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O Solteirão

Como em qualquer obra literária, os olhos de quem lê são parte importante do que acontece. É o leitor quem se envolve
com a obra, se emociona, e interpreta seu desenrolar de acordo com suas próprias experiências.

No caso de Batman, temos um homem marcado por um trauma, que utiliza a riqueza para se transformar no “maior
detetive do mundo”. Um solteirão, impedido por suas próprias escolhas de se envolver profundamente com alguém, que
usa o medo como arma na luta contra a injustiça numa cidade particularmente corrupta.

Essa atmosfera sombria foi amenizada quando Bruce Wayne tomou Dick Grayson como pupilo, transformando o jovem
na segunda metade do que o mundo conhece como a “dupla dinâmica”. Finalmente, Bruce estabelecia um relacionamento
íntimo com alguém além do mordomo Alfred.

Não é de espantar que em pouco tempo, vista por olhos maliciosos, a história do cavaleiro das trevas apresentasse sinais
de homoerotismo. Sim, uma ou outra imagem mais estranha (como a dos dois amigos na mesma cama de manhã…)
ajudou, mas o caso é que a malícia estava na mente de quem lia, não de quem escrevia.

Bob Kane, o criador de Batman, se disse desapontado pelo rumores, já que Robin foi criado para humanizar Bruce,
justamente por que reclamaram. E após sua criação, a relação dos dois foi usada para fazer chacota da homossexualidade e
aterrorizar pais com fantasias de manipulação.

As idéias do Dr. Wertham culminaram na criação de um código de ética para regularizar os quadrinhos e na introdução de
personagens como a Batgirl e a Batwoman, em situações que sugeriam relações afetivas mais em acordo com a “moral e
os bons costumes”.

O seriado dos anos sessenta, com sua atmosfera cômica e afetada, acabou por reforçar a polêmica, mas as vendas de
quadrinhos subiram com a popularidade da série, fazendo com que o estilo fosse parar nas páginas das revistas também.
Isso se sustentou até o cancelamento da série, e mais uma vez as vendas das revistas caíram. Era hora de mudar.

Trevas

Às portas dos anos setenta, Batman era mais popular do que nunca, graças ao seriado exibido em dezenas de países.
Contudo, ele não ia bem nos quadrinhos, que tinham absorvido a estética kitsch da série. Assim, para revitalizar o
personagem, a idéia foi voltar às sua raízes sombrias com histórias mais complexas e com ares policiais.

Deu para manter o personagem, mas o grande acerto veio em 1986, com “O Cavaleiro das Trevas”, da Frank Miller, que
causou grande impacto e devolveu à Batman seu status de ícone cultural.

Com o sucesso, veio o filme e suas continuações (que acabaram descambando para o cafona também…). Começava uma
nova era para os heróis dos quadrinhos, com o grande interesse do público por adaptações cinematográficas das amadas
histórias. Como antes, Batman foi revitalizado com um retorno a seu lado sombrio, e sua trajetória no cinema voltou ao
início, com “Batman Begins” contando novamente a história do garoto que decide virar justiceiro após a morte dos pais,
agora de uma forma muito mais séria e sombria.

Nessa nova encarnação, o sucesso está justamente na seriedade, e ainda não há notícias sobre Robin, mas o sucesso fez
com que uma galeria de Nova York aproveitasse para expor as aquarelas de um artista que retratava Batman e Robin em
poses eróticas (e às vezes, explícitas). A DC Comics ameaçou processar a galeria, mas a polêmica já tinha se instaurado, e
mais uma vez o “fantasma gay” assombrava o cavaleiro das trevas.
Desde a década de 70, com o surgimento da crise de energia, de petróleo e, principalmente, do papel, os quadrinhos não
conseguem repetir os números do passado. Os Super-heróis, que sempre desempenharam o papel de protetores da
sociedade, tinham como seu instrumento de trabalho superpoderes que os mantinham fisicamente superiores aos seus
inimigos. Portanto, o estigma, portanto, da força é o que sempre acompanhou a vida desses heróis. A razão pela qual sem
ela de nada adiantaria os montes de músculos de nossos justiceiros, e a violência, dada como única maneira de se tratar os
delinqüentes.

