Você está na página 1de 13

O ENTRE-LUGAR DAS ARTES CÊNICAS NOS ESPETÁCULOS DE DANÇA: UM OLHAR

EXPRESSIVO SOBRE "COREOGRAFIA DE CORDEL"

Talitha de Castro Mendonça Mesquita (UFMG)


talithamesquita@yahoo.com.br

Orientadora: Prof. Dra. Maria Beatriz Mendonça – Bya Braga (UFMG)


byabraga2004@yahoo.com.br
Mestrado – Linha de Pesquisa: Artes da Cena
Bolsa CAPES Demanda Social (DS) stricto sensu

Resumo: Este é um olhar expressivo sobre o fenômeno do entre-lugar da Dança e do Teatro


nos corpos dos artistas e na cena do espetáculo “Coreografia de Cordel” (2004) da Cia. de
Dança do Palácio das Artes de Belo Horizonte. Foram reconhecidos elementos presentes nas
fronteiras entre estas disciplinas artísticas, com base nos eixos de sustentação do método
Bailarino-Pesquisador-Intérprete, na Fenomenologia da Percepção e no conceito de Silviano
Santiago de que este entre-lugar cênico está situado entre os limites fronteiriços de linguagens
ou disciplinas já estabelecidas culturalmente, mas caracterizado muitas vezes pelo surgimento
de uma nova linguagem pós-disciplinar. Por meio de análises videográficas, observações e
entrevistas semiestruturadas, permitiu-se esboçar um olhar crítico e sensível sobre a
expressividade surgida de um olhar para a corporeidade dos artistas no processo de criação, e
desdobrada nas Presenças cênicas, como características deste entre-lugar da Dança e do
Teatro na pós-modernidade, ilustradas pelo espetáculo estudado.

PALAVRAS-CHAVE: artes cênicas; corporeidade; dança; entre-lugar; pós-disciplinaridade;


teatro

1. Do corpo à cena: Indagações de uma artista-espectadora-pesquisadora sobre


o fenômeno do entre-lugar das artes cênicas Dança e Teatro
A pesquisa surgiu de uma inquietação minha, enquanto artista e também espectadora,
a respeito das relações entre Dança e Teatro nos espetáculos cênicos da pós-
modernidade. Perguntava-me como estas disciplinas, que sempre caminharam lado a
lado – por terem no corpo a ferramenta de criação, de expressão e de demonstração
do produto artístico, por terem o mesmo espaço tradicionalmente característico para
sua exibição, que é o palco – , modificaram estas relações entre si ao longo do tempo,
influenciadas por tendências artísticas, e mudanças de pensamento sobre o corpo e
suas percepções das relações socioculturais.
Assim, dialogando com a ideia de corporeidade de Merleau-Ponty (1994), e com o
referencial teórico de Silviano Santiago em “Uma Literatura nos Trópicos” (1978), o
entre-lugar1, vi no espetáculo “Coreografia de Cordel” (2004)2 da Cia. de Dança do
Palácio das Artes uma possibilidade de olhar para elementos que caracterizem
processos criativos das artes cênicas Dança e Teatro e seus desdobramentos pós-
disciplinares3 cênicos, considerando ainda que este é um espetáculo criado pelo
método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (RODRIGUES, 1997), o BPI, o qual prima pela
identidade corporal do artista-sujeito, isto é, pela valorização de sua corporeidade.
Direcionei o olhar para as relações inter/transdisciplinares4 entre Teatro e Dança na
formação de uma linguagem pós-disciplinar em “Coreografia de Cordel”, o que
significa que meu olhar foi direcionado para a criação de um corpo cênico em sua
expressividade total com base em sua corporeidade e não em um referencial técnico
de disciplina específica. A Pós-disciplinaridade, que caracteriza o conceito de entre-
lugar, e é produto das transgressões dos limites disciplinares já proposta pela
transdisciplinaridade em sua intensa cooperação interdisciplinar. Nela se observa
descentramento, deslocamento e desconstrução (SOUZA, 2007: 5) de suas
delimitações e características particulares em cena.
Em um olhar para o espetáculo como um todo, para a transformação da corporeidade
em corpo cênico, reconheci então características deste entre-lugar pós-disciplinar, as
quais foram consideradas em relação à uma tendência das artes cênicas
contemporâneas e, assim, às mudanças de paradigmas de preparação, criação e
exibição cênicas da Cia. de Dança do Palácio das Artes, a qual acompanhou estas
tendências, mesmo que involuntariamente, nos últimos anos. Busquei abordar estas
características, relacionando-as enquanto fazeres artísticos comuns nas artes da cena
pós-modernas, muito mais do que nomear ou tentar estabelecer uma denominação de
gênero artístico para o espetáculo.

