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Apostila Sinóticos |1

Quem é Jesus Cristo pra Mateus?

Por ter no evangelho e Mateus esta perspectiva de Mestre, a figura de Jesus é muito
menos próxima que nos outros dois sinóticos. A linguagem de Mateus é pouco colorida, e as
narrações de Jesus têm pouca vivacidade na maior parte dos seus encontros. Ao passo que
Marcos e Lucas privilegiam as obras, milagres e diálogos de Jesus, Mateus privilegia os
discursos como meio por excelência para o anúncio do Reino do Céu.

 Jesus, filho de Davi – a genealogia de Jesus – Mt 1, 1-17:


1
Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão:
2
Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Judá e seus irmãos,
3
Judá gerou Farés e Zara, de Tamar. Farés gerou Esrom; Esrom gerou Aram;
4
Aram gerou Aminadab; Aminadab gerou Naasson; Naasson gerou Salmon;
5
Salmon gerou Booz, de Raab. Booz gerou Obed, de Rute. Obed gerou Jessé.
6
Jessé gerou o rei Davi. Davi gerou Salomão, da mulher de Urias.
7
Salomão gerou Roboão; Roboão gerou Abias; Abias gerou Asa;
8
Asa gerou Josafá; Josafá gerou Jorão; Jorão gerou Ozias;
9
Ozias gerou Jotão; Jotão gerou Acaz; Acaz gerou Ezequias;
10
Ezequias gerou Manassés; Manasses gerou Amon; Amon gerou Josias.
11
Josias gerou Jeconias e seus irmãos, no tempo do exílio na Babilônia.
12
Depois do exílio na Babilônia, Jeconias gerou Salatiel; Salatiel gerou Zorobabel;
13
Zorobabel gerou Abiud; Abiud gerou Eliaquim; Eliaquim gerou Azor;
14
Azor gerou Sadoc; Sadoc gerou Aquim; Aquim gerou Eliud;
15
Eliud gerou Eleazar; Eleazar gerou Matã; Matã gerou Jacó.
16
Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Cristo.
17
No total, pois, as gerações desde Abraão até Davi são quatorze; de Davi até o exílio na
Babilônia, quatorze; e do exílio na Babilônia até o Cristo, quatorze.

O Evangelho se abre com um majestoso portal: a árvore genealógica de Jesus. À


primeira vista, parece um elenco monótono e até mesmo árido, de nomes, uma espécie de
nota de um arquivista. Seu caráter incompleto e as várias inexatidões parecem até
comprometer a objetividade. O que acontece, porém, é que a genealogia mostra apenas os
critérios de composição e as intenções do autor, que são de natureza histórico-teológica e não
histórico-anedótica (no sentido literal deste último termo).
A genealogia tem por primeiro objetivo a finalidade de informar algo sobre os
antepassados do Messias. Não obstante suas excepcionais prerrogativas, ele se insere no
contexto de uma família como todas as demais famílias humanas: tem sua árvore
genealógica, tem parentes entre os homens. É um dos nossos, sujeito às mesmas condições,
às mesmas fraquezas e limitações, exceto o pecado.
Esta preocupação não esgota as intenções do evangelista. Jesus é o filho de Maria,
mas é também um descendente de Davi. A lista dos nomes é o documento, quer dizer, a
prova jurídica de sua pertença à primeira família real de Israel. Os muitos nomes que se
enfileiram são como anéis que unem o filho de Isaí (2Sm 7, 12-18) ao filho de José, isto é, Davi
ao Messias Jesus:
12
Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, então suscitarei
um descendente para te suceder, saindo de tuas entranhas, e consolidarei seu
reinado. 13 Ele construirá uma casa para o meu nome, e eu firmarei para sempre o
seu trono real. 14 Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. Se proceder
mal, eu o castigarei com a vara dos homens, com golpes de seres humanos. 15 Mas
não retirarei dele a minha graça, como a retirei de Saul, que expulsei da tua
presença. 16 Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre diante de mim; teu
trono será firme para sempre”. 17 Natã comunicou a Davi fielmente todas essas
palavras e toda essa visão que teve. 18 Então, o rei Davi foi sentar-se na presença
do Senhor, e disse: “Quem sou eu, Senhor Deus, e o que é minha casa, para que
me tenhas conduzido até aqui?(2Sm 7, 12-18).

