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Adriana Vidotte

Lorena da Silva Vargas


(Organizadoras)

Natureza e arte
Estudos sobre a iconografia ambiental
Da Idade Média à Contemporaneidade

Editar
Juiz de Fora
2019
Copyright by  Adriana Vidotte e Lorena da Silva Vargas (Organizadoras)
2019

Capa
NeoHub Studio

Revisão
Janaína Efísio

Projeto Gráfico, Editoração e Impressão


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Dados internacionais de catalogação na publicação

V654n Vidotte, Adriana


V297n Vargas, Lorena da Silva

Natureza e Arte - Estudos sobre a iconografia ambiental - Da idade


média à contemporaneidade / Adriana Vidotte e Lorena da Silva Vargas
(Organizadoras), Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2019.

ISBN: 978-85-7851-245-3
126p

CDD B869
CDU 82-1

Todos os direitos reservados à autora


Sumário
Apresentação...................................................................................................5

O bestiário do leão e a sua representação cristológica.......................................7


Douglas de Castro Carneiro
Introdução.................................................................................................7
Fontes literárias e o bestiário do leão..........................................................8
Bibliografia...............................................................................................18

Sub umbra alarum tuarum protege nos.


A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos.......................20
Adriana Vidotte
A simbologia da águia por Hernando de Talavera.....................................26
Considerações finais.................................................................................34
Referências...............................................................................................35

A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais


do século XIV...............................................................................................37
Láisson Menezes Luiz
Introdução...............................................................................................37
Considerações finais.................................................................................48
Referências...............................................................................................49

Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de


Barcelona (séculos XIV e XV)........................................................................50
Lorena da Silva Vargas
Introdução...............................................................................................50
A Catedral de Barcelona e seus vitrais.......................................................52
Natureza física e pictórica.........................................................................53
Considerações finais.................................................................................62
Referências...............................................................................................63
Sumário

Psicopolítica e Imaginário da Natureza no Jardim das Delícias


Terrenas de Hieronymus Bosch.....................................................................64
Pedro Henrique Corrêa Guimarães
1º§..........................................................................................................65
2º§..........................................................................................................65
3ª§..........................................................................................................67
I – O Éden..............................................................................................68
II – As Delícias........................................................................................69
III - O Inferno........................................................................................70
IV- A tríade.............................................................................................71
4ª§..........................................................................................................71
5ª§..........................................................................................................72
Referências..............................................................................................73

O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich:


Indivíduo e Natureza ....................................................................................74
Murilo Gonçalves
Referências...............................................................................................92

Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010).....................................94


Bianca Cristina Barreto Casanova
De Jecimar a Di Souza.............................................................................94
De Di Souza a G. Fogaça.........................................................................97
Simplesmente G. Fogaça........................................................................102
Breve estudo da paisagem em G. Fogaça.................................................106
Referências.............................................................................................122

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Apresentação
A historiografia brasileira, desde não muitos anos, vem ampliando
a atenção aos estudos ambientais, aos debates que perpassam não apenas
o tempo, mas o espaço em seu sentido mais literal e tudo o que o habita.
Sob respaldo da História Ambiental, os modos de interação do homem
com a natureza vêm sendo revelados em seus diversos momentos e
meandros: econômico, político, religioso, cultural, artístico, dentre
outros. As influências naturais nas produções humanas tornam-se, desse
modo, instrumento desta coletânea ao se refletirem na arte de forma física
e imagética, sob representações carregadas de valor estético e simbólico.
Tomemos o medievo por início de análise em seus manuscritos
iluminados, partindo do estudo de Douglas Carneiro acerca do bestiário
do leão, onde serão discutidas as origens e transformações do simbolismo
de tal animal, amplamente representado na cristandade. A associação
da imagem cristológica do leão ao poder político vai ao encontro do
simbolismo cristão da águia – remetendo a São João Evangelista – na vida
da devota Isabel I de Castela e no reinado dos Reis Católicos, abordado
por Adriana Vidotte a partir da presença da ave no breviário da rainha e
no escudo dos reis. Ainda no âmbito da iconografia animal, Láisson Luiz
explora as representações de lutas entre cavaleiros e caracóis – associados
ao perigo das doenças – no decorrer do século XIV a partir de livros
de horas e bestiários, adentrando ainda à presença de tais cenas em
ornamentações religiosas do período.
A natureza desconhecida, que acarretava riscos ao ser humano,
devendo ser desvendada e governada era, por outro lado, a essência de
seu sustento e matéria-prima de sua arte. Lorena Vargas, nesse sentido,
discute em seu capítulo a presença física e pictórica da natureza nos vitrais
da Catedral de Barcelona entre os séculos XIV e XV, onde a luz e as cores
assumem protagonismo em um contexto onde o natural torna-se cada

5
Apresentação

vez mais conhecido e a arte cada vez mais técnica, emotiva e paisagística.
Nessa conjuntura nasceria O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch,
aqui estudada por Pedro Guimarães, cuja crítica perpassa a iconografia
da paisagem e adentra ao psicopolítico das formas, cores e da relação do
humano com o natural na transição à modernidade.
Adentramo-nos ao século XIX por meio do estudo de Murilo
Gonçalves que, sob análise da obra Der Mönch am Meer, de Caspar David
Friedrich, apresenta o conceito de natureza e o cenário paisagístico no
qual o homem se insere no contexto do romantismo alemão. Da paisagem
natural à paisagem da globalização, fechamos a coletânea com o capítulo
de Bianca Casanova, que discute as obras do goiano G. Fogaça e sua
crítica ao estresse das grandes cidades do século XXI, onde o verde, ainda
que se aproximando intelectualmente, afasta-se fisicamente do cotidiano.
No decorrer histórico, o ser humano conhece e domina a natureza
em um processo de encontros e desencontros pautados na cultura, sem
deixar, porém, de participar intrinsecamente dessa complexa rede natural.
Esperamos que as páginas que se seguem possam ampliar os debates acerca
das transformações, influências, usos e saberes da natureza ao longo do
tempo e, por fim, possibilitar uma autocrítica de nossa realidade.
As organizadoras

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O bestiário do leão e a sua
representação cristológica1
Douglas de Castro Carneiro2

Introdução
O estudo da natureza na Idade Média nos coloca em uma
fronteira ambígua, quanto à representação do natural e do
sobrenatural na sociedade medieval (HERNANDEZ, 2015, p.2).
Durante muitos anos, os historiadores não se interessavam por
animais. Suas observações eram definidas como fúteis, anedóticas
ou marginais. Apenas alguns arqueólogos e filólogos tiveram
interesse pelo tema (PASTOREAU, 2006, p.35). As fontes para o
estudo da zoohistória simbólica e medieval são fundamentalmente
as escritas e as iconográficas. Em muitos casos, tais como os gêneros
dos bestiários, essas fontes encontram-se indissoluvelmente unidas,
que por conta das ilustrações que são, parte integral das mesmas, e
por certo, têm inspirado numerosos temas artísticos, e que tratam
com frequência os bestiários presentes entre os historiadores da arte
(MUÑIZ, 1996, p.231).
Dessa forma, entende-se que:

1
Este artigo é resultado da disciplina “Natureza na Arte Medieval” ministrada pela
professora Dra. Adriana Vidotte.
2
Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás na linha de His-
tória, Memória e Imaginário Social, sobre orientação da professora Dra. Luciane
Munhoz de Omena.

7
O bestiário do leão e a sua representação cristológica

O simbolismo animal reflete a mentalidade medieval, para


os animais, assim como também para os homens, mas o mais
interessante desse simbolismo seria sublinhar o aspecto da
associação entre homens e animais, por certo, em boa parte
dominada pelo controle definitivo do homem medieval sobre a
natureza (MUÑIZ, 1996, p.234).

Os bestiários constituíam um dos gêneros informativos sobre


animais que, na versão latina, são luxuosamente confeccionados,
enquanto que, na versão vernácula, são mais modestos. Enquanto os
bestiários latinos atingiram seu auge de produção nos séculos XII e
XIII, as vernáculas que atendiam as demandas populares continuaram
a existir no século XV, passando por transformações na forma e na
apresentação de seu conteúdo (FONSECA, 2009, p.110). Observa-se
que:

No tocante aos animais, ao lado da representação daqueles que eram


realmente conhecidos, as histórias naturais e a proteica zoologia dos
bestiários medievais comportavam descrições de animais exóticos,
fabulosos e fictícios. A pretensa e projetada realidade dessas criaturas
maravilhosas reanimava-se constantemente alimentada, por histórias
e relatos antigos ou mesmo ocorridos durante a Idade Média,
plausivelmente verídicas ou totalmente fantasiosas, de viajantes e
exploradores de longínquas plagas do globo nunca antes visitadas pelos
europeus (FONSECA, 2009, p.111).

Diante das características apresentadas até o momento,


apresentaremos as fontes literárias e as imagens presentes do Bestiário do
Leão descritos por Phillipe de Thaün.

Fontes literárias e o bestiário do leão


As fontes que tratavam sobre o leão são encontradas em muitos
textos religiosos, tais como a Bíblia, que o descreve tanto no Antigo
Testamento quanto no Novo Testamento. No primeiro, ele é retratado

8
Douglas de Castro Carneiro

nos salmos sete, nove, vinte e dois, cinquenta e seis e noventa. Ela
menciona este animal por volta de cento e cinquenta e sete vezes,
dando a ele uma imagem negativa. O Antigo Testamento, geralmente
apresenta uma imagem negativa do leão, em especial nos episódios da
vida de Sansão, Davi e Daniel. O leão triunfante de Sansão simboliza
as forças do mal e da morte (DULIART, 1993, p.429). Todavia,
enfatiza-se:

O leão continua sendo um animal perigoso nos salmos. Este teve uma
grande responsabilidade por que estes foram adotados posteriormente
pela liturgia. O primeiro constitui uma das respostas do domingo
da paixão e o segundo serve como uma característica da quaresma.
O significado positivo do leão iria substituir os aspectos negativos
posteriormente de certos episódios do Antigo Testamento (DULIART,
1993, p.430).

O Novo Testamento apresenta imagens positivas a respeito desse


animal. Em apocalipse 5:15, temos uma visão otimista do animal
consequentemente apresentado como o próprio Deus. Na literatura
animal medieval e antiga, existem referências nas mais diversas literaturas,
passando por Aristóteles, “Plínio o velho”, em seu Historia Naturalis,
e Santo Isidoro. O Fisiólogo escrito por volta dos séculos II e III foi
traduzido para o latim por volta do século IV (GARCIA, 2009, p.133).
Sendo assim:

O fisiólogo, um texto alexandrino do século II-III d.C, depois


traduzido do latim no século IV d.C., constituiu a base dos bestiários
medievais. Estes descrevem as distintas partes do corpo do leão, a
cabeça onde reside sua ferocidade, o pescoço forte e potente em
oposição aos quartos traseiros e delgados e débeis, as patas e as
garras. As características físicas somam ao comportamento natural do
animal, algumas delas descritas na literatura zoológica da antiguidade
(GARCIA, 2009, p.135).

9
O bestiário do leão e a sua representação cristológica

Os bestiários proliferaram até o século XII e XIII na Inglaterra e na


França. Eram livros com textos e ilustrações e descreviam sumariamente
as características dos animais e posteriormente as interpretava vinculando-
as a motivos religiosos e criando uma rede simbólica (TORNERO,
2003, p.30). A literatura didática foi um dos mecanismos empregados
para adesão do ideal cristão. Os autores dos bestiários descreviam as
bestas e usavam uma descrição com uma base alegórica (VALENTINI E
RISTORTO, 2015, p.17). Assim, observam os autores:

Os animais reais ou fantásticos foram considerados instrumentos que


permitiam ilustrar a criação e compreender a própria natureza do
homem. O animal desempenhava um papel exemplar que simbolizava
suas inclinações. O animal oferecia, graças ao texto bíblico, toda uma
gama de símbolos associados aos valores humanos para que os autores
medievais pudessem extrair lições essencialmente morais (VALENTINI
E RISTORTO, 2015, p.21).

A distinção não tem fundamentos em sua efetividade. Para o


moralista, o fundador da relação com o animal não é um critério
ontológico de existência real, mas uma relação especular que pode ser
traçada com diferentes tipos de criaturas (MORAL, 2015, p.88).
A partir desse momento, passo a analisar o Bestiário de Phillip de
Thaün, um poeta anglo-normando, que viveu por volta do século XII,
durante os reinados de Henrique I e Henrique II, e autor do livro: “O
Livro das Criaturas”, um poema didático sobre os corpos celestes e os
cálculos dos calendários. O Bestiário comporta três mil cento e noventa e
quatro versos em trinta e oito capítulos, que tratam do leão, do unicórnio,
da pantera e do dragão, do bode selvagem, da hidra e do crocodilo, do
antílope, das formigas, do centauro, do castor, da hiena, da fuinha, da
ema, da salamandra, da sereia, do elefante, da víbora, do peixe-espada,
da raposa, do burro selvagem, do macaco, da baleia, da perdiz, da águia,
da fênix, do pelicano, da columba, da cacatua, do íbis e da coruja. Na
imagem a seguir, analisaremos acerca dessa representação cristológica:

10
Douglas de Castro Carneiro

Na primeira cena, é possível observar que o leão é representado


como um animal selvagem, que está sempre preparado para a caça.
Isso o auxilia na sua compreensão como animal selvagem e em
seguida faz uma descrição física:

O que em grego significa “leão” significa rei em francês. O leão, de


várias formas, domina muitos animais. Por isso o leão é rei. Escutai
agora as suas propriedades: tem a expressão ardente, o pescoço grosso
com juba, o peito na frente é quadrado, valente e agressivo, os quartos
traseiros delgados, tem um grande rabo e as patas lisas e ágeis próximas
aos pés, os pés grossos e cortados, tem unhas largas e curvadas. Quando
tem fome, enfurecido, trata os animais como a esse do asno que urra
e fala. Escutai com toda a convicção e o significado disso (THAÜN,
2000, p.15).

Thaün, no excerto acima, apresenta uma descrição física do leão


da mesma forma que François de La Bretèque, “a cabeça representa a
ferocidade do leão assim como também representa suas funções nobres”
(DE LA BRÈTEQUE, 1985, p.145). E é nos espaços religiosos que
os animais acabam convertendo-se em símbolos cristológicos ou
3
MALAXAVERRIA, Ignacio Phillipe de Thaün, Bestiario Medieval, Madrid, Edições
Siruela 2000.

11
O bestiário do leão e a sua representação cristológica

demonológicos, como bem ilustram conceitos de ressurreição e paixão,


com um propósito de ser um exemplo (RODILLA, 1998, p.10). Desse
modo, ao analisar a segunda cena, observa-se uma dualidade da figura do
leão enquanto animal selvagem e como uma representação cristológica:

O leão significa o filho da Virgem Maria. É, sem dúvida alguma, o


rei de todos os homens, por sua própria natureza, tem poder sobre
todas as criaturas. Com atitude feroz e terrível vingança, aparecerá aos
judeus para julgá-los, pois eles obravam o mal, quando o cravavam
na cruz, devido a essa ação perversa não possuem rei próprio. O peito
quadrado representa a força divina, os quartos delgados mostram que
Ele foi humano, depois de divino, o rabo, a justiça que se fecha, sobre
nós mediante a pata que tem lisa, que mostra que Deus é rápido, que
foi conveniente se entregar por nós, o pé cortado que mostra que Deus
rodeará o mundo e o terá no punho, através das unhas, se entende a
vingança contra os judeus, e pelo asno entendemos evidentemente os
judeus (THAÜN, 2000, p.30).

Na passagem acima, o poeta deixa bem clara a relação intrínseca


entre a figura do leão e a analogia ao Cristo medieval e o seu poder que
viria julgar posteriormente as nações.
O Bestiário remete para o modo de significação característico da
Idade Média: nela os animais deixam de ser apenas animais para se
assumirem como exempla, isto é, como símbolo de vícios e virtudes e
fontes de ensinamentos religiosos e morais (VARANDAS, 2006, p.5).
Após, a exposição da autora, voltemos à análise de Phillipe de Thaün:

O leão, ao fugir, vai cobrindo suas pegadas, o rastro do leão apresenta


a encarnação de Deus quis tomar aqui na terra para conquistar novas
almas. E certamente o fez, secretamente se colocou nos degraus em
que se encontravam cada ordem-profetas, apóstolos, até que chegou ao
nosso e se converteu em homem de carne e osso, se fez mortal para nós,
e assim, segundo uma ordem aceitável, venceu o demônio. O demônio
enganou o homem, Deus venceu o homem, que não o reconheceu e
depois o diabo mediante sua adequada virtude. Se o demônio tivesse
sabido que aquele homem mortal era Deus, não haviam o conduzido
para a crucificação. Assim, Deus obrou habilmente, sem que o demônio

12
Douglas de Castro Carneiro

lhe desse conta, Deus se ocultou de nosso inimigo, que não soube que
aquele homem era Deus até que o comprovou. Deus se ocultou tanto
que os anjos do céu que estavam no paraíso não o reconheceram. Por
isso, quando voltou o filho de Deus em majestade de onde havia partido
quando se encarnou por nós (THAÜN, 2000, p.40).