1
Entre-lugar: termo advindo dos Estudos Culturais, o qual se refere à diluição das fronteiras entre
disciplinas pelo descentramento, pela desconstrução, e pelo deslocamento do referencial disciplinar,
com a possível formação de uma linguagem pós-disciplinar, com estas características transgressivas.
2
Ver Teaser e fragmentos nos links: <https://www.youtube.com/watch?v=24TdA76QEv8>. Veiculado
em: 02 fev. 2004. Coreografia de Cordel – Espetáculo da Cia. de Dança Palácio das Artes e
<https://www.youtube.com/watch?v=p-pTJh3bT4Q>. Acesso em: 02 fev. 2014. Coreografia de Cordel.
Cia. de Dança Palácio das Artes. Disponível no canal de Ivan Luz Ledic. Veiculado em: 01 jun. 2011.
3
A pós-disciplinaridade, segundo Souza (2007) dialoga com o pós-estruturalismo quando propõe o
descentramento, a desconstrução e o deslocamento das forças disciplinares, e faz alusão àquilo que, a
partir de uma relação inter/transdisciplinar, ou seja, de cooperação entre disciplinas e/ou transgressão
de limites entre elas, promova a formação de uma ideia que transita nas fronteiras disciplinares.
4
(DOMINGUES, 2012)
Estas características, consideradas mudanças nos paradigmas de criação mais recentes
do Teatro pós-dramático e da Dança Contemporânea nortearam um primeiro dissertar
sobre o que se apresenta no entre-lugar das artes cênicas em “Coreografia de Cordel”,
e a partir delas, das análises videográficas, observações e entrevistas com artistas do
espetáculo foi possível compreender, de certa forma, como estes elementos ali
presentes em um primeiro olhar se desdobram cenicamente. Foram, então,
reconhecidas: cenas em que as relações disciplinares de transgressão de limites entre
Dança e Teatro aconteciam mais nitidamente nas expressividades do corpo como um
todo, o processo de criação autoral e colaborativo que descentra a subjetividade
criativa e desconstrói hierarquias criadoras, a exibição em espaços (não)-convencionais
à arte e ao público que desloca o foco das ações e movimentos e intensifica as relações
de Presença5 no mesmo espaço-tempo.
Acreditei na relevância da observação das relações disciplinares por serem elas
direcionadoras do próprio objetivo da pesquisa, principalmente aquelas relações que
apresentam fronteiras móveis e diluídas e que não sejam sistematizadas, que
descentram o referencial criativo disciplinar, as quais caracterizam este lugar a ser
analisado. A criação autoral colaborativa foi considerada fundamental para
contemplação da diversidade do entre-lugar uma vez que abarca, além das relações
disciplinares mencionadas acima, as relações rizomáticas entre as percepções e
subjetivações criativas dos artistas, na criação de expressividades próprias que se
cruzam com as dos outros, e que também apresentam o deslocamento das
ferramentas e dos recursos de criação, do referencial técnico para o corpo do artista.
Em relação às exibições em espaços (não)convencionais, considerei o abandonar do
palco italiano uma relevante característica que dialoga com a potencialização da
performatividade (FÉRAL, 2008) presente nos trabalhos pós-disciplinares
contemporâneos, pois permite, além da ocupação de novos espaços não antes
ocupados pelas artes, desconstrução e (re)construção das relações tradicionais entre