Nesta transmissão não em valor nem a “carne nem o sangue”, mas sim a divina
promessa e a sua atuação. Deus não se ligou a nenhuma família, nem mesmo à de Davi, mas
apenas à sua Palavra. Davi é o único modelo da realeza à qual Deus se inspirou nas suas
propostas a Israel.
O futuro Salvador será a idealização da dinastia davídica; será um soberano maior do
que todos os que a História de Israel nos recorda; estenderá seus domínios de uma parte à
outra da terra; será, numa palavra, o monarca universal Conforme Salmo 2:
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1
Por que as nações se revoltam, e os povos conspiram em vão?
2
Os reis da terra se insurgem e os poderosos fazem aliança contra o Senhor e
contra seu Ungido: 3 “Vamos quebrar suas correntes e libertar-nos da sua
opressão!” 4 Aquele que está nos céus se ri deles, zomba deles o Senhor. 5 Então,
cheio de ira, vai dizer-lhes, apavorando-os com seu furor: 6 “Já o estabeleci como
meu rei sobre Sião, meu santo monte!”7 Vou proclamar o decreto do Senhor: Ele
me disse: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei! 8 Pede-me e te darei como herança
as nações, e como tua posse os confins da terra. 9 Tu as governarás com cetro de
ferro, tu as quebrarás como a potes de barro”. 10 Agora, pois, tomai cuidado, ó reis,
aceitai este aviso, governantes da terra: 11 Servi ao Senhor com reverência 12 e
prestai-lhe homenagem com tremor, para que não se irrite e pereçais pelo
caminho, pois sua ira se inflama de repente. Felizes os que nele se abrigam!

Esta visão parte da dinastia davídica, mas a supera de longe: “Filho de Davi” ou
simplesmente “Davi” é um título messiânico, mais do eu dinástico; é um título que fará vibrar
o coração dos israelitas só em ouvir ressoar seu nome.
Com a lista genealógica – documento jurídico incontestável para a mentalidade
semítica – Mateus anuncia que as promessas davídicas, por livre escolha divina e não por um
simples direito hereditário, se realizaram no “filho” de José; por isso, é ele o rei universal que
Israel espera.
A lista genealógica apresenta Jesus não apenas como Filho de Davi, mas também
como “Filho de Abraão (Mt 1,1).
Isto vem assegurar em primeiro lugar a pertença de Cristo à nação eleita; indica
principalmente que não apenas a linha davídica, ou seja, o messianismo monárquico, mas a
mesma história israelita, isto é, o itinerário completo da Salvação, de que Israel é portador,
vai desembocar em Cristo.
O elenco genealógico, com efeito, assume as vicissitudes do povo de Deus; reassume
e divide.
Intencionalmente Mateus apresenta a lista até as origens do povo eleito, mencionando
os chefes de família pré-davídicos, referindo-se também à época do exílio da Babilôlia. Isto
deve servir para chamar a atenção do leitor a respeito de toda a história judaica, mais do que
à mera sequencia dos sucessores de Davi.
Verdadeiro “filho de Abraão”, Jesus é o verdadeiro “filho de Israel”, o verdadeiro
“herdeiro” das promessas davídicas. O que Deus havia concedido à Abraão era tão somente
uma antecipação da realização definitiva prevista mediante Cristo.
“Filho de Abraão”, Jesus é ainda o herdeiro das suas bênçãos. O horizonte messiânico
se alarga e atinge seus últimos confins, visto que à Abraão disse Deus: em ti serão
abençoadas as famílias da terra (Gn 12, 3). No Messias, filho de Abraão, toda a humanidade
está destinada a receber a salvação. Não é por acaso que na lista genealógica, em lugar das
grandes figuras femininas de Israel, como Sara, Rebeca, Raquel, etc., entram representantes
do paganismo como Raab e Rute (Mt 1, 5) ou então mulheres de reputação moral nada
louvável, como Tamar (Mt 1, 3) e a esposa de Urias (Mt 1, 6).
O rio da história se foi, deste modo, alargando até abraçar todos os homens, israelitas
e não israelitas e, justos e pecadores para se restringir a uma única pessoa: Jesus Cristo (Mt 1,
16).

 O cumprimento das escrituras:


Mateus é o evangelista que, mais que os outros, vê no ensinamento e na obra salvífica
de Jesus a realização das expectativas do povo de Israel, fundadas nas Sagradas Escrituras.
Os escritores neotestamentários, especialmente os Atos, a Epístola aos Romanos, a
Epístola aos Hebreus e os escritos joaninos maiores (Evangelho e Apocalipse), todos, um
pouco, apresentam o fato cristão como fruto do hebraísmo: uma planta nova “enxertada” no
velho tronco da antiga revelação (cf. Rm 11, 17: Se alguns ramos foram cortados e tu, oliveira
silvestre, foste enxertada no lugar deles e, assim, te tornaste participante da raiz e da seiva
da oliveira cultivada).
Em Mateus, a preocupação com a continuidade entre a antiga e a nova Aliança, entre
a fase preparatória e a fase da realização do único plano da salvação em Cristo, aparece
como fio condutor de todo o Evangelho. Com efeito, se o cumprimento das Escrituras é
insistentemente ressaltado por toda a catequese apostólica naquilo que diz respeito aos
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acontecimentos dolorosos da paixão, só Mateus vê todo o acontecimento terreno do Salvador


como que marcado pela “necessidade” de cumprimento, mesmo em detalhes aparentemente
insignificantes, do plano preestabelecido por Deus prenunciado no AT.
“Afim de que se cumprisse aquilo que foi dito pelos profetas” é a conhecida fórmula
de Mateus através da qual são relembrados os vaticínios vétero-testamentários, tanto sobre
os acontecimentos da infância, como sobre os da vida pública.

