o macho, chuçado no
ilhal por um dos Maçäzeiros,
curvetear à altura precisa em
que eu ia disparar, matava-o.
Desencostámo-nos deste jeito
um do outro, mas a grande
sorte foi ele näo vir armado,
porque lá lhe pareceu mal,
quando näo havia chacina. Em
menos dum amém ateou-se ali
grande alvoroço. Acudia gen-
te de todas as casas.
Brízida carpia-se como uma
madalena; meu tio Agostinho,
depois que lhe dei a cheirar
a realidade, abraçou-se ao
poste dos fios a chorar; em
roda o povoléu botava alari-
do.
-- Eh lá, gentes! -- gri-
tei, meio matreiro, meio de-
satinado, para a quadrilha
que me tolhia o passo, apon-
tando-me paus e espingardas.
-- Se alguém se atravessa,
está aqui está no inferno!...
Cravei a espora... O
Roque Maçäzeiro ergueu mäo
para as rédeas... Fiz fogo,
e o machinho pinchou. Lá
adiante torci a cabeça: le-
vantavam o homem do chäo...
corriam atrás de mim e manda-
vam-me salvas de tiros. Por
entre matas e granjearias, eh
macho! eh macho! ao galope
fulo que levava, mal me roça-
vam pela vista silvedos, pa-
.he 63-64
redais e cabeças de olhos as-
sarapantados. E escapei.
O abade da Penajóia des-
pachou-nos para um
:,
.he 64
casalório que tinha no Dou-
ro, onde ficámos a resguardo.
Quando o Maçäzeiro enri-
jou da zagalotada e meu tio
Agostinho reconheceu que näo
havia outro remédio, casámos.
O homem de Deus, à volta da
igreja, prantou-me uma bolsa
de libras nos joelhos, dizen-
do:
-- Aqui tens, rapaz. E
agora, juizinho!
Paz à sua alma. Näo era
má pessoa, nem pasmado ne-
nhum. Se näo é a amiga que
arranjou já com os dias quase
cheios, teria deixado os seus
dois vinténs.
.he 65
IV
.he 79
.he 92
VI
Que a minha língua era
ponteira como a faca que tra-
zia à cinta -- murmuravam as
bocas do mundo mal considera-
das. Cantigas, ó Rosa! A
faquinha, assim Deus me sal-
ve, tinha uma funçäo e näo
mais, cortar a côdea, o quei-
jo, a febra do presunto,
quando andava de jornada.
Algumas vezes, também,
arremediava-me a consertar os
atafais do macho se o Demo
queria que estoirassem.
Quando, por grande acaso, se
apartava desta pacífica mis-
säo, é que a minha vida cor-
ria perigo e trazer eu a pei-
to defendê-la, pois se Deus
ma deu -- tantas vezes o te-
nho dito -- a Deus tenho
obrigaçäo de a restituir, mas
só quando ele for servido e
.he 92-93
mais ninguém.
Quanto à língua, corta-
ram-me a trave ao nascer; mas
nunca levantei falsos teste-
munhos, nem acoimei de curta
mulher honrada, nem de cornel
sujeito que näo tivesse testa
para marrar. Guar-te de ho-
mem que näo fala e de cäo que
näo ladra, por isso eu sempre
falei, falo e falarei franco
até morrer, pois se nós o
:,
.he 93
temos no pensamento, acaute-
lá-lo da boca só por ronha ou
cobardia.
Mas onde eu punha epitá-
fio, caía mais certo que os
nabos no advento. Onde cor-
tava nos "podres" é que os
podres buliam com Deus e com
os homens. Às vezes valia
mais que lancetar um leicen-
ço. Valia! Eu lhes conto um
passo assucedido, pelo qual,
se o Pai do céu se näo es-
qucceu de o apontar no livro
da glória e a remissäo é cer-
ta, do pecado mais taludo es-
tou quite, ainda que me näo
morda nenhum de monta. Pois
oiçam, meus fidalgos:
Um entrudo, quinta-feira
mesmo das comadres, à boca da
noite, o Bisagra desafiou-me
na venda do Zé Pinto para
jogar uma partida de chinca-
lhäo. Vossorias sabem: o
Bisagra era senhor duma des-
tas galhaduras, mais formo-
sas, compridas e retorcidas
como näo há memória que an-
dasse armada a testa dum ser-
rano. Mais abundante nem pa-
liteiro com os palitos, e as-
sim falada nem a porca de
Murça. Täo coitadinho, que
seria caridade dizer-lhe ao
passar um portal: baixa que
marras!
A mulher era fêmea de
alto lá com ela, sempre mais
.he 93-94
frescal que alface, requesta-
da de fidalgo e de padre
cura.
Pegámos das cartas e o
ladräo com a felícia toda, o
sortalhäo que dizem próprio
daqueles a quem sobra o que
falta às cabras mochas! Na
cova da mäo, sempre
:,
.he 94
o cinco de oiros, a espadi-
lha, o cinco de paus, levan-
tou-me em catréfia seguida
quatro quartilhos e um bolo.
