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ROUPAS COMO PONTES DE MEMÓRIAS AFETIVAS12

CLOTHING AS BRIDGES OF AFFECTIVE MEMORIES

Jéssica Bitencourt Lopes


Graduanda no curso de Licenciatura em História
Universidade Federal de Pelotas
jessicabitencourt@outlook.com

RESUMO
É comum durante nossas vidas acumularmos peças que remetam pessoas e momentos, peças de roupas que muitas
vezes ultrapassam gerações familiares, que mesmo perdendo sua utilidade inicial, são guardadas com afeição. O
tecido, o cheiro, as formas da roupa nos trazem lembranças e sensações, elas carregam em si as marcas de
desgastes, a história daquele que a usou (STALLYBRASS, 2008). A partir disso, este trabalho pretende trazer uma
reflexão teórica acerca das roupas como portadoras de memórias afetivas. Entendendo que as roupas são dotadas
de significados que oferecem possibilidades na construção da identidade, e seguindo a concepção de Octave
Debary, que entende os objetos como pontes de memórias individuais e coletivas, consideramos que a memória
afetiva das roupas está diretamente ligada à construção da identidade, pois segundo Candau e Le Goff, a memória
é geradora de identidade, chave primordial para a constituição da mesma. Portanto ao escolhermos uma roupa para
guardarmos como fonte de lembranças, estamos, através de nossa subjetividade, constituindo nossa identidade.
Por conseguinte, esse artigo também busca exprimir acerca do futuro desta pesquisa, que pretende analisar através
da metodologia de história oral as relações afetivas de memórias com as peças de roupas entre mulheres.
Palavras-chaves: Roupas, memória, identidade.
ABSTRACT
It is common during our lives for us to accumulate pieces of clothing that remind us of people and moments,
clothes that often surpass generations of families, that even after losing their initial use are kept with affection. The
fabric, the smell, the shapes of the clothing bring us memories and sensations, they carry in them the marks of
wear, the story of the one who wore it (STALLYBRASS, 2008). From this, this work aims to bring a theoretical
reflection about clothing as affective memory holders. Understanding that clothes contain meanings that offer
possibilities in the construction of identity, and following the conception of Octave Debary, that understands
objects as bridges of individual and collective memories, we consider that the clothing’s affective memory is
directly linked to the construction of identity, because according to Canday and Le Goff, memory generates
identity, primordial key to its construction. Therefore, when we choose a piece of clothing to keep as a source of
memories, we are, through our subjectivity, building our identity. Consequently, this article also seeks to express
about the future of this research, that intends to analyze through the methodology of oral history the affective
relations of memories with the pieces of clothing between women.
Palavras-chaves: Clothes; Memory; Identity.

Os sentimentos ligados as roupas estão presentes desde antes do nosso nascimento,


quando existe o planejamento e aflição dos familiares a respeito do que comprar, que cor, que
tamanho, e estes permanecem presentes até após nossa morte, onde cabe aos mais próximos a
escolha da vestimenta com a qual o ente querido será enterrado, o como será recebido pela
eternidade. O corpo se vai, porém, a roupa fica, para uso dos filhos, para venda, ou para
simplesmente ficar lá no cantinho do armário. As roupas estão lá, em todos os momentos de
nossas vidas, tristezas e alegrias, elas fazem parte da nossa história e nelas depositamos
memórias.
Deixamos nas roupas que usamos manchas, cheiros e formas e isso é o que evidencia
nossa existência, elas recebem nossa marca humana (STALLYBRASS, 2008). A memória está