5
Segundo Bya Braga (2010), a condição de presença requer uma “atenção extremada, (...) uma
percepção de corpo inteiro, não somente com as partes que a tradição metafísica valorizou: olhos e
mente”. Deste modo, o entre-lugar das artes cênicas em “Coreografia de Cordel”, diante dos aspectos
que observamos, relaciona-se com as presenças do artista e do espectador, e com a relação entre elas.
espectador e obra, espectador e artista, artista e espaço e entre espectador e este
espaço6.
Abordando de forma exploratória (A.C. GIL, 1999: 64) – isto é, sem a pretensão de se
estabelecer uma sentença fixa mas sim um olhar expressivo, crítico, sensível das
pesquisadoras em relação ao fenômeno vivido, experienciado e fruído do entre-lugar
das artes cênicas – relacionei estas características aos relatos dos artistas, e aos eixos
de sustentação do BPI (metodologia utilizada na concepção da obra) e percebi alguns
desdobramentos cênicos delas no espetáculo “Coreografia de Cordel”, como pode ser
visto no subtítulo a seguir.

2. Os desdobramentos cênicos das tendências criativas fomentadoras da


Presença em “Coreografia de Cordel”

Para o pensamento pós-moderno, o corpo não é mais apenas como um local por onde
a informação passa, mas lugar de formação, transformação e reformação constante de
percepções acerca das informações, pois todas as vivências se relacionam no espaço
do corpo com as sensações advindas daquelas já ali armazenadas. A percepção é,
assim, a forma de relacionarmos sensorialmente estas informações e vivências do
passado, presente e anseios futuros em um único espaço-tempo. O espaço do corpo é
o resultado dessas relações, e não um depósito de conteúdos compartimentados. A
corporeidade, enquanto conceito, nega o dualismo entre corpo e mente perpetuada
por tantos anos em nossa civilização, sendo o pensamento parte do corpo como um
todo que percebe e organiza suas sensações diante das relações com o mundo. A
corporeidade é a capacidade de se (re)fazer estas relações perceptivas diante das
experiências do sujeito no mundo, pois a experiência do corpo é por si só
transformadora.
O olhar para o artista enquanto sujeito e às suas criações, indissociáveis de suas
vivências corpóreas cotidianas, vai ao encontro do que propõe o BPI, o qual baseia as
investigações e criações nos eixos de sustentação inventário do corpo – calcado
percepção de memórias de um corpo disponível para ser desnudado expressivamente
–, o co-habitar com a fonte – que desloca a atenção para afetos e afetações surgidas
no contato com outras pessoas inspiradoras/fontes de inspiração na pesquisa de

6
Ver “O espectador emancipado”, de Jacques Ranciére (2008).
campo – e a estruturação da personagem, a qual diz respeito a um lapidar do material
levantado no processo criativo pelo aprofundamento em experiências corpóreas e
construções estéticas.

Esta dinâmica de percepções (GIL, 2002:42), desde o processo criativo de cada


personagem, passando pela criação coletiva do espetáculo, até a aproximação do
espectador durante sua exibição é o que fica de mais relevante neste olhar sobre
“Coreografia de Cordel”. Foi este espetáculo um primeiro momento para a companhia,
estatal, questionar suas práticas até então embasadas por referenciais técnicos
clássicos e modernos, bem como os paradigmas artísticos atuais; um momento para
artistas experientes e com vivências técnicas em linguagens diversas experimentarem
a criação de uma dança autoral e perceberem aproximação de sua Arte a determinada
realidade, quanto do espectador e sua realidade própria com a Arte da Cia. de Dança
do Palácio das Artes.

