Você está na página 1de 23

COSMOS & CONTEXTO A REVISTA EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT

· FÍSICA E FILOSOFIA ·

Luiz Pinguelli Rosa / 21 de outubro de 2019

Física e Filosofia[1]

J ean- Marc Lévy – Leblond no livro Impostures


Scientifiques  (1998) criticou a arrogância dos físicos
atuais que desprezam a filosofia da ciência. O Nobel de
física Steven Weinberg, no livro “Sonhos de uma Teoria
Final”[2] escreveu um capítulo denominado “Contra a
Filosofia”. Citando Richard Feynman, Weinberg
 afirmou que a filosofia da ciência serve tanto aos
cientistas quanto a ornitologia serve aos pássaros. Esta é
possivelmente uma verdade, mas os pássaros em geral
não atacam os ornitólogos, exceto no famoso filme de
terror de Alfred  Hithcock.  Já Einstein  em artigo
publicado no New York Times Magazine de 9 de
novembro de 1930 refere-se a Demócrito e Spinoza, por
exemplo.

Houve  um grande impacto filosófico da  Revolução


Científica e da mecânica de Newton.  Antes mesmo da
mecânica newtoniana, no século XVI, Francis Bacon
propusera um empirismo pragmático, mas ingênuo se
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
comparado ao chamado empirismo britânico que depois
floresceu na esteira do êxito da mecânica – com  Locke,
um dos pais do liberalismo, Berkeley e Hume, apesar de
este último ter sido  um crítico cético da lógica indutiva
do empirismo por vezes atribuído a Newton.  Nesta
época, em contraste com o empirismo, houve outra
influência da mecânica na filosofia: a do racionalismo de
Descartes e de Leibniz, eles próprios fundadores da
mecânica ao lado de Galileu e Newton. A estes dois
últimos  vou associar respectivamente o realismo e o
determinismo.  Kant, talvez o último dos grandes
filósofos inspirados pelo veio da mecânica newtoniana,
buscou a partir do ceticismo de Hume fazer uma síntese
do empirismo com o racionalismo, mas subordinando o
primeiro ao segundo na sua Crítica da Razão Pura.

Enfoco aqui o conhecimento científico a partir das


relações da física com a filosofia da ciência, com outras
áreas do conhecimento e com a sociedade. Trato assim
da relação entre o que alguns autores vêm como “duas
culturas” universais paralelas na Civilização Ocidental,
cujas linguagens são relativamente estanques entre si: as
ciências da natureza e as humanidades. Nestas últimas
são incluídas as ciências sociais e humanas, bem como,
em geral, a filosofia. As ciências da natureza usam o
método científico, caracterizado pela experimentação e,
em alguns casos, pela teorização matemática, embora
esta última seja plenamente realizada apenas nas ciências
físicas. As demais ciências naturais são experimentais e
usam a matemática na análise dos dados, mas nem todas
as suas teorias são matemáticas. Já as humanidades não
são experimentais e utilizam basicamente uma linguagem
discursiva, ancorada por vezes na lógica formal, por
vezes em uma lógica difusa, própria da linguagem
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
natural. Mobilizam múltiplos métodos desde a
hermenêutica até o próprio método científico e a
matemática. Tal é o caso da economia, na parte em que
desenvolve modelos matemáticos e computacionais,
bem como da sociologia, ao aplicar técnicas estatísticas
de pesquisa por amostragem. Aqui entra também em
jogo a capacidade de as ciências sociais fazerem
previsões e quantificarem grandezas, expressas por
números, em correspondência com fatos observáveis,
como as ciências da natureza. Um caso típico é o das
pesquisas eleitorais, com êxito maior do que o dos
modelos da economia. Mas, esta não é uma característica
constante das ciências sociais, sendo mesmo negado por
correntes importantes que deva ser este o seu escopo.