12
Este artigo é parte da pesquisa que está sendo desenvolvida na monografia de conclusão de curso, sob
orientação do Prof. Dr. Aristeu Lopes
na materialidade e imaterialidade que despertam lembranças daquilo que se viveu, dos lugares,
das pessoas que conheceu, a mancha de cigarro na jaqueta, o desgaste da bainha, o desbotado
da calça, o cheiro da pessoa amada ou mesmo o cheiro da roupa nova. Esses sentimentos e
emoções que as roupas podem produzir atestam a ela um caráter de objeto memorialístico que
sobreviveu e sobrevive ao longo do tempo, como um registro evidente e notório da memória
coletiva (FERREIRA, 2015).
Debary (2010) compreende os objetos como atores sociais, pois acompanham nossa
existência, se relacionando com o mundo e adquirem uma própria história, fato que dão a eles
uma carga simbólica, uma representação e valor único. Para o autor os objetos,
consequentemente as roupas, são como pontes de memórias individuais e coletivas.
O ato de guardar determinadas peças, mesmo que não seja para o uso, roupas que já
passaram da sua “validade”, que não servem mais para seu uso inicial, algumas que fora do seu
tempo são ressignificadas, está intrinsecamente vinculado aos sentimentos afetivos de
memórias. Conservamos com a utopia de reviver aquilo que a peça já viveu, em nos aproximar
de quem já a usou, de nos apropriar das histórias e memórias confidenciadas, atreladas a peça.
É bastante comum existir entre as famílias roupas que são herdadas a cada geração,
peças que depositamos afeto e emoções. Temos a ideia que ao preservar estamos resguardando
a história e memória familiar, imortalizando características de nossos antepassados.
Concebemos que ao vestir, ou mesmo ao guardar, estamos incorporando a identidade daquele
que a usou, seus traços, suas maneiras.

Ele estava lá nos puimentos do cotovelo, puimento que no jargão técnico da


costura são chamados de “memórias”. Ele estava lá nas manchas que estavam
na parte inferior da jaqueta; ele estava lá no cheiro das axilas. Acima de tudo,
ele estava lá no cheiro. (STALLYBRASS, 2008, p.10)

Pierre Nora (1993, p.9) expressa que “A memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto”, objetos esses que construímos não só na sua tangibilidade, mas
também o seu sentido. Contudo, ao mesmo tempo que criamos peças, nossa identidade é
esculpida por elas, numa relação envolvida por trocas. Ao fazermos de nossas roupas objetos
de lembranças estamos na nossa subjetividade concebendo nossa identidade, essa que fará
novas escolhas de memórias e construirá novos objetos. Candau em seu livro Memória e
identidade (2012) se dedica a trabalhar a correlação entre os dois conceitos, chegando a
conclusão de que esses estão intrinsecamente vinculados.

Se a memória é “geradora” de identidades, no sentido que participa de sua


construção, essa identidade, por outro lado, molda predisposições que vão
levar os indivíduos a “incorporar” certos aspectos particulares do passado, a
fazer escolhas de memórias. (CANDAU, 2012, p.19)

Nossa memória forma aquilo que somos no presente, ela é consequência daquilo que
guardamos e também daquilo que esquecemos, a forma como a representamos e a damos
sentido constitui aquilo que somos, nossa forma de se relacionar e de perceber o mundo. Nossa
identidade imediata é projetada no passado, na forma como captamos, interpretamos e
relacionamos nossas memórias. E esses fragmentos que juntamos no nosso passado através de
um sistema próprio de representações nos auxiliam nas vivencias presentes e nas defrontações
futuras.
Entendendo que as roupas são partes de um sistema, que não diz respeito apenas ao
vestuário, mas sim a uma ideologia, visão e concepção de mundo que visa a diferenciação e o
novo através de sua intensa mutabilidade e efemeridade e pensando no que diz Calanca: “O
vestuário remete sempre as estruturas e aos conflitos sociais. Isso significa analisar como o
vestir-se se relaciona com os vários componentes sociais: o dado básico não é o vestuário como
tal, mas a relação que se estabelece com ele” (CALANCA, 2011, p.23), percebemos que as
roupas não têm meramente a função de vestir, mas sim uma função de representações sociais,
de como se quer ser visto e do como se vê o outro. Com isso o vestuário é parte essencial para
a construção identitária do indivíduo que através dele tem a liberdade de montar inúmeras
facetas e criar uma multiplicidade dos sujeitos.
Levando em conta que “Uma vez que hoje as memórias e metamemórias são plurais e
compostas, e por vezes fragmentadas, vão originar identidades que também serão múltiplas”
(CANDAU,2012, p.202) podemos pensar que a falta de memórias fortes e estáveis na
contemporaneidade, pedras angulares que guiem nossas estruturas de representações, faz com
que recebemos uma pluralidade de orientações e conceitos, fato possívelde se relacionar ao
sistema de moda atual com suas demasiadas transformações e referências, um sistema
fragmentado para identidades fragmentadas.
Conforme aponta Svendsen: “As roupas são uma parte vital da construção social do eu.”
(SVENDSEN, 2010, p.20), ou seja, elas dizem sobre nós, nela deixamos registrado nossos
gostos, estilos de vida e o grupo social ao qual pertencemos, porém também através dela
podemos forjar quem somos, forjando modos de vida, classe social e cultura. O vestuário torna
possível criarmos ilusões de pertencimento, entretanto isso não deve ser ignorado tendo em
vista que aquilo que desejamos, aquilo que buscamos demonstrar é essencial na construção
daquilo que somos.
...o indivíduo se coloca no mundo por meio do seu corpo vestido. Os trajes e
acessórios que o cobrem são escolhas ou imposições que se constituem em
discursos que formam seu visual. Desta forma, a Moda13 forja o sujeito por
intermédio da construção de uma marca identitária que o relaciona com todos
aqueles que o cercam. (DEBROM, 2016, p. 30)