O espetáculo é composto por 22 solos que se unem dramaturgicamente como cordéis 7


pendurados em um barbante, e possui como temática o Vale do Jequitinhonha 8.
Acontece em um galpão onde os artistas se encontram sentados em meio à plateia.
Durante quase todo o tempo ocorrem interações entre personagens e o público, não
apenas pela ressignificação popular e cultural que eles propõem, mas pelas
provocações por meio de frases e gestos direcionados ao espectador. É um dos artistas
que fala com a plateia, ou aquela artista que narra sua própria cena de Dança em
alemão. É outro artista que chama para dançar ou aquela que oferece abraço. É o
microfone aberto a artistas e ao espectador para mandar recados.
O público habita o espaço que o artista habita, não tão somente pela aproximação
física, mas pela proximidade gestual e afetiva. Habita por tratar de um espetáculo que
retrata pessoas, artistas-sujeitos do cotidiano brasileiro, manifestações populares, o

7
A Literatura de cordel ou de folheto é um gênero literário popular principalmente no nordeste do
Brasil, escrito frequentemente na forma rimada, originado em relatos orais e depois impresso
em folhetos. O nome tem origem nos folhetos da literatura portuguesa, os quais eram expostos para
venda pendurados em cordas.
8
Vale do Jequitinhonha: É uma das doze microrregiões de Minas Gerais. Está situado no nordeste do
estado, e na fronteira com a região Nordeste do país; é composta por 51 municípios, e é uma região
amplamente conhecida devido aos seus baixos indicadores sociais. Possui características climáticas
parecidas com as do sertão nordestino e, culturalmente, carrega traços sobreviventes das culturas
indígena e negra, principalmente no que diz respeito ao artesanato e às manifestações folclóricas.
dilema existencial deste povo que sofre suas mazelas, mas festeja. São percepções de
habitantes de uma realidade que se retratam por meio de figuras construídas pela
atualização de corpos virtuais (GIL, 2002: 46) surgidos durante os laboratórios criativos
e as trocas de afetos e afetações com a pesquisa de campo. Os artistas então elaboram
a construção criativa de sua percepção sobre o outro.
Os laboratórios de preparação e criação foram dirigidos pela Prof.ª Graziela Rodrigues
no formato de dojos (RODRIGUES, 1997: 49), como implica a prática do BPI, que são
espaços inicialmente em formato de círculos desenhados na sala de ensaios, mas que
proporcionaram o acesso dos entrelugares do corpo9, formações de percepções que se
confluíram transdisciplinarmente para expressividades que são projetadas além do
espaço corporal, e que no BPI se relacionam ao eixo inventário do corpo. O limite entre
o espaço de dentro e o de fora do corpo é a pele que se rarefaz, e os elementos físicos
e imagéticos trazidos para o espaço do dojo não são meramente ilustrativos, mas são a
reverberação das percepções daquele artista-sujeito. O dojo é então prolongamento
do espaço do corpo.
Neste contexto, Márcia Strazzacappa e Carla Morandi (2006) consideram o corpo
como o entrelugar entre as manifestações de um contexto social, cognitivo e sensível.
É prolongado enquanto espaço no entre-lugar das artes cênicas. O corpo é
disponibilizado em sua forma total de expressividades, buscando neste potencial da
corporeidade como material criativo reforçar a ideia de unidade do pensamento
metafísico, e se projeta enquanto entrelugar no entre-lugar disciplinar da cena.
As relações disciplinares podem ser observadas desde as fronteiras das
micropercepções presentes no corpo do artista enquanto indivíduo e enquanto
profissional, nos processos criativos e nas projeções destas percepções na cena. Elas
caracterizam a noção de teatralidade na contemporaneidade, segundo Féral (2004:
97), uma vez que a autora destaca relevância do papel do corpo e suas relações na
construção da cena sendo maior que a escolha dos referenciais técnicos, textuais e de
elementos cênicos na composição do espetáculo. Não que estes não tenham
importância, mas com a pós-modernidade se tornaram coadjuvantes da
expressividade do corpo.