Dois dos primeiros heróis dos gibis – Super-Homem e Batman – tinham como principal arma a força bruta. É claro que
Batman dependia bastante de sua capacidade intelectual, tanto que é considerado o maior detetive dentre todos os seus
companheiros. Porém, de nada adiantaria uma pista certa se, na hora de enfrentar o bandido, ele não utilizasse seus
punhos. O mesmo ocorre com o Homem de Aço que, sem precisar de todo aquele aparato técnico do Batman – cinto de
utilidades, Batmóvel, Batcomputadores, etc. – concentrava nele próprio, toda a capacidade tecnológica do mundo
contemporâneo. Trata-se, precisamente de encontrar um ser humano – ou kriptoniano, como queira – que tenha todo o
poder da máquina, sem ser máquina.

Este, portanto, era o principal atrativo das histórias em quadrinhos da época. A grande maioria delas não continha
historietas para fazer rir, e sim de criminalidade e de violência. O cenário pode mudar, mas a substância é a mesma, seja
em florestas, no lar, na rua, num ambiente urbano, no mar, no espaço sideral, onde quer que seja. Muitas revistinhas de
guerra pertencem à mesma categoria, com o crime e a violência disfarçados de patriotismo.

Foi através do amor à pátria que começou a se perceber o quanto era importante nestas histórias a presença de uma relação
afetiva. Sem ela, toda violência não teria sentido. O Capitão América, por exemplo, foi criado em 1941 sob encomenda do
governo americano em um momento delicado da história mundial, quando se tornava imprescindível a presença do
sentimento patriótico.

Os EUA precisavam do respaldo popular para que pudessem participar da guerra, de forma a não comprometer sua
supremacia. Por isso, nada mais eficaz do que o apelo à emoção para sensibilizar a opinião pública. Este fato em si já
revela todo o poder que a indústria cultural, através de uma veiculação em massa – no caso, as histórias em quadrinhos –
exerce sobre a população, e prova definitivamente, que o divertimento é usado como instrumento de manobra ideológica.

Em 1955, quando Sedução do Inocente, do Dr. Fredric Wertham, foi publicado, iniciou-se uma reação social. Pela
primeira vez uma série de ilustrações típicas de revistinhas de histórias de crimes despertou a atenção dos pais, cientistas e
de outros adultos. Muitas pessoas, pela primeira vez, passaram a ter conhecimento do que contém as “revistinhas”. Foi,
também, mostrada a prova clínica e científica dos efeitos resultantes da leitura das histórias de crimes das revistinhas.
Uma mudança ocorreu. Diminuiu o assassinato nas revistas, bem como o número de editores. É verdade que títulos de
crimes (não histórias) diminuíram e não eram expostos na capa. As histórias de assassinatos realistas, em ambientes
urbanos, tornaram-se menos freqüentes. O crime e a violência ainda reinam supremos, embora freqüentemente
disfarçados. A partir dessa controvérsia, foi estabelecido o Código de ética das H.Q. (Comics Code Authority). Neste
pequeno tratado, além das regulamentações concernentes a crimes, violência e vocabulário, há uma parte dedicada
especialmente ao casamento e ao sexo:

1- Divórcio não deve ser tratado humoristicamente, nem sendo representado como sendo desejável.

2- Relações sexuais ilícitas não devem ser retratadas e anormalidades sexuais são inaceitáveis.

3- Todas as situações que tratem com a unidade familiar devem ter como principal objetivo a proteção das crianças e da
vida familiar. Em caso algum a quebra do código de moral deve ser representada como recompensadora.

4- Estupro nunca deve ser mostrado ou sugerido. Sedução não deve ser mostrada.

5- Perversão sexual ou qualquer alusão ao mesmo é estritamente proibida.


Os padrões morais, hoje, são bem diferentes dos da época da publicação deste código e também a abordagem do sexo do
casamento nos quadrinhos. Depois da leitura do item 3, pode-se compreender que as regras e moral de cinco décadas atrás
eram bem mais rígidas. Tanto que em 1988 foi lançada pela primeira vez uma revista que conta como o Monstro do
Pântano “transa” com uma mulher. A história, chamada Ritual da Primavera, não transcreve exatamente o
relacionamento sexual, porém transmite todo o significado sutil do que seja o orgasmo. Envolto por um clima de completo
romantismo, o monstro dá um pedaço do seu corpo (ele não possui órgão genital) para a mulher comer, fazendo com que
ela embarque numa viagem psicodélica. Este é, sem dúvida nenhuma, um marco na história das Histórias de Quadrinhos.

