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Por ter no evangelho e Mateus esta perspectiva de Mestre, a figura de Jesus é muito
menos próxima que nos outros dois sinóticos. A linguagem de Mateus é pouco colorida, e as
narrações de Jesus têm pouca vivacidade na maior parte dos seus encontros. Ao passo que
Marcos e Lucas privilegiam as obras, milagres e diálogos de Jesus, Mateus privilegia os
discursos como meio por excelência para o anúncio do Reino do Céu.
Nesta transmissão não em valor nem a “carne nem o sangue”, mas sim a divina
promessa e a sua atuação. Deus não se ligou a nenhuma família, nem mesmo à de Davi, mas
apenas à sua Palavra. Davi é o único modelo da realeza à qual Deus se inspirou nas suas
propostas a Israel.
O futuro Salvador será a idealização da dinastia davídica; será um soberano maior do
que todos os que a História de Israel nos recorda; estenderá seus domínios de uma parte à
outra da terra; será, numa palavra, o monarca universal Conforme Salmo 2:
Apostila Sinóticos |2
1
Por que as nações se revoltam, e os povos conspiram em vão?
2
Os reis da terra se insurgem e os poderosos fazem aliança contra o Senhor e
contra seu Ungido: 3 “Vamos quebrar suas correntes e libertar-nos da sua
opressão!” 4 Aquele que está nos céus se ri deles, zomba deles o Senhor. 5 Então,
cheio de ira, vai dizer-lhes, apavorando-os com seu furor: 6 “Já o estabeleci como
meu rei sobre Sião, meu santo monte!”7 Vou proclamar o decreto do Senhor: Ele
me disse: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei! 8 Pede-me e te darei como herança
as nações, e como tua posse os confins da terra. 9 Tu as governarás com cetro de
ferro, tu as quebrarás como a potes de barro”. 10 Agora, pois, tomai cuidado, ó reis,
aceitai este aviso, governantes da terra: 11 Servi ao Senhor com reverência 12 e
prestai-lhe homenagem com tremor, para que não se irrite e pereçais pelo
caminho, pois sua ira se inflama de repente. Felizes os que nele se abrigam!
Esta visão parte da dinastia davídica, mas a supera de longe: “Filho de Davi” ou
simplesmente “Davi” é um título messiânico, mais do eu dinástico; é um título que fará vibrar
o coração dos israelitas só em ouvir ressoar seu nome.
Com a lista genealógica – documento jurídico incontestável para a mentalidade
semítica – Mateus anuncia que as promessas davídicas, por livre escolha divina e não por um
simples direito hereditário, se realizaram no “filho” de José; por isso, é ele o rei universal que
Israel espera.
A lista genealógica apresenta Jesus não apenas como Filho de Davi, mas também
como “Filho de Abraão (Mt 1,1).
Isto vem assegurar em primeiro lugar a pertença de Cristo à nação eleita; indica
principalmente que não apenas a linha davídica, ou seja, o messianismo monárquico, mas a
mesma história israelita, isto é, o itinerário completo da Salvação, de que Israel é portador,
vai desembocar em Cristo.
O elenco genealógico, com efeito, assume as vicissitudes do povo de Deus; reassume
e divide.
Intencionalmente Mateus apresenta a lista até as origens do povo eleito, mencionando
os chefes de família pré-davídicos, referindo-se também à época do exílio da Babilôlia. Isto
deve servir para chamar a atenção do leitor a respeito de toda a história judaica, mais do que
à mera sequencia dos sucessores de Davi.
Verdadeiro “filho de Abraão”, Jesus é o verdadeiro “filho de Israel”, o verdadeiro
“herdeiro” das promessas davídicas. O que Deus havia concedido à Abraão era tão somente
uma antecipação da realização definitiva prevista mediante Cristo.
“Filho de Abraão”, Jesus é ainda o herdeiro das suas bênçãos. O horizonte messiânico
se alarga e atinge seus últimos confins, visto que à Abraão disse Deus: em ti serão
abençoadas as famílias da terra (Gn 12, 3). No Messias, filho de Abraão, toda a humanidade
está destinada a receber a salvação. Não é por acaso que na lista genealógica, em lugar das
grandes figuras femininas de Israel, como Sara, Rebeca, Raquel, etc., entram representantes
do paganismo como Raab e Rute (Mt 1, 5) ou então mulheres de reputação moral nada
louvável, como Tamar (Mt 1, 3) e a esposa de Urias (Mt 1, 6).