Paguei, mas bufei, que à
mandinga da sua condiçäo e
näo a jeito nem à sorte ho-
nesta atribuí eu, e comigo
todos quantos ali estavam,
aquele desaforo a ganhar.
E, maneira de desforço,
fui chasqueando nesta voz
pausada que Deus me deu,
pela qual alguns mequetrefes,
nas minhas costas, me compa-
ram à bezerrinha mansa que em
todas as vacas mama:
-- Este Manuel é o que
se chama um regaläo. Bem co-
mido, bem bebido, mais fresco
nem o nosso abade! Pois
olhem, é do mesmo ano que eu,
mas ninguém o há-de dizer.
Os trabalhinhos estragam
mais que o tempo! Sempre a
arrotar pescada, a este feli-
zardo só falta cartola e ben-
gala. As fêmeas é que däo
cabo dele. Raios o partam,
com uma mulher daquelas, tudo
o que há de mais liró, e näo
tem nojo de ir à Preciosa!
Näo te basta a Claudina,
maganäo? Ah Cristo, eu, se
pilhasse uma mulher assim,
estava-me ninando para as
mais! Também estou velho, lá
na Brízida dou um beijo
quando dou...
O Bisagra ria, muito an-
cho da canada que me bebera e
das palavras que eu proferia,
.he 94-95
e lhe sabiam täo bem como o
vinho, e a roda estava maluca
de alegria com o entremez e o
ver-me com cara de asno, que
é sempre a cara do pagante.
:,
.he 95
Mas vai senäo quando, o
Bisagra saiu fora a satis-
fazer as necessidades ou a
revessar a vinhaça, e eu vi-
rei de folha:
-- Cem cäes o comam para
chavelhudo! Vai à bostiquei-
ra da Preciosa porque a
Claudina lhe diz tó-ruça;
guarda-se para os outros,
para os figuros, para quem
ela quer. Cornambana do in-
ferno! Se fosse a mim, ia-me
a ela, e, ó menina, ou és mi-
nha mulher a valer ou te pico
aqui a barriga como à cebola
para o refogado...
Acabava eu o responso, e
näo há pior zombaria que a
verdade, o Bisagra que apa-
rece no traço da porta. E, a
abanar a cabeça, cresceu para
mim, mas sem arrogância, que
eu ainda tinha a faca na unha
para mostrar como se picava a
mouçó da mulher.
-- Entäo ela diz-me tó-
-ruça!? Apostamos uma quarta
de vinho em como te enganas.
Queres? Näo queres? Anda
comigo e vais ver. Homem, um
cântaro de vinho.. ?
Ri eu, riram todos do
desconchavo. Muito aceso, o
Bisagra continuava a protes-
tar e a pedir aposta, e eu
perdi a paciência:
-- Sabes que mais... nis-
ga! Eu repito o que dizem as
bocas do soalheiro. Se és
homem, melhor para ti, mas
ainda o näo disseram três
doutores!
-- Sou homem... Safado
dos safados, vem ver! -- e
fazia jeito de me levar. :,
.he 96
Sacudi-o e ele desandou
afinal, a mesma toada na
boca, pelo largo da feira ar-
riba:
-- Sou homem, conho!...
Sou homem!...
Desapareceu e estávamos
nós deitando contas pachou-
chada, quando se ouviu grande
banzé: o Bisagra fora encon-
trar a mulher com o Padre
Antunes da Lousadela e zu-
pava nos dois como em amassa-
doiro de linho. Foi preciso
arrancar-lhe das mäos o coro-
ado, senäo matava-o. Mesmo
assim, ficou com uma sobran-
celha deitada abaixo e mais
pingäo e lastimável que um
dos palhaços que, por folgan-
ça de carnaval, se tinham es-
fandegado no largo naquela
quinta-feira das comadres.
Passo foi aquele que muito
aproveitou a toda a gente: a
Barrelas porque o castigo
.he 96-97
público morigera, a Claudina
porque dali em diante foi
mais cautelosa a admitir ga-
lantes em casa, e ao Bisagra
porque devia ter, ao menos
por algum tempo, entrado em
posse do que era seu. E aí
está porque da minha má-
-língua veio benefício ao
mundo e eu me julgo forro, no
livro da glória, do pecado
que mais houver de me carre-
gar quando chegar às portas
do Paraíso. É verdade!
Que a minha língua era
afiada como a faca que trazia
à cinta -- teimam para aí.
Bem haja eu, que nunca dei-
xei a minha honra por mäos
alheias, nem me esqueci de
pagar agravo ou fineza rece-
bida. A panela em soar, o
homem em falar. A língua
para amansar
:,
.he 97
as mulheres e homens mulhe-
rengos que faziam pouco de
mim ou se atravessavam no meu
caminho, a faca para rebater
os tratantes que me ameaçavam
o fagote.