Tomo a palavra “tecnociência” emprestada dos


construtivistas. Ela, aqui, apenas significa a junção da
ciência com a tecnologia dela derivada e que
retroativamente a alimenta. Devo advertir que nem tudo
na tecnologia vem da ciência, mas esta tem um
importante campo de aplicação na tecnologia. A palavra
“cultura” foi pega emprestada da antropologia por C.
Snow em um livro de 1959 para caracterizar a diferença
entre humanidades e tecnociência, tomadas por ele
como “duas culturas universais” . No entanto, tanto a
tecnociência como as humanidades derivam do
Iluminismo, que se situa no cerne da modernidade, na
qual emergiu a sociedade industrial e tecnológica do
capitalismo. Fala-se hoje em sociedade pós-industrial e
pós-moderna, talvez pós-científica, mas não pós-
tecnológica. A tecnociência, juntando a ciência com a
tecnologia, impregna o mundo atual profundamente.
Deste ponto de vista vejo a tecnociência e as
humanidades como duas faces da mesma moeda na
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
Civilização Ocidental e não como “duas culturas”
separadas. Talvez fosse melhor caracterizar as
humanidades e a tecnociência pela diferença de etos[3],
palavra cujo significado na antropologia é menos forte
do que o de cultura, ou apenas diferenciá-las pelas suas
linguagens. Entretanto, vou buscar falar destas “duas
culturas” – entre aspas, isto é, usando o termo sem rigor
científico – em uma linguagem comum capaz de unificá-
las em uma visão crítica, mas racional, diversa tanto da
vulgarização propagandista da ciência como do
anticientificismo em moda no limiar do séculoXXI,
associado por vezes à pós-modenidade.  Nesta
concepção o termo “ciência” é restrito às ciências da
natureza, excluindo as ciências sociais, ou seja, as
humanidades. Em várias passagens e citações
inevitavelmente uso este sentido restrito do termo
“ciência”, embora mantenha um ponto de vista crítico.
A filosofia da ciência tem pretendido estabelecer pontes
entre estas “duas culturas”, etos ou linguagens nem
sempre com sucesso. Muitos problemas atuais da
filosofia da ciência têm raízes históricas e filosóficas, em
geral pouco conhecidas pelos cientistas, do mesmo
modo que, simetricamente, questões atuais das ciências
são, por vezes, mal compreendidas pelos filósofos.

Algumas premissas ou hipóteses serão formuladas“a


priori” como pontos de partida, para buscar sustentar
logicamente minhas teses e confrontá-las, ao longo do
texto, com a história da ciência e das teorias do
conhecimento.[4] Julgo melhor usar este método do que
buscar em fatos históricos escolhidos  induzir 
empiricamente as hipóteses, “a posteriori”,  para
formular teorias. A primeira hipótese é a de que a ciência
não se desenvolve autonomamente no plano intelectual
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
das idéias. Seus conceitos e teorias têm uma profunda
relação com o contexto histórico, tanto nos aspectos
intelectual e cultural como nos aspectos econômico,
social e político. Esta relação se dá em mão dupla. A
ciência é influenciada pelo contexto social em que nasce
e se desenvolve, de onde se nutre com os meios
materiais e institucionais de que necessita e com a
motivação intelectual e ética dos cientistas, tanto quanto
com a demanda tecnológica e econômica pela aplicação
de seus resultados e inovações. Desta demanda depende
o apoio dado à ciência, na expectativa que contribua
para equacionar e resolver problemas práticos.  A ciência
em outro sentido influi neste contexto social, seus
resultados são apropriados pela sociedade, mas de modo
diferenciado pelas diversas classes sociais,
predominando o interesse da classe dominante em cada
época. O veículo mais comum desta apropriação é, em
geral, a aplicação tecnológica. Entretanto, a ciência influi
também na visão de mundo dominante e é influenciada
por esta, seja exportando seus paradigmas para outras
áreas do saber e da prática, seja incorporando ideias
destes outros campos e legitimando ideologias. Esta é a
tese que procurarei mostrar, não como fazemos na
demonstração de um teorema da geometria, mas através
de uma análise crítica sustentada por argumentos
históricos e lógicos. Espero que estes permitam ao leitor
chegar comigo às conclusões que, com base em
premissas claras, procurarei mostrar serem verdadeiras
ou pelo menos verossímeis dentro das condições
explícitas no texto.