 Novo Moisés:
A comunidade de Mateus parece ter reconhecido instintivamente em Jesus o novo
Moisés, porque isto correspondia ao que ele era e ao que ele vivia, ao passo que as
comunidades de Lucas, por exemplo, vivendo de outro modo, verão nele sobretudo o novo
Elias. Composta em sua maioria de judeus que se tinha tornado cristãos, esta comunidade, ao
nascer, já tem, atrás de si, uma tradição de quinze séculos, a tradição do povo de Deus, da
qual ela se considera a herdeira legítima. É uma comunidade bem estruturada em torno dos
Doze, com regras para a vida em grupo, com uma doutrina e uma oração comum.
A comunidade mateana vê em Jesus o novo Moisés dando ao novo povo a nova lei, no
sermão da montanha (Mt 5-7). É certo, mas também nos cinco grandes discursos que dão
feição própria ao evangelho de Mateus (cinco discursos como cinco são os livros da Lei de
Moisés, o “Pentateuco”). Jesus aparece como o “mestre da justiça” que ensina como viver no
Reino de Deus.
Mas, como diz a Epistola aos hebreus, Moisés era “servo” na casa de Deus, ao passo
que Jesus é “Filho” (cf. Hb 3, 5-6: 5 Moisés foi fiel em toda a sua casa como servidor, para
testemunhar as coisas que iam ser ditas por Deus; 6 Cristo, porém, foi fiel como o filho posto à
frente da sua casa. E sua casa somos nós, desde que conservemos até o fim a confiança e a
altivez da esperança).

 O Senhor da Comunidade:
Assim como Mateus, mais clara e intensamente do que os outros sinóticos, vê atrás
dos discípulos a imagem da comunidade, do mesmo modo ele ultrapassa a imagem do Jesus
histórico para chegar ao Senhor vivo da comunidade. É sempre partindo da experiência do
Senhor que vive na comunidade que Mateus faz a exposição das tradições relativas a Jesus. E
assim, nele, a cristologia desabrocha em eclesiologia porque a reflexão sobre Cristo é
inseparável da reflexão sobre a Igreja.
Mateus segue o uso dos LXX, onde o título de Senhor (κ ι ρ ι ο σ ) é o nome de Deus,
geralmente em situações de alusões ao AT, mas uma nota característica de Mateus é a
frequência com que Jesus é invocado com Senhor por diversos personagens que se dirigem a
ele. É uma expressão no vocativo, sempre em contexto de respeito, de pedido e de fé. Nunca
está na boca dos adversários, nem como designação narrativa em terceira pessoa. Jesus é
interpelado como Senhor pelos discípulos (Mt 26, 22: 22Eles ficaram muito tristes e, um por
um, começaram a perguntar-lhe: “Acaso sou eu, Senhor?); e por Pedro (Mt 14, 28.30: 28 Então
Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água.”
30
Mas, sentindo o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-
me!”).
É praticamente notável que os discípulos nunca se dirigiam a Jesus chamando-o de
“mestre”, palavra que aparece na boca de seus adversários, cf. Mt 22, 34-36:
34
Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então se
reuniram, 35 e um deles, um doutor da Lei, perguntou-lhe, para experimentá-lo:
36
“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”.

Naquele tempo, o título de Senhor podia ser mera designação honorífica de um


mestre ou de uma pessoa relevante. Mas sua aplicação a Jesus em Mateus, indica muito mais:
é uma invocação com poder na Igreja e que um dia se manifestará glorioso como juízo
definitivo.

 Deus conosco:
Para Mateus, em Jesus se realiza a presença de Deus, no meio do seu povo, e,
consequentemente, este novo povo de Deus caracteriza-se por sua relação com Jesus.
Em Mt 18, 20 – 20Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu
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estou ali, no meio deles – Jesus fundamenta o poder da comunidade e a eficácia de sua
oração. Jesus que por seu nascimento humano era “Deus está conosco”, continua agora,
desempenhando esse papel, mas para além de sua vida terrestre. Deve-se entender o texto à
luz do dito rabínico “se dois estão juntos ocupados nas palavras da lei (Shekiná)...Deus habita
entre eles.
Do ponto de vista cristológico, para Mateus, não há distinção entre o tempo de Jesus e
o tempo da Igreja: é uma mesma época da história da salvação caracterizada pela presença
do Senhor no meio dos seus. Mateus não diz que Jesus é Deus, mas fala de tal forma que
insinua sua pertença especial à esfera da divindade.

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