A moda frequentemente busca inspirações em peças do passado, seguidamente


percebemos modelos de outras épocas voltando como tendência. O produto pode parecer com
aqueles usados pelos nossos pais e avós, porém os sentidos de seu uso são diferentes, mesmo
aquelas peças que realmente pertenceram a outra geração, a outro tempo, aquelas tiradas dos
guarda-roupas dos nossos familiares ou compradas em brechós, são usadas a partir de novos
conceitos e ideias, a mensagem transmitida já não é mais a mesma. As características “daquele
tempo”, a memória e a identidade daqueles que usaram a peça, são assimilados através da nossa
própria estrutura de representações, da cultura deste tempo, do presente, e isso gera uma nova
peça, um novo retalho de nossa identidade, que é produzida no presente por meio de lembranças
do passado, o que faz com que ela esteja em continua evolução.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas; vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. (NORA, 1993, p.9)

Na idade moderna a moda passou a ser um campo pertencente as mulheres, assim como
a elegância, a etiqueta e assuntos ligados a aparência, cabia principalmente a elas as
preocupações com a beleza, enquanto aos homens cabiam os assuntos políticos e econômicos,
temas considerados de maior importância. Esses interesses visto como frívolos por aquela
sociedade eram ideais para ocupar a mulher exemplar, sublime, frágil e fútil, que através da sua
beleza e vestimenta mostrava o poder do homem. Essa banalidade com qual a moda é associada
se deve também a futilidade e irrelevância com a qual as mulheres e os assuntos ligados a elas
ainda são percebidos, como corolário disso nota-se que o campo da moda é ainda pouco visitado
pelos cientistas sociais e as pesquisas realizadas vistas de certa forma como insignificantes para
o meio acadêmico.
Mesmo que esses interesses atribuídos as mulheres não sejam prazerosos a todas, visto
por algumas como enfadonhos, eles são depositários, dispositivos de lembranças, que auxiliam
na elaboração de nossa identidade. Michelle Perrot em seu artigo Práticas da Memória

13
O termo “Moda” utilizado pelo autor é inspirado nas ideias de Roland Barthes, que distingue o termo em dois
seguimentos, moda com “m” minúsculo que se refere ao vestuário como mecanismo e Moda com “M” maiúsculo
referente a uma ideologia e visão de mundo também aplicada ao vestuário. Para esse trabalho foi escolhido não
fazer distinção na escrita para facilitar a compreensão do leitor, visto que muitas vezes o conceito de Moda e moda
se confundem.
Feminina trabalha a ideia de que a condenação da escrita as mulheres, fazia com que essas
confidenciassem suas memórias nas coisas, nos objetos do cotidiano e nas roupas.

Uma mulher se inscreve as circunstâncias de sua vida nos vestidos que ela usa,
seus amores na cor de um echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um
lenço são para ela relíquias das quais ela sabe o preço. A monotonia dos anos
se diferencia pela toalete que fixa também a representação dos acontecimentos
que fazem bater o coração.... Naquele dia eu usava... ela diria. A memória das
mulheres é uma memória trajada. (PERROT, 1989, p.14)

Estudando a história da Moda, notamos que a forma com a qual nos relacionamos com
o vestuário se modifica de acordo com o tempo, cultura e espaço. O sistema tem se tornado
cada vez mais correlacionado, alterável e complexo, e isso consequentemente faz com que
nossa forma de entender e interagir com ele se modifique. São essas relações estabelecidas com
as roupas que trazem a elas importância, que faz com que sejam repositórios de memórias
afetivas, tão presentes no nosso cotidiano.