Assim, paradigmas da ciência têm sido usados para


legitimar a ordem social e econômica. É o que ocorre na
justificação do capitalismo pelo paradigma que engloba
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
desde a teoria econômica liberal clássica – influenciada
pela concepção de lei natural da mecânica de Newton –
até a teoria neoclássica – cujo formalismo é inspirado na
mecânica analítica do século XIX. Ou têm sido usados
para contestá-la, como fez Galileu, enfrentando a Santa
Inquisição em nome da nova ciência, no alvorecer da
Revolução Científica precursora da Revolução Industrial
que consolidou o capitalismo. E também Marx no
Século XIX fez o mesmo ao elaborar uma teoria crítica
do  capitalismo, como um modo de produção
historicamente determinado e superável como os que o
antecederam Sua formulação teórica do que foi
denominado determinismo histórico e   socialismo
científico teve uma conotação indisfarçável que veio da
concepção newtoniana de ciência. Por isso é
compreensível o interesse intelectual de um grande
número de leitores pelas questões epistemológicas, às
quais os cientistas nem sempre estão atentos no afã do
dia a dia da sua pesquisa. O avanço da ciência depende
pouco das contendas acadêmicas entre escolas da
epistemologia, exceto em situações de crises e rupturas,
quando a ciência volta aos braços da filosofia, da qual
nasceu. Nestas condições cientistas revolucionários se
confundem com filósofos, desde Descartes,Galileu, 
Leibniz e Newton até Einstein, Bohr, Schroedinger e
Heisenberg. Na abordagem histórica das teorias do
conhecimento científico centrarei o foco da atenção na
física e no método científico surgido com ela. Não há
aqui uma pretensão de imitar o rigor da ciência, como
pretendeu a teoria do conhecimento científico fundada
na filosofia analítica. Do ponto de vista lógico, seria
recorrente usar a linguagem da ciência para falar sobre a
ciência de fora dela, para isto seria preciso usar uma
metalinguagem, mais geral que a linguagem da ciência.
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
Para evitar tais complicações vou fazer uma abordagem
histórica e crítica.

Para definir alguns termos usados acima, posso dizer de


modo sucinto que a epistemologia[5] tem como objeto
de estudo o conhecimento, em particular o científico,
relacionando-o à filosofia e à lógica. Assim, ela recobre a
filosofia da ciência, na qual um ramo muito influente é a
filosofia analítica – caracterizada pela especialização
temática e pela valorização da lógica formal como
instrumento. A filosofia analítica é estritamente
conceitual, ou seja, trata da ciência em si sem relacioná-la
ao contexto histórico quanto aos aspectos cultural,
econômico, social e político. A contextualização da
ciência levando em conta estes aspectos externos à
ciência costumava ser denominada de abordagem
externalista. Esta velha designação ganhou novo nome:
ao invés de abordagem “externalista” passou a se
denominar “contextualizada socialmente” em oposição à
abordagem “internalista”, que passou a ser designada de
“conceitual”[6], embora o velho significado destas
palavras se mantenha em uso em trabalhos recentes.
Apesar de estar assumindo como ponto de partida a
inserção da ciência no contexto histórico e social em que
se desenvolve, não pretendo relacionar cada teoria
científica ou epistemológica, que veremos, aos
condicionantes históricos e sociais. Não é este o escopo
deste estudo, embora explicite estas relações históricas e
sociais, em termos gerais, para a ciência como um todo.
O que procurarei fazer é relacionar as teorias do
conhecimento mais importantes às teorias científicas que
nelas influíram. Vou me restringir primeiramente à
história das teorias do conhecimento e à influência que
nelas teve a física, abordando o determinismo
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
newtoniano como um paradigma geral na visão de
mundo hegemônica da modernidade, desde suas origens
até a ruptura deste paradigma iniciada no fim do milênio,
nos séculos XIX e XX. Procurarei neste caminho
estabelecer uma conexão entre as principais teorias
epistemológicas e o desenvolvimento da física. Uma tese
que buscarei demonstrar é que a física forneceu o
paradigma para as teorias epistemológicas mais
influentes na modernidade[7]. A influência da física na
epistemologia não se restringiu às ciências naturais, mas
se estendeu às humanidades.