Batman foi o personagem mais sacrificado por todas essas regras e códigos do passado. Acabou tornando-se
especialmente interessante para o público gay por três razões:

1- Foi o primeiro personagem fictício a ser atacado pelo Dr. Fredric Wertham em seu livro a Sedução do Inocente.

2- O seriado dos anos 60, que satirizava o personagem como sendo um homossexual enrustido.

3- O herói mais popular e conhecido desse planeta, simbolizando como nenhum outro a figura masculina.

A Sedução do Inocente é um livro extraordinário, não por seu conteúdo, mas por ser um melodrama extravagante
disfarçado em psicologia social. Fredric Wertham parece um clone do Senador McCarthy – que perseguiu pessoas
inocentes, com a desculpa de serem comunistas nos anos 50. Wertham era um evangélico imbuído em salvar a juventude
americana dos seus piores impulsos.

Ele acreditava que os leitores copiariam o conteúdo das histórias. Alegava que todos absorviam aquilo de forma passiva.
Batman foi o escolhido para exemplificar suas estapafúrdias teorias:

“Todo pré-adolescente tem um período que despreza as meninas. Algumas revistas em quadrinhos fixam essa atitude e
ainda criam a idéia de que garotas só servem para apanhar ou para te seduzir. É sugerida uma atitude homo erótica da
forma que a masculinidade é apresentada. As mulheres sempre são bruxas ou violentas. As mulheres sempre são
desenhadas num tom pouco erótico. Já os heróis sempre estão em tons agressivamente eróticos. O musculoso “super-
tipo” é enfatizado com o objetivo de criar estímulo e curiosidade sexual no leitor.”

É tanto absurdo que nem vale a pena confrontar. Até porque Martin Barker destrói cada um das teorias absurdas de
Wertham no ótimo A Haunt of Fears (1984). O homossexualismo para Wertham é sinônimo de misoginia. Homens amam
outros homens, porque detestam mulheres. Desenhos de mulheres apanhando são responsáveis pelos sentimentos
homoeróticos reprimidos. Isso deve ser novidade para as milhares de mulheres que são sistematicamente abusadas
fisicamente por heterossexuais. As mulheres que não se encaixam nos estereótipos existentes de feminilidade são mais um
estímulo para o homossexualismo. Após explicar suas teorias infames, Wertham dispara sua metralhadora na mansão
Wayne:

“Algumas vezes Batman está de cama por causa de algum ferimento. Robin aparece sentado ao seu lado. Eles levam uma
vida idílica. Eles são Bruce Wayne e ‘Dick’ Grayson, Bruce é descrito como milionário bon vivant e Dick como seu
pupilo. Eles moram numa mansão suntuosa com lindas flores em vasos enormes. Eles têm um mordomo, Alfred. Batman
aparece algumas vezes de roupão. Parece um paraíso, um sonho de consumo de dois homossexuais que vivem juntos. Às
vezes aparecem num sofá. Bruce reclinado e Dick ao seu lado sem paletó e de camisa aberta”.

As suposições homossexuais de Wertham são sugeridas por sua interpretação de certos signos visuais. Então para se evitar
ser chamado de homossexual por Wertham, Bruce e Dick deveriam ter feito o seguinte: não mostrar preocupação quando
estivessem feridos, morar numa cabana, terem flores horrorosas em pequenos vasos, chamar seu mordomo de Joe ou nem
ter um, nunca dividirem um sofá, usar paletó, manter a camisa toda abotoada e nunca usar roupão. Nem a Mulher-
Maravilha escapou dos devaneios de Wertham:

“A conotação homossexual das histórias da Mulher-Maravilha é psicologicamente irrefutável. Para os meninos, a imagem
da Mulher-Maravilha é assustadora. Para as meninas é um ideal mórbido. Se Batman é anti-feminino, a atraente Mulher-
Maravilha e suas contrapartes são definitivamente anti-masculina. A Mulher-Maravilha tem suas próprias seguidoras
femininas. Suas seguidores são as meninas que gostam de ‘festejar’, as lésbicas”.
A visão de homossexualismo de Wertham é inconsistente. Mulheres fortes, resolutas e admiráveis irão transformar
meninas em lésbicas – um heroína dessa maneira só poder ser apontada como ‘mórbido ideal’. As loucuras de Wertham
surtiram efeito. Nos anos 50 aconteceu um pânico moral por causa dos ‘perigos’ das revistas em quadrinhos. Depois da
introdução do Código de Ética, carreiras acabaram e companhias faliram. Da mesma forma que o Código Hayes
censurou Hollywood na década de 30, os quadrinhos ficaram reacionários. Na Inglaterra chegou a ser proibido a
importação de revistas em quadrinhos americanas.