Se, devido à minha má-
-língua, esteve o padre da
Lousadela com os pés para a
cova, já contei a Vossorias
como foi. Se dormiu a mulher
do Duarte em lençóis de vi-
nho, eu lhes vou dizer como
se deu tal comédia.
No dia de Reis, há tan-
tos invernos, que só me lem-
bra ter vindo, por essa altu-
ra, uma trovoada medonha que
arrasou os campos e matou as
aves, estávamos eu, o Meses
regedor e o Albino alfaiate,
sentadinhos ao soalheiro, no
cabeçalho dum carro, a gozar
o ripanço do dia santo e a
dizer mal do bispo. Chegou-
-se a nós o Duarte, e vá de
cigarro, vá de amenidades,
.he 97-98
disse-nos:
-- Ó rapazes, tenho lá um
vinhinho, o pedaço dum palhe-
tinho, que até fica a rezar
nas goelas uma música celes-
tial. Só queria que provás-
seis...
-- Se ele é isso -- re-
darguiu o Albino, que também
näo era homem para se fazer
rogado -- a operaçäo é boa de
fazer.
-- Entäo vinde, vinde be-
ber um pucarinho de Molelos
-- tornou todo franco, abrin-
do marcha.
O Duarte morava para o
Oiteiro na casa que chamam
do Sargento-Mor, e é pela
obra de silharia e os
:,
.he 98
tectos em masseira uma das
sete maravilhas da nossa ter-
ra...
Sete maravilhas, sim, se-
nhores, e eu digo quais elas
säo. A primeira é a armadura
do Bisagra; mais frondosa
nem a cabeça do cervo-real.
A segunda é o bandulho do
Albino, que à semelhança de
todos os odres tem a boca an-
cha e, ao contrário dos de-
mais odres, näo há vinho que
o farte. A terceira säo as
chinelas do tio Rela em be-
zerra branca, que viram
Lisboa no Centenário de
Santo António, entraram no
Ministério do Reino e vol-
taram a penates para figu-
rarem no auto que aqui haja
de se representar do Senhor
Juiz de Barrelas. A quarta
é o pego da Ponte das
Tábuas, que näo tem fundo.
A quinta säo as trutas desse
pego que säo maiores do que
as galgas do Padre Farrus-
quinho, que até de boca fe-
chada mentia. A sexta é a
nossa igreja com obra de ta-
.he 98-99
lha como näo há em Portugal,
e a cruz de latäo do tempo do
Rei Vamba. A sétima é a
casa de que lhes estou falan-
do com esconderijos contra
ladröes e miguelistas, enxo-
via, cisterna empedrada, que
ainda viram estes olhos que a
terra há-de comer e os senho-
res já näo veräo. E näo ve-
räo, porque veio um selvagem
e deitou tudo a terra para
fazer um chiqueiro.
Mas, como ia dizendo, o
Duarte, que era um homem li-
beral e fala-barato, convi-
dou-nos de täo boa gana que
largámos do abrigo do Rama-
lhal, onde
:,
.he 99
estávamos a tomar o sol,
atrás dele. Na adega, com
broa dos tabuleiros, täo res-
cendente que consolava, e uma
lasca de presunto, que baila-
va da trave à dependura, cas-
cámos-lhe.
Estávamos nós na santa
funçäo, apareceu a mulher do
Duarte. Conhecem-na com os
dois pêlos virados no queixo
como anzóis e umas canelas
sempre täo negras e magras
que até parecem flautins para
os cäes!? Arreda! A homem
ruivo e mulher barbuda de
longe os saúda.
-- Fogueira parta os bê-
bados! -- começou logo a gri-
tar. -- Quem quer o fole
cheio, vá à taverna e puxe.
Este homem há-de desgraçar a
casinha... Mas deixa, é mäos
rotas para os amigos... os
amigos häo-de lhe arrancar os
olhos e verter água nas po-
ças!
O Albino, posto que ho-
mem correntäo, ficou varado;
o Meses, com a vergonha,
pôs-se mais vermelho que o
palhete. Adiantei-me eu a
.he 99-100
fazer face à serpente com as
manhas que me ensinou o
Padre José Farrusquinho: a
quem te der uma pássara,
dá-lhe a sua asa:
-- Viva lá, tia Joaqui-
na, viva lá! Entäo sempre na
lidairada?! Duarte, chega-me
uma canequinha aqui à tua mu-
lher. Vá, que governadeira
assim nem de encomenda. Ca-
chorro da sorte, podias pin-
tar-te com ela num retábulo!
Podias, que to digo eu! Sem
uma mulheraça destas estavas
de pernas ao ar.
:,
.he 100
-- O tio Malhadas sempre
tem coisas! -- disse ela,
quebrando a fúria.
