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Paradoxo da lata furada

Prof. Luiz Ferraz Netto


leobarretos@uol.com.br

Apresentação
É bastante comum, aos alunos que se iniciam nos estudos dos fluidos, serem
induzidos a acreditarem num comportamento que, de fato, nas condições
propostas, não ocorre na prática.  Uma situação corriqueira é apresentar (via
livro ou professor) o 'desenho' de uma lata dotada de três orifícios laterais,
contendo água, com os jatos d'água apresentados como se ilustra na figura
(a). 
O argumento apresentado para tal disposição dos jatos é que, como a pressão
aumenta com a profundidade, o jato proveniente do orifício inferior deve
percorrer uma distância horizontal maior que aquelas conseguidas pelos jatos
que saem pelos orifícios superiores. 
Porém, se o 'experimento' for realmente realizado, verificaremos que o jato
proveniente do orifício médio é aquele que alcança a maior distância
horizontal, como se ilustra na figura (b).  

Esse comportamento do jato médio fere a intuição dos estudantes, evidencia


a falácia apresentada no desenho (fig.a) e, quando observado pela primeira
vez, pode levar a interessantes discussões. 

Discussão
Nossa intenção aqui é explicar esse 'comportamento paradoxal' usando um
pouco de cinemática, a lei de Torricelli e um gráfico. Evidenciaremos,
também, que esse resultado 'inesperado' pode ser justificado analiticamente
usando um simples cálculo de derivada.

Cálculo da distância horizontal atingida pelo jato d'água 


Esse cálculo comporta duas partes, a saber: (a) cálculo da velocidade vx com
que a água sai pelo orifício que dista h da superfície livre e (b) cálculo do
alcance horizontal Sx do jato.

A parte (a) é a própria demonstração da equação de Torricelli para a


velocidade de vazão de um líquido e, como sabemos, basta comparar a
energia potencial gravitacional que aquela porção de água 'perde' para cair da
altura h e a energia cinética que 'ganha' na saída do orifício:

Desse modo, a água, exclusivamente sob ação da gravidade (seu peso),


abandona o orifício que dista hda superfície livre com velocidade
horizontal vx e alcança, sobre a mesa, a distância horizontal Sx. 

A parte (b) envolve algum conhecimento do 'lançamento de corpos na


horizontal'. Como sabemos, sob ação exclusiva da gravidade (suposta
constante no local do experimento), os corpos em movimento só podem
apresentar dois 'tipos' de trajetórias no referencial inercial adotado: reta
vertical ou arco de parábola. Como o jato d'água sai da lata com velocidade
horizontal  vx, a trajetória será um arco de parábola. 
Essa componente horizontal da velocidade, da porção de água do jato em
movimento, se mantém durante todo o trajeto (uma vez que não há qualquer
força na horizontal para alterar seu valor) e, conseqüentemente o movimento
componente na horizontal, dessa porção de água, é uniforme. Sua lei de
movimento será:

Sx= vx.t       (2)

onde t (ou mais precisamente t) é o intervalo de tempo de queda livre do


jato para percorrer a distância (l-h), como se indica na figura (c).

 Assim, para o cálculo desse Sx necessitamos duas informações; o valor


de vx (dado pela equação 1) e do tempo de queda livre para percorrer a
distância l - h.
Sabemos que para um objeto em queda livre (sob ação exclusiva de seu
peso) tem-se  y = (1/2).g.t2, que no nosso caso torna-se:
Agora, podemos substituir os resultados das equações 1 e 3 na equação 2 e
teremos:

 Feito isso (obtenção de Sx em função de h) estamos em condições de


construir o gráfico Sx versus h (notando que l é constante); e obtemos (figura
d):

Note, pela equação 4, que Sx = 0 para h = 0 ou h = l .