Pensando nisso, como forma de dar continuidade na presente pesquisa pretende-se


investigar e analisar através da metodologia de história oral, quais as memórias são suscitadas
quando falamos em roupas e como se dá essa relação afetiva com elas para mulheres de duas
gerações distintas, nascidas nas décadas de 1960 e 1990 que viveram/vivem suas vidas na
cidade de Pelotas/RS. Tenciona-se buscar depoentes que possuam relação familiar, onde a da
geração de 1960 tenha parentesco com uma da geração de 1990, porém não centralizando em
uma família específica. A partir disso planeja-se também analisar a relação de memória afetiva
desenvolvida através de peças herdadas, o como ela é lembrada, percebida e usada por cada
geração. Também almeja-se que as entrevistas possam ser realizadas na casa da própria
depoente, afim de que essa possa apresentar possíveis peças ou fotografias que possam
despertar memórias e sentimentos de afeição.
No século XIX a cidade de Pelotas foi um importante polo econômico nacional, formado
por uma elite charqueadora que viajava frequentemente a Europa e de lá trazia juntamente dos
costumes e cultura, os modos e as modas europeias.14 A elite pelotense trazia da Europa,
principalmente de Paris, as últimas novidades das grandes maisons15 que aqui eram copiadas
pelas classes menos abastadas. A valorização pela cultura da moda permaneceu durantes anos

14
Sobre Pelotas no século XIX ver: OSÓRIO, Mário. Opulência e Cultural na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul. Pelotas: Editora Ufpel. 1993.
15
Maison é um termo francês traduzido por casa ou mansão. Foi usado pela primeira vez pelo costureiro Charles
Frederick Worth, considerado pai da Alto Costura, para se referir a sua primeira casa de costura, onde recebia
clientes da alta sociedade para criar peças refinadas. O termo ainda hoje é usado para designar marcas de alto
padrão como Chanel, Dior e Versace.
pela cidade, que durante o século XX possuía uma diversidade de ateliers que se espelhavam
naquilo que a Alta Costura16 e o cinema mostrava (AMARO,2017) Hoje Pelotas conta com
algumas Boutiques e Ateliers de produção local, além de várias lojas pertencentes a grandes
redes nacionais, que atendem não apenas aos pelotenses, mas também moradores de cidades
vizinhas. A cidade possui atualmente dois cursos superiores de Tecnologia em Design de Moda
sendo um oferecido pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e o outro oferecido pelo
Instituto Federal Sul-rio-grandense, campus CAVG, esse último que também mantem o curso
Técnico em Vestuário. Anualmente é realizado o Moda Pelotas, evento que visa divulgar as
últimas coleções de algumas marcas nacionais e locais.
O centro da cidade é conhecido pelo seu calçadão17 movimentado principalmente pelo
comércio de moda, o qual é feito por árabes, africanos, europeus, asiáticos e brasileiros, fazendo
de que esse disponha de uma gama de referências e preços. Sempre existiu uma moda em voga,
que é dificilmente acessada pelas classes populares, porém os avanços da indústria de Moda e
tendências têm proporcionado maior acesso dessa as classes populares, novos focos de criação,
novas referências e liberdade pois “Já não há mais uma moda, há modas” (LIPOVETSKY,2009,
p.144).
A forma de acesso a roupa é de extrema importância para se pensar as relações de
memória que se estabelece com a peça. Tanto as roupas feitas em casa, pelos familiares, ou
humildes costureiras, com tecidos pouco refinados, como também aquelas compradas em
grandes casas da Alta Costura parisiense, são objetos de memória. Para as futuras entrevistas
tem-se a intenção de relacionar os depoimentos com a história da moda mundial e nacional,
percebendo as diferenças dessas em relações a moda pelotense, além da correlação com a
história da indústria de moda e o contexto sociocultural da época, buscando através disso
explicar as possíveis diferenças entre as relações estabelecidas através do vestuário.
A construção da identidade do sujeito está intimamente ligada a geração que ele vive,
ao contexto político, econômico, social e cultural onde ele cresce. Os estudos geracionais
buscam entender a forma como as diferentes gerações percebem o mundo, o modo como cada
uma delas se comporta, se relaciona socialmente e entende a si próprio. Não existe um padrão
entre os estudiosos sobre as fronteiras entre cada geração, para avançar essa pesquisa pretende-
se trabalhar com a geração X e Z, entendendo os limites da primeira entre os anos 1960 a 1980