E eu no meu sério, sem
pestanejar:
-- Vossemecê é mulher das
de bom tempo! Ja näo há des-
se barro. Näo há, näo senho-
ra! Ah! que se a minha Brí-
zida morresse e a tia Joa-
quina enviuvasse, bem sei
onde ia bater!... Deus ta
guarde por muitos anos e
bons, Duarte, que a näo me-
reces. Mas, entäo, saboreie
lá o seu vinhinho... É uma
pinga de estalo, lá isso é,
quem o negue é capaz de negar
as Cinco Chagas.
-- Está bem, bebo, mas
primeiro há-de beber vome-
cê...
-- Ai näo, primeiro quem
está primeiro: a senhora da
casa. A minha sede também
näo é de sete dias. Cäo de
Duarte, que näo sabes apre-
ciar a prenda que Deus te
deu!
-- Näo ateime, bem ha-
ja...
-- Isso é que ateimo.
Há-de beber connosco...
Pus-lhe a caneca à bei-
ça...
.he 100-1
A mulher bebeu e passou-
-ma logo, muito pronta:
-- Vá, tio Malhadinhas,
beba e beba-lhe bem!
Beba-lhe e que lhe preste!
-- Tivesse eu sede, mas
nem raça!... Näo ateime...
Olhe que lhe fico agradecido
na mesma.. .Valha-me
Deus!... Se lhe pego é para
fazer a vontade... para näo
parecer desfeita. Cäo de
Duarte, que
:,
.he 101
näo sabes dar o galardäo a
quem o merece. À sua saúde,
tia Joaquina!
-- À sua e por muitos
anos e bons!
Eu e o Albino emborcámos
aquela caneca. Veio outra.
-- Näo tenho mais apeti-
te, bem haja! -- julguei-me
obrigado a dizer para uma
terceira, como quem reza um
responso.
-- Vá, com uma lasquinha
de presunto... -- tornou ela,
e foi despendurar do tecto a
pá do porco.
Afinfámos-lhe de grande,
e eu sempre na ladainha:
-- Esta tia Joaquina pöe
o ramo. Olhem-me para ela: é
o espelho das donas de casa!
Há aí no povo melhor? Isso
há ele, nem por todas essas
Europas do mundo! Nem que
acendessem um archote a pro-
curar.
E a burgessa mais e mais
enchia os ricos pucarinhos de
Molelos e nós pingueiros
como cachos. Mas baixou a
noite e a criatura girou à
vida, que já os porcos chama-
vam do cortelho pela vianda e
punham mais esparrame que uma
filarmónica emborrachada. E
entäo chegou a vez de eu me
vingar das vozes de bêbado e
caloteiro com que ao intróito
.he 101-2
nos brindara. O Duarte es-
tava meio tocado; embora, a
palavra, como a lança, longe
alcança!
-- Raios te partam, homem
-- disse-lhe eu -- mais
:,
.he 102
à aldrúbia que meteste em
casa. Näo viste o espalhafa-
to com que rompeu! Mil dia-
bos a levem mais à barca que
para cá a passou! Irra, ir-
rório, senhor Gregório! Eu
cá se fosse a ti, ó Duarte,
chapa batida, chapa gasta,
dava-lhe todos os dias, ao
deitar e levantar da cama,
uma sova de criar bicho.
Pois ele pode haver maior
colondrina por esses mundos
fora? E andas tu nas mäos
dela como um frangalho?!
Terçä te coma, Duarte, mais
à bochada de carneiro que
Deus te deu!...
E, porque torna, porque
deixa, ali fiz a cama à mu-
lher. E täo bem feita ela
foi que Barrelas toda, à
hora de ceia, foi alvorotada
com os gritos da Joaquina.
Mas dia foi esse que o
Duarte passou a ser rei na
casa em que só havia mandona.
Que a minha língua era
ruim e envenenada? Aí está o
seu malfazer, endireitar o
mundo que andasse torto.
Dela näo temo as contas que
hei-de dar a Deus porque
ainda que a minha voz näo
seja como a ronca do abade do
Touro quando canta os la-
tins, é de falsete só no
nome. No mais foi, é, e sem-
pre será leal-verdadeira.
.he 103
VII
.he 118
VIII
-- Cachorro de mim, se
muito dinheiro granjeei, --
muito dinheiro derreti por
mal-andanças do génio e tam-
bém pelas torpezas da sorte.