Vou defender a tese de que a física se incorporou em um


paradigma geral de enorme abrangência e permanência
na história moderna. A ciência serviu de matriz da visão
de mundo dominante na modernidade e ao mesmo
tempo a refletiu dialeticamente. E a física, através do
determinismo newtoniano, assumiu um papel de
destaque em nome da ciência como um todo. Atribuo
isso a vários fatores: sua precedência histórica, no bojo
das revoluções que balizaram a modernidade; a posição
chave e instrumental para outras ciências e para a
tecnologia; o êxito de seu método matemático-
experimental, generalizado como o método científico,
embora poucas áreas das ciências usem plenamente a
teorização matemática fora da física. Portanto, a
abordagem tem por base a física, a partir do
determinismo newtoniano, desde o seu nascimento,
passando por seu apogeu, até sua ruptura. A ele é
associada, em geral, a previsibilidade, isto é, a capacidade
de fazer previsões sob certas condições restritas. Isto
permite até certo ponto controlar a natureza, projetar
máquinas e planejar indústrias. Por isto correspondeu à
visão de mundo da Revolução Industrial, do capitalismo
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
e, depois, do socialismo real que existiu no Leste
Europeu ou onde ainda exista.

Adiciono ainda duas teses coadjuvantes, negativas, para


desfazer confusões de designações sobre a física e o seu
método. Primeiro, o determinismo newtoniano não se
reduz ao mecanicismode que é em geral rotulado. Bem
ao contrário, Newton não foi um mecanicista como
Descartes. Segundo, há outra confusão de designações:
o positivismo na filosofia da ciência é uma corrente que
se opõe ao realismo. Entretanto, o rótulo de positivista é
dado genericamente pelas humanidades ao método da
física e das ciências naturais, em contraste com as
ciências sociais. Galileu e Einstein, por exemplo,
batalharam pelo realismo que é o contrário do
positivismo na filosofia da física. O importante nesta
distinção é que o positivismo em senso estrito é
associado a posições politicamente conservadoras,
enquanto Galileu e Einstein não só foram realistas, mas
progressistas, no sentido de que se identificaram com
correntes que lutaram por mudanças que apontavam
para um mundo melhor para um maior número de
pessoas. Acrescento Boltzmann sob certo aspecto.

A esta altura cabe um glossário de termos, para defini-


los da maneira que vou usá-los. Faço-o de modo
simplificado, fugindo do rigor da filosofia da ciência, a
partir das oposições:

– entre materialismo (desde os atomistas pré-socráticos


até os teóricos marxistas) e idealismo (Platão, Hegel);
– entre indutivismo (Aristóteles) ou empirismo (Bacon,
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
Locke, Berkeley, Hume) e racionalismo (Descartes,
Leibniz, Kant);

– entre realismo (Galileu, Einstein) e instrumentalismo


(implícito no sistema Ptolomaico e no prefácio de
Osianderpara Copérnico) ou positivismo (explícito no
próprio positivismo do século XIX e no neopositivismo
do século XX);

– entre determinismo (Newton, tradicionalmente


associado à capacidade de fazer previsões) e
probabilismo (qualitativo, na filosofia clássica, e
matemático, nas mecânicas estatística e quântica
contemporâneas);

– entre reducionismo (explícito em Descartes) e holismo


(presente na física, de certo modo, desde a abordagem
fenomenológica e sistêmica da termodinâmica clássica,
anterior à mecânica estatística, até a teoria da
complexidade atual, inspirada na biologia).