Mais uma vez, o poeta normando apresenta características essenciais


que definem a figura do leão e a sua alusão a Cristo. Nesses bestiários,
sejam eles animais, existentes ou não, transcendem o nível puro e simples
da existência, para ocuparem representatividade de vícios e virtudes,
alguns se aproximam da imagem de Cristo e outros da imagem do
demônio, carregando características dele (FREITAS JUNIOR, 2009, p.
23). Dessa forma, Phillipe de Thaün nos impacta com esta representação:

O leão teme o galo branco e o ruído dos carros em movimento, tal é sua
índole, que dorme com os olhos abertos. E isso eis de haver e entender
naquilo que vê. O galo branco significa os homens de vida virtuosa que
anunciam a morte de Deus antes que ele falecesse. Ele há muito temia,
pois era homem, o texto sagrado demonstra aquilo que o próprio Deus
disse: “Pai, perdoa, pela morte que devo sofrer que sua vontade não se
detenha por mim”. Assim mostrou ser homem em sua morte. Tal como
o homem é alma e corpo, Cristo é Deus e homem. E sabeis que Deus
disse a São Pedro o seguinte: que lhe negaria três vezes antes que o galo
cantasse. Em sua honra, o galo canta todas as horas, dia e noite, e nós,
igualmente, cantamos a prima, a terça e meio-dia, e rezamos dia e noite
para o Nosso Criador. Por isso, cantam os freires da matina ao alvorecer:
então Deus foi julgado, golpeado e atado; e ao sair o Sol os clérigos
cantam a prima, pois então Deus ressuscitou e nos arrancou da morte. E
cantamos a terça, quando é à hora da terça, pois então Deus foi castigado
e elevado na cruz. E as doze, os clérigos cantam à hora do meio-dia: então
se produziu a escuridão, quando foi morto na cruz; o Sol se escureceu e
não deu luz devido à autêntica luz da dor que Deus sofreu devido à Sua
humanidade, não à Sua divindade (THAÜN, 2000, p.45).

Na passagem acima, o autor interpreta duas figuras importantes, o


galo e o leão, o primeiro representa aquilo que ele chama de “homens
virtuosos”, possivelmente seguidores da fé católica, e o segundo, a clara

13
O bestiário do leão e a sua representação cristológica

alusão a Deus, em especial na representação de Jesus Cristo. Ao mesmo


tempo, encontramos, em certa mitologia, que o leão é a figura central.
Nos bestiários medievais, a ele são atribuídas virtudes importantes, como
para ele é destinado ser o guardião de lugares sagrados (CASSIN, 1981,
p.355). Nesse momento, entendemos a importância que Phillip de
Thaün apresenta:

Através do leão, entendemos Jesus Cristo, e nós somos sua terra,


enquanto figura humana. Enquanto que nos castiga. Enquanto que nos
castiga com alguma desgraça, sem que tenhamos cometido maldade,
nem tenhamos má vontade, isto significa sua ira, e que o maltratamos
de alguma maneira. Quando não se importa com as gentes conforme
todos os seus desejos se vêem encarcerados em enfermidades, dizem
então os infelizes que Deus não os ama, em absoluto e que não os
merecem que os castiguem assim, não sabem os afligidos que Deus
não os castiga antecipadamente, que Deus põe em dificuldade a quem
estaria menos atribulado se pudessem decidir a fazer o que quisesse.
Mas Deus acorrenta os maus, para que não cometa maldades. Deus
ama muito a quem quer castigar, recordai, pois este é o significado
(THAÜN, 2000, p35).

Na passagem acima, compreendemos a interpretação que o autor dá


para o leão e a importância do bestiário no que tange à descrição destes que
são provenientes do cotidiano medieval, tais como cães, cavalos e animais
que seriam menos conhecidos, como o leão e a pantera (ERCOLE, 2016,
p.10). Nesse sentido, observamos os seguintes detalhes:

Quando o leão quer caçar e comer uma presa, traça um círculo no


solo com o seu rabo, que está comprovado, sempre que apanhar uma
vítima deixa uma abertura que sirva de entrada aos animais que deseja
e quer converter em sua presa. Tal é a sua natureza, que não haverá
besta que possa ultrapassar o limite, nem ir além. Isto é o que mostra
a ilustração e tem um sentido figurado. O rabo, conforme indica o
texto sagrado, é a justiça que pende sobre nós, pelo círculo temos que
entender naturalmente o paraíso, e a brecha é a entrada disposta para
nós, se fazemos o bem e abandonamos o mal, nós somos representados
pelas bestas, naturalmente (THAÜN, 2000, p.37).

14
Douglas de Castro Carneiro

Em outro momento, nós observamos a importância da descrição


que Thaün fez do ato enquanto o leão está caçando e os seus múltiplos
significados. Nesse contexto, compreende-se que:

E falamos tudo nisso, lendo a paixão, recorde-a, pois tem um profundo


sentido. Cantamos as nonas, porque a essa hora o espírito se retirou,
tremeu a terra e se quebraram as rochas de diversas formas. Recordo,
pois, em um sentido profundo. E se cantam as vésperas do entardecer,
porque seu corpo autêntico foi encerrado em um sepulcro. Assim,
ficam cumpridas as vésperas, que significa que Deus cumpriu tudo ao
vencer o demônio (THAÜN, 2000, p.42).

De todo o modo, passamos a analisar a segunda imagem, que


se encontra na cidade de Oxford e é dedicada a Eleanor, a mulher de
Henrique II (1154-1189).
4

A segunda imagem representa um casal de leões cuidando de três


filhotes. Essas imagens são sempre simbólicas porque nos dão muitas
interpretações e nos levam a comprovar a importância daquilo que
pretendemos analisar.

4
ANÔNIMO. British Library, London, England, Royal MS 12 C. XIX, Folio 6r-94v.

15
O bestiário do leão e a sua representação cristológica

Na primeira imagem, observamos o leão de cor mais clara cuidando


de sua cria para que ele possa se levantar. Assim sendo compreendemos
que:

O temor do leão mostra razoavelmente que Deus se humilhou ao


encarnar-se em um homem, pois teve a divindade primeiro que a
humanidade, assim como o homem é alma e corpo, do mesmo modo
que foi Deus e homem (THAÜN, 2000, p50).

A segunda imagem é a relação da leoa que cuida de seus filhotes e


que faz uma clara alusão à Virgem Maria e ao seu cuidado com o filho
que viria a ressuscitar ao terceiro dia:

Sabeis que a leoa traz ao mundo seu filhote morto, e quando tem o
leão, chega a dar tantas voltas ao seu redor rugindo e, no terceiro dia,
o filhote ressuscita. Sabeis que a leoa representa a Virgem Maria e o
leãozinho Cristo, que morreu pelos homens. Durante três dias jazeu
na terra para conquistar nossas almas, segundo sua natureza humana,
não segundo a divina. Igualmente obrou Jonas, que ficou três dias na
barriga do peixe. Entendemos pelo rugido do leão a virtude de Deus,
mercê a ela. Cristo ressuscitou, arrancado do inferno. Tal é o significado
que não deveis esquecer. Na verdade, diz isso sobre a autoridade do leão
(THAÜN, 2000, p.55).

Observa-se, diante dos argumentos apresentados pelo poeta, a


importância que o autor enfoca nessa relação, ao longo do primeiro
livro, em que descreve as características do leão. Nesse simbolismo
medieval (existia uma vaga noção usada e abusada), os animais são
ambivalentes e podem ter essas relações, já que o leão não escapa dessa
regra (PASTOREAU, 1984, p.30). Nota-se:

Pelo grito do leão, entendemos o poder de Deus, pelo qual Cristo teve
sua vida restaurada e saiu do inferno, este é o significado, faça isso em
memória do leão na verdade, como aprendemos com a autoridade, que
este animal representa (THAÜN, 2000, p.60).

16
Douglas de Castro Carneiro

Diante de todos os fatos apresentados, é notável a importância da


análise proposta pelo poeta, quais suas reflexões e a dupla ambivalência
apresentada durante toda a sua análise:

Este animal significa na verdade Deus, assim como a virgem significa


a Virgem Maria, assim como o seu hálito corresponde à Santa Igreja,
que um homem quando dorme se assemelha com a morte que ele teve
na cruz e o seu trabalho foi o nosso repouso (THAÜN, 2000, p.62).

Nesses bestiários, um bom número de animais, além do leão, são


representações do Cristo. Assim como constitui um denominador comum
(ALBERT,1990, p.54), em outras palavras nos informou o autor:

É impossível dar uma demonstração tão breve da importância e da


difusão dessas redes simbólicas. O texto é um suporte de um significado
que a interpretação não explicita, não entrega, no entanto, apenas o
fundo mítico o salva da arbitrariedade (ALBERT,1990, p.56).

Não podemos nos esquecer de um autor que consideramos


extremamente importante sobre a questão dos bestiários, que foi Michel
Foucault, “a estranheza animal, era um espetáculo, figurava nas festas e
nos torneios, assim como nas reconstituições lendárias, onde quer que
os bestiários desdobrem” (FOUCAULT, 1990, p.450). Dessa forma,
compreendeu o autor:

As perigosas misturas são conjuradas, insígnias e fábulas reencontram


seu alto posto; nenhum anfíbio inconcebível, nenhuma asa arranhada,
nenhuma pele escamosa, nada dessas faces polimorfas e demoníacas,
nenhum hálito em chamas. Ali, a monstruosidade não altera nenhum
corpo real, em nada modifica o bestiário da imaginação; não se esconde
na profundeza de algum poder estranho (FOUCAULT, 1990, p.452).

Em suma, consideramos importante a descrição e a representação


do bestiário descrito por Phillip de Thaün e como o homem medieval
observou todas as relações sociais, políticas e culturais.

17
O bestiário do leão e a sua representação cristológica

Bibliografia
Fontes primárias
ANÔNIMO. British Library, London, England, Royal MS 12 C. XIX, Folio 6r-94v.
WRIGHT, Thomas The bestiary of Philippe de Thaon. London: Society of
Antiquaries of Scotland, 2000.

Referências bibliográficas
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Tome 30, n.113, p.53-72, 1990.
CASSIN, E. Le Roi et Le Lion In: Revue d l’ histoire des religions, tome 198, n.4,
p.355-402, 1981.
DE LA BRÈTEQUE, F.: “Image d’un animal: le lion. Sa définition et ses ‘limites’,
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Toulouse-Le Mirail, p.143-154, 1985.
DULIART, M. Du Text à l’image: l’exemple du Lion In: Bulletin Monumental,
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ERCOLE, B. O Bestiario Medieval: Animais Fantásticos das Culturas Pré-Cristãs e
a sua Ressignificação no Ocidente Latino In: II Simpósio Internacional da ABHR,
XV Simpósio Nacional da ABHR História, Gênero, Religião e Direitos Humanos
25 a 29 de julho de 2016, Anais UFSC, pp.1-15.
FREITAS JUNIOR, D. T. O Simbolismo Animal Medieval: Um Safári Literário
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19
Sub umbra alarum tuarum protege nos.

A águia de São João


Evangelista nas divisas dos
Reis Católicos
Adriana Vidotte1

Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, conhecidos como


Reis Católicos pelo título a eles outorgado pelo papa Alexandre VI em
1496, ascenderam ao trono castelhano em 1474 e ao trono aragonês em
1479. Durante seu reinado, fizeram amplo uso das divisas como meio de
representação pessoal. Essas divisas aparecem em diferentes documentos
iconográficos como nas iluminuras dos manuscritos, nos bordados dos
estandartes e bandeiras, nas pinturas ou esculturas de paredes e tetos
em edifícios régios e religiosos. Dentre as divisas utilizadas pelos Reis
Católicos, focaremos na águia de São João Evangelista, que aparece com
frequência sobre os símbolos heráldicos dos monarcas, abrigando-os e
protegendo-os.
Nas imagens podemos observar o amplo uso de emblemas dos Reis
Católicos, como o escudo coroado sob a proteção da águia de São João
Evangelista e o jugo e as flechas, divisas pessoais de Isabel e Fernando. No
detalhe da Capilla Real de Granada, além dos emblemas já mencionados,
representam os reis uma série de F e Y, iniciais de Fernando e Isabel (parte
inferior esquerda da imagem).
1
Professora de História Medieval na Universidade Federal de Goiás – UFG e no Mes-
trado Profissional em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas – Unifal.
Doutora pela Unesp – Assis. Coordenadora do núcleo UFG do Laboratório de Estudos
Medievais – LEME. E-mail: adrianavidotte@gmail.com

20
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

Fig. 1. Escudo de los Reyes Católicos en la Escuela de Artes de Toledo.


Fig. 2. Orihuela (Alicante), Iglesia de Santiago Apostol.
Apud: LÓPEZ POZA, 2012, p. 37.

Capilla Real de Granada. Foto: acervo pessoal, 2017.

Nas moedas cunhadas durante o reinado, a águia de São João


também se faz presente por decisão de Isabel. Uma carta que a Rainha
Católica enviou a Sevilha, em 28 de junho de 1475, é exemplar a esse
respeito, pois estabelece os detalhes das imagens:

21
Adriana Vidotte

Los exçelentes enteros de la vna parte dos bultos el vno del Rey mi
sennor y el otro mio asentados en dos sillas los rrostos en continente
que se mire el uno al otro . y el bulto de lo dicho Rey mi sennor tenga
vn espada desnuda en la mano. y el mio vn cetro . con coronas en
las cabeças . y diga en las letras de enderredor de los dichos bultos .
ferdinandus . et. elisabeth . dei graçia. Rex et Regina . castelle . legionis
. e de la otra parte vn aguila de las que se figuran por santo iohan .
evangelista que tenga dos escudos debaxo de las alas . debaxo de la
ala derecha vn escudo de las armas de castilla de castillos e leones . e
debaxo de la otra ala yzquierda . otro escudo con las armas de aragon
e seçilia e vna corona ençima de amos a dos escudos que los alcance . e
non sea muy alta la dicha . corona por que non ocupe mucho el cuello
de la dicha aguila . e las letras han de dezir . enderredor destos dichos
dos escudos sub . umbra . alarum tuarum protege nos (EL TUMBO DE
LOS REYES CATÓLICOS, p. 83-84).

A moeda foi um suporte utilizado para a difusão da mensagem de


poder dos monarcas e tinha um forte apelo propagandístico. A descrição
das imagens e escritos, com todos os pormenores, revela a preocupação
da rainha com fórmulas perfeitas e intencionalmente projetadas para
divulgarem uma ideia de união em todo o reino. E, na moeda, a águia,
como símbolo da proteção recebida pelos monarcas, não poderia faltar.
Os excelentes inteiros eram a moeda maior e mais valiosa do reino e
também era a mais rica em detalhes: escritos, referências e insígnias. Na
representação máxima do poder, de um lado, os reis figuram entronizados
e coroados, do outro lado da moeda, os escudos de Aragão e Sicília e de
Castela e Leão, ambos sob a mesma coroa que, observe-se, não deveria ser
muito alta para não avançar muito sobre a imagem da águia e, ao redor
dos escudos, deveria ser cunhada a frase sub . umbra . alarum tuarum
protege nos.
Isabel, a Rainha Católica, era devota de São João Evangelista e, de
acordo com Faustino Menéndez Pidal (1982; 2005) e Sagrario López Poza
(2012), já utilizava a águia como emblema quando era princesa. Em artigo
sobre a emblemática dos Reis Católicos, López Poza (2012) apresenta
um selo usado por Isabel, de 1473 – um ano antes de ascender ao trono
castelhano –, do qual se conserva um desenho de Luis de Salazar y Castro

22
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

na Real Academia de la Historia de Madrid (Seguro que la Reina Católica,


siendo Princesa, dio al conde de Haro», Salamanca, 15 de mayo de 1473).

Dibujo de Luis de Salazar y Castro del sello de la princesa Isabel. Apud: LÓPEZ POZA,
2012, p. 37.

Como bem observa López Poza, de início a divisa era apenas a


imagem da águia de São João; posteriormente, à imagem se acrescentou
a frase SUB UMBRA ALARUM TUARUM PROTEGE NOS (Sob a
sombra de tuas asas, protegei-nos). López Poza afirma que a inspiração
para a frase pode ter sido encontrada em diversos salmos da Bíblia:

en el salmo 16, 8 de la Biblia “Sub umbra alarum tuarum protege me”,


y también en el salmo 124, donde se dice que los justos viven seguros a
la sombra de la divina providencia y que los malos perecerán. También
pudo inspirarse en el pasaje de los salmos en que David pide socorro
contra sus enemigos, en el salmo 56, 2: Miserere mei Deus, miserere mei:
quoniam in te confidit anima mea. Et in umbra alarum tuarum sperabo,
donec transeat iniquitas; es decir: “Apiádate de mi, Dios, apiádate de mí:
porque en ti confía mi alma. Y en la sombra de tus alas esperaré, hasta
que pase la iniquidade” (LÓPEZ POZA, 2012, p. 22-23).

A frase conferiu maior clareza na significação do ícone: a proteção


de São João Evangelista aos monarcas e aos seus reinos. Esse foi o ícone
mais usado durante os primeiros anos do reinado, ou seja, durante o
período de luta pelo trono castelhano. Logo, acompanhado da frase,
passou a compor o brasão de armas e outros símbolos dos Reis Católicos.

23
Adriana Vidotte

A águia de São João Evangelista aparece em uma iluminura de um


livro litúrgico de Isabel, a Católica, protegendo não apenas os escudos de
Isabel e Fernando, mas também os de seus filhos e genros.

Escudo dos Reis Católicos junto ao dos seus dois filhos e genros. Disponível em: http://
brunoalcaraz.blogspot.com/2014/08/el-breviario-deisabel-la-catolica-y-la.html. Acesso
em 14 abr. 2019

O Breviário2 de Isabel, a Católica, preservado na British Library,


foi um presente recebido pela Rainha do seu embaixador Francisco
de Rojas, por volta de 1497, em comemoração ao duplo matrimônio
dos seus filhos, os infantes Juan e Juana, com os filhos do imperador
Maximiliano da Áustria e da duquesa Maria de Borgonha, Margarita e
Felipe. Trata-se de um manuscrito flamengo, da última década do século
XV, com 1046 páginas, todas iluminadas. De acordo com o editor
Moleiro, responsável pela edição fac-símile, ele “foi concebido como o
2
De acordo com Isaías da Rosa Pereira (1996, p.141), “O breviário é o livro litúrgico
que contém todas as partes do ofício coral (= as horas canónicas cantadas no coro). Não
existem breviários anteriores ao século XIII, porque as várias partes do ofício se conti-
nham em livros separados: saltério (que os monges e clérigos sabiam de cor), antifoná-
rio, leccionário, etc. Um breviário medieval é sempre acompanhado por um calendário,
o que permite determinar a região para onde foi escrito, a partir das festas dos santos
peculiares a uma diocese, da comemoração da dedicação das igrejas, etc.”