9
Strazzacappa & Morandi (2006).
A teatralidade na contemporaneidade se faz presente hoje em dia, portanto, muito
mais do que pela atribuição de elementos representacionais à cena, mas por um
processo de realização da cena. O acesso ao inventário do corpo que o BPI propôs é
uma possibilidade de se acessar percepções em relação ao outro e ao espaço, o que
torna possível construir e reconstruir a cada cena esta dinâmica teatral. Permite uma
relação entre linguagens e imagens, e elementos para uma (re)criação constante de
sentidos para um gestual pesquisado pelo artista e observado pelo público, o que
caracteriza um fazer cênico e teatralidade pós-disciplinares. O outro – seja a fonte com
a qual se co-habita, seja o colega de criação, seja o espectador – é agente desta
teatralidade, uma vez que, esteja próximo fisicamente da cena ou não, é autor dela,
provoca e é provocado afetações diante de problematizações que uma familiaridade
com determinada obra permite, seja pelo reconhecimento de si ou do outro na cena,
seja pelo acesso de suas memórias, seja pela organização de suas percepções.
Ainda, o trabalho autoral propicia ao artista um desnudamento de suas percepções em
forma de movimentos que se criam e recriam dentro de um vocabulário e de
possibilidades enxergadas pelo próprio artista, como materialização expressiva dos
seus desejos (FEBVRE, 1995: 40). “Coreografia de Cordel” é tão diverso porque traz a
criação de sujeitos diversos, artistas com formações técnicas diversas – alguns
dedicando a vida toda a uma técnica, outros iniciaram os estudos em dança mais
tarde, outros vivenciaram experiências de outras culturas – e pessoas com históricos
de vida tão diversas – experiências enquanto indivíduos que se misturam com a
experiência enquanto artista quando uma leva à outra e quando a vida é dedicada em
tanto tempo à arte.
O trabalho de dojos, relevante no BPI, vem então unir a preparação corporal e o
processo criativo, com este penetrar nas memórias e percepções e disponibilização
destas para o ato de criar; é simultaneamente um espaço-tempo de investigar
corporalmente e transdisciplinarmente o inventário do corpo e as percepções do co-
habitar com a fonte. É ali que se prepararam os corpos dos artistas para imergirem
ainda mais no campo das percepções com a pesquisa de campo. Imergir na realidade
dos habitantes de Medina-MG, cidade do Vale do Jequitinhonha, vem ser assim mais
um referencial a dialogar com as vivências pessoais dos artistas na disponibilização de
um vocabulário corporal para o processo criativo, de modo que nos entrelugares dos
seus corpos, corpos virtuais possam ser acessados, contaminados por outros corpos e
expressados em um corpo físico atualizado.
Uma cena que exemplifica bem esta construção de uma teatralidade pelos
entrelugares do corpo do artista-sujeito em relação a uma vivência com outros
espaços e sujeitos na pesquisa de campo é a cena de Sônia Pedroso. A artista que,
dentre outras pessoas da região, co-habitou com uma vendedora de panelas, utilizou
delas como prolongamentos do corpo, “próteses” significativas, sonoras, que
representam uma vestimenta daquela realidade como se fosse a própria pele,
dialogando com José Gil (2002: 45) que diz que “corpo é pele tornado espaço”. Criou
“a mulher das panelas” (figura 1, p. 10), não com base em um referencial técnico ou
estético específico, mas aberta à manifestação dos mais diversos referenciais que se
relacionassem a uma expressividade de suas percepções acerca da troca de
afetividades com aquela figura.
Sônia levou à cena um corpo onde se co-habitavam referenciais da Dança, e até não
intencionalmente do Teatro, mas potentemente, acima de tudo, referenciais
cinestésicos de suas memórias relacionadas à pesquisa de campo, despertados e
trabalhados em pesquisas de movimentos e expressividades nos laboratórios de
criação. Isso foi possível porque a criação autoral permite que se construa um corpo
com seus prolongamentos reais ou virtuais para a cena, o que denota a configuração
de sua própria teatralidade, a qual dialogará com a teatralidade do espetáculo com a
costura feita pela dramaturgia.
Sendo um espetáculo de criação colaborativa, isto é, com um “processo que busca a
horizontalidade de relações entre os artistas” (ABREU, 2003: 36) participantes da obra,
há o descentramento da construção da expressividade cênica, o que reflete os
entrelugares de corpos formados e preparados em linguagens diversas, em
interpretações diferentes – embora com fios condutores e temáticas comuns – da
mesma proposta criativa. É como se pequenas dramaturgias surgissem em cada solo,
advindas de experiências artísticas individuais norteadas e/ou costuradas por uma
dramaturgia comum. “Microdramaturgias” que se atravessam e se confluem para a
criação de uma dramaturgia textualizada pelo corpo.
Por não estar vinculado a um texto dramatúrgico e por se basear em uma lógica
criativa de diversos corpos que se entrelaçam não por uma história, mas pelo diálogo
entre suas movimentações (NAVAS, 2001 : 1), entendi que “Coreografia de Cordel”