Um no vazadoiro dos proces-
sos, outro em peitas e espór-
tulas, a encher o papo da
Justiça que, à semelhança
das jibóias, só dorme quando
farta. Louvores ao Pai de
todos, os meus ossos só co-
nheceram uma vez a tábua dura
das cadeias. Foi quando o
Capa-Cavalos de Sendim se
veio despropositadamente es-
petar na minha faca, o grande
bêbado! Desde essa hora, to-
mei-me de tal asco pelas pri-
söes que, em despique ou pen-
dença, antes queria ficar no
terreiro, sob pena de näo
mais me erguer, que deixar
.he 118-19
pôr as unhas na lapela da
véstia. Aquela mestiçalha
comida de bicharia e varada
de fome, com tigelas de lata
à dependura duma cana, a pes-
car, à força de lamúrias, os
dez-reizinhos ao passante;
aquelas quatro paredes, es-
treitas de mais para a minha
viveza de pássaro, largas de
mais para se parecerem com a
tumba, com a qual o melhor
remédio é andarmos conforma-
dos; aquele ventas-de-cäo do
carcereiro, açulado sempre
para os desprotegidos, todo
rapapés para os que lhe unta-
vam a pata;
:,
.he 119
isto de ver a gente cá fora,
leva que leva, a lidairar em
paz e dia bom, deixaram-me a
aversäo dos despiques e das
zaragatas, por mor das quais
nunca faltou mamadeira aos
doutores de leis e à Justi-
ça. Deus te guarde de *par-
rafo* de legista, infra de
canonista, etcetera de escri-
väo e récipe de mata-säo.
Por isso o meu cuchilo que-
dou muitas vezes adormecido
quando devia mostrar-se es-
perto, e, pelas horas em que
näo havia que fugir, muito
escriväo, muito delegado e
tôdolos da choldra untaram a
barba com as minhas ricas
trutas e as pernas de vitela
sem conto, que deram alma ali
ao *Vinte e Um* que as cor-
tava. Também os tempos eram
outros. O Paiva näo tinha
rincolheira que näo desse um
prato de pcscado, vivinho de
arregalar o olho, trutas fi-
nas e taludas como bacalhaus,
bogas e bordalos gordos como
lontros. Hoje a ribeira pa-
rece que levou excomunhäo.
Derrotaram tudo com a coca e
a cal virgem, a pontos que é
.he 119-20
uma fortuna colher lá dois
cágados com que empulhar o
quartilho.
Pois é verdade, se ganhei
rios de dinheiro levou-mos a
Justiça, levou-mos a criaçäo
dos filhos, que o seio da mi-
nha Brízida carregou como
estas vides que trepam às ár-
vores e botam cachos que é um
louvar. Eu cá näo fui falso
ao rei. Näo paguei o tributo
de sangue com o meu rico lom-
bo, mas de dezanove filhos
que para aí andam quatro dei-
taram correias de soldado
:,
.he 120
dado e um até entrou na guer-
ra preta do Gungunhana. Ra-
pazes feros e escorreitos,
capazes de partir uma laja
com os dentes, todos de cara
direita, antes de quebrar que
de torcer. As moças é que
saíram umas repitoscas, umas
cabroilas, amigas de luxar e
gastar sabäo com os asseios.
Paciência, näo há grande ge-
raçäo sem santo nem ladräo!
Dezanove, sim senhores, foi
quantos a Brízida botou a
este vale de lágrimas, assim
fácil como na fonte sai a
água das torneiras. Destes
todos, a raça já vai longa.
O outro ano, pela consoada,
juntaram-se no pátio, que a
casa näo era cabonde para os
abrigar a todos. O Sr.
Abade viu-me no meio e pôs-
-se a chalacear:
-- Ó Malhadas, pareces o
santo padre Abraäo!
-- Ná, Senhor Abade --
retruquei eu. -- Abraäo, por
modos, foi um grande rascoei-
ro, se é certo derramar casta
por todos os andanhos da ter-
ra. Eu cá nunca saí do pas-
sadio a que o sexto mandamen-
to obriga o bom e fiel cris-
täo. Tenho uma, essa me há-
.he 120-21
-de enterrar. Depois livre-
-me Deus de a Brízida se
comparar a Sara, que näo era
difícil a fazer o seu favor,
e a minha boca à do nosso
santo padre Abraäo que che-
gava a mulher ao Faraó e a
quem lha requeria. Arreda!
E näo minto, sempre guar-
dei respeito à minha Brízi-
da, que, meus amigos, também
näo era de ânimo a sofrer que
erguesse olhos a cobiçar ou-
tros. Uma vez até se quis ir
deitar a afogar, só porque se
bacorejou
:,
.he 121
no povo que eu tinha pacta
carnal com a Ludovina da
Morte -- conheceram? -- as-
sim chamada por ser mais feia
que a morte negra. Foi o pa-
tife do Bisagra que alevan-
tou o falso testemunho, mas
ia-lhe saindo caro, pois se
um dia näo me fura por umas
silvas como raposo esparvadi-
ço, rachava-lhe um pau, bem
embora ele os tivesse mais
duros e retorcidos que os
bois do Maräo.
Sempre guardei vénia à mi-
nha Brízida, se näo por toda
a parte onde prantava butes,
aldemenos no povo, que era,
antes de ser vila, o mais me-
xeriqueiro, noveleiro, inven-
tor de galgas que à luz do
sol medrou.
Lá pelas minhas rondas de
almocreve, o corpo às vezes
pedia-me vício, se näo eram
os parceiros que me tiravam
da devoçäo. Näo raro sucedia
virem-me os meliantes com
tramóias assim urdidas:
-- Ó Malhadinhas, chegou
agora a Aveiro uma espanhola
que é capaz de dar um coice
numa estrela. Aquilo é que é
mulher! Vale um macho com a
carga em riba. Anda daí!...