24
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

mais luxuoso dos breviários flamengos; cada página foi magistralmente


iluminada pelos melhores pintores de Flandres com a finalidade de obter
um manuscrito de uma beleza e suntuosidade inigualáveis”.3 Ainda de
acordo com o editor, seis mestres intervieram na realização do Breviário
de Isabel, a Católica, dentre eles os principais pintores foram o mestre
do Livro de Oração de Dresde, Gérard Horenbout (também conhecido
como o mestre de Jaime IV da Escócia) e Gérard David.
A imagem destacada do Breviário é uma miniatura em página
inteira, que mostra o brasão de armas estabelecido de forma conjunta
por Isabel e Fernando e os brasões dos novos casais formados por seus
filhos e os filhos do imperador Maximiliano da Áustria e da duquesa
Maria de Borgonha sob a grande águia, símbolo de São João Evangelista.
Ao redor da águia, em letras azuis sobre um fundo branco se lê: SUB
UMBRA ALARUM TUARUM PROTEGE NOS, a mesma frase que, por
determinação de Isabel, deveria ser cunhada nas moedas mais valiosas do
reino. Abaixo da imagem encontram-se os brasões dos novos casais.
A imagem dos brasões se apresenta ao lado de outra miniatura de
página inteira, na qual se observa a coroação de Maria e a dedicatória da
obra à Rainha Católica.

Disponível em: http://brunoalcaraz.blogspot.com/2014/08/el-breviario-deisabel-la-


catolica-y-la.html. Acesso em 14 abr. 2019

3
www.moleiro.com/pt/livros-de-horas/breviario-de-isabel-a-catolica

25
Adriana Vidotte

As duas miniaturas formam um conjunto de forte conotação


política. Ao lado dos emblemas que representam o poder dos Reis
Católicos, a coroação de Maria faz alusão direta à coroação de Isabel
e revela uma clara intenção laudatória e legitimadora. A dedicatória
da obra à Rainha Católica se apresenta no canto inferior direito da
imagem, escrita em letras de ouro sobre um fundo púrpura, onde se
lê: Dive Elisabeth, Hispaniarum et Siscilie regine, etc. christianissime,
potentissime, semper auguste, supreme domine sue clementissime Franciscus
de Roias, eiusdem maiestatis humilimus servus ac creatura, optime de se
merens breviarium hoc ex obsequio obtulit.

A simbologia da águia por Hernando de


Talavera
A águia de São João Evangelista sobre o escudo dos Reis Católicos
e de seus filhos conotava a proteção almejada pela Rainha Católica a
seus reinos e ao poder régio que sua casa representava. Mas, os reflexos
da devoção de Isabel por São João Evangelista na concepção política da
Rainha são mais amplos e vão além do uso da águia como divisa. Isso é
o que nos revela uma obra intitulada Colación muy provechosa de como se
devem renovar en las animas todos los fieles christianos en el sancto tienpo
del Aviento que es llamado tienpo de renovacion, que Hernando Talavera
escreveu para a Rainha.
A obra de Talavera se divide em três partes: o prólogo, a segunda
parte – de como es convenible conparación y exemplo para ello la manera en
que el águila se renueva, y aun que en todas las criaturas, en diversas maneras
y tienpos, aya alguna renovación – e a terceira parte – De IX propriedades y
condiciones que la águila tiene.
Na primeira parte, o prólogo, Hernando de Talavera dirige a obra
à Rainha e fala da necessidade de renovação dos fiéis. Isabel, a Católica,
já dissemos, foi grande devota do evangelista São João. Em virtude dessa
devoção, a rainha solicitou a seu confessor, Frei Hernando de Talavera
(1428-1507), que lhe escrevesse uma proveitosa Colación, que ele havia

26
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

predicado em seu mosteiro, na qual o frei havia apresentado “una útil


similitudo de las propriedades del águila, en vocación prototípica de su
simbolismo” (PARRILLA, 2014, p. 16). Isso é o que informa Hernando
de Talavera no prólogo da obra:

Pide vuestra alteza, muy excelente princesa y sereníssima reyna y señora


nuestra, copia de la colación que el domingo primero del Aviento hize
a estos mi amados padres y Hermanos, muy humildes y muy devotos
capellanes vuestros (HERNANDO DE TALAVERA, p. 450).

Em resposta a essa solicitação, o religioso jerônimo, que, além de


confessor e conselheiro da Rainha, foi também bispo de Ávila e primeiro
arcebispo de Granada, deixou duas obras manuscritas intituladas
Colación muy provechosa de como se devem renovar en las animas todos
los fieles christianos en el sancto tienpo del Aviento que es llamado tienpo
de renovacion e Breve tractado de loores del bienaventurado Sant Juan
Evangelista (Biblioteca de la Fundación Lázaro Galdiano, Madrid, M 2-3-
17 [Inv. 15229]). Cármen Parrilla (2014, p. 15) acredita que ambos os
escritos foram dirigidos à Rainha nos três primeiros anos de seu reinado,
entre 1474 e 1477.
Na obra, Hernando de Talavera parte das qualidades da águia para
enfatizar as qualidades que devem ser encontradas nos reis, e, no prólogo,
informa sobre sua inspiração para escrever sobre as virtudes da águia e sua
simbologia relacionada à Rainha:

Pues como ésta sea reyna de las aves, a quien Sant Juan Evangelista
por la alteza de su elevado evangelio y de las otras sus altas revelaciones
dignamente es comparado, por lo qual vos avés puesto so sus alas,
sonbra, protección y amparo, digna cosa es que vuestra alteza sepa essas
mesmas condiciones y propriedades y la significación y aplicación dellas
para las remedar mutatis mutandis. Y aún verá vuestra majestade que
fue bien hazerme limosna del Libro de las propriedades de las cosas, a
bueltas de los otros, el qual para eso me alumbro assaz (HERNANDO
DE TALAVERA, p. 454).

27
Adriana Vidotte

Hernando de Talavera se refere à doação que Isabel havia feito


de três livros grandes: “el vno de Sant Ysidro y el otro pastoral y el otrose
llama propriatatatibus rerum” (PARRILLA, p. 196). O último trata-se
da enciclopédia de Bartolomeus Anglicus, Liber de proprietatibus rerum,
escrita entre 1230-1240 e que foi traduzida ao castelhano, no final do
século XV, por frei Vicente de Burgos. Assim, para Carmen Parrilla (p.
196), é possível entender que a colação de Hernando de Talavera seja
consequência imediata do presente recebido da Rainha.
Na segunda parte, Hernando de Talavera trata de “como es convenible
conparación y exemplo para ello la manera en que el águila se renueva, y
aun que en todas las criaturas, en diversas maneras y tienpos, aya alguna
renovación”. Nela, o frei apresenta a águia como símbolo da renovação e,
assim, justifica sua comparação e exemplo para a renovação de todos os
fiéis.

Todas quase las criaturas corporales sensibles e insensibles, superiores e


inferiores, se renuevan cada año. Ca renuevanse los cielos, mudando el
sol y l aluna y los otros planetas sus sítios y aspectos. Y dende, viene que
se renuevan los tienpos y, con ellos, los elementos. Iten, los arbores, que
en este tienpo retrahen y asconden la virtud al tronco y dedexan por
esso las hojas que tenían primero y, a la boca del verano, sácanla fuera
y visten flores y hojas etcétera. Renuévanse los animales pelechando
y mudando uñas y cuernos, y las cobras y serpientes los cueros. Y
renuévanse las aves mudando las plumas y nudriendo. Y assi los peces
y pescados, aunque a nos non es tan manifiesto. Pues dévese renovarse
el honbre, que participa con todos estos, y para quien todas las cosas
fueran hechas, y él, para Dios. Y se no puede segunde l cuerpo en que
cada día envegece, renuévesse en el ánima, segund que el sancto apóstol
quiere. Ca dize el buen rey David en el salmo: “Bendize, mi ánima
al Señor, etc., porque se renueva tu juventude como la del águila”
(HERNANDO DE TALAVERA, p. 460-461).

Aqui se revela com clareza a inspiração que Hernando de Talavera


encontrou na obra de Bartolomeu da Inglaterra. O Liber de proprietatibus
rerum foi escrito no século XIII e é considerada uma das primeiras
obras de caráter enciclopédico do período. Nessas enciclopédias,

28
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

os autores buscavam reunir e compilar todo o conhecimento que se


tinha e se esforçavam por colocar à disposição dos círculos educados
todo o conhecimento do mundo e, em particular, o conhecimento
“científico” das coisas da natureza. Para tanto, a referência a autores
anteriores, antigos e medievais, reconhecidos como autoridades era
uma constante. Buscava-se a natureza das coisas, a imagem do mundo,
como no espelho. E é isso que faz Hernando de Talavera ao observar que
todas as “criaturas corporales sensibles e insensibles, superiores e inferiores
se renuevan cada ano”.
A busca pela natureza das coisas como no espelho é uma das
características do enciclopedismo medieval, fortemente marcada desde
o século XIII; a imago estava estreitamente relacionada com o especulum.
Javier Vergara (2009) demonstrou como os filósofos antigos, como Platão,
Séneca, Plutarco, entre outros, haviam considerado a natureza como um
grande espelho cujo reflexo continha as respostas às grandes perguntas
sobre Deus, o mundo e o homem. Vergara (2009, p. 295) explica que o
cristianismo retoma a teoria especular com forças renovadas a partir de
um novo conceito da natureza criada do nada e de um novo modelo do
homem feito à imagem e semelhança de Deus. Vergara também destaca
que, no mundo alto-medieval, a refração pedagógica se utilizará de forma
isolada e ocasional e será necessário esperar o Renascimento dos séculos
XII e XIII para que “la multiplicidad formal de la naturaleza cobre
entidad propia y suas formas particulares posibiliten la aparición de un
enciclopedismo especular de nuevo cuño y de un nuevo género literario
que hará de la refracción indirecta e de la voz especulum el caminho
óptimo para la restauración de la imagen divina en el hombre” (2009,
p. 295). O especulum naturae adquiriu um peso extraordinário a partir
do século XII. Javier Vergara recorda que se deve ter presente que, para
os antigos, “la naturaleza era una entelequia incausada y ordenadora del
universo, como la llamaba Platón en el Timeo, o un concepto difuso y de
difícil comprensión, como lo llamaba Cicerón en De inventione”. Para a
cultura paleocristã e os Pais da Igreja, a natureza se tornará clara e precisa
ao ser “una creación divina cuya radicalidad más genuina será reflejar de

29
Adriana Vidotte

forma indirecta la vonluntad, el sentimiento y el ser de Dios para servir


a una mejor comprensión de las Sagradas Escrituras”. Essa atitude foi
reproduzida pela cultura alto-medieval, que reduziu o espelho natural
“a una simple propedeutica de la Teología sin apenas entidad propia”
(VERGARA, 2009, p. 302).
Isso muda com o alvorecer da escolástica, diz Vergara com razão.
Os escolásticos, segundo o autor, convertem o espelho da natureza em
um ícone gnosiológico e pedagógico que dava sentido à existência. Eles
encontraram na natureza uma dupla virtualidade a entendendo: por
um lado, como uma categoria com entidade própria, com sentido em si
mesma e com uma notável finalidade didática; por outro lado, enquanto
reflexo indireto e parcial da vontade, do sentimento e do ser de Deus, sua
diversidade formal se apresentava, para os escolásticos, como conteúdo
ótimo e necessário para o aperfeiçoamento e a restauração da natureza
humana (VERGARA, 2009, p. 303). Os escolásticos buscaram conhecer
o reflexo da natureza, para aprendê-lo, dominá-lo e armazená-lo, e assim
publicaram numerosas enciclopédias que “progresivamente demandaban
considerar la multiplicidade y la diversidad de la naturaleza en sí misma
y por sí misma en tanto que espejo y causa coadyuvante de la voluntad
divina” (VERGARA, 2009, p. 305). É nessa perspectiva que devemos
entender o discurso de Hernando de Talavera, escrito sob a influência de
Bartolomeu da Inglaterra.
Sobre os reis, Hernando de Talavera explica que maior
responsabilidade é a missão dos “virreyes del Rey de los reyes” e por isso
devem ser mais atentos que os outros homens e, junto com os religiosos,
devem se assemelhar às aves.

Bien por esta causa quiso nuestro Señor, en otro tienpo, que le fueren
ofrescidos sacrifícios de aves y de quadrúpedes animales, por que las
aves significassen a los religiosos y gobernadores, y los otros animales
a los subjectos y seglares. Entre las aves, esse mesmo Señor escogió
las águilas para que todos los cristianos a ellas fuesen comparados ...
Y especialmente quiso que los religiosos y regidores fuessen a ellas
semejantes ... (HERNANDO DE TALAVERA, p. 466).

30
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

Mais adiante, Hernando de Talavera explica sobre a águia:

Y porque nos quiso comparar a las águilas y que delas aprendiéssemos


como avíamos de conversar, quiso darles muchas singulares condiciones
y propriedades a quales nos ayamos de conformar, mayormente en
este sancto tienpo de renovación en que, como águila, nos avemos de
renovar (HERNANDO DE TALAVERA, p. 467-468).

Na concepção do frei, a águia recebeu suas virtudes para servir aos


homens, para expor e ensinar suas virtudes aos homens.
Na terceira parte da Colación, a mais extensa, Hernando de Talavera
trata das “IX propriedades y condiciones que la águila tiene”. Essa parte
é composta por nove capítulos, nos quais o frei apresenta as nove
propriedades e condições da águia, que servem como exemplo para a
renovação dos fiéis, especialmente os religiosos e os reis. Apresentaremos,
a seguir, brevemente esses capítulos, cada um dedicado a uma propriedade
da águia.
Capítulo primeiro: De como avemos de ser liberales y francos a todos,
si ser pudiere, pero más a los nuestros que a los estraños, segund que lo es el
águila. Neste capítulo, a águia é exemplo de liberalidade. Hernando de
Talavera explica que a águia divide sua caça com as aves que a seguem e
essas aves a acompanham de boa vontade. Assim, São João Evangelista
se assemelha à águia, pois praticou e pregou a caridade. Como a ave,
os reis também devem demonstrar liberalidade na guerra e na paz;
contentar-se com as vitórias e a honra e repartir os despojos das guerras
“de grado y francamente a toda su hueste, casa y gente” (HERNANDO DE
TALAVERA, p. 473).
Capítulo segundo: De cómo a manera de águila avemos de tener
la vista del entendimiento flerte y aguda. Hernando de Talavera cita as
Etimologias de Santo Isidoro – provavelmente o outro livro que ganhou
da Rainha – para destacar a agudeza da visão da águia: “dize sant Isidoro
que de la agudeza de la vista tomó nonbre y es llamada aquila”. A águia,
diz o frei, tem vista tão aguda que pode olhar para o sol no meio dia,
sem que isso lesione a sua visão. Pode também enxergar, do alto de seu

31
Adriana Vidotte

voo, suas presas, peixes pequenos no profundo do mar e animais e aves


na terra. E, o mais importante para a comparação que realiza o confessor
da rainha: a visão aguda é o que faz a águia reconhecer seus filhotes. De
acordo com Hernando de Talavera, para certificar-se de que os filhotes
que estão em seu ninho são realmente seus, a águia os coloca em direção
ao sol; se eles fecharem os olhos ou demonstrarem dificuldades, ela
reconhece que não são seus filhos e os deixa cair e perecer. Assim como
as águias, os religiosos e os reis devem ter a vista do entendimento muito
aguçada para reconhecer o que agrada ou não a Deus, e, sob essa vista
do entendimento, colocar suas obras diante do raio de sol para avaliá-las.
Os reis devem se conformar à águia pois “sienpre han de mirar que son
comissários y vicários de Dios, nuestro Señor, y que no han de exceder de su
querer y voluntad nin los términos de su mandado y comissión, mas aquélla
han de procurar sienpre de saber para hazer y executar” (HERNANDO DE
TALAVERA, p. 479-480).
Capítulo terceiro: De cómo avemos de ser calientes por caridad y
secos por firmeza y estabilidade, segund que ella es. Neste curto capítulo,
Hernando de Talavera lança mão de conhecimentos sobre os humores e
suas influências na compleição dos seres para ressaltar virtudes como a
caridade, o amor, a constância.
Capítulo quarto: De cómo avemos de ser animosos y nos avemos de
ensañar, mayormente contra los que non se esfuerçan, como devem, vencer
a Satanás. Este capítulo está relacionado ao anterior. Ressalta-se aqui
a grandeza de coração como virtude e que religiosos e reis devem “ser
zelosos, y del zelo de Dios comidos, contra los perversos y viciosos y aun contra
los covardes e temerosos, pero non tamaña que les turbe el juizio ni los ojos”
(HERNANDO DE TALAVERA, p. 489-490).
Capítulo quinto: De cómo nunca devemos estar ociosos, mas sienpre
bien ocupados, porque de la ociosidade nascen todos los males y daños. A
águia, de acordo com Hernando de Talavera, nunca está ociosa, sempre
está a olhar, a afiar as unhas ou a buscar presas. Da mesma forma, os reis,
e especialmente as rainhas, deveriam manter-se ocupados para fugir das
coisas más.