O rio da história se foi, deste modo, alargando até abraçar todos os homens, israelitas
e não israelitas e, justos e pecadores para se restringir a uma única pessoa: Jesus Cristo (Mt 1,
16).
Novo Moisés:
A comunidade de Mateus parece ter reconhecido instintivamente em Jesus o novo
Moisés, porque isto correspondia ao que ele era e ao que ele vivia, ao passo que as
comunidades de Lucas, por exemplo, vivendo de outro modo, verão nele sobretudo o novo
Elias. Composta em sua maioria de judeus que se tinha tornado cristãos, esta comunidade, ao
nascer, já tem, atrás de si, uma tradição de quinze séculos, a tradição do povo de Deus, da
qual ela se considera a herdeira legítima. É uma comunidade bem estruturada em torno dos
Doze, com regras para a vida em grupo, com uma doutrina e uma oração comum.
A comunidade mateana vê em Jesus o novo Moisés dando ao novo povo a nova lei, no
sermão da montanha (Mt 5-7). É certo, mas também nos cinco grandes discursos que dão
feição própria ao evangelho de Mateus (cinco discursos como cinco são os livros da Lei de
Moisés, o “Pentateuco”). Jesus aparece como o “mestre da justiça” que ensina como viver no
Reino de Deus.
Mas, como diz a Epistola aos hebreus, Moisés era “servo” na casa de Deus, ao passo
que Jesus é “Filho” (cf. Hb 3, 5-6: 5 Moisés foi fiel em toda a sua casa como servidor, para
testemunhar as coisas que iam ser ditas por Deus; 6 Cristo, porém, foi fiel como o filho posto à
frente da sua casa. E sua casa somos nós, desde que conservemos até o fim a confiança e a
altivez da esperança).
O Senhor da Comunidade:
Assim como Mateus, mais clara e intensamente do que os outros sinóticos, vê atrás
dos discípulos a imagem da comunidade, do mesmo modo ele ultrapassa a imagem do Jesus
histórico para chegar ao Senhor vivo da comunidade. É sempre partindo da experiência do
Senhor que vive na comunidade que Mateus faz a exposição das tradições relativas a Jesus. E
assim, nele, a cristologia desabrocha em eclesiologia porque a reflexão sobre Cristo é
inseparável da reflexão sobre a Igreja.
Mateus segue o uso dos LXX, onde o título de Senhor (κ ι ρ ι ο σ ) é o nome de Deus,
geralmente em situações de alusões ao AT, mas uma nota característica de Mateus é a
frequência com que Jesus é invocado com Senhor por diversos personagens que se dirigem a
ele. É uma expressão no vocativo, sempre em contexto de respeito, de pedido e de fé. Nunca
está na boca dos adversários, nem como designação narrativa em terceira pessoa. Jesus é
interpelado como Senhor pelos discípulos (Mt 26, 22: 22Eles ficaram muito tristes e, um por
um, começaram a perguntar-lhe: “Acaso sou eu, Senhor?); e por Pedro (Mt 14, 28.30: 28 Então
Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água.”
30
Mas, sentindo o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-
me!”).
É praticamente notável que os discípulos nunca se dirigiam a Jesus chamando-o de
“mestre”, palavra que aparece na boca de seus adversários, cf. Mt 22, 34-36:
34
Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então se
reuniram, 35 e um deles, um doutor da Lei, perguntou-lhe, para experimentá-lo:
36
“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”.
Deus conosco:
Para Mateus, em Jesus se realiza a presença de Deus, no meio do seu povo, e,
consequentemente, este novo povo de Deus caracteriza-se por sua relação com Jesus.
Em Mt 18, 20 – 20Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu
Apostila Sinóticos |4
estou ali, no meio deles – Jesus fundamenta o poder da comunidade e a eficácia de sua
oração. Jesus que por seu nascimento humano era “Deus está conosco”, continua agora,
desempenhando esse papel, mas para além de sua vida terrestre. Deve-se entender o texto à
luz do dito rabínico “se dois estão juntos ocupados nas palavras da lei (Shekiná)...Deus habita
entre eles.
Do ponto de vista cristológico, para Mateus, não há distinção entre o tempo de Jesus e
o tempo da Igreja: é uma mesma época da história da salvação caracterizada pela presença
do Senhor no meio dos seus. Mateus não diz que Jesus é Deus, mas fala de tal forma que
insinua sua pertença especial à esfera da divindade.