apresenta esta dramaturgia do movimento apresentada como um articulação entre
dramaturgias corporais particulares, e que, projetada em cena, pode aflorar no
espectador a construção interna de uma dramaturgia pessoal. As cenas coletivas se
criaram por meio de dinâmicas interativas entre os corpos surgidos no processo
criativo e, com a direção coreográfica de Tuca Pinheiro, artista que também participou
do processo, foi possível estruturar as cenas na junção dos personagens estruturados
pelo BPI.
Exemplificando, a cena dos “abraços” (figura 2, p. 10), já ao final do espetáculo, retrata
bem a colaboração na criação da obra. Ela surgiu das relações entre os artistas, já nos
laboratórios dirigidos por Tuca, quando um dos sujeitos, em meio a uma dinâmica de
estímulo do outro pela ação do toque que vinha de partes do corpo ou de objetos,
como chinelos, pedia um abraço a todos que passavam por ele. A interação com os
demais artistas que corresponderam ao pedido do colega trouxe o abraço como
elemento para a construção poética de uma cena coletiva em laboratórios de
improvisação, e traz vários tipos de abraços construídos por sujeitos diversos que se
afetaram por aquele momento, sem perderem a essência dor corpos/personagens
criados em seus solos.
Em momentos como estes, construídos em laboratórios de improvisação e pela
improvisação em cena, potencializa-se, a performatividade do espetáculo, no que diz
respeito ao seu grau de efemeridade cênica, pois as relações com o espaço e com o
outro se conduzem pelas necessidades daquele tempo presente. Entende-se por esta
performatividade a característica das obras de arte que exigem a Presença do artista,
cuja criação tem como suporte essencial o seu próprio corpo e se sabe que, neste
sentido, todo espetáculo é performativo, mas a potencialização desta característica se
dá pela intensidade da experiência corpórea do artista no momento presente da cena.
Estas obras consistem, portanto, em um acontecimento no corpo no tempo presente,
pelo que se lhes atribui igualmente um caráter efêmero e imaterial, o que muitas
vezes aproxima algumas cenas da arte da Performance. A potencialização da
performatividade, da qual tratamos neste texto, diz respeito a esta potencialização da
Presença enquanto elemento cênico essencial, que denota maior imprevisibilidade da
cena que se refaz de acordo com a “atenção extremada do corpo” (BRAGA, 2013: 20)
às relações espaço-temporais do artista que se “apresenta” enquanto autor da cena,
técnica e afetivamente, e não representa um papel.
Josette Féral (2008: 200) atribui a este caráter performativo da cena três ações
relacionadas ao domínio social: “ser/estar, fazer, mostrar o fazer” (FÉRAL, 2008: 200).
Deste modo, o artista não está dissociado corporalmente do indivíduo no processo
criativo e este processo se estende à cena. Qualquer criação é dotada de
subjetividades e de histórias que compõem o artista/sujeito. Qualquer relação em suas
vivências cênicas são também vivências pessoais e criativas, não só por serem,
enquanto experiência, material criativo no futuro, mas por serem oportunidades de
criação de um acontecimento artístico em um espaço-tempo. O processo criativo é
então parte da cena performativa, uma vez que esta está em constante (re)criação, de
acordo com as afetações desencadeadas pelas relações com outros artistas em cena,
com o espaço e com o público. E em “Coreografia de Cordel” estas relações se
intensificam pela proximidade com o público que acontece de forma física e simbólica
– por se tratar de um espetáculo que ocupa um até então não-lugar (AUGÉ, 2005), ou
seja, um lugar que não é por identidade um espaço convencional à arte, e por trazer
como temática uma realidade árida, as dificuldades e os hábitos populares, a
brasilidade e o gestual cotidiano.
Vi isso na figura de Lina Lapertosa, reconhecida artista da companhia na cidade de Belo
Horizonte, que se encontra na mesma arquibancada que o público o espetáculo todo,
“desfiando um vestido” (figura 3, p. 10) de crochê lado a lado dos espectadores. As
relações de observações e as percepções pela proximidade no espaço e pelo gestual,
são tecidas de forma diversa de uma contemplação distante de um personagem que
possua uma linguagem mais referencialmente formal. Tecem-se relações naquele
espaço tempo nem sempre esperadas, seja pela abordagem ou pelo estranhamento a
alguém visto ao lado, na mesma plateia, em situação não imaginada e que traz tantos
significados. Cada espetáculo é um vestido diferente e o desfecho cênico não depende
tanto do treinamento corporal, mas também do acaso material, das abordagens do
público e reações deste às abordagens da artista. O espectador também experimenta
deste co-habitar com outras subjetividades em um espaço que a ele também não era
tão convencional em espetáculos cênicos dramáticos. Ocupa aquele espaço-tempo
também enquanto agente da obra e potencializador da performatividade.
Figuras 1, 2 e 3: Cenas ilustrativas – “Mulher das Panelas”, “Abraço”, “Desfiar o Vestido”