32
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

Capítulo sexto: Cómo devemos firmar nuestro pensamento en las


vidas y passiones de los grandes saanctos y católicos varones para las remedar,
entendidas por las altas peñas en que la águila haze nido y en que saca y cria
sus polos. Este é o capítulo mais extenso da colação. Nele são narrados
episódios da vida de vários personagens bíblicos e santos, destacando-se
suas virtudes e apresentando-os como exemplos a serem seguidos pelos
fiéis, sobretudo os religiosos e os governantes.
Capítulo sétimo: Que todas nuestras obras devem ser endereçadas
y hechas o por amor a y honra a nuestro Señor o por nuestra salvación o
por la de nuestros próximos, que son las tres piedras preciosas que pone el
águila en el nido para sacar y conservar sus polos. Esse, que é certamente o
capítulo mais curto, limita-se à seguinte reflexão: “para poner los huevos
y para sacar los polos dellos pone dos piedras preciosas en el nido, que tienen
virtud de aprovechar en esto, y para conservarlos de toda ponçoña y venino
pone otra que aprovecha para aquello. Con estas tres sacamos nós en luz y
conservamos todos los bienes todos los bienes que hacemos, que son: amor de
Dios y de nuestra salvación y de la de nuestros próximos” (HERNANDO
DE TALAVERA, p. 536-537).
Capítulo oitavo: De como avemos de provocar a bien vivir a otros,
especialmente si a nos son subjectos, segund que la águila provoca a bolar sus
polos. Hernando de Talavera explica que a águia fere seus filhotes e quita-
lhes a comida se necessário for para ensiná-los. Da mesma forma, todos
os fiéis devem corrigir aqueles que lhes estão sujeitos.
Capítulo nono: De cómo devemos refrenar y ocupar la lengua, y de
cómo nos avemos de esforçar a muchas obras de caridad, así dentro en el
spíritu, como de fuera con el cuerpo, para que seamos renovados de la manera
que el águila se renueva. O último capítulo da obra retoma seu argumento
inicial e apresenta a renovação da águia como parâmetro para a renovação
da alma. Sobre o envelhecimento e renovação da águia explica: “Ca dizen
que envejece y enflaquece, se renueva y se torna rezia y manceba”. Da mesma
forma deve-se renovar a alma do homem.
E o frei finaliza sua obra, no capítulo nono, retomando sua reflexão
e convidando a rainha à renovação:

33
Adriana Vidotte

He aqui, excelente señora, acabada nuestra colación. Renuévese, por


Dios, vuestra muy noble ánima y procure la perfectión. Ca estado
tenés no de quienquiera, más de dueña y señora tan perfecta y tan
llena de toda virtud y bondad, como entre las aves el águila, de cuya
perfectión todos y, mayormente, todas las de vuestros reynos y señoríos
han de recibir y participar, como las otras aves de su preá. Vea vuestra
magestad a qué está obligada y para qué fue, en la cunbre de las honras
y dignidades, sublimada y colocada.
Crie nuestro Señor y acresciente coraçón linpio en vos y en nos,
y renueve su Sancto Spíritu en vuestras entrañas, y de nos, siervos
suyos y muy humildes oradores vuestros. Amen (HERNANDO DE
TALAVERA, p. 548-549).

Considerações finais
O estudo das concepções e representações da natureza tem
proporcionado o aprofundamento e a atualização dos conhecimentos
históricos sobre as sociedades medievais. A abordagem da devoção de
Isabel a São João Evangelista e a análise da águia que a representava,
inicialmente como princesa e posteriormente como rainha, é um bom
exemplo disso. A águia sobre o escudo dos Reis Católicos conotava
a proteção almejada pela Rainha Católica a seus reinos e ao poder
régio que ela e Fernando II de Aragão representavam. E isso podemos
observar nos edifícios, nas moedas e nas imagens dos livros litúrgicos.
Contudo, os reflexos dessa devoção na concepção política são mais
amplos, como podemos perceber na obra que a Rainha encomendou
a seu confessor, frei Hernando Talavera. Na obra do frei jerônimo, a
águia de São João Evangelista serviu como parâmetro para a construção
de um discurso edificante, com afã instrutivo articulado por uma
inflexão reformadora e legitimadora (PARRILLA, p. 19). Mas, não
se deve ignorar que Hernando de Talavera encontrou inspiração para
sua colação no livro de Bartolomeu da Inglaterra, o De Proprietatibus
Rerum, que a Rainha havia lhe presenteado. O livro de Bartolomeu da
Inglaterra é uma enciclopédia do século XIII, que vai muito além de um
bestiário, abrangendo as ciências, a teologia e a astrologia. Na Colación

34
A águia de São João Evangelista nas divisas dos Reis Católicos

de Hernando de Talavera, a natureza apresenta-se como testemunha da


revelação; Deus fala aos homens através de sua criação, de símbolos e
imagens. Percebe-se a ideia de que uma via para conhecer Deus, suas
intenções e vontades, é conhecer sua criação. Assim, os conhecimentos
sobre a natureza, especificamente sobre a águia, permitiram a Hernando
de Talavera escrever uma obra que expõe modelos de conduta política e
religiosa presentes no interior dos círculos letrados da alta aristocracia
de Castela. Uma obra que se inscreve em um programa de leituras ad
usum reginae, produzida em um contexto de amplo florescimento de
uma literatura de caráter didático e sapiencial, destinada à educação
dos príncipes e à instrução modelar da realeza.

Referências
ARTAMENDI MUGUERZA, A. Evolucion de la estimativa de la naturaleza a traves
de la história. http://hedatuz.euskomedia.org/2013/1/30037061.pdf
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revista de história, n. 2, 1999, p. 169-194.
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perspectivas teológicas, cosmológicas y maravillosas. Una revisión conceptual e
historiográfica. Revista Historias del Orbis Terrarum, Anejos de Estudios Clásicos,
Medievales y Renacentistas, v. 10, Santiago, 2015, p. 1-35.
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Ed. R. Carande e J. M. Carriazo. 6v. Sevilla: Universidad Hispalense, 1929-1968.
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Mass, 1927.
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Carmen Parrilla. Valencia: Universitat de Valencia, 2014.
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Episteme, n. 11, 2000, p. 153-172
LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994.
____________. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições
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LÓPEZ POZA, S. Empresas o divisas de Isabel de Castilla y Fernando de Aragón
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35
Adriana Vidotte

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PARRILLA, C. Estúdio, crítica e interpretación. In: HERNANDO DE
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2007.
VERGARA CIORDIA, Javier. Enciclopedismo especular en la Baja Edade Media.
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36
A luta entre cavaleiros e
caracóis em manuscritos
medievais do século XIV
Láisson Menezes Luiz1

Introdução
O objetivo deste trabalho é fazer um exercício de análise de algumas
imagens presentes em manuscritos medievais produzidos no século XIV,
mais especificamente, buscaremos compreender e refletir sobre as cenas
em que aparecem cavaleiros medievais lutando contra caracóis. Cenas
que despertam a curiosidade dos pesquisadores, pois, até o momento,
não se tem um consenso sobre os significados dessas imagens em tais
manuscritos. Muitas teorias e hipóteses foram formuladas na tentativa de
explicá-las. O nosso intuito não é resolver este dilema, mas sim, a partir
dessas imagens, propor uma reflexão sobre as relações entre as pessoas e a
natureza durante a Idade Média.
A utilização de imagens como fonte de acesso ao passado tem
despertado cada vez mais o interesse dos historiadores, o que fez com que
o território do historiador se alargasse, mas, por outro lado, obrigou-o a
refletir sobre objetos com os quais, até então, não estava habituado.2
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Goiás. Bolsista CAPES/FAPEG. Email: laissonmenezes@gmail.com. Este artigo foi
inicialmente pensado e posteriormente apresentado como trabalho final na disciplina
A natureza na arte medieval, ofertada no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Goiás, sob a orientação da professora Dra. Adriana Vidotte, no
primeiro semestre de 2017.
2
SCHMITT, Jean-Claude. O historiador e as imagens. In: O corpo das imagens:
ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução: José Rivair Macedo. Bauru:
EDUSC, 2007. p. 25.

37
A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais do século XIV

Segundo Jean-Claude Schmitt,3 para o historiador, é um duplo


desafio a análise de imagens, uma vez que ele deve analisar a arte em sua
especificidade e em relação com a sociedade que a produziu. Sendo assim,
para o medievalista que, trabalha com imagens relacionadas a um texto,
na maioria das vezes a bíblia, destacar a sua especificidade é essencial.
Para esse historiador, as imagens medievais nunca estão completamente
isoladas, elas integram uma série, ou seja, uma imagem faz parte de
um todo, e “[...] o isolamento de uma imagem será sempre arbitrário e
incorreto”.4 Mas isso não quer dizer que o historiador não possa construir
uma série de imagens, levando em consideração os critérios iconográficos,
formas, estruturas, temáticas, pois as possibilidades de construir essas
séries e cruzá-las são infinitas.
Os estudos sobre as relações entre as pessoas e os animais ao longo
do tempo não eram muito comuns nos estudos históricos, isso ocorreu
porque, durante muito tempo, os historiadores não se interessaram
pela história dos animais, pois consideravam temas fúteis e marginais.
Mas essa situação tem mudado, pois, segundo Michel Pastoreau,5 os
historiadores começaram a perceber que as relações das pessoas com
os animais englobam grandes temas da história social, econômica,
material, cultural, religiosa, jurídica e simbólica. Para esse autor, os
medievalistas vêm cumprindo um papel primordial nessa atenção ao
mundo animal por várias razões, entre elas pode-se citar a quebra do
isolamento entre alguns setores de investigação, o que permitiu cruzar
informações extraídas de diferentes categorias documentais, enriquecer
as problemáticas e ter contato com pesquisadores de outras ciências
sociais e da natureza.
Ainda segundo Pastoreau, a principal contribuição dos medievalistas
para o estudo do mundo animal está na própria documentação medieval,
que dedica grande atenção aos animais e suas relações com as pessoas.
Relações que podem ser observadas em textos e imagens, mas há também
3
Idem, p. 33.
4
Idem, p. 41.
5
PASTOREAU, Michel. El animal. In: Una historia simbólica de la Edad Media
occidental. Tradução: Julia Bucci. Buenos Aires: Katz, 2013, p. 27.

38
Láisson Menezes Luiz

materiais arqueológicos, rituais e códigos sociais, heráldica, folclore,


provérbios, canções e juramentos.
Além desses aspectos, Robert Delort,6 um dos estudiosos sobre os
animais, aponta que

[...] pode-se igualmente estudar as gorduras, os restos de chifres, os


pelos, os couros (milhões de pergaminhos ainda esperam métodos
específicos que revelem o máximo de informações), as (raras) peles, os
traços de dentes de ratos, cães e gatos sobre ossos roídos, os traços de
patas deixadas na argila de telhas ou tijolos perenizados pelo cozimento
[...].

Portanto, como vimos, independente da documentação que


escolha, o medievalista, em muitos casos, encontrará o animal, pois estes
proliferam inclusive nas igrejas, constituindo boa parte de sua decoração.
Nesse sentido, partiremos de algumas questões postas sobre as
cenas em que aparecem cavaleiros medievais lutando contra caracóis.
Por que, na Idade Média, há representações de cavaleiros lutando contra
caracóis? Qual o significado dessas imagens? Qual a relação da sociedade
medieval com o caracol? Como mencionamos, existem várias teorias e
hipóteses sobre as representações de cavaleiros lutando contra caracóis
nos manuscritos medievais, assim se faz necessário apresentar algumas
delas.
Como apontamos, houve muita curiosidade por parte dos
pesquisadores sobre essas imagens. Os primeiros estudos conhecidos
datam do século XIX. Como é mencionado na reportagem da British
Library7, em 1850, o bibliófilo conhecido como Comte de Bastard propôs
a hipótese de que essas imagens poderiam representar a ressurreição
de Cristo, isso se deu porque ele encontrou em dois manuscritos essas
imagens perto de miniaturas da criação de Lázaro.
6
DELORT, Robert. Animais. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário temático medieval. Volume I. Tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru:
EDUSC, 2006. p. 57.
7
https://blogs.bl.uk/digitisedmanuscripts/2013/09/knight-v-snail.html. Acessado em
08/05/2017.

39
A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais do século XIV

Em um artigo de 1962, Lilian M. C. Randall8 propôs a hipótese


de que essas cenas representavam os lombardos, um grupo que foi
vilipendiado na Idade Média por seu comportamento traiçoeiro, usureiro
e nada cavalheiresco. Outra hipótese era a de que essas cenas poderiam
representar a opressão social entre os pobres e aristocratas. Além dessas
hipóteses, essas imagens de cavaleiros atacando caracóis podiam representar
uma peste que deveria ser combatida, pois esses animais atacavam os jardins
e as plantações, como podemos observar na imagem 1.

Imagem 1 – Ilustração do Calendrier des Bergers (1493).

Nela podemos observar que não é apenas o cavaleiro que está


enfrentando o animal, mas há outras duas pessoas que também estão
armadas atacando-o e ele se encontra numa espécie de plantação. Então
podemos observar que o significado da luta com o caracol pode variar de
documento para documento.
As representações que escolhemos para estudar o caracol são
aquelas em que esse animal aparece lutando contra cavaleiros, algo
que nos intrigou muito, pois são diversas imagens em que aparece essa
8
RANDALL, Lilian M. C. The snail in gothic marginal warface, Speculum, vol. 37, n.
3, 1962, p. 358-367.

40
Láisson Menezes Luiz

cena, mas, até o momento, ainda não se tem ao certo uma ideia do seu
real significado. Infelizmente não encontramos nenhum estudo mais
aprofundado abordando a relação da sociedade medieval com os caracóis,
mas, como já mencionamos, o nosso objetivo aqui é apenas fazer um
exercício de análise dessas imagens e procurar, na medida do possível,
mostrar um pouco das relações da sociedade medieval com os animais e,
consequentemente, despertar o interesse pela pesquisa sobre a natureza e
a utilização de fontes imagéticas para se compreender o medievo.
Como mencionamos anteriormente, os animais aparecem com
frequência nas decorações de igrejas, castelos, vestuários entre outros
locais durante a Idade Média e com o caracol não foi diferente. J. M. Martí
i Bonet,9 em seu estudo sobre a catedral de Barcelona, construída entre
os séculos XIII e XV, nos diz que nesse monumento podemos encontrar,
em diversos lugares, uma dezena de caracóis pintados, trabalhados na
madeira, de pedra e mármore, como podemos observar na imagem 2.

Imagem 2 – Representações de caracóis na Catedral de Barcelona.10

9
MARTÍ I BONET, J. M. La Catedral de Barcelona: Història i històries. Barcelona:
Catedral i Museu Diocesà de Barcelona, 2010, p. 127.
10
MARTÍ I BONET, J. M. Op., cit., p. .128-129.

41
A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais do século XIV

Segundo Michel Pasteureau,11 o caracol na Idade Média era

L’animale, infatti, nasce dal fango e dal limo della terra, come Ì vermi.
Ma possiede una conchiglia, che è la sua casa. E striscia, come i serpenti.
E un animale nocivo che mangia Tinsalata, sbava in continuazione e
sporca tutto quel che tocca. Per fortuna, si sposta lentamente. Gli occhi
sono collocati sulla punta di due lunghe corna poste sopra la bocca.
Quando ha paura, ritrae le corna dentro la conchiglia e finge di essere
morta. E quindi codarda e furba.12

O conhecimento dessas imagens em que aparecem cavaleiros


enfrentando o caracol se deu através da leitura de uma publicação,
feita em 26 de setembro de 2013, pelo site British Library, que fez
uma matéria sobre as cenas entre cavaleiros e caracóis nos manuscritos
medievais ingleses. A partir de uma pesquisa mais profunda, tivemos
acesso aos manuscritos citados pela matéria, o que fez despertar mais
ainda o interesse sobre esse assunto. Com relação aos manuscritos em
que estão presentes essas imagens, observamos que foram produzidos na
primeira metade do século XIV, selecionamos alguns para fazermos a
análise das imagens.
Entre os manuscritos apontados na matéria, um que nos chamou
atenção foi o The Gorleston Psalter,13 datado de 1310, produzido para
alguém ligado à igreja de St. Andrew’s Gorleston, da qual deriva o seu
nome.14 É um belo manuscrito de escrita gótica, ricamente ilustrado
11
PASTOREAU, Michel. I serpenti e i vermi. Bestiari del medioevo. Tradução: Ca-
milla Testi. Torino: Einaudi, 2012. p. 267.
12
“O animal, na verdade, nasceu da lama e do limo da terra, como vermes. Mas ele tem
uma concha, que é a sua casa. E a tira, como cobras. É um animal prejudicial, que come
Tinsalata, babando e suja tudo o que toca. Por sorte, ele se move lentamente. Os olhos
são colocados na ponta de dois chifres longos sobre a boca. Quando ele tem medo,
ele puxa os chifres dentro da casca e finge estar morto. É tão covarde e inteligente.”
(Tradução nossa).
13
Disponível em: http://www.bl.uk/manuscripts/FullDisplay.aspx?ref=Add_
MS_49622. Acessado em: 08/05/2017.
14
Para mais informações: http://britishlibrary.typepad.co.uk/digitisedmanuscrip-
ts/2012/10/virile-if-somewhat-irresponsible-design-the-marginalia-of-the-gorleston-p-
salter.html. Acessado em: 08/05/2017.

42
Láisson Menezes Luiz

sobretudo nas margens dos fólios. A imagem em que aparece um cavaleiro


lutando contra um caracol está no fólio 193v e está localizada na margem
esquerda inferior da página, como podemos observar na imagem 3.

Imagem 3 – The Gorleston Psalter. Fólio 193v.