.he 121-22
-- Para que me vindes ten-
tar, almas do diabo? -- res-
pondia-lhes eu. -- Está lá a
Brízida à espera, coitadi-
nha, e tenho medo de lhe le-
var o mal ruim.
-- Qual o quê?! -- torna-
vam os grandes mariolas. --
Aquilo é mais sä que um pê-
ro. Anda daí...
-- Deixai-me cá! Se sou-
bésseis as saudades que tenho
dela!
:,
.he 122
-- Saudades nas securas,
meu amor, dá cá a borracha.
E, na arca aberta o justo
peca, lá me arrastavam os ex-
comungados. À volta, ao to-
car a testada de nossa casa,
bem vontadinha sentia de ir
beijar a minha Brízida e ter
com ela aquelas práticas de
que dizia Frei Joaquim das
Sete Dores: "Telhas abai-
xo, para homem e mulher, de-
pois que o mundo é mundo, me-
lhor brincadeira näo se in-
ventou." Mas ná, contentava-
-me em estropecer na rua e
chamar:
-- Ó Brízida, estás lá?
Ela respondia-me da cama,
mais repenicada que uma fran-
ga:
-- És tu, António? Sobe,
sobe, que estás a meijengrar?
-- Näo, menina, cá vou pa-
ra Trevöes à vida.. .Seja
pelos trabalhos que Nosso
Senhor padeceu!
E ia, abalava dali a ri-
lhar os dentes, mais raivoso
que o Porco-Sujo quando deu
trambolhäo do Paraíso. Mas
era forçoso deixar tempo a
que o mal francês florisse ou
os meus receios se dissipas-
sem.
Sabia depois que a minha
Brízida, pobreta, vinha, mal
levantava a manhä, pelo cami-
.he 122-23
nho fora até junto da igreja,
acompanhada do rebanho dos
inocentes. E, ao descobrir
na areia fofa o rasto do ma-
chinho, exclamava:
-- Olhem, meus meninos,
olhem, aqui passou o
:,
.he 123
triste de vosso pai. Cá väo
as pegadas; foi-vos ganhar o
päo, aquele negro!
Informavam-me os vizinhos
deste enternecido cuidar e
vinham-me as lágrimas aos
olhos. Com remorso, ao mesmo
tempo, chamava-me perdido mil
vezes, e a Deus e ao Diabo
rogava que me sepultassem lo-
go no inferno para castigo da
minha sem-vergonha. E como
nem um nem outro me dessem
ouvidos -- o que de resto eu
já esperava -- entre o cálice
e a hóstia prometia näo vol-
tar a espanholas ou fran-
cesas, fossem elas bem embora
mais feras que as cabras do
nosso monte e mais cobiçadas
que a fruta quando se tem se-
de. Mas os tunantes dos al-
mocreves frigiam-me:
-- Rai's te pelem, que näo
és homem! Um peixäo daque-
les, saltarina e cantadei-
ra!...
E o perro de mim lá descia
outra vez o alçapäo do infer-
no.
Ah! mas volvidos uns quin-
ze dias de lazareto, ou pas-
sante jornada sem fraldas, à
minha Brízida, na primeira
noite, näo ferravam as pul-
gas. Foi assim que dezanove
filhos se lhe penduraram ao
colo, de catréfia seguida, um
a mamar, outro no ventre.
Embora, geraçäo numerosa é
uma fortuna, näo saíssem ele
estouvadas duas raparigas,
dando origem ao mal falar das
bocas badaleiras. Haviam de
.he 123-24
casar e atrasaram-se a esco-
lher homem. Isto de fêmeas
säo todas
:,
.he 124
as mesmas. Mäe, casai-me
logo, que se me arruga o ros-
to.
A Isménia, que era de
fresca e de tenrinha uma fi-
lhó antes de fritar, por
aleivosia, creio eu, acoima-
ram de se encontrar com o pa-
dre Zé Farrusquinho no só-
täo da Claudina. Bem certo
que a velhaca da Claudina,
se veio ao mundo, foi para
regalar com o seu corpo e com
o corpo das pobres doidas os
rabaceiros de fraldas; mas eu
passei muita noitada, a laza-
rina bem munida de zagalotes,
por detrás das carvalhas da
feira, à espera do gerifalte.
Assim Deus me salve se al-
guma hora eu ouvi a tamanqui-
nha dela chapejar no escuro,
ou o padre saltar os quintais
como diziam que vinha topar
as amásias. Pois malhava-lhe
dois tiros, ainda que eu seja
cristäo-velho e confessado e
mais de uma vez ouvir dizer
que se näo salva do inferno
quem toca em ungido de Deus.
Que ma pregassem nas meninas
dos olhos!? Näo era fácil,
trazendo-os eu täo abertos
como gato que anda à caça.