E o Batman? Perdeu sua couraça de vigilante e tornou-se um defensor dos valores americanos. Introduziram Batwoman e
Batgirl para que não existisse nenhuma dúvida a respeito da vida sexual da Dupla Dinâmica. Em 1963, a história “The
Great Clayface-Joker Feud” exemplifica as normas sexuais vigentes para todos os morcegos reunidos. Batgirl diz para
Robin: “Mal posso esperar para colocar meu uniforme! Não seria o máximo a gente sair em missão juntinhos de novo?
(suspiro)”. Robin responde: “Seria ótimo! (suspiro)”. Batgirl era sobrinha da Batwoman, pois se ela fosse filha, implicaria
em relação sexual com alguém. Esta é a era de Troy Donohue e Pat Boone. Batman servia de termômetro cultural,
‘tirando a temperatura’ dos tempos.

Clayface/Joker não representavam uma ameaça ou violência. O episódio ainda conclui com mais uma mensagem
heterossexual: “Oh Robin,” diz Batgirl, “Fiquei tão assustada depois desse confronto com o Coringa que preciso de um
abraço…você é tão forte!”. Batwoman aproveita a deixa e diz: “Batman, você ainda está preocupado com o Coringa. Por
que não segue o exemplo de Robin e me deixa aliviá-lo?”. Batman: “É uma ótima idéia!”. Mesmo essa história tendo sido
publicada em 1963, ela ainda era um reflexo da década de 50. Se os anos 60 começaram para o mundo com a chegada dos
Beatles, para Batman só começou em 1966 com o seriado para a TV.

Depois dessas mudanças, resolveram acusar os personagens de homossexuais. Bob Kane afirma que Batman e Robin são
heterossexuais e que infelizmente os fãs serão obrigados a conviver com essa chacota, por causa da mente insana do Dr.
Fredric Wertham. Mas fez questão de frisar que não tinha nada contra os homossexuais. Se os mesmos precisavam do
Batman para desmistificar o preconceito, teriam seu apoio. Só queria que isso fosse de forma positiva e não na galhofa,
pois incentivava mais ainda a homofobia.

Desde que foi criado, Batman teve vários relacionamentos com mulheres de todos os tipos e estilos. Seu alter ego, Bruce
Wayne também. Mas uma coisa é lógica no mundo dos quadrinhos: Batman jamais poderia se casar. Ele estaria se
limitando ou até mesmo se castrando como super-herói.

E isso é justamente o que os editores não querem, pois é inconcebível para os leitores a figura de Batman casado e com
filhos, ou o herói tendo que voltar mais cedo para casa para fazer companhia a sua esposa, ao invés de se dedicar
exclusivamente ao combate do crime. Isso não impede que ele se apaixone. Nesses casos, o amor é utilizado em grande
escala, mas é claro que há uma situação limite, pois o amor nada é do que um engodo para atrair a curiosidade do público
e que nunca será levado às últimas conseqüências. Com isso, o personagem se aproxima de seu público, satisfazendo por
um lado o desejo da aventura e por outro o sonho romântico.

O amor como integrante de um universo de amenidades, teve sempre uma presença maciça dentro dos veículos de massa.
As Histórias em Quadrinhos, um pouco diferentes, passaram a abordar assuntos como amor e sexualidade com maior
freqüência no intuito de projetar algo que esteve reprimido durante muitos anos, a custo de leis e códigos de ética.

É uma pena que tudo isso levou a deturpar a verdadeira personalidade dos heróis. Tantas décadas de repressão foram as
responsáveis por erros que talvez nunca sejam corrigidos. Além disso, há uma enorme luta por parte da comunidade gay
em adquirir direitos iguais. E nessa busca por igualdade, uma parte dos gays procuram se auto afirmar se utilizando de
personalidades, heróis mitos e lendas. Eles acreditam que divulgando possíveis gays históricos, seja a forma de
sensibilizar a sociedade.

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