Como podemos observar, a margem esquerda é ricamente


ilustrada, onde se percebe a predominância das cores vermelha e azul. Na
parte inferior, vemos um cavaleiro, portando uma espada e um escudo,
lutando contra um caracol.

Imagem 4 – The Gorleston Psalter. Fólio 193v.

43
A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais do século XIV

Outro manuscrito que destacamos é o The Queen Mary Psalter15, de


1310. Também é um documento com diversas ilustrações, sobretudo com
cenas de lutas entre cavaleiros e animais. Mas, o que nos chama atenção
é que praticamente todos os fólios possuem uma imagem na margem
inferior, em que estão sendo representados sempre dois combatentes, que,
na maioria dos casos, possuem parte do corpo humano e parte animal,
como podemos observar na imagem 5.

Imagem 5 – Queen Mary Psalter. Fólio 143v.

O fólio em que há a representação da luta entre o cavaleiro e o


caracol não é muito diferente. Na imagem podemos ver que o cavaleiro
está representado com metade do corpo humano e a outra metade animal,
enfrentado dois caracóis.

Imagem 6 – Queen Mary Psalter. Fólio 148v.


15
Disponível em: https://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/. Acessado
em: 08/05/2017.

44
Láisson Menezes Luiz

A imagem de cavaleiros lutando contra caracóis também está


presente nos livros de horas. Como podemos observar neste fragmento
de 1320, as margens dos fólios são ricamente ilustradas. Tanto do lado
esquerdo quanto do lado direito, podemos observar dois brasões no
canto superior, abaixo dos brasões há duas figuras, uma com o busto
humano e outra com o busto animal, e, na parte inferior dos fólios,
estão representados o caracol e o cavaleiro, mas aqui, diferentemente
das imagens anteriores, o cavaleiro não está atacando o caracol, mas sim
com um dos joelhos no chão, assim como o seu escudo e a sua espada
encontram-se no chão.

Imagem 7 – Livro de horas. Fólio 62v-63r.16

Encontramos uma cena semelhante no The Gorleston Psalter, no


fólio 162v, em que o cavaleiro se encontra com os joelhos no chão, assim
como a sua espada. O indivíduo também aparece com as palmas das
mãos encostadas uma na outra, fazendo uma espécie de reverência diante
do caracol.

16
Disponível: https://blogs.bl.uk/digitisedmanuscripts/2013/09/knight-v-snail.html.
Acessado em: 08/05/2017.

45
A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais do século XIV

Imagem 8 – The Gorleston Psalter. Fólio 162v.

Um aspecto a se destacar sobre essas imagens é que, em todos


os casos, elas ocupam sempre as margens dos fólios.17 Com relação às
imagens nos manuscritos medievais, como nos diz Maria Cristina
Correia Leandro Pereira,18 o preenchimento das margens pelos copistas
não foi uma preocupação durante toda a Idade Média. Tais margens só
começaram a ser utilizadas para abrigar imagens no final do século XII
e início do século XIII. Os estudos sobre essas imagens nas margens dos
manuscritos medievais também foram, durante muito tempo, deixados
de lado pelos estudiosos. Como aponta a autora acima citada, isso ocorreu
porque a historiografia tratava essas imagens apenas como divertimentos
dos copistas e, por isso, não deviam ser levadas a sério.
Posteriormente, acreditou-se que as imagens marginais exerciam uma
espécie de complementação para o texto escrito, mas Maria Cristina nos
diz que não é bem assim, pois as relações que essas imagens estabelecem
com os textos e com as demais imagens do conjunto da página podem
variar, ou seja, para a autora, pode haver antagonismos, paralelismos,
17
Para um melhor entendimento sobre as cenas de cavaleiros lutando com caracóis nas
margens dos manuscritos medievais, ver o artigo: SANTOS, Stefanny Batista dos. O
cavaleiro e o caracol: arte na margem de manuscritos medievais dos séculos XIII e XIV.
Revista Ars Historica, Rio de Janeiro, n. 15, Jul./Dez., p. 77-96, 2017.
18
PEREIRA, Maria Cristina Correia Leandro. À margem da página: imagens margi-
nais nos manuscritos medievais. In: CIRILLO, J. e GRANDO, A. (Org.) Processo de
criações e interações. IX Congresso da APCG. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. p. 216.

46
Láisson Menezes Luiz

complementariedade, associações múltiplas, com o objetivo irônico,


satírico, lúdico, moralizante, político.19
Outro ponto a se destacar a respeito das imagens marginais são as
inversões dos papéis, em que geralmente o ser humano é representado
por um animal. Entre os animais que mais aparecem, encontramos os
macacos.20 Tal inversão de papéis também pode ser observada na luta
contra os caracóis, ou seja, não há apenas seres humanos, há também
alguns animais representados lutando contra os caracóis, como coelhos
e macacos, como é o caso da imagem 9, ilustrada na parte esquerda
superior, no manuscrito The Gorleston Psalter.

Imagem 9 – The Gorleston Psalter. Fólio 210v.

Nessa imagem, observamos que o macaco está portando um


escudo e uma espada, tomando assim o lugar do cavaleiro. Segundo
Maria Cristina, os macacos buscavam representar a natureza humana e
eram considerados seres inferiores, a imagem deformada do homem.21
Em alguns casos, os caracóis também são utilizados como meios de
transporte, substituindo os cavalos, tanto para os seres humanos como
para os próprios animais, entre eles o cachorro e o coelho, como podemos
observar nas imagens 10 e 11. Destacamos a primeira imagem, em que
o caracol que está sendo montado pelo coelho está com a cabeça de um
homem e não com a cabeça característica do animal. Podemos observar
aqui a inversão dos papéis entre seres humanos e animais.
19
Ibidem, p. 217.
20
Ibidem, p. 218.
21
Idem, p. 218.

47
A luta entre cavaleiros e caracóis em manuscritos medievais do século XIV

Imagem 10.

Imagem 11.

Considerações finais
Como mencionamos, o objetivo deste trabalho foi fazer apenas um
exercício de análise de algumas imagens provenientes do medievo com o
intuito de chamar a atenção do historiador para a utilização de imagens
como fonte de pesquisa sobre o passado. Além disso, buscamos sobretudo
compreender as relações do homem medieval com a natureza a partir das
representações de lutas entre cavaleiros e caracóis. O nosso intuito foi
realizar uma breve análise e apresentar as teorias e hipóteses sobre essas

48
Láisson Menezes Luiz

imagens, assunto que, como observamos ao longo do trabalho, ainda


conta com uma bibliografia bem escassa.
Portanto, observamos que existem várias versões e representações da
luta entre cavaleiros e caracóis nos manuscritos medievais. Por um lado,
vemos o caracol como um animal a ser combatido, pois, em alguns casos,
era uma peste que destruía as plantações e os jardins, por outro, vemos
também a figura do caracol representada como meio de transporte, com
cabeça humana. Essas são apenas algumas impressões que tivemos, mas,
somente com uma pesquisa mais aprofundada através da leitura e da
análise de todo o conjunto da obra é que provavelmente poderíamos ter
uma ideia do que esse animal realmente simbolizava para a população
medieval.

Referências
DELORT, Robert. Animais. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário temático medieval. Volume I. Tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru:
EDUSC, 2006. p. 57-67.
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Catedral i Museu Diocesà de Barcelona, 2010.
PASTOREAU, Michel. El animal. In: Una historia simbólica de la Edad Media
occidental. Tradução: Julia Bucci. Buenos Aires: Katz, 2013, p. 27-85.
PASTOREAU, Michel. I serpenti e i vermi. Bestiari del medioevo. Tradução:
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PEREIRA, Maria Cristina Correia Leandro. À margem da página: imagens
marginais nos manuscritos medievais. In: CIRILLO, J. e GRANDO, A. (Org.)
Processo de criações e interações. IX Congresso da APCG. Belo Horizonte: C/
Arte, 2008. p. 216-222.
RANDALL, Lilian M. C. The snail in gothic marginal warface, Speculum, vol. 37,
n. 3, 1962, p. 358-367.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual
na Idade Média. Tradução: José Rivair Macedo. Bauru: EDUSC, 2007.
SANTOS, Stefanny Batista dos. O cavaleiro e o caracol: arte na margem de
manuscritos medievais dos séculos XIII e XIV. Revista Ars Historica, Rio de Janeiro,
n. 15, Jul./Dez, p. 77-96, 2017.

49
Da imagem à matéria: a
natureza nos vitrais da
Catedral de Barcelona
(séculos XIV e XV)
Lorena da Silva Vargas1

Introdução
Enquanto um dos eixos formadores do imaginário social em seus
diversos âmbitos, o ambiente natural do medievo interagia com o
ser humano de forma a ultrapassar as necessidades físicas de sustento
e equilíbrio ecológico. Os elementos naturais ganhavam sentido
simbólico a partir das mentalidades, regidas por valores, emoções e
sincretismo, gerando uma natureza multifacetada, representante do
fantástico e das práticas cotidianas: era, por um lado, necessidade
humana, dádiva celeste, elemento de contemplação e de oração, um
locus amoenus; por outro lado, desafiava o ser humano, representava
o desconhecido, a ira divina, fomentava o temor a Deus e aos seus
mistérios, era a imagem do locus agrestis, o qual apenas por meio do
conhecimento do comportamento natural poderia tornar-se receptível
ao homem.
1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Goiás – PPGH/UFG, sob
fomento do CNPq, e graduada em História pela Universidade Federal de Goiás –
UFG. Membro do Comité Español de Historia del Arte – CEHA, da Associação
Brasileira de Estudos Medievais – ABREM - e interlocutora do núcleo UFG do
Laboratório de Estudos Medievais – LEME. E-mail: lorenasvargas@hotmail.com

50
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

O lugar privilegiado atribuído ao ambiente nas produções


artísticas no desenrolar do século XIII, a partir da apreciação estética
da natureza e do meio urbano paralela aos estudos empíricos do
espaço, acarretaria, naquele momento, no nascimento da paisagem,
espaço percebido em sua beleza e emotividade pela observação dos
homens, configurando-se, portanto, junção entre criação divina e
sensibilidade humana (RODRÍGUEZ BOTE, 2014, p. 372). No
âmbito religioso, a contemplação da natureza proposta sobretudo
pelas ordens mendicantes, buscava garantir o encontro de si e a
aproximação a Deus, passando o meio circundante, especialmente
o natural, a ser apreciado esteticamente como fruto da bondade
divina perante os homens. Paralelamente, a escolástica dos
mosteiros e das palpitantes universidades buscava a compreensão
dos mistérios que permeavam o funcionamento das criaturas sob
suporte das compilações de tratados árabes, bestiários, lapidários
e herbários, além, e especialmente, dos estudos de campo, que
culminando nas enciclopédias, possibilitavam também o saber
fisiológico. A beleza das flores, o canto dos pássaros, a grandeza dos
fenômenos extraordinários – tempestades, vulcões, cometas, etc.
– tudo passava a ser atentamente percebido, estudado e retratado
pelo homem medieval. Segundo Adeline Rucquoi (2007, p. 76),
os fenômenos extraordinários, perigosos e desconhecidos, mesmo
no campo científico, eram explicados no medievo como punições
divinas ou anúncios de acontecimentos importantes, como a morte
de um rei. Em todo caso, a grandeza de tais ocorrências evocava
respeito frente a uma natureza desconhecida e a seu Criador,
fomentando a busca pelo conhecimento dos fenômenos naturais e o
controle de suas consequências, possibilitando evitar, por meio do
conhecimento dos sistemas ecológicos, maiores desgastes materiais
e humanos. Em meio a tal processo de busca científica, formas e
cores diversas emergentes de forma quase miraculosa ou maravilhosa
nos rincões de rios e montanhas, eram captadas naqueles espaços,

51
Lorena da Silva Vargas

ganhando lugar e tornando-se modelo para uma arte cada vez mais
preocupada com a aproximação à criação divina e com a busca pela
perfeição como forma não de equiparar-se, mas de aproximar-se ao
Criador e conhecer seus mistérios. A arte daquele momento, berço
para as expressões dos séculos seguintes, correspondeu, assim, a
uma positiva junção entre cientificismo e religiosidade, expressando
não uma laicização, mas uma nova concepção religiosa do que hoje
definimos por arte.

A Catedral de Barcelona e seus vitrais


O edifício gótico da Catedral de Barcelona começou a tomar
corpo em 01 de maio de 1298, durante o reinado de Jaume II de
Aragão e o bispado de Bernardo Pelegrí. Foi finalizado em 1448,
já no reinado de Alfonso, o Magnânimo e no auge do gótico
florido, vertente rebuscada e naturalista de tal estilo. Seus 108
vitrais policromados, construídos entre 1335 e 1495, cumprem as
funções de catequização, ornamentação e iluminação do templo,
funções atribuídas ao vitral enquanto elemento arquitetônico
desde a emergência do gótico no século XII, quando se tornam
mais alongados e coloridos em detrimento dos vitrais utilizados
no românico até então. As origens da Catedral de Barcelona, sede
do bispado, remetem, entretanto, ao ano 343 d. C, tendo sido
construída inicialmente em arquitetura paleocristã. Entre 1046 e
1058, foi reconstruída em estilo românico, recebendo, por fim, seu
estilo gótico a partir do século XIII.
O desenvolvimento de um olhar observador, sensível às
formas e cores do meio circundante, capaz de transferir a ele as
emoções humanas, acarretaria a formação do conceito de paisagem
no Ocidente, naquele mesmo século XIII. Nas artes, a busca por
um realismo naturalista tornou-se exponencial, pautada mais que
na necessidade de descrever ou copiar aspectos naturais em prol
do conhecimento fisiológico, mas em captar o sentido simbólico e

52
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

o fomento emocional que lhes era atribuído. A arquitetura gótica,


nesse contexto, procurou fazer de seus edifícios religiosos verdadeiros
microcosmos, nos quais a natureza atuasse na construção de uma
paisagem que remetesse ao transcendente, ao miraculoso, a partir
de elementos como a luz, as cores, as formas e a matéria-prima ali
empregadas. Consiste, pois, em uma floresta de pilares na qual a
criação humana tomaria por modelo a perfeita criação divina em sua
forma, matéria e ordenamento.

Natureza física e pictórica


Em um período no qual a natureza era concebida como forma de
aproximação a Deus, ela se fez presente nos vitrais e nas artes visuais como
um todo ao auxiliar na difusão de concepções religiosas e políticas a partir
de seu conteúdo simbólico, atraindo os fiéis ao templo especialmente
por meio da estética a ela associada, que valorizava a expressividade e a
analogia ao cotidiano espaço urbano. A natureza consistia, portanto, em
um elemento identitário que marcava o reconhecimento e o imaginário
comum de uma sociedade subdividida, que se encontrava na sede do
bispado.
Adentrando-nos à presença física da natureza nos vitrais, deparamo-
nos com a luz, que segundo Victor Nieto Alcaide (1978), ganha espaço
na arte gótica pela necessidade de iluminar, dar simbolismo às igrejas
e um novo impulso à religiosidade, a ponto do século XIII tornar-se
o período de glória do gótico radiante (TARANILLA DE LA VARGA,
2017, p. 135). A luz natural, externa – lux naturalis – converte-se em
luz espiritual – lux spiritualis – a partir do momento em que adentra a
Catedral por meio dos vitrais, iluminando os fiéis no interior do templo
e fazendo desse um microcosmo, espaço sagrado de encontro com o
Criador não apenas pelo sacrifício da eucaristia, mas pela materialidade
da luz enquanto presença física de Deus e essência dos vitrais. A partir
dela as cores ganham vida, vivificando e auxiliando na identificação e

53
Lorena da Silva Vargas

interpretação das imagens, afinal, segundo a simbologia do templo, as


janelas são os escritores sagrados por meio dos quais nos chega a luz e a
verdade divinas.
Os vitrais são organismos vivos compostos pela natureza,
essencialmente por vidros e metais, e animados pela luz segundo
o curso do sol. A composição do vidro medieval mediterrâneo
envolvia uma parte de areia purificada e duas de barrilheira2
em cinzas, mistura que, quando derretida a altas temperaturas,
produzia a chamada pasta vítrea. A barrilheira poderia ser substituída
por cereais ou vegetação pantanosa, igualmente ricos em sódio, que
proporcionava vidros mais resistentes em detrimento dos produzidos
no centro e norte da Europa, com vegetação à base de potássio
(BAZZOCCHI, 2012, p. 28). À pasta vítrea acrescentavam-se óxidos
a fim de se conseguir vidros de colorações cada vez mais variadas
segundo o avanço das possibilidades naturais e acesso a esses recursos.
As variações quantitativas do óxido de ferro, por exemplo, seriam
responsáveis pela coloração verde, azul, âmbar e amarelo; do óxido de
manganês, pelos tons de violeta e marrom; do óxido de chumbo, pelo
vermelho; do cobre, pelos tons turquesa e verde escuro – cores muito
utilizadas nos vitrais da Catedral de Barcelona. Findo o acréscimo
das colorações, a pasta vítrea era novamente aquecida a ponto de
fusão. Uma vez retirada do forno e fria, ela se solidificava tornando-
se vidro, cujos fragmentos eram recortados em formas geométricas e
tamanhos diversos, segundo projeto preestabelecido, com o auxílio
de ferro quente. Posteriormente, recebiam detalhes por meio de
grisalha, espécie de tinta de coloração cinza ou marrom resultante da
dissolução de pó de óxido de ferro em dissolvente, aplicada no vidro
com um pincel sob auxílio de água, vinagre, aglutinante de goma
arábica e resina, levando a peça novamente ao forno para fixação
do desenho. Para a montagem dos vitrais, o chumbo era matéria-
prima fundamental. Cada peça era envolvida por uma tira de chumbo
e soldada uma à outra para compor a janela. “Para la sensibilidad