Ao contrário do que possa parecer, este glossário não


esgota o assunto. O realismo, por exemplo, ganhou
outros significados. Na matemática, realismo significa
atribuir aos números e às abstrações matemáticas uma
realidade em si e se  confunde com o idealismo de Platão
na filosofia da ciência. Recentemente, os construtivistas
passaram a identificar como realismo científico a própria
crença do cientista na existência dos objetos de estudo
da ciência. Para uma corrente do construtivismo
contemporâneo não só as ciências naturais mas também
seu objeto, a natureza, são puras construções mentais e
não possuem realidade. Neste aspecto o construtivismo
atual se aproxima do idealismo de Berkeley no Séc.
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
XVIII. Curiosamente o pai do neoliberalismo
econômico, Hayek, chamava de construtivistas os que
acreditavam que a sociedade podia ter algum controle
político racional sobre a economia e o mercado. Na
filosofia da matemática novamente há um outro uso da
palavra construtivismo, designando uma corrente que se
opõe aos intuicionistas na interpretação dos conceitos
matemáticos. Por outro lado, o racionalismo de Kant,
para alguns autores, como os marxistas,nada mais é que
uma forma do idealismo. Há ainda muitos outros
“ismos”: o empiriocriticismo de Mach e o energetismo
de Ostwald, ambos dentro do positivismo; o
convencionalismo de Poincaré e o pragmatismo de
Peirce, ambos variantes do positivismo; o fisicalismo de
Carnap e o operacionalismo de Bridgman como
variantes do neopositivismo; o racionalismo crítico ou o
falseacionismo, atribuídos a Popper, um dissidente do
neopositivismo; o racionalismo dialético de Bachelard,
fora da corrente principal da epistemologia de línguas
inglesa e alemã; o anarquismo metodológico de
Feyerabend. Vou parar por aqui mas há outros.

No fim do milênio, englobando neste rótulo desde o fim


do século XIX ao limiar do século XXI, ocorreram
rupturas de paradigmas em diversas áreas do
conhecimento, a começar da física. O determinismo
newtoniano foi rompido parcialmente pela mecânica
estatística e totalmente pela mecânica quântica. A
mecânica de Newton também foi rompida em outros
aspectos com a teoria eletromagnética e com a teoria da
relatividade, que mudaram a idéia rígida newtoniana de
matéria. Houve outras rupturas neste período: na lógica
matemática com Frege, Russell e Godel; na lingüística
com Wittgenstein e Chomsky; na biologia com a teoria
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
da evolução de Darwin, com o DNA de Crick e Watson
e a biologia molecular. A previsibilidade da mecânica
clássica e dos sistemas dinâmicos foi rompida com a
teoria do caos determinista e, hoje, a teoria da
complexidade dá uma alternativa ao papel do acaso na
teoria da evolução. Finalmente, a insipiente teoria da
mente questiona o dualismo cartesiano entre mente e
matéria.

Concomitante com este acúmulo de rupturas de


paradigmas no campo do conhecimento científico, há
hoje uma crise da visão de mundo dominante na
sociedade, refletindo o fracasso do capitalismo e do
industrialismo, inclusive no socialismo real, em resolver
problemas cruciais da humanidade. Estes se estendem
desde a poluição do meio ambiente, nos níveis local e
global, até a exclusão social da maior parte da população
mundial, passando pela insegurança dos cidadãos,
mesmo nos países ricos, frente à ameaça constante do
desemprego e frente à violência. A isso se somam a
perda da utopia socialista após o colapso soviético, no
fim do século XX, e a insatisfação crescente com o
neoliberalismo e a barbárie da competição sem freios.
Os sinais desta insatisfação e os frutos da violência ficam
cada vez mais claros no início do século XXI, marcado
por episódios trágicos, como aviões cheios de
passageiros arremessados impiedosamente contra o
World Trade Center em Nova Iorque e o violento revide
militar norte americano no Afeganistão e, depois, no
Iraque.

Embora a visão de mundo hoje dominante esteja em


crise, ainda não está claro no que ela está se
transformando. Mesmo incorporando dissidências, ela
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
continua ainda a ser funcional ao capitalismo enquanto
ele domina. Mas sua mudança reflete contradições do
sistema e forças sociais em disputa, buscando um avanço
no sentido da transformação da sociedade. Não há uma
única visão de mundo. Em uma época, podem conviver
várias, mas uma delas é dominante ou hegemônica –
sem diferenciar bem estas duas qualificações por
enquanto – e tem a ver com a ideologia que reflete os
interesses da classe dominante. Tampouco utilizo uma
definição precisa de “visão de mundo”, usando este
conceito em uma lógica nebulosa própria da linguagem
comum. Assim, a visão de mundo do socialismo é
oposta à do capitalismo em muitos aspectos essenciais,
mas ambas podem estar de acordo quanto ao
industrialismo moderno e ao papel da ciência. A visão de
mundo dominante em cada época reflete na
superestrutura da cultura as condições objetivas do
mundo, com sua base material e econômica e sua
ordenação política e social. Assim, ela depende em
primeiro lugar das condições objetivas estruturais,
econômicas e sociais. A ciência fornece paradigmas que
se incorporam na visão de mundo e, ao mesmo tempo,
refletem estas condições objetivas. Uma vez que um
destes paradigmas torna–se hegemônico e serve à
ideologia dominante é generalizado e passa a influir em
diferentes áreas, tal como ocorreu com o determinismo
newtoniano na modernidade, desde o Século XVII aos
nossos dias. Torna-se um paradigma de uso geral,
inclusive fora do campo da ciência em que surgiu.