Se se porquearam juntos, que
a terra lhes seja leve, já
ambos deram contas ao Alto
Juiz dos desgarros da luxú-
ria.
Lá a avaria do Bentinho
foi certa; negá-lo seria ne-
gar a luz do sol, mas ele aí
anda tombado sobre a ilharga,
como perdigäo que caiu de
asa, a atestar que ninguém
mas faz que näo entale o ra-
bo.
Ela era minha neta e a
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afronta mais com os pais
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do que comigo, mas já que näo
varriam o agravo, tomei eu a
cargo fazê-lo.
Marquei-o, como fazem os
notários, a ferro frio, e pa-
ra onde vá, tombado sobre a
direita, vinte e nove trinta,
vinte e nove trinta, vai con-
tando o troco da velhacada.
Deus me perdoe, mais valia
tê-lo despachado para o outro
mundo, que livraria muita
criatura de ir fazer tijolo
antes do tempo, pois já ouvi
ao nosso doutor que só ele
mata mais povo com as mezi-
nhas e xaropadas que todas as
pestes juntas. Digam-me de-
pois se, às vezes, a faqui-
nha, caindo uma polegada mais
fundo, ou ladeando um nadinha
para órgäo melindroso näo fa-
zia obra de acerto?!
Pois como lhes ia contan-
do, o Bentinho, barbeiro
nada mal afreguesado, com as
barbas de Barrelas ao domin-
go, e as dos Alhais sábado
de tarde, nas artes da medi-
cina mestre ouvido e chamado
por toda a Serra, pôs-se a
traquejar a minha neta Luí-
sa, mocinha airosa de corpo,
mas cabeça de alvéloa, amiga
de luxar, folgar e doidejar.
Quem me estorvou a mim de
lhe dar o correctivo? Ou os
pais porque lho näo de-
ram...?! Näo sabia eu que
menina, vinha, peral e faval
säo maus de guardar? Fechei
os olhos, é verdade, julgando
que o rapazola andava para o
bom fim. Inda que o ofício
de curandeiro, paredes meias
com o de corpo-aberto, me
desse volta ao estômago, pen-
sei que isto de homens é fa-
zenda que anda cara, e o ser
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muito debiqueiro neste negó-
cio às vezes desata mal.
Vossorias todos conheceram
aquele mariola de ginjeira:
baixo, redondete, falas do-
ces, carinha de pêro camoês,
bom cantador de fados, ham?!
Com aquela cara e as mogan-
guices, era o traste o ai-je-
sus das mulheres.
Vai senäo quando, chegou-
-me aos ouvidos que o badame-
co se gabava de ter logrado a
Luísa e jurar e trejurar que
outros intuitos näo acalenta-
ra que palpar-lhe o amojo e
levá-la ao calvário. "Tanto
ladras, rosnei com os botöes,
que trincas a língua". Botei
inquiriçöes, era verdade. O
maninelo encontrava-se com a
moça no palheiro que o pai
tinha para a Tomadia; eu
próprio a vi sair muito ron-
ceira, cautelosa, com a ponta
do xaile a disfarçar o rosto,
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que era um espelho de formo-
sura.
Veio a festa do mártir S.
Sebastiäo, ao tempo das mais
faladas pelas redondezas, que
dava com a velha Barrelas,
durante três dias, nas panta-
nas do gozo. A gente confes-
sava-se e comungava e, depois
com a alma limpa como quando
se toma uma dessas boticadas
que aliviam o corpo dos maus
humores e o deixam livre e
lesto para os grandes apeti-
tes, era comer, beber, pande-
gar; mediante a quota de dez
tostöes quem quer podia sen-
tar-se ao almoço e jantar no
dia da festa, e à ceia, com
os créscimos, no dia seguin-
te. Quando era mocinho, nun-
ca cheguei bem a perceber
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porque havia aquele intervalo
no regabofe, jantar num dia,
ceia noutro; supunha eu que
fosse trégua à digestäo, que
naquele dia se tornava tarefa
de respeito. Näo senhores;
era partido deixado à dentuça
dos mesários que tinham a
vara em punho. Certo era ha-
ver naquela data enchente
forte de vitela, cabritos e
peixe, em que o nosso Paiva
era abundoso; o vinho corria
como de fonte farta, e as
zanguizarras da terra e de
fora da terra batiam o ter-
reiro, cada qual mais assa-
nhada. Ninguém que se pre-
zasse faltava com a sua fin-
ta, certo que lhe ficaria
forra com tirar o ventre de
misérias e empaturrar-se para
uma semana inteira.
Pois, esse ano, sendo de
capricho os mordomos, as fun-
çöes tomaram vulto como näo
havia memória entre os mais
entrados na idade. Confes-
sou-se o marrano e o cristäo,
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ouviu-se a palavra de Deus
bem trombetada pelo nosso
reitor que, era ele querer,
fazia chorar as pedras. Foi
nesse ano, por sinal, que
houve na igreja o brequefesta
engraçado de que ainda hoje
se fala e falará na vida dos
nossos netos. O nosso abade
era, como está sabido, um
pregador de fama e por ali
fora, no púlpito, näo se en-
ganava na carreira, tratas-
se-se das *Lágrimas de S.