2
Planta litorânea encontrada no Mediterrâneo, de folhas espinhosas e rica em sódio.

54
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

medieval, el metal – ya sea vil o precioso – siempre es más o menos


infernal: fue arrancado de las entrañas de la tierra y luego tratado por
el fuego (el gran enemigo de la madera)” (PASTOUREAU, 2013,
p. 92), essa que, servindo de suporte para Jesus na cruz, tornou-se
elemento sagrado por excelência. Tal perspectiva frente ao metal,
entretanto, alterou-se gradativamente segundo o conhecimento de
seu processo formativo e seu reconhecimento como parte da Criação,
cumprindo sua função no ordenamento natural do ambiente e na
vida humana.
Recorremos, agora, às cores enquanto elemento comum entre
a imagem e a matéria, aquilo que, proveniente do meio natural,
possibilita também sua representação. As cores possibilitam a
percepção física e o conhecimento utilitário e simbólico do mundo
a partir da luz. Da mesma forma, luz e cor são elementos que
possibilitam as funções dos vitrais e a interpretação de seu conteúdo,
afinal, seria Deus, por sua luz, quem permite o conhecimento
humano, que no caso dos vitrais se dá pela iluminação das janelas,
que revelam seu conteúdo pela distinção das cores. Segundo
Pastoureau (2013, p. 157), uma das perspectivas religiosas medievais
compreendia que, se a cor é uma fração luminosa e se Deus é luz,
logo a cor é parte do Criador, criação vivificada pelo sol e apagada
pela escuridão, presente em todas as coisas. Enquanto criação,
assemelha-se à alma humana, que se eleva diante da luz divina e se
perde nas trevas. Da mesma forma, os vitrais se animam frente às
modificações temporais, climáticas e astronômicas no interior do
templo.
Aplicadas por um fim que vai além do puramente estético, as cores,
além de fundamentais para a visualização das obras, contribuíram para a
construção de sentido nas imagens frente ao simbolismo a elas empregado.
A cor azul, por exemplo, tal como a púrpura, amplamente presente nos
vitrais da Sé barcelonesa, corresponderia à cor da nobreza, pela dificuldade
de obtenção de sua matéria-prima, a pedra lápis-lazúli. O vermelho
encontrava seu antagonismo por ser, por um lado, a cor do pecado, e,

55
Lorena da Silva Vargas

por outro, a representação do sacrifício de Cristo (PASTOUREAU,


2013, p. 226). Ao longo de todo o medievo, o vidro vermelho chegou ao
Mediterrâneo importado do centro e norte europeus, regiões detentoras
do saber produtivo de tão raro material, feito por meio da sobreposição
de camadas de vidro vermelho, sob efeito do óxido de chumbo, sobre
vidro incolor. O verde, símbolo de fé, seria, segundo Hugo de Saint-
Victor, a mais bela dentre todas as cores por ser expressão da primavera
e da natureza como um todo (ECO, 2017, p. 125), ao passo que o
branco indicaria pureza, o preto, sobriedade e o amarelo associar-se-ia
à mentira, à falsidade e à marginalização. Desse modo, as possibilidades
interpretativas tenderiam a se afunilar a um mesmo caminho, mutável,
porém, segundo o tempo e o espaço.
Enquanto a matéria garante aos vitrais seu conteúdo estrutural e
simbólico, transcendente por meio da iluminação, a imagem permite a
composição estética, ornamentativa e informativa. A fim de facilitar a
compreensão e memorização de cenas bíblicas ou de milagres de santos,
o conteúdo dos vitrais da Catedral de Barcelona deveria ser identificável
ao cotidiano social, fazendo-se reconhecível e interpretável nas imagens
a partir de determinadas espécies da fauna e flora locais e da representação
do mar, fundamental para aquela sociedade, aproximando os fiéis de
sua realidade pelas imagens e resguardando, por meio do cotidiano, a
memória das mesmas enquanto presença constante da religiosidade.
Por meio da identificação de plantas e animais nas obras, seria possível
chegar a uma interpretação do conteúdo das cenas sob auxílio do
imaginário social, construído especialmente por meio de mitos,
lendas, dos bestiários e dos herbários. Identificando e reconhecendo o
significado das personagens e dos elementos principais que compõem as
obras, junto de suas cores, seria possível conhecer a mensagem proposta
pelo vitral, que cumpria, também por meio do pictórico, seu fim
estético na igreja. As formas delicadas, simples e apreciáveis de flores,
folhas e estrelas revelaram-se marcos da ornamentação arquitetônica
desde princípios do medievo, chegando ao século XIV cada vez mais
definidas.

56
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

Ainda que criticado pelos cistercienses por ser mais atrativo aos
olhos que à alma, de forma específica por São Bernardo de Claraval e
São Boaventura, o uso de imagens e cores nos templos foi o método
chave para fomentar uma nova proposta espiritual, embasada em
uma fé individualizada e fortalecida, refletida nos princípios da
estética gótica. Enquanto instrumentos de catequização da população
como um todo, os vitrais aqui analisados detêm, como temática
predominante, a representação de santos acompanhados de seus
símbolos, que, em grande medida, provinham do meio natural. No
vitral de São João Evangelista (1397), a águia, ave cujo voo atinge
elevadas altitudes, representa a profundidade e espiritualidade do
evangelho de João, aparecendo acima da imagem do santo cujas vestes
em azul e vermelho lembram sua grandeza e sacrifício (Figura 1). Já no
vitral de São Pedro (1380), seu símbolo, o galo, vem representado em
destaque, abaixo da imagem do santo, que aparece de túnica vermelha
e manto verde, em indicação ao sacrifício e à fé (Figura 2). Recorrente
no cotidiano daquela cidade, na qual era comum a criação de animais
e o cultivo de plantas no fundo das casas (BATLLE I GALLART,
2011), o galo fazia memória à traição de Pedro. O Vitral de São
Nicolau de Bari (1405), por sua vez, traz como símbolo do santo
padroeiro dos navegantes o mar, representando a cena de um dos
principais milagres de São Nicolau: a salvação de quatro navegantes
de um naufrágio (Figura 3). O meio marítimo, uma das principais
hostilidades ao homem, segundo o pensamento medieval, estaria
cercado de perigos reais e imaginários, que iam de piratas a monstros
marinhos, habitantes das profundezas desconhecidas de mares e rios.
Por outro lado, o mar como instrumento divino seria guia do homem,
a exemplo das águas pacíficas que levaram os discípulos de São Tiago
de Jerusalém à Galiza, revelando-se, inclusive, um local aprazível, de
tranquilidade e beleza (MOLINA MOLINA, 2000), uma verdadeira
paisagem. Simultaneamente, a navegação foi uma das maiores bases
do comércio medieval, atividade comum e necessária a diversas
populações. Barcelona enquanto uma das principais rotas marítimas

57
Lorena da Silva Vargas

do mediterrâneo, respirava histórias, lendas e relatos de viagens


pelo mar, que se tornava parte da memória local. Nesse contexto,
dedicar um vitral da Catedral a um dos mais aclamados padroeiros
dos navegantes, ressaltando seu milagre, fomentava reconhecimento
e proximidade aos fiéis, que identificavam na cena o mar cotidiano,
temido e amado.

Figura 1 Figura 2

Vitral de São João Evangelista, 1397. Vitral de São Pedro, 1380.


Arquivo pessoal. Arquivo pessoal.

58
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

Figura 3 Figura 4

Vitral de Santa Maria Madalena,


Noli me tangere, 1495.
Arquivo pessoal.

Vitral de São Nicolau de Bari, 1405.


Arquivo pessoal.

O meio circundante aparece ainda como fundo em outros vitrais. No
que se dedica a Santa Maria Madalena, também conhecido como Noli me
tangere (1495), único vitral a apresentar uma cena bíblica na Catedral, a
vegetação ao fundo e a representação do céu cumprem o papel de criar
um ambiente condizente à cena da ressurreição de Jesus e transmitir as
emoções vinculadas àquele momento triunfante presenciado por Maria

59
Lorena da Silva Vargas

Madalena: Cristo que vence a morte (Figura 4). O vermelho, presente


no manto e cabelos da santa, simbolizaria por um lado seus pecados e
por outro o sacrifício de Cristo, seu sangue e sua paixão, que a redimem.
Suas vestes, em azul e púrpura, indicariam o poder celeste conquistado
pela conversão, enquanto o manto branco de Jesus seria indicador de
sua pureza e renovação. Construía-se, reconhecia-se e difundia-se, dessa
maneira, a imagem e o imaginário de Maria Madalena. No vitral dedicado
a São Silvestre (1386), tal como ocorre em outros vitrais da Catedral,
observa-se, em um contexto de consolidação da urbe, a presença de uma
paisagem urbana representada por uma catedral branca, com pilares
adornados por gárgulas em uma nítida referência ao estilo gótico da
Catedral de Barcelona, sem renunciar, entretanto, a presença do meio
natural a partir de referências florais ao longo da obra (Figura 5).
O estreito vínculo entre homem e natureza no medievo, respaldado
pelos usos simbólicos que aderiu a religião, consistia, pois, em perspectiva
que ultrapassava o ambiente rural e adentrava as cidades, que remetiam
por toda parte à natureza em formas, cores e simbolismo, ao passo que
o vínculo entre o humano e o natural ganhava nas artes e na ciência
novo aporte. Frente ao desenrolar da vida urbana, novas relações com
o espaço precisaram ser estabelecidas a fim de conservar, dentro dos
limites das muralhas, a presença natural junto ao homem da cidade. Para
além de hortos medicinais e plantas cultivadas com fins alimentícios,
encontravam-se, no século XIV, jardins cultivados para e por prazer no
pátio das casas barcelonesas (BATLLE I GALLART, 2011, p. 16), em
uma nítida vivência da perspectiva paisagística daquele momento. Como
defende Carlos Barros (1999, p. 193), ainda que dicotômica, a interação
estabelecida entre homem e natureza era salutar, necessária para a
manutenção e o equilíbrio do meio. No ambiente medieval, cada ser, real
ou maravilhoso, havia sido criado por Deus, cumprindo um propósito na
vida humana para o auxílio ou para a provação. A essência, encontrada
em todo o ecossistema, sopraria na consciência de preservação de bosques
e águas, não apenas por serem consideradas dádivas divinas, e por isso
dignas de zelo, mas pela necessidade de garantir o sustento humano
diário e sua autopreservação, afinal, o homem é parte da natureza.

60
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

Emergiam-se, pois, medidas como a de Alfonso X, que, no século XIII,


proibiu incêndios e corte de árvores sem a autorização real como meio de
controle dos bosques.3

Figura 5 Figura 6

Vitral de São João Evangelista, 1397. Vitral de São Pedro, 1380.


Arquivo pessoal. Arquivo pessoal.

3
Acerca dos cuidados medievais voltados à natureza ver: CHAFUEN, Alejandro. El
pensamento católico medieval sobre los bosques, los animales y el subsuelo, Revista
Cultura Económica. 31 (86): 7 – 18, 2013.

61
Lorena da Silva Vargas

Enquanto ornamentação, a natureza aparece em todos os vitrais,


especialmente por meio de motivos florais. No vitral de Santo Antônio
Abade (1405), as laterais são ornadas com lírios brancos, flor símbolo de
pureza e associada à Virgem Maria, enquanto no topo da obra há três
flores cujas pétalas são estrelas de oito pontas. Na primeira flor, tem-se o
escudo de Barcelona ao centro e, nas inferiores, aparecem a lua e o sol,
respectivamente à esquerda e à direita (Figura 6). A utilização estética da
natureza aplicada ao templo tornou-se um atrativo ao olhar, um apelo
emocional em prol da espiritualidade e uma oferta a Deus que tudo via,
inclusive os mais minuciosos detalhes das abóbadas e dos vitrais.

Considerações finais
O espaço dado à natureza a partir da arte indica não somente a
forma como o homem medieval interagia com o meio fisicamente e
desfrutava de seu valor utilitário, de sua matéria-prima, mas possibilita
compreender a perspectiva cultural de natureza a partir do imaginário,
as interações emocionais que eram estabelecidas. A arte consiste, para
tanto, em veículo primordial de memória sobre a qual abrigam-se ideias,
propósitos, historicidade e emoções. Mais que retratar imageticamente
o ambiente natural sob valores religiosos e simbólicos – não apenas
pautados nas Sagradas Escrituras, mas no meio circundante –, o
vitral abre espaço às expressões físicas da natureza, das quais a luz é a
protagonista, tornando-se uma forma artística ímpar ao acolher suas
múltiplas manifestações. A relação do homem com a natureza no final da
Idade Média, assim, faz-se conhecida a partir da análise dos vitrais não
apenas por meio de sua origem material, das representações pictóricas
neles contidas enquanto elemento artístico – que difunde uma imagem
e uma memória dos santos e de Cristo em detrimento da criação mental
realizada por cada indivíduo a partir da oralidade e da leitura – ou frente
a sua função utilitária de veículo luminoso, mas enquanto objeto vivo
no espaço religioso, que toma por modelo o ambiente natural enquanto
espelho de Deus. Os templos e o ser humano tornam-se microcosmos,

62
Da imagem à matéria: a natureza nos vitrais da Catedral de Barcelona (séculos XIV e XV)

os vitrais e as cores tornam-se organismos vivos regidos pelo curso do


sol, das estações, da passagem do tempo: “Se encienden y se apagan,
viven y mueren” (PASTOUREAU, 2013, p.157). A natureza, mediante
os vitrais na qualidade de instrumento artístico, foi a linguagem que
possibilitou a comunicação entre igreja e fiéis a partir de sua representação
imagética associada à presença física, preenchendo o templo de luz, vida
e espiritualidade.

Referências
BARROS, Carlos. La humanización de la naturaleza en la Edad Media, Edad
Media, Valladolid. Universidad de Valladolid. 2: 169 – 194, 1999.
BATLLE I GALLART, Carme, VINYOLES I VIDAL, Teresa. Mirada a la Barcelona
medieval des de les fenestres gòtiques. Verdaguer: Rafael Dalmau, Editor, 2011.
BAZZOCCHI, Flavia. Las vidreiras góticas mediterráneas: composición química,
técnica e estilo. El caso concreto de Barcelona y Siena em el siglo XV. Tese de doutorado.
Universitat de Barcelona, 2012.
CHAFUEN, Alejandro. El pensamento católico medieval sobre los bosques, los
animales y el subsuelo, Revista Cultura Económica. 31 (86): 7 – 18, 2013.
ECO, Humberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2017.
MADERUELO, Javier. El paisaje. Génesis de un concepto. Madrid: Abada Editores,
2013.
MOLINA MOLINA, Ángel Luis. Los viajes por mar em la Edad Media, Cuadernos
de Turismo. 5: 113 - 122, 2000.
NIETO ALCAIDE, Víctor. La Luz, símbolo y sistema visual: el espacio y la luz en el
arte gótico y del Renacimiento. Madrid: Cátedra, cop. 1978.
PASTOUREAU, Michel. Una historia simbólica de la Edad Media occidental.
Madrid: Katz, 2013.
RODRÍGUEZ BOTE, María Teresa. La visión estética del paisaje en la Baja Edad
Media, Medievalismo. 24: 371 - 397, 2014.
RUCQUOI, Adeline. La percepción de la naturaleza en la Alta Edad Media, Natura
i desenvolupament. El medi ambient a l’Edat Mitjana, Lleida. Pagès editors. 73 - 98,
2007.
SEBASTIÁN, Santiago. Mensaje simbólico del arte medieval. Madrid: Ediciones
Encuentro, 2009.
TARANILLA DE LA VARGA, Carlos Javier. Breve historia del Gótico. Madrid:
Nowtilus, 2017.

63
Psicopolítica e Imaginário
da Natureza no Jardim
das Delícias Terrenas de
Hieronymus Bosch
Pedro Henrique Corrêa Guimarães1

Hieronymus Bosch. “O Jardim das Delícias Terrenas” (1504). Óleo sobre madeira.
Museo del Prado, Madrid.

1
Bacharel em Direito e Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
E-mail: pedrocorreaguimaraes@yahoo.com

64
Psicopolítica e Imaginário da Natureza no Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch

Detalhe parte externa do quadro.

1º§
A associação me fez querer pesquisar mais sobre a ligação entre natureza
e pintura, tomando a tela como símbolo do imaginário dessa relação no final
do medievo e início da modernidade. Valho-me, portanto do paradigma
indiciário de Carlo Ginzburg e de algumas imersões psicopolíticas tal qual
formulado pelos filósofos Peter Sloterdijk e Byung Chul-Han2, para que, pela
história da arte, possamos jogar luz sobre um problema contemporâneo, a
relação do homem com a natureza, perfilando a mesma preocupação de Di
Caprio (Before the flood? [Seremos História] Netflix, 2016).

2º§
Jheronumus van Aken nasceu na cidade de Den Bosch (também
conhecida como ‘s-Hertogenbosch) nos Países Baixos, por volta do ano
1450 (data incerta segundo a historiografia). A sua biografia também é
incerta. Sabe-se que tinha uma vida tranquila na cidade holandesa e que
sua família tinha estreitas relações com o bispo da Catedral de São João,
aí, talvez, tenham começado as pinturas de cunho litúrgico.
2
CHUL-HAN, B. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. São Paulo:
Editora Ayiné, 2018.