Nesse gráfico podemos ver claramente que Sx admite um máximo, que
parece ocorrer, aproximadamente, para h = l/2. Um exame mais cuidadoso
mostrará que esse máximo ocorre exatamente para h = l/2. Façamos esse
exame analítico: nos pontos de máximos ou mínimos de uma função, a
tangente geométrica à curva, passando por eles, deve ser horizontal. Isso
pode ser dito em outras palavras, como as tangentes à curva são dadas
analiticamente pela derivada primeira da função, nesses pontos, a derivada
primeira da função tem que valer zero".
Então, derivemos a equação 4, que expressa a dependência de Sx com h, em
relação a h, e teremos:

'Igualando essa expressão a zero', concluímos que l - 2.h = 0 ou h = l/2, que


é a distância contada a partir da superfície livre para o qual o máximo da
função ocorre (a distância horizontal do jato é máxima), explicando o
fenômeno observado. Realmente, o jato d'água que abandona o orifício médio
é o que alcança maior distância horizontal sobre a mesa. Que distância
horizontal máxima é essa?
Basta substituir na expressão que fornece Sx em função de h (expressão 4,
acima), a variável h por l/2 e encontraremos Sx = l ; ou seja, o alcance
máximo é igual à profundidade total do líquido na lata. Outra observação
interessante é que esse alcance máximo não depende da aceleração da
gravidade local, assim, o jato d'água teria o mesmo alcance caso o
experimento fosse realizado na Lua!
Comentário importante
Pergunta: Por que será que o jato não se 'comportou' como 'previa' a intuição
... e a lei de Torricelli?

Resposta: Simplesmente porque ele foi interrompido antes que tivesse tempo


de nos satisfazer!

Se a lata for colocada sobre uma plataforma elevada, a uma altura suficiente
em relação à mesa, como mostramos na figura (e), o jato será conforme com
nossa intuição, a lei será satisfeita ... e tudo volta à normalidade da Física
Clássica. Agora o jato proveniente do orifício mais baixo terá o maior
alcance horizontal.

Exercício interessante 
Propomos que se determine para que altura H da plataforma, o alcance
horizontal do jato proveniente do orifício mais baixo é igual à aquele do jato
proveniente do orifício do meio.

Se a plataforma tiver uma altura menor do que a solicitada no exercício


acima, o alcance horizontal do jato que sai do orifício mais baixo
será menor que aquele alcançado pelo jato do orifício médio.

Se a plataforma estiver ao mesmo nível do orifício mais baixo, observemos


que:

(a) a velocidade horizontal do jato em um orifício feito ao nível da superfície


livre é zero, conseqüentemente, embora empregue um maior tempo na sua
queda livre, seu deslocamento horizontal será zero!
(b) a velocidade horizontal do jato que sai pelo orifício mais baixo de todos é
grande, mas seu tempo de queda é zero, conseqüentemente seu
deslocamento horizontal também será zero!

(c) o deslocamento horizontal dos jatos intermediários entre o topo e o fundo


varia desde zero (no topo), passa por valores finitos e retorna a zero (no
fundo). Desse modo, podemos esperar que entre o topo e o fundo exista uma
posição do furo para a qual o jato alcance um deslocamento horizontal
máximo.
Isso deixa claro que o senso comum ou a intuição podem falhar.

Veja, a seguir: Paradoxo da lata furada - Complementação.

Concluo
Disso tudo decorre o mal-estar que sinto quando vejo a negligência das
escolas e professores com respeito ao uso dos laboratórios a seus alunos.
Prender-se ao desenho, ao giz, ao quadro negro e aos livros para o Ensino da
Física é encaminhar os alunos a uma situação de escuridão intelectual,
retirando deles a oportunidade de suas próprias descobertas, tornando-os
inaptos à concorrência e ao desenvolvimento em seus cursos superiores.

Paradoxo da lata furada


(Complementação)
Prof. Luiz Ferraz Netto
leobarretos@uol.com.br

Complementando ...
O experimento "da lata furada" pode ser feito com uma simples garrafa PET
de 2 litros --- dê preferências ás garrafas cilíndricas.