16
O termo Alta Costura é empregado a algumas casas parisienses que se encaixam dentro de um rígido regulamento
estabelecido pelo Sindicato da Alta costura. A denominação tem a ver com a técnica de produzir a roupa, que é
feita com exclusividade e de forma artesanal.
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Rua central, com calçamento, voltada para a circulação de pedestres, sem transito de carros e arborizada. Nela
se encontra estabelecimentos dos mais diferentes seguimentos.
e a segunda dos anos 1990 a 2010. Mesmo buscando depoentes nascidas exclusivamente na
primeira década de cada geração, para essa pesquisa é necessário que não centralizemos na
década de nascimento, mas sim na geração de maneira geral.
Por intermédio da pesquisa de doutorado realizada pela historiadora Maria Claudia
Bonadio, O fio sintético é um show! Moda, política e publicidade (Rhodia S.A., 1958-1970), a
qual se transformou no livro ilustrado Moda e Publicidade no Brasil nos anos de 1960,
publicado em 2014, conferimos que na década de 1960 difundiu-se no Brasil através do Grupo
Rhodia o uso do fio sintético, o rayon, o nylon, o tergal, fios produzidos pelo homem que através
de desenvolvimentos técnicos e publicidade foi aceito pelos consumidores. Juntamente a isso,
por meio de pesquisas realizadas pela também historiadora Mara Rubia Sant’Anna-Muller, a
década de 1960 na Europa marca o estabelecimento do prêt-à-porter18, que buscava produzir
roupas em alta escala, com tamanhos padronizados e de qualidade, inspiradas nas últimas
tendências, esquema esse que com algum atraso foi difundido também no Brasil.
As classes com menos recursos consomem a pronta entrega desde o século XIX, porém
essa era vista de forma pejorativa. A desigualdade no vestir ainda existe, porém ela tem sido
minimizada nas últimas décadas, a utilização e desenvolvimento da fibra sintética e do prêt-a-
porter, trouxe roupas de qualidades com preços mais acessíveis, oferecendo um maior número
de possibilidades de escolhas ao comprador.
A geração Z, sempre conectada, recebe uma série de influências, criando uma moda
multifacetada e plural, o conceito vem das grandes marcas e também das ruas, possibilitando
uma mistura de estilos que convivem harmoniosamente. Aquilo produzido artesanalmente, está
tão na moda quanto aquilo comprado nas grandes lojas, a criatividade, a sustentabilidade e o
reuso tornam-se tendência. Os preconceitos e as barreiras de gênero foram e estão
desaparecendo. Enquanto a geração X buscava modelos nas revistas e no cinema, a geração Z
produz seus próprios modelos, difundidos pela internet principalmente através dos youtubers19,
inspirando assim a indústria. Devido a velocidade, brevidade e mistura de estilos, se fala na
crise do sistema de moda. Porém, esse não está morrendo, está se ressignificando e ganhando