65
Pedro Henrique Corrêa Guimarães

Bosch também é conhecido pelas obras O juízo final, Os setes pecados


mortais, a Nau dos Insensatos e Tentações de Santo Antão, esta última
compõe o acervo do Masp em São Paulo3. Seus quadros são feitos em
tinta a óleo sobre madeira, geralmente em trípticos (composição de
três partes) contendo dramas religiosos, como se vê em outros pintores
renascentistas, como Caravaggio. Porém, a composição difere-se de
outros mestres da renascença porque a figura humana não é o centro de
sua composição. As suas obras adotam um cenário mais aberto, com um
jogo intenso de luz e sombra e conflitos, como se vê em A tentação de
Santo Antão:

A tentação de Santo Antão. Acervo do Masp. Óleo sobre madeira (1500)

3
SLOTERDIJK. Ira e tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.

66
Psicopolítica e Imaginário da Natureza no Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch

Dentro da visão tradicional da historiografia da Arte (GOMBRICH,


1999), as pinturas de Bosch contêm traços renascentistas (pontos de
fuga, contrastes intensos) e forma/estrutura medieval (pintura sobre
madeira, ângulos abertos, representação humana sem acentuação física
dos corpos). Bosch se configura, assim, como um típico pintor da
transição de épocas.

3ª§
O Jardim das Delícias Terrenas é a pintura mais conhecida de Bosch,
concluída provavelmente no ano de 1504. Para Hans Belting  (apud
WUNDRAN, 2005) a obra fora feita por encomenda de Henrique
III, da casa de Nassau. Porém, o que se sabe precisamente é que fora
adquirida por Felipe II, em 1593, em um leilão, permanecendo por
muito tempo no Mosteiro do Escorial. Desde 1936, ela compõe o
acervo do Museo del Padro em Madrid, por imposição do governo de
Franco.
A parte externa da obra é conhecida como A criação do mundo no
terceiro dia. A imagem representa a figura de um globo terreno e contém
a inscrição ipse dixit et facta s(ou)nt / ipse man(n)davit et creata s(ou)nt,
que pode ser traduzida como Ele o diz e tudo foi feito. Ele o mandou e
tudo foi criado, correspondendo ao salmo bíblico número 33. O interior
possui três partes, o Jardim do Éden (painel esquerdo na perspectiva do
espectador), o Jardim das Delícias (painel central, de maior dimensão) e
o Inferno (painel da direita). Esbocemos assim uma pequena análise de
cada uma dessas partes.

67
Pedro Henrique Corrêa Guimarães

I – O Éden

O painel do Éden possui, em primeiro plano, as figuras de Adão e


Eva intermediadas por Cristo (ou Deus). Mais ao fundo, vemos a fonte
da vida e a paisagem composta por animais. A cena é predominantemente
idílica. A coloração possui um cromatismo intenso e variado, com o
predomínio do verde e do azul. A iluminação é clara e a sombra incide

68
Psicopolítica e Imaginário da Natureza no Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch

sobre a parte de baixo da tela à direita e atrás das figuras humanas


representadas. Porém observa-se ao centro e à direita uma imersão de
répteis sobre a rocha, indicando uma tensão nascente (répteis associados
à cobra, símbolo da queda).

II – As Delícias

O painel central, o Jardim das Delícias, é certamente o mais


complexo. A cena é permeada de grupos humanos, sexualmente
indiferenciados, de várias raças. Há presença de estruturas estranhas na
parte superior da imagem, que parecem representar flores como edifícios
humanos. Na parte central, uma horda de pessoas montadas em animais,
outras estão imersas em bolhas sobre as águas e, na parte inferior, outro
grupo de pessoas em cenas eróticas.
É interessante observar alguns aspectos da composição. Para Bosch, o
antropocentrismo e a formação da comunidade humana estão associados
à dominação animal (homens montados em animais), mas, ao mesmo

69
Pedro Henrique Corrêa Guimarães

tempo, há uma certa simbiose do humano com o vegetal (pessoas dentro


de plantas) e animal (pessoas com animais). Existe ainda a marca do
pecado e do devaneio. A representação coloca, assim, o humano como
parte da natureza, mas também como um ser transcendente. E essa
capacidade de estar dentro e ao mesmo tempo transcender a natureza é a
própria delícia terrena.

III - O Inferno

O terceiro painel representa o inferno em suas conotações escuras


e tenebrosas. Há profusão de formas e figuras estranhas e as pessoas
estão sendo subjugadas por essas figuras. O incêndio e o fogo marcam
a parte superior da imagem, enquanto que no centro há um rio turvo.

70
Psicopolítica e Imaginário da Natureza no Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch

Na parte inferior, predomina a morte, a dor, o desespero. A presença


musical também ganha forma na imagem, com vários instrumentos
musicais compondo-a. No centro há um “homem-árvore”, marcando a
indistinção entre a natureza e os homens.

IV- A tríade
Os três painéis representam uma continuidade de luz, menos
intensa no primeiro painel, mais intensa no segundo e quase ausente
no terceiro, tal qual um ciclo diário entre a aurora e o crepúsculo.
Há ainda uma gradação da inserção do humano no natural, que
desemboca numa cena apocalíptica. O irrealismo ou surrealismo das
figuras é crescente, sendo que, no inferno, boa parte das formas não
são identificáveis.
O que então podemos dizer que Bosch está representando? Por
essas pontuações, ele representa uma tipologia da relação humano-
natureza, relação essa marcada por uma imanência, mas também por
uma transcendência. As imagens apontam que o humano é aquele que
está inserido no natural, mas dele procura escapar. Mas a natureza é
inescapável e, por isso, as pessoas estão condenadas à submissão. Vemos
também uma fuga de Bosch para o surreal, que inspirou, muito tempo
depois, figuras da vanguarda com Dali. Bosch é um pintor de aura
barroca, marcado pelo conflito entre vida e morte, luz e sombra, dor e
felicidade, imanência e transcendência.

4ª§
No primeiro volume de sua trilogia Esferas4, o filósofo alemão Peter
Sloterdijk lê o Jardim das Delícias Terrenas de Bosch5 como um prenúncio
da criação da intimidade. A intimidade, para ele, é como bolhas nas quais
4
SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas (José Oscar de Almeida Marques, Trad.). São Paulo:
Estação Liberdade, 2016.
5
A capa da versão brasileira de Esferas, editada e publicada pela Estação Liberdade, é
estampada pela própria obra de Bosch.

71
Pedro Henrique Corrêa Guimarães

os homens inserem sua individualidade. Em sua ontogênese dos espaços,


Sloterdijk mostra como a noção do que veio a ser chamado de intimidade
pela tradição filosófica tem a ver com a construção de espaços simbióticos,
zonas de transição. Como se, retomando a expressão derridiana, o humano
fosse a reprodução filogenética do útero. A humanidade constrói-se,
assim, pela criação de zonas de conforto, segurança e proteção, tal qual a
cena central de Bosch.
Como afirma Sloterdijk:
Nós temos que falar de espaços porque os humanos são, eles-
mesmos (themselves), um efeito do espaço que criam. A evolução
(evo-lution) humana só pode ser entendida se nós também tivermos
em mente o mistério do insulamento/fabricação de ilhas [Insulierungs-
geheimsis], que então define a emergência de humanos: humanos são
animais domésticos que domesticaram a si mesmos em incubadoras
de culturas primevas. Todas as gerações antes da nossa estavam cientes
de que você não pode acampar do lado de fora, na natureza. Os
acampamentos dos ancestrais do homem, datando de cerca de milhões
de anos, já indicavam que eles estavam distanciando a si mesmos de
seus arredores.6
Assim, o filósofo alemão percebe, na obra de Bosch, o nascimento
de uma psicopolítica, uma política de afetos que intersecciona o social
com o natural. A modernidade surge, assim, para Sloterdijk, como um
momento em que os afetos, a intimidade, ascendem à esfera pública.

5ª§
A pintura de Bosch, vista por esse preceito psicopolítico, é tomada
como uma tensão entre o interior e o exterior, como uma tensão entre
intimidade e natureza. O humano é um ser-com o natural, parafraseando
Heidegger. A natureza está no homem, mesmo quando ele tende a querer
transcendê-la. O homem moderno é aquele que procura criar zonas de
6
SLOTERDIJK, Teoria das esferas. Conversando comigo mesmo sobre a poética do
espaço, Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VI, nº 1, Tradução de
Giovane Martins e Vitor Ferreira Lima, 2015, p. 86.

72
Psicopolítica e Imaginário da Natureza no Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch

conforto, mesmo quando circundado por natureza. O homem moderno


é aquele que procura dominar a natureza, num projeto escatológico e
fadado à crise na simbologia do pintor holandês.
E, por esta análise, podemos ver na arte ferramentas para entender
melhor o mundo em que vivemos, o mundo da crise ambiental. É preciso
que o homem escreva uma nova história de sua relação com a natureza,
uma relação simbiótica, mas não destrutiva para que o éden não se
transforme no inferno e para continuarmos a existir, tal qual acentua o
documentário supracitado do ator americano.

Referências
CHUL-HAN, B. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. São
Paulo: Editora Ayiné, 2018.
GOMBRICH, E. História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
SLOTERDIJK, P. Esferas In: bolhas (José Oscar de Almeida Marques, Trad.). São
Paulo: Estação Liberdade, 2016.
____________. Ira e tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
____________. Teoria das esferas. Conversando comigo mesmo sobre a poética do
espaço, Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VI, nº 1: 86-105,
Tradução de Giovane Martins e Vitor Ferreira Lima, 2015.
WUNDRAM, O Pré-Renascimento» em Os mestres da pintura ocidental, Taschen,
2005.

73
O Romantismo em Der Mönch
Am Meer, de Caspar David
Friedrich: Indivíduo e Natureza
Murilo Gonçalves1

A intenção deste texto é realizar um breve exame de um quadro de


Caspar David Friedrich sob a perspectiva dos elementos constitutivos
do romantismo alemão, buscando, assim, apresentar aquilo do qual
tal pintura é, supostamente, a expressão visual. Trata-se, com efeito, de
investigar o “romantismo” no quadro Monge à Beira-mar (Mönch am
Meer), considerando que a investigação traz consigo a ideia de que tal
relação não seja óbvia, isto é, da impossibilidade de que o significado
de uma obra seja simples e esquematicamente compreendido a partir
do recurso a certa tradição à qual, a princípio, ela venha a pertencer.
Amiúde, o movimento que se realiza deve ser o oposto. De todo modo,
o romantismo se revela como uma complexa categoria de periodização.
Por trás dela, oculta-se um conjunto vasto de manifestações pertencentes
aos mais variados âmbitos da cultura e que tomaram lugar ao longo
de um intervalo cronológico que contempla o fim do século XVIII e
percorre todo o século XIX.2 Não obstante, sua variedade de expressões
é perpassada por um fundamento de caráter filosófico responsável, não
somente, no âmbito formal, por conferi-la unidade, mas também por,
1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG). Bolsista
CAPES. E-mail: murilogoncalves.hist@gmail.com.
2
De qualquer forma, pode-se concordar com Rüdiger Safranski, para quem “o Roman-
tismo é uma época. O romântico uma mentalidade [Geisteshaltung] que não pode ser
limitada a uma época” (SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affäre. München:
Carl Hanser Verlag, 2007, p. 12).

74
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

em suas interpretações mais radicais, elevar o estatuto da arte ao ponto


no qual ela passa a ser concebida como forma primordial da expressão
humana. É o que se verifica, ao menos, no caso do romantismo alemão,
tópico privilegiado no presente texto. Diante disso, pretende-se, em um
primeiro momento, evidenciar tal fundamento filosófico e, ulteriormente,
identificar, na obra de Friedrich, pontos de convergência com os aspectos
teórico-conceituais derivados de tal fundamento. Como será exposto, a
partir dele, uma determinada forma de conceber a relação entre indivíduo
e natureza toma lugar.
*
Os traços constitutivos da “filosofia romântica” podem ser
observados, dentre outros sistemas3, a partir do idealismo crítico
de Johann Gottlieb Fichte, em sua tentativa de desenvolvimento
de uma teoria transcendental da subjetividade. A filosofia de Fichte
engendrou uma nova concepção de intuição, considerada o princípio
da autoconsciência, a consciência infinita e livre que cria seu mundo
circundante, ou melhor, que tem essa capacidade criativa em potência,
isto é, a possibilidade de tudo criar. Considere-se, por exemplo, o texto
O Fundamento da Doutrina da Ciência4, produzido e publicado entre
1794 e 1795. Em linhas gerais, o propósito da doutrina-da-ciência se
encontra em conformidade com uma certa tradição de pensamento
voltada a explicar a representação, a determinar as bases de qualquer
saber possível, elevando esses saberes, a filosofia, ao estatuto de ciência.
Entretanto, o projeto da doutrina-da-ciência buscou responder à mesma
demanda de uma forma original: se, em Immanuel Kant, a unidade entre
os aspectos teórico-perceptivos e práticos da consciência intencional é
3
Por um lado, no pensamento estético de Kant e Schiller e, por outro lado, na Filosofia
da Natureza de Schelling e na Filosofia da História de Hegel. Como será demonstrado,
a opção por Fichte tem por objetivo explicitar a especificidade da filosofia romântica
a partir das semelhanças e disparidades com o projeto filosófico fichteano, levando em
consideração sua repercussão no meio intelectual alemão.
4
Título original: Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre. Cf. FICHTE, J. G. A
Doutrina da Ciência de 1794. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Fichte
(Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1984.

75
Murilo Gonçalves

um dado e, para Karl Leonhard Reinhold, crítico de Kant, a faculdade da


representação, enquanto estrutura geral da consciência, seria a base de tal
unidade, em Fichte, por sua vez, existe a busca de algo simultaneamente
superior e anterior à estrutura da representação.5 Trata-se, portanto, de
um princípio pré-representacional e incondicionado do qual todos os
outros derivariam: o “eu absoluto”, cuja descoberta permitiria esclarecer
a estrutura da representação e seus princípios, bem como os fatos da
consciência que engendra a representação. Esse processo perpassa as três
partes nas quais se encontra dividida a Grundlage. Nela, Fichte estabelece
os princípios que dirigem a doutrina-da-ciência e dos quais se depreende
a síntese fundamental; em seguida, investiga, na parte teórica, uma série
de hipóteses até que, da refutação delas, chega ao “factum indubitável”, a
saber, à intuição como produto da imaginação.
Como ponto de partida, Fichte deduz de proposições lógicas os
princípios fundamentais da doutrina-da-ciência. Tais proposições tomam
lugar de fatos da consciência representacional a partir dos quais é possível
remontar aos atos fundamentais do “eu absoluto” que engendram tais
fatos. Esse eu “deve exprimir aquele estado-de-ação [Tathandlung], que
não aparece nem pode aparecer entre as determinações empíricas de nossa
consciência e é o único que a torna possível”6. O eu como Tathandlung,
como ato, é oposto ao eu como Tatsache (estado-de-coisa), como fato da
consciência. Dessa forma, partindo do princípio lógico da identidade,
Fichte chega ao ato fundamental do eu absoluto de pôr (setzen) “pura
e simplesmente” em si realidade como condição de possibilidade de
todas as coisas. De modo semelhante, partindo do princípio lógico
da negação enquanto um fato irrefutável da consciência, Fichte chega
ao ato de opor (gegensetzen). Essa oposição deve ser em relação ao eu,
condicionada por ele, o único pura e simplesmente posto, portanto, um
não-eu deve ser oposto ao eu. Como corolário das duas operações, surge
um ato de caráter sintético como necessidade de unificar eu e não-eu:
5
KLOTZ, C. Fichte’s Explanation of the Dynamic Structure of Consciousness in the
1794-95 Wissenschaftslehre. In: JAMES, D.; ZÖLLER, G. (org.): The Cambridge
Companion to Fichte, Cambridge: Cambridge University Press, 2016, pp. 66-67.
6
FICHTE, 1984, p. 43.

76
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

uma síntese fundamental, originária, exprimida pela proposição: “o eu


põe o não-eu como limitado pelo eu”7 adaptada posteriormente para “o
eu se põe como determinado pelo não-eu”8. Conclui-se, com efeito, a
instauração do eu absoluto, como atividade irrestrita, pura, ilimitada,
o qual faz todas as suas atividades variações, predicações de um “pôr de
si mesmo”; subsequentemente, a concepção de não-eu (como negação
pura e simplesmente oposta ao eu). O eu põe-se ativamente como sendo
passivo e afetado, uma oposição mútua entre atividade e passividade
responsável por engendrar uma determinação recíproca. Finalmente, é
estabelecida a síntese fundamental, na qual a coexistência dos opostos,
atividade e passividade, é sinteticamente resolvida e cuja análise culmina
na dedução da representação.
Ao longo da exposição, a ideia de síntese é reformulada: não somente
entre eu e não-eu finitos, mas também entre infinitude e finitude, entre
eu absoluto e eu finito (eu como sujeito que se relaciona com um objeto),
cuja tarefa de sintetizar pertence ao próprio eu. Diante da impossibilidade
lógica da faculdade do pensamento de realizar tal empreendimento, na
medida em que pensar finitude e infinitude unificadas constituiria uma
contradição, chega-se à imaginação produtiva (Einbildungskraft), única
faculdade capaz de realizar tal unificação. Aqui, a imaginação tem um
papel anterior, tem uma função mais fundamental ao sintetizar finito
e infinito, produzindo assim a intuição e, subsequentemente, tempo e
espaço. Para Fichte, a representação só seria possível quando o eu sintetiza,
além de eu e não-eu, infinitude e finitude. A consciência (eu limitado)
está no intervalo entre infinitude e finitude. A malograda tentativa de
“unificar o não unificável” produz a alternância do eu consigo mesmo.
A faculdade da imaginação realiza-o, de uma forma peculiar: com uma
alternância na qual existe a tentativa de unir. A unificação não chega,
portanto, a ser uma síntese (ou é um tipo muito específico de síntese),
pois não é possível que o eu contenha os dois estados ao mesmo tempo.
A tentativa é frustrada. Em vez de unificar, opera o movimento de um ao
outro, oscila (schwebt) entre os dois extremos, em busca de um equilíbrio.
7
Ibid., p. 64.
8
Ibid., p. 75.