3. Considerações: novas inquietações surgidas de um olhar expressivo

São esses três desdobramentos cênicos elencados acima que, ao olhar para
“Coreografia de Cordel” melhor exemplificam o entre-lugar das artes cênicas nos
espetáculos pós-modernos de um modo geral e que se encontram como projeção do
entrelugar do corpo do artista, enquanto organizadores – mesmo que observadas sob
uma reflexão cênica – do diverso potencial expressivo e criativo deste corpo. E é este
‘entre’ orgânico e psíquico, dissolvido na pós-disciplinaridade da linguagem cênica, que
dialoga com o meio externo constantemente na formação de percepções, as quais se
prolongam nos movimentos, fazendo do espaço interior e exterior do corpo um espaço
único, potencializando o olhar para a corporeidade enquanto meio de criação, e para a
Presença enquanto elemento fundamental destas artes que, de acordo com este
paradigma da pós-modernidade, valoriza o “apresentar-se” do artista.
“Coreografia de Cordel” é o primeiro espetáculo criado para uma companhia estatal
com base no método da professora Dra. Graziela Rodrigues, e por ser também uma
abertura a novos paradigmas de criação e exibição cênica da Cia. de Dança do Palácio
das Artes, tem sua relevância. O referencial de entre-lugar permitiu que aqui fossem
encontrados como esboço de um olhar embasado na expressividade e criticidade, as
questões discutidas na pesquisa, e estimuladoras de novas discussões posteriores, pelo
permear entre BPI a Fenomenologia da Percepção (MERLEAU-PONTY, 1994 apud. GIL,
2002) que se resumem nas seguintes relações de fomentação e formação de
Presenças:
 uma teatralidade pós-dramática que projeta a transgressão de limites nas
relações disciplinares dos entrelugares do inventário do corpo no entre-lugar da cena
como “materialização do que é instintivo” (FEBVRE, 1995: 40) no jogo, em uma
“dinâmica de percepções entre artista e espectador” (FÉRAL, 2004: 97);
 uma dramaturgia pós-moderna, situada no entre-lugar do Teatro e da Dança,
criada por textualidades individuais e subjetivas de cada corpo em movimento (NAVAS,
2001:1) desejosos de se fazerem presentes na estruturação do personagem, e que
pode ser olhada de forma ampliada (ou reduzida) quando se relaciona a outras
dramaturgias pessoais na autoria colaborativa;
 a performatividade (FÉRAL, 2008: 200), característica dos espetáculos cênicos,
que é potencializada pela ocupação de não-lugares (AUGÉ, 2005: 91), isto é, pela
exibição cênica em espaços não reconhecidos tradicionalmente como locais da arte, e
pelo co-habitar com outras subjetividades na proximidade com o espectador, em uma
intensificação das relações no espaço-tempo presente.
Estas relações entre características do espetáculo e seus desdobramentos cênicos no
que diz respeito às relações disciplinares entre Dança e Teatro são as reflexões
realizadas até então, em uma pesquisa que se estende a outros corpos que se
potencializam nas cenas das artes da Presença, ou seja, nas artes que exigem a
presença do artista atento, de corpo inteiro, a um tempo presente intensificado
também pelas relações espaciais.
Presença. Talvez seja a palavra que momentaneamente melhor caracterize o entre-
lugar das artes cênicas em “Coreografia de Cordel”. Presença em expressividade, não
importando o “como”, mas “o que” ela carrega e apresenta.