Procedimento
Coloque uma fita crepe envolvendo a garrafa na região mais alta, onde ainda
é cilíndrica. Indiquemos por H a distância dessa fita crepe (sua borda
superior) até o fundo da garrafa. A contar da base da garrafa, faça nela 3
orifícios nas alturas H/4, H/2 e 3H/4. Esses orifícios têm diâmetro da ordem
dos 0,15 cm e não deverão estar na mesma vertical, de modo que os três
jorros d'água não se toquem (1,5 cm de distância entre as verticais que
passam por eles será o suficiente). O nível da água durante as
experimentações deverá ser mantido o mais constante possível, no nível H;
uma mangueira ligada a uma torneira deve ser prevista.
Uma alternativa mais prática, e a mais indicada para demonstrações a um
grande grupo de pessoas, é a seguinte:

Obtenha um cano de PVC de 40 mm de diâmetro e 1,80 m de comprimento


(cano de drenos para pias, tanques etc.) e um tampão para fechar, com cola
apropriada, uma das extremidades desse tubo. Com broca de diâmetro 2 mm
faça orifícios nas alturas H/4, H/2 e 3H/4, não na mesma vertical, como feito
na garrafa.

Como se constata, o jorro d'água proveniente do buraco do meio (H/2) terá o


maior alcance horizontaldeles. O alcance é a distância horizontal percorrida
pela água ao descer até o nível da extremidade inferior do tubo. Como vimos,
no "paradoxo da lata furada", esse alcance "x" depende do produto da
velocidade de saída (v) da água fora do buraco pelo tempo (t) que a água
demora para descer (x = v.t).
O furo central do tubo propicia alcance máximo porque "v" aumenta com a
profundidade [v = (2gh)1/2] --- e com a pressão da água ---, enquanto "t"
diminui com a profundidade da água (quanto mais próximo do fundo estiver o
furo, menor tempo terá a água para atingir o solo), de modo que o seu
produto é máximo (como foi demonstrado) para o furo no ponto médio.

Aqui sugerimos um exercício de  cinemática que é o próprio modelo


mecânico do paradoxo da lata furada.

As três bolinhas são abandonadas simultaneamente de A, B e C sobre os


planos inclinados perfeitamente lisos e os abandonam na direção horizontal
(simulando gotas dos jorros de água).
(a) Calcular essas velocidades com que abandonam os planos inclinados;
(b) Calcular os tempos de queda, de cada uma, a contar dos instantes que
deixam seus planos inclinados;
(c) Calcular os alcances horizontais das três bolinhas;
(d) Confrontar os tempos totais de 'quedas' das bolinhas, a contar do instante
comum em que foram abandonadas, até chegarem ao solo (nível inferior  da
ilustração).

Solução

(a) As velocidades com que abandonam seus planos inclinados, já que não
há quaisquer forças dissipadoras, podem ser calculadas pela conservação da
energia mecânica (referência solo). Todas as três bolinhas apresentam a
mesma quantidade de energia mecânica no nível de partida:

Em = Ep + Ec = Ep = mg(4H) = 4mgH

Nos pontos em que abandonam os planos inclinados, nas alturas 3H, 2H e H


teremos:

Para a bolinha A ==> 4mgH = 3mgH + (1/2)m.v A2  ==> vA =


(2gH)1/2

Para a bolinha B ==> 4mgH = 2mgH + (1/2)m.v B2  ==> vB =


(4gH)1/2
Para a bolinha C ==> 4mgH =   mgH + (1/2)m.vC2  ==> vC =
(6gH)1/2

(b) Os tempos de queda, a contar dos instantes que deixam seus planos, na
horizontal, podem ser calculados como simples queda livres (pois as
velocidades iniciais verticais na partida são nulas!):

Para a bolinha A ==> 3H = (1/2)g.tA2  ==> tA = (6H/g)1/2

Para a bolinha B ==> 2H = (1/2)g.tB2  ==> tA = (4H/g)1/2

Para a bolinha C ==>  H = (1/2)g.tC2  ==> tA = (2H/g)1/2

(c) Os alcances horizontais serão dados pelos produtos das velocidades v A,


vB e vC pelos correspondentes tempos de queda:

Para a bolinha A ==> xA = vA.tA = (2gH)1/2.(6H/g)1/2 = 2.31/2.H

Para a bolinha B ==> xB = vB.tB = (4gH)1/2.(4H/g)1/2 = 4.H

Para a bolinha C ==> xC = vC.tC = (6gH)1/2.(2H/g)1/2 = 2.31/2.H

Repare que xA = xC < xB; o alcance horizontal da bolinha B é o maior das três.

(d) Os tempos totais são iguais para as três bolinhas uma vez que, partem
simultaneamente e caem de mesma altura em meio conservativo.

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