Pedro* ou do *Arrependimen-
to da Madalena*, tanto mais
que é só mudar os nomes aos
bois, e ele tinha aquilo mais
batido e rebatido do que anda
o burel no traseiro ali do
Bisagra,
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que näo pode estar um momento
sem que se acaçape por terra,
se näo pilha banco, no chäo e
até na ponta dum chavelho. O
sermäozinho na boca dele pa-
recia a água na bica da fon-
te: *Era sina na sola e na
lua e nas telas* e já estava
na *ave-maria gracia plena* e
bota para cá uma libra que
por aqui me vou. Pois daque-
la feita o pregador de fama
engasgou-se. Mais tarde ex-
plicou ele que tinha bebido
um dedal de aguardente por
mor do frio e se lhe toldara
momentaneamente o juízo. O
facto é que se engasgou e näo
passava disto: *Sebastiäo,
Sebastiäo, miraculoso Se-
bastiäo! Ó Sebastiäo, santo
e mártir! Sebastiäo, meu S.
Sebastiäo!* E mais Sebas-
tiäo para aqui, mais Sebas-
tiäo para ali, o ladräo do
Meses que era o juiz da
igreja e como vocês sabem se
chama Sebastiäo -- mal em-
pregado nome num safardana e
desbocado daqueles -- sai de-
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trás da coluna e exclama:
-- Aqui estou, senhor aba-
de. Que quer ao Sebastiäo?
E vai o nosso abade, no
meio da gargalhada geral, em
vez de cair do púlpito abaixo
ou atirar com um diabo à ca-
beça do entremetido, que lhe
responde:
-- Näo é contigo, minha
besta quadrada, é com o valo-
roso legionário que nas hos-
tes do cruel Diocleciano
derramou o sangue pela fé de
Cristo!...
Por ali fora lá se meteu a
caminho e, dá-lhe que dá-lhe,
näo tardou que o templo com o
alarido,
:,
.he 129
os choros, a fungadela das
beatas lembrasse uma caravela
que vai ao fundo. Olá! Ao
fim da festividade, Barrelas
em peso abancou ao ágape, co-
mo o Manuel da Costa Pe-
reira, boticário e miguelista
dos quatro costados, lhe cha-
mava em língua de padre-mes-
tre, para o qual todas as ca-
sas emprestavam loiça, gar-
fos, e queixais. Durou os
dois dias da praxe a grande
reinaçäo, e eu com alma mais
negra do que se me tivessem
derramado nela pez a ferver.
Foi na ceia de segunda que
me decidi. Na véspera havia
tomado o corpo de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo, que mor-
reu para nos remir e salvar,
e eu näo queria fugir à devo-
çäo e bondade daquela benta
hora.
A minha vontade seria vin-
gar-me do sedutor cristämen-
te, santamente, se possível
fosse com a faca benzida pelo
Padre Santo de Roma. Fiz
o que pude. E à hora de dar
graças, quando todos a arro-
tar, de pé, cabeça descoberta
.he 129-30
e mäos erguidas, responsavam
os seus mortos, no rosário
sem fim das rezas, encomendei
o sujador das minhas barbas:
-- Por alma de algum ir-
mäo, agora aqui ao nosso lado
e, quem sabe lá, dentro em
ponco a dar contas ao Cria-
dor, padre-nosso e ave-ma-
ria...
Rezaram todos, sem passar
a nenhum tolo pela cabeça que
rezavam por um condenado.
Deixá-lo, o ladräo já levava
lastro para S. Pedro. À
porta
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esperei-o, cosido com a pare-
de, a coberto da noite que de
negra täo bem escondia o jus-
to como o pecador.
..............................
Que lhe saíram do odre,
pelos furos, pedaços de vite-
la por digerir?! Näo sei.
Acolhi-me à minha fazenda do
Sabugal com a reiuna bem es-
corvada. Lá foram os cabos
de ordens até a cancela.
-- Dê-se à prisäo, tio
Malhadinhas, que näo há juiz
que o condene. Vomecê lavou
a sua cara honrada...
-- Dizeis bem, rapazes,
dizeis bem. Lavei a minha
cara borrada. Borrou-ma
aquele cäo. Näo havia de pa-
gar a ensaboadela? Pois é,
lavei a cara borrada. Agora,
vós, se estais fartos de vi-
ver, chegai-vos cá!
Rodaram para nunca mais.
Voltei à minha lida, voltou
o Bentinho à sua, matar gen-
te, mas só dobados muitos me-
ses, descaído sobre o flanco,
como quem ladeou da cova.
Grande piranga, tinha os de-
mónios todos do inferno a
responsar-lhe o coiräo!
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IX
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Lisboa, 1922
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