Referências
ABREU, Luis Alberto de. Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma
experiência de criação. In: Cadernos da ELT, Ano I, Número 0. Santo André, março de
2003. p. 33-41.

AUGÉ, Marc. Não-lugares. Lisboa: 90 Graus Editora, 2005.

BANES, Sally. Democracy's Body. Durham: Duke University, 1993.

BRAGA, Bya (Maria Beatriz Mendonça). Étienne Decroux e a Artesania de Ator:


Caminhadas para a Soberania. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
DOMINGUES, Ivan. Disciplinaridade, multi, inter e transdisciplinaridade: onde estamos?
In: Anais SBDC, 2012. Belo Horizonte: IEAT, UFMG, 2012. Disponível em:
<https://www.ufmg.br/ieat/conteudo-textos/texto_sbdc_ivan_domingues/>. Acesso
em: 20 abr. 2014.

FÉRAL, Josette. Teatro, teoria y prática: más allá de lás fronteras. Buenos Aires:
Galerna, 2004.
_____________. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. São
Paulo: Revista Sala Preta, n. 8, ECA/USP, 2008, p. 197-209.
FEBVRE, Michèle. Danse contemporaine et théâtralité. Paris: Editions Chiron, 1995.
GIL, Antônio Carlos. Delineamento da pesquisa. In: Métodos e Técnicas de Pesquisa
Social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 64-74.

GIL, José. Movimento Total: O Corpo e a Dança. Lisboa: Illuminuras, 2002.


MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes,
1994.

NAVAS, Cássia. Dança: escritura, análise e dramaturgia. São Paulo: ECA/USP, 2001.
Disponível em: http://cassianavas.com.br/wp-
content/uploads/pdf/danca%20escritura.pdf. Acesso em: 31 jan. 2015.
RANCIÉRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Tradução de SMALL, Daniela Alves. O
espectador emancipado. Londres: ArtForum, 2008. Disponível em:
<http://www.questaodecritica.com.br/2008/05/o-espectador-emancipado/>. Acesso
em: maio/2014.

RODRIGUES, Graziela. Bailarino-Pesquisador-Intérprete, processo de formação. Rio de


Janeiro: Funarte, 1997.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SOUZA. Marcos Aurélio Santos. O Entre-Lugar e os Estudos Culturais. Cascavel: Revista
travessias, Unioeste. 2007. Disponível em:
http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_001/cultura/
O%20ENTRE%20LUGAR%20E%20OS%20ESTUDOS%20CULTURAIS.pdf. Acesso em:
maio/2014.

STRAZZACAPPA, Márcia; ALBANO, Ana Angélica; AYOUB, Eliana. Apresentação. Pro-


Campinas: Unicamp, Proposições, v. 21, n. 2, 2010. p. 1-3.

_______________; MORANDI, Carla. Entre a arte e a docência – a formação do artista


da dança. Papirus, 2006.

Você também pode gostar