77
Murilo Gonçalves

Entre determinação (eu concreto, finito) e indeterminação (eu absoluto,


infinito) existe o potencial sintético de determinabilidade fornecido pela
faculdade da imaginação produtiva. Ela não determina um limite fixo,
tampouco possui ponto fixo.9
O oscilar entre extremos não unificáveis gera a intuição e,
consequentemente, a estrutura temporal e espacial. A intuição é algo
determinável, portanto, apresenta determinações em potência, tem uma
infinita determinabilidade. Coerentemente à intuição, tempo e espaço são
grandezas contínuas, determináveis, suas extensões podem ser divididas e,
por conseguinte, determinadas infinitamente. O eu sempre está em fluxo
espaço-temporal; nesse sentido, é determinado, mas logo indeterminado,
pois sempre flui. A intuição, como produto da imaginação, opera de tal
modo que o eu nunca se encontra em uma determinação concreta, está
sempre situado para além dela, escapa à fixidez. Nesse sentido, apresenta-
se um contraste entre intuir e pensar: o segundo fixa (determina conceitos,
por exemplo) enquanto o primeiro flui determinavelmente. Desse modo,
uma correspondência entre a intuição e a natureza do eu absoluto pode
ser identificada: o eu existe nessa perpétua oscilação e, por conseguinte,
em um perpétuo ansiar (Sehnen) por definição. O limite posto pelo eu a
si mesmo e ao não-eu passa a ser a intuição, a qual é, por um lado, um
estado do eu e algo que se refere ao não-eu. Para Fichte, a representação
seria necessariamente intuição criada pela imaginação produtiva. Nesse
sentido, o representar é também infinito. O modo de ser do eu enquanto
consciência é fundamentalmente o intuir. Ela (consciência) é, de certo
modo, inacessível ao pensamento. Em seu fluxo infinito, possui aspectos
que só podem ser intuídos, mas não pensados.10 O pensamento é possível
9
FICHTE, 1984, pp. 113-117.
10
Com efeito, o estatuto do “eu penso” é rebaixado, pois, para Fichte, não é a atividade
fundamental do eu, apenas exprime uma determinação de sua atividade pura, uma
entre outras (como sentir, representar etc.). Significa, portanto, uma limitação, uma
passividade: é um ato do eu como substância e não como infinitude. Dessa forma,
há uma crítica a certa tradição de pensamento, sobretudo a Kant, na qual o “eu pen-
so” tem estatuto do ponto mais alto da filosofia transcendental, como autoconsciência
originária, produto de uma espontaneidade pura. Essa concepção é determinante para
fundamentar o romantismo em termos filosóficos (Ibid., p. 73).

78
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

em um segundo momento, já supondo uma intuição precedente. E,


se cabe ao pensamento fixar, determinar as representações outrora em
um fluxo infinito de determinabilidade, ao entendimento, para Fichte,
seria designada a tarefa de ser apenas receptáculo da síntese criada pela
imaginação produtiva por meio da intuição da qual resultam os pontos
fixados pela razão.11
*
Ora, como se sabe, a filosofia de Fichte causou grande impacto
no meio artístico e intelectual alemão.12 A recepção de seus textos,
seja positiva ou negativa, caracteriza etapa fundamental no processo
de formação daqueles que viriam a ser os elementos constitutivos do
romantismo alemão em sua fase inaugural. Inspirados por Fichte (mas
não somente), poetas como Friedrich Schlegel, Novalis (Georg Philipp
Friedrich von Hardenberg) e Friedrich Hölderlin desenvolveram
muitas de suas ideias, amiúde, resultado de interpretações muito
particulares de reflexões e conceitos do filósofo alemão. Nessa lógica
pode ser compreendido, por exemplo, o projeto romântico da poesia
universal progressiva (progressive Universal poesie) empreendido por
Schlegel e Novalis, cujos pressupostos dialogam com a filosofia de
Fichte. Ademais, compartilham as ideias da consideração do sujeito
enquanto potência criadora, pura e livre (o “eu absoluto” fichteano),
como também enquanto unificador de opostos dentro dos quais se
encontra em oscilação. Disso resulta a exaltação de uma determinada
concepção de imaginação, faculdade humana que opera a articulação
entre finitude e infinitude e, por conseguinte, considerada a faculdade
fundamental, em detrimento de uma “razão científica”. Por fim, também
ocorre uma aproximação frente à conclusão de que o estado oscilatório
é perpétuo e, portanto, que a humanidade, representada pela figura do
indivíduo, encontra uma limitação na incapacidade de realizar uma
síntese definitiva.
11
FICHTE, 1984, pp. 115-120.
12
Cf. SAFRANSKI, 2007, pp. 70-88.

79
Murilo Gonçalves

Se, por um lado, os aspectos citados correspondem a uma espécie de


harmonia entre Fichte e Schlegel, Novalis e Hölderlin, por outro lado,
grandes divergências impedem qualquer possibilidade de identificar o
projeto filosófico do primeiro no dos três últimos. Primeiramente, pelo
próprio ponto de partida: ao passo que Fichte defendia uma filosofia
científica (tal poderia ser uma tradução para Wissenschaftslehre), a qual,
por conseguinte, deveria edificar-se a partir de um princípio absoluto e
incondicionado (o “eu absoluto”), Schlegel e os demais, abjurando tal
possibilidade13, promoviam uma poesia filosófica14, ao fim, uma nova
concepção de filosofia que, conjuntamente à arte e à ciência, deveria
ser expressa pela poesia universal progressiva15, que engendraria uma
experiência estética mediante a qual o homem se aproximaria daquilo
que seu ser tem de mais essencial e ao qual a consciência guiada pela
razão não teria acesso. O caráter progressivo de tal poesia está na crença
da incapacidade de constituir um conhecimento absoluto, o que, com
efeito, atribui a ele a condição de uma busca infinita em direção à
verdade. Portanto, com Schlegel e outros, o romantismo abandona as
pretensões racionalistas e atribui à experiência estética o estatuto mais
13
Tal descrença é explicitamente manifestada em um fragmento de Hölderlin intitulado
Juízo e Ser (Urteil und Sein): “Onde sujeito e objeto estão unidos pura e simplesmente,
não apenas em parte, mas unidos de tal modo que nenhuma divisão possa ser efetuada
sem ferir a essência [Wesen] daquilo que deve ser separado, aí e em nenhum outro lugar
pode haver um discurso de um ser por excelência [Sein schlechthin]” (F. HÖLDERLIN.
Fragmento: Juízo e Ser. In: IBER, C.; BARBOSA, N. Hölderlin, o fragmento Juízo e
Ser e alguns poemas. Porto Alegre: Editora Fi, 2014, pp. 12-13).
14
Pressuposto básico dos Athenäum-Fragmente, de Schlegel. Para um comentário a res-
peito de seu processo de composição, seus temas e sua recepção, ver: ENDRES, J. Frie-
drich Schlegel Handbuch. Leben – Werk – Wirkung. Stuttgart: J. B. Metzler Verlag,
2017, pp. 146-152.
15
No Fragmento 116, Schlegel afirma que “a poesia romântica é uma poesia universal
progressiva. Seu propósito não é apenas o de reunificar todos os gêneros separados da
poesia e colocá-la em contato com a filosofia e a retórica. Ela também quer, e deve,
fundir às vezes, às vezes misturar, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística
e poesia natural [Kunstpoesie und Naturpoesie]” (SCHLEGEL, F. Kritische Friedrich
Schlegel Ausgabe. Erste Abteilung. Kritische Ausgabe. Band 2: Charakteristiken
und Kritiken I (1796-1801). BEHLER, E.; EICHLER, H. (Hrsg.). München, Pader-
born, Wien, Zürich: Verlag Ferdinand Schöningh, 1967, p. 182).

80
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

elevado dentre as formas de relação do sujeito com o mundo, isto é,


aquela que mais se aproxima da inexequível síntese entre finitude e
infinitude. Os fragmentos poético-filosóficos são a expressão de tal
visão de mundo, na medida em que representam, em sua singularidade,
parcialidade e ausência de métrica16, a tentativa de atingir o inefável e
o infinito.17
As implicações de tal visão de mundo reformularam a própria
concepção de homem. Se, por um lado, o homem romântico parte de
uma liberdade fundamental e se realiza mediante a obra de arte, por
outro, sua limitação frente à totalidade é reconhecida. O embate dessas
implicações resulta em sentimentos e atitudes caracteristicamente
românticos que podem ser condensados na expressão: Sehnsucht nach
dem Unendlichen, isto é, a “nostalgia frente ao infinito”. O conceito
de Sehnsucht é composto pela união de dois termos: Sehn vem do
verbo sehnen, cujo significado se aproxima do verbo “ansiar”. Sucht,
a seu turno, significa “vício”, de modo que a expressão tem a ver
com uma propensão inevitável em ansiar por algo, a saber, o infinito.
Não se trata de um estado de espírito, mas sim de uma condição
existencial, a qual, com efeito, não possui um valor fixo atribuído ao
seu conteúdo: ao mesmo tempo que produz angústia, também pode
causar aprazimento. Instaura-se assim um estado de ironia. Schlegel,
em suas Ideen, afirma que “a ironia é a clara consciência da eterna
agilidade, do completo e infinito caos”18, corolário da manutenção de
extremos: indivíduo e totalidade, fragmento e unidade, efemeridade
e eternidade. Essa última díade revela uma progressiva atenção à
dimensão da historicidade (Geschichtlichkeit) e, por conseguinte,
16
A questão vai muito além de uma simples crítica ou repulsa ao classicismo. A ausência
de uma definição rígida do próprio romantismo e de métricas para suas produções é
coerente com a forma segundo a qual os autores ditos românticos enxergavam o mun-
do, com a sua Weltanschauung. Essas questões se encontram claramente expressas no
Fragmento 116 de Schlegel.
17
MILLÁN, E. Fichte and the Development of Early German Romantic Philosophy.
In: JAMES, D.; ZÖLLER, G. (org.): The Cambridge Companion to Fichte. Cambri-
dge: Cambridge University Press, 2016, pp. 306-313.
18
SCHLEGEL, 1967, p. 263.

81
Murilo Gonçalves

uma aproximação às filosofias da história.19 A rejeição romântica da


existência de um princípio absoluto que sustentasse a filosofia e a
ciência indica uma “abertura para a história”. Em seu Fragmento 325,
Schlegel afirma que “assim como Simónides chamou a poesia de uma
pintura falante e a pintura de uma poesia silenciosa, pode-se dizer
que a história é uma gradativa filosofia [werdende Philosophie] e que a
filosofia é uma história consumada”20.

*
Como apontado, não apenas os poetas-filósofos, mas também os
músicos e os pintores mantiveram fecundo diálogo dentro da tradição
romântica, de modo que a confluência de elementos e desenvolvimentos
semelhantes é claramente percebida. A reflexão estética sobre a música
na Alemanha durante a maior parte do século XVII foi fortemente
influenciada pelo pensamento desenvolvido na França. A teoria
cartesiana, racionalizadora e mecanizadora dos sentimentos, foi a
base para a Affektenlehre21, isto é, “a ideia de que uma obra musical
deve representar afetos abstratos - um efeito por trabalho - utilizando
figuras musicais estereotipadas”22. Além da obra de René Descartes, os
trabalhos de Charles Batteux e Jean-Philippe Rameau também foram
19
Uma questão que passa por Herder, Kant, Fichte e assume sua forma mais radical em
Hegel. Segundo Jean Hyppolite, “a teoria kantiana da liberdade, desenvolvida com tan-
ta profundidade por Fichte, era ainda uma teoria abstrata. O idealismo filosófico teria a
necessidade de pensar o homem em sua história concreta e de encontrar nela o espírito”
(HYPPOLITE, J. Introducción a la filosofía de la historia de Hegel. Buenos Aires:
Ed. Calden, 1970, p. 12).
20
SCHLEGEL, op. cit., p. 221.
21
A despeito de sua existência desde pelo menos o final do século XVI, a consideração
da representação e condução dos afetos se torna um componente central da estética mu-
sical somente no barroco, onde “tornou-se o principal objetivo do compositor e a base
de inúmeros tratados”. Ademais, “melodia (intervalos), harmonia, ritmo, gradações de
tempo, dinâmica, instrumentação etc. - tudo isso era empregado em razão da imitação
ou representação dos afetos” (VIDEIRA, M. O Romantismo e o Belo Musical. São
Paulo: Unesp, 2014, pp. 59-60).
22
BICKNELL, J. The early modern period. In: GRACYK, Theodore; KANIA, Andrew
(ed.). The Routledge Companion to Philosophy and Music. London/New York:
Routledge, 2011, p. 275.

82
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

fontes de discussão. Johann Mattheson conferiu ênfase à melodia,


tendo como base a retórica musical e a psicologia cartesianas das
paixões, e considerava a melodia instrumental como a expressão sem
palavras da melodia vocal. Não apenas Mattheson, como também
Moses Mendelssohn e Alexander Baumgarten foram figuras centrais
no debate estético alemão. Para Mendelssohn, a música fazia uso de
signos abstratos, como as próprias palavras. Pintura, escultura, dança e
música apelavam mais para os sentidos (sendo, portanto, mais gerais e
indeterminadas), ao passo que a poesia mais para a mente (ao considerar
que a palavra individualiza a expressão). Com efeito, na ópera, por
exemplo, Mendelssohn considerava que a poesia levaria vantagem sobre
a música.23
Nas décadas finais do século XVIII, ocorre uma mudança
significativa na história do pensamento musical: a música instrumental
começa a se tornar dominante. Passou-se a considerar não apenas o ato
de “absorver um som”, mas também a forma de “atividade espiritual que
a música engendra e sustenta”. A ausência de conteúdo proposicional
determinado na música instrumental permitiu sua aproximação ao
âmbito da imaginação. Essa temática é aprofundada e radicalizada ao
longo do século XIX, movimento que configura a passagem de uma
estética racionalista da música para uma romântica. Karl Moritz, nas
décadas finais do XVIII, constata uma separação: “uma ordem interna
e autônoma da arte” distinguida de “suas considerações objetivistas”, o
que, ao fim, “abre a porta para a associação da música com o inefável”.
No romantismo, com efeito, a expressão toma o lugar da imitação e
da representação.24 Com Arthur Schopenhauer, a música é elevada
23
BICKNELL, 2011, pp. 280-281.
24
VIDEIRA, 2014, p. 63. Trata-se do processo da passagem de uma “intersubjetivi-
dade” dos afetos para uma “subjetividade” dos afetos: “a partir do Sturm und Drang
e da estética do gênio, começou o declínio [da] representação objetiva de afetos, que
foi substituída pela expressão de sentimentos do compositor. Já por volta de 1750, os
afetos começaram a ser identificados não mais com estados emocionais racionalizados,
mas sim com emoções pessoais, subjetivas, originadas no compositor”. A expressão da
Stimmung do séc. XIX pouco tem a ver com a “imitação” dos afetos no XVIII (Ibid.,
pp. 63-64).

83
Murilo Gonçalves

ao lugar mais proeminente entre as artes.25 Para ele, o mundo existe,


por um lado, como a pura representação engendrada por e para um
determinado sujeito a partir do princípio de razão; por outro lado, o
mundo existe como vontade, como coisa-em-si em relação à qual a ação
do sujeito é objetivada, mas que em si escapa do princípio de razão, por
ser incondicional e indeterminada. Em sua metafísica do belo, a arte,
de modo geral, apresenta-se como um domínio que se encontra para
além do princípio de razão, isto é, capaz de exprimir as ideias de modo
próprio. À música é atribuído um escopo mais geral e mais profundo: “a
música nunca expressa ou copia o fenômeno, mas unicamente a essência
íntima, o Em-si de todos eles, a Vontade mesma”26, é independente do
“mundo fenomenal”.27
A noção de música absoluta se torna “o paradigma estético da cultura
musical alemã do século XIX”28. A aquiescência da existência de algo como

25
“[...] é uma arte a tal ponto elevada e majestosa, que é capaz de fazer efeito mais
poderoso que qualquer outra no mais íntimo do homem, sendo por inteiro e tão pro-
fundamente compreendida por ele como se fora uma linguagem universal” (SCHO-
PENHAUER, A. Metafísica do Belo. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora
Unesp, 2003, pp. 227-228).
26
Ibid., p. 234.
27
A figura de Friedrich Nietzsche também possui destaque. Seu envolvimento com
o tema da música ocorre desde o início de sua trajetória intelectual. No entanto, não
chegou a formular propriamente uma filosofia da música. Nietzsche foi fortemente
influenciado pela metafísica do belo de Schopenhauer. Em concordância com o último,
considera a música como meio de expressão do inefável (considerado como “domínio
da experiência que escapa da estrutura linguística”), como pura criação sem o condicio-
namento de determinações formais. No entanto, aproxima-se de Wagner ao pensar a
associação da música com a poesia dramática, sobretudo com a tragédia grega. “Como
arte não conceitual, a música torna possível transpor aquele conteúdo da experiência
que não se deixa representar, criando as condições para a formação da imagem. É esse
domínio da experiência que o poeta lírico interpreta a partir da música e da imagem
simbólica, enquanto formas artísticas capazes de transportar esse elemento mais fino,
inacessível, à imagem e ao conceito”. Cf. CAVALCANTI, A. H.. Música, linguagem e
criação em Nietzsche. In: Revista Discurso, n. 37, 2007, pp. 183-199.
28
Cf. DAHLHAUS, C. Die Idee der absoluten Musik. Kassel: Bärenreiter, 1978.
Acrescenta-se que “a religiosidade exacerbada e a valorização do inefável opõem-se clara-
mente às exigências laicas e racionalistas predominantes durante a maior parte do século
XVIII” (VIDEIRA, 2014, p. 77).

84
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

uma linguagem musical própria permitiu a consideração de uma