Portanto, minha última tese é de que, em substituição ao


determinismo newtoniano, está em gestação um novo
paradigma geral na ciência. Poderá tornar–se
hegemônico e ser incorporado em uma nova visão de
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
mundo, dependendo de fatores econômicos, políticos e
sociais, além do avanço da própria ciência. No campo da
ciência está ocorrendo hoje uma aproximação entre a
biologia e a física, o que já está influindo em outras áreas
do conhecimento. Este processo começou pela ruptura
do paradigma newtoniano no âmbito interno da física,
em pleno apogeu da mecânica no século XIX, com a
Revolução da Termodinâmica e do Eletromagnetismo.
Entretanto a ruptura completou-se no âmbito da física
apenas no século XX com a Revolução da Relatividade e
da Mecânica Quântica. Mas o determinismo
“preditivo”da mecânica newtoniana sobreviveu até
agora como paradigma geral para outras áreas do
conhecimento. Seu recuo efetivo na visão de mundo
dominante só está ocorrendo contemporaneamente,
abalando inclusive a teoria econômica que dá
sustentação teórica ao capitalismo neoliberal. Contribui
para isto sua limitação em lidar com algumas questões
atuais em nível global, incluindo a degradação do meio
ambiente natural, afetado pela poluição, e os
desequilíbrios sociais, econômicos e políticos do
capitalismo. Por outro lado, ocorre na ciência a ascensão
da biologia, com a biotecnologia e a engenharia genética.
Sua influência em outras áreas se evidencia nos modelos
computacionais – de redes neurais, algoritmos genéticos,
autômatos celulares, criticalidade auto-organizada. Este
caminho levou à busca de uma teoria da complexidade
inspirada na biologia.

Com a difusão dos computadores, a pesquisa em uma


espécie de matemática experimental permitiu a
simulação da evolução temporal de sistemas dinâmicos,
mesmo quando não se tem uma solução analítica para as
equações que descrevem seus comportamentos. Tal é o
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
caso de sistemas governados por equações diferenciais
não lineares que se revelam muito sensíveis às condições
iniciais, o que ocorre na própria mecânica de Newton,
em problemas não lineares, como percebera Poincaré,
na virada do século XIX para o XX, no problema de três
corpos em interação gravitacional entre si. Chama-se isto
de caos determinista, pois, apesar de o sistema ter seu
futuro teoricamente determinado por uma equação, seu
futuro é imprevisível, pois mínimas variações iniciais
levam a imensas diferenças após certo tempo. Um
sistema pode transitar do regime bem comportado para
o regime do caos. Na fronteira entre a ordem e o caos
surge o que se convencionou chamar de complexidade,
caracterizada pela possibilidade de emergência do novo,
do inusitado. A complexidade é associada ao fenômeno
da vida, inspirando assim um novo paradigma geral para
a visão de mundo, influenciado pela biologia.
Examinarei com espírito crítico a pretensão de eleger o
caos e a complexidade como um novo paradigma geral
substituto do determinismo de base newtoniana.

Há aqui um processo histórico que comporta uma


interpretação dialética. Dou dois argumentos para esta
interpretação. As novas teorias biológicas que disputam
o lugar da física, como paradigma geral, receberam um
importante impulso da biologia molecular fundamentada
na física. Ademais, embora a biologia molecular tenha
ganho importância nas últimas décadas do século XX
com  o DNA, a crescente influência da biologia tem um
marco histórico, no século XIX, na teoria da evolução
originada de Darwin. Mas, a atual teorização da
complexidade coloca em questão o papel do acaso
inerente à teoria da evolução darwiniana.
O Quadro 1 resume os paradigmas e revoluções da física
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
e suas relações com a filosofia.