18
Durante a II Segunda Guerra Mundial houve enfraquecimento das grandes casas parisienses. Enquanto isso os
EUA investiam na qualidade do Ready to wear, que era a produção industrial de roupas a pronta entrega. Com o
fim da guerra, mesmo com a alta costura tentando retomar seu lugar, ela estava enfraquecida devido a diversos
fatores que incluem um novo perfil do jovem, que exigia a modernização e novos padrões de elegância. Essa nova
demanda da elite acaba por restringir ainda mais a clientela da alta costura, o que com muita resistência leva os
costureiros franceses a aderir a moda a pronta entrega. (SANT’ANNA-MULLER, 2011).
19
Indivíduos, principalmente jovens, que divulgam suas opiniões e estilo de vida através da plataforma de vídeos
YouTube.
novos horizontes, novos meios e formas, o sistema está se adaptando as novas demandas e ao
novo contexto social, assim como já se adaptou inúmeras vezes ao longo da sua história.
A moda transforma a sociedade e a sociedade altera a moda, as duas caminham
conjuntamente, assim como nossas memórias e nossa identidade. As duas gerações
presenciaram e presenciam mudanças notáveis no sistema, mudanças ocasionadas pelos
contextos de cada tempo, seja ele o desenvolvimento da indústria ou a multiplicação de
referências, essas provocarão mudanças na forma de nos relacionarmos socialmente e na forma
de nos relacionarmos com nossas roupas.
Por meio da revisão bibliográfica e também de percepção empírica, notamos a
relevância que as peças do vestuário possuem na constituição de nossas lembranças afetivas, a
capacidade que essas têm em despertar em nós elos de afeto com o outro, de gerar empatia e
nos construir enquanto indivíduos.
Esse artigo surgiu como forma de organizar e divulgar essa pesquisa de caráter inicial,
que até o momento concentrou-se nos estudos teóricos com finalidade de perceber as
possibilidades dentro da temática. No decorrer deste percebemos numerosas oportunidades de
se trabalhar com moda, história, memória e identidade, a qual nos abre uma série de binômios
possíveis de serem trabalhados e que ainda são pouco estudados pelas ciências humanas. O
próximo passo será concentrado na busca de fontes, empenhando-se na procura de depoentes e
também nos estudos sobre a metodologia de história oral, a qual trará melhor embasamento
para o planejamento e realização das mesmas. O objeto de pesquisa ainda é abrangente, porém
espera-se que através dos constantes estudos teórico-metodológicos e trabalho com as fontes,
ele se recorte de forma mais precisa, contornando focos e ideias.

Referências
BONADIO, Maria Claudia. Moda e publicidade no Brasil nos anos 1960. São Paulo: Versos,
2014.
CALANCA, Daniela. História Social da Moda. São Paulo: Editora Senac, 2011.
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2012.
DEBARY, Octave. Segunda mão e segunda vida: Objetos, lembranças e fotografias. Revista
Memória em Rede. Pelotas, v.2, n.3. 2010. Disponível em:
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria/article/viewFile/9547/6381
DEBROM, Paulo. A moda como objeto do pensamento. Veredas da História. v.9, n.1, 2016,
p. 23-47. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/morpheus/article/view/6010
FERREIRA, Diego Jorge Lobato. A moda pelo viés da memória: das passarelas para o museu.
Revista Moda documenta: Museu, memória e designer. n.1, p.1-14. 2015. Disponível em:
http://www.modadocumenta.com.br/anais/anais/5-Moda-Documenta-2015/06-Sessao-
Tematica-Moda-e-Museu/Diego-Lobato_ModaDocumenta2015_A-MODA-PELO-VIES-DA-
MEMORIA.pdf
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São
Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 7-28. 1993.
OSÓRIO, Mário. Opulência e Cultural na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Pelotas: Editora UFPEL. 1993.
PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, v. 9 (18),
p. 9-18, 1989.
SANT’ANNA-MULLER, Mara Rubia. Prêt-à-Porter, discussões em torno de seu surgimento e
relação com a Alta costura francesa. Projética Revista Cientifica de Designer. UEL. vol.2.
n°2. 2011.
Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/projetica/article/viewFile/8856/9267.
Acesso em 7 de Março de 2017.
SCHNEID, FrantieskaHuszar. Fotografias de casamento: memórias compartilhadas a
partir de acervos pessoais. Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultura. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2015.
Disponível em: http://wp.ufpel.edu.br/ppgmp/files/2016/11/Frantieska-Huszar.pdf
BARTHES, Roland. O sistema da Moda. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
STALLYBRASS, Petter. O casaco de Marx. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008.
SVENDSEN, Larz. Moda uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Entrevista:
AMARO, Sirley. Costureira. Entrevista temática, a respeito do oficio de costureira e a Moda na
segunda metade do século XX. Concedida a Jéssica Bitencourt Lopes. Realizada na casa da
entrevistada. Pelotas, fevereiro de 2017.

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