Quadro 1 – PARADIGMAS E  REVOLUÇÕES DA


FÍSICA E TEORIAS  EPISTEMOLÓGICAS

PARADIGMAS E
TEORIAS CIÊNCIA E
ÉPOCA REVOLUÇÕES NAS 
EPISTEMOLÓGICAS FILOSOFIA
CIÊNCIAS  FÍSICAS

Fetichismo –
Mitos
Período Neolítico Misticismo

8000
AC Pensamento mágico
 
 

Séc.  IV REVOLUÇÃO Materialismo  X   


AC RACIONAL Idealismo

 
Filosofia. Geometria. Método Hipotético –

Astronomia dedutivo A Ciência

faz parte 

Cosmo. Causalidade. (Platão) daFilosofia


Atomismo.
Lógica dos
COSMOS & CONTEXTO A R Esilogismos
VISTA Indutivismo
EDIÇÕ ES ARTIGOS VÍDEOS CONT

(Aristóteles)

Escolástica  / Física

Aristotélica
Tomismo

Idade Astronomia  de
 
Média Ptolomeu/Geocêntrca

Nominalismo
Comentadores de
Aristóteles

  REVOLUÇÃO    

CIENTÍFICA

Séc.    
XVI Astronomia de

Copérnico/ Realismo (Galileu) A Ciência

  Heliocêntrica separa-se

  da  

Séc.   Filosofia

XVII Racionalismo  X
Revolução da Empirismo  

  Mecânica  de Newton
  Determinismo
COSMOS & CONTEXTO A REVISTA  
EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS   CONT

Reducionismo Racionalismo Crítico

(Kant)

Mecanicismo

Materialismo Dialético  
1ª REVOLUÇÃO 

PÓS-NEWTONIANA

   

Eletromagnetismo e
Romantismo-  
Termodinâmica
Filosofia Natural

Séc.  
Campo e Onda
XIX Positivismo
Eletromagnética
 

Convencionalismo
Entropia e  Caos
A Filosofia
molecular
Pragmatismo imita a
Ciência
Mecânica estatística
 

Séc. XX 2ª  REVOLUÇÃO Neopositivismo


PÓS-NEWTONIANA  
  Relatividade
COSMOS & CONTEXTO A R E Ve 
ISTA Falseacionismo
EDIÇÕES ARTIGOS  
VÍDEOS CONT

Mecânica Quântica

  Filosofia Analítica  

Unificação Tempo e

  Espaço    

  Massa e energia Racionalismo  

Dialético

  Incerteza  
 

     

Paradigmas e

  OUTRAS Revoluções  
RUPTURAS DE

PARADIGMAS: Programas
  A Filosofia
Heurísticos critica a
Lógica Matemática Ciência
 
/Teorema de Godel Anarquismo
Metodológico  
 
Lingüística /

Revolução Cognitiva  
 

Mecânica / Caos – Pós-positivismo


 
imprevisibilidade

Neopragmatismo
Teoria da
COSMOS & CONTEXTO A REvolução/
EVISTA Construtivismo
EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT

Complexidade Social

Teoria da Mente/  

Crítica ao dualismo

Cartesiano

As ciências físicas nas primeiras décadas do século XX


mantiveram sua hegemonia e influência com a
Revolução da Teoria da Relatividade e da Mecânica
Quântica, rompendo definitivamente o domínio do
paradigma newtoniano. A mecânica quântica confronta-
se com o determinismo, ao admitir a incerteza no
movimento de uma partícula – como um elétron no
átomo – e não apenas, como fazia a mecânica estatística
no século XIX, em um conjunto com uma multidão de
moléculas em um gás.  O impacto desta nova física na
filosofia se refletiu na superação do velho positivismo
antiatomista do século XIX pelo neopositivismo nas
primeiras décadas do século XX. Deste se originou a
filosofia analítica, dominando a epistemologia de línguas
inglesa e alemã como filosofia especializada da ciência.

O neopositivismo foi encarnado pelo Círculo de Viena,


ao qual pertenceu  Wittgenstein, célebre pela filosofia da
linguagem. Como precursor está Russell, filósofo, lógico
e libertário defensor dos direitos humanos. Entre os
críticos do neopositivismo destaca-se Popper – um dos
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
pais do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, fundador na
epistemologia do falseacionsmo, doutrina cujo nome
vem do seu critério de demarcação das teorias
científicas. De acordo com esse critério, para ser
científica uma teoria tem de se expor à refutação por
confronto de suas previsões com os fatos reais. O
falseacionismo, por sua vez, foi objeto da crítica de
Kuhn, ao teorizar os paradigmas da ciência e as
revoluções científicas como fatos sociais, envolvendo
disputas de poder entre grupos de cientistas, sujeitos a
injunções políticas e não só epistemológicas. Lakatos
conciliou o que definiu como núcleos duros das teorias
científicas, submetidos aos paradigmas, com cinturões
protetores sujeitos à refutação pelos experimentos.
Feyerabend  radicalizou  com seu anarquismo negando
que haja um método nas ciências. São, entretanto, todos
eles herdeiros do neopositivismo que criticam.

[1] Baseado em Pinguelli Rosa, Luiz; Tecnociências e


Humanidades. Paz e Terra, 2005

[2] Editora Rocco, Rio, 1996

[3] Devo esta ideia ao antropólogo Gilberto Velho do


Museu Nacionalda UFRJ, em uma conversa informal;
Leonardo Boffi, por sua vez, publicou livro recente com
o título  “Ethos do Mundo”

[4] O método julgado mais adequado neste caso se


aproxima do método hipotético dedutivo empregado
por Platão                                 e das conjecturas do
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT
falseacionismo de Popper

[5]Esta palavra vem do grego,episteme (conhecimento)


+ logos (teoria, doutrina), do mesmo modo que 
ontologia vem de onto (ente) + logos e significa o
estudo do ente ou do que existe, como parte da
metafísica – o estudo do ser, especialmente no que está
além (meta)da  física, entendida no sentido amplo dado
por Aristóteles

[6]Internalismo e externalismo ganharam outro


significado, relacionado ao naturalismo na denominada
teoria da justificação. No internalismo as condições para
a justificação devem estar transparentes e explícitas; no
externalismo

é a relação entre a crença e os fatos que justifica a


crença, ainda que dependa de fatores aos quais não se
tenha acesso [Arantes e Bensuan, em Simon (2003)]

[7]Sobre questões da física refiro: Schenberg (1984),


Leite Lopes (1987), Nussenzveig, Lobo Carneiro e
Pinguelli Rosa (1988), Novello (1988) e Lobo  Carneiro
(1989); Bassalo, 1998; Videira e Salinas (2001)

a d J v

Arquivado em: A Miséria da Ciência sem Filosofia,


Cosmos e Contexto 34
Sobre Luiz Pinguelli Rosa —
COSMOS & CONTEXTO A R E V I S T A EDIÇÕES ARTIGOS VÍDEOS CONT

Luiz Pinguelli Rosa é professor da COPPE e HCTE,


ambos da UFRJ.

COSMOS & CONTATO — POSTS RECENTES —


CONTEXTO —
CBPF 6 Lições para a filosofia de
Revista eletrônica de cosmologia Rua Dr. Xavier Sigaud, 150 – Urca Nietzsche – parte 6
e cultura. Rio de Janeiro-RJ Escrita Infinita (Ensaio poético)
21 2141 7215 Cantos Cósmicos – Ensaio
Diretor e Editor-chefe
contato@cosmosecontexto.org.br Palavra-Imagem com Mario
Mario Novello
Novello e fotos da Nasa
Comitê executivo
Philip K. Dick: para além do
Mario Novello, Nelson Job e POLÍTICA DE
PRIVACIDADE — Império
Flavia Bruno
Um delírio de aniquilação
Edição de web, programação e design
A Cosmos & Contexto jamais mascarado de salvação
Flavia Schaller
divulgará seus dados sem sua
expressa autorização.
ISSN: 2358-9809

Copyright © 2021 · Cosmos & Contexto

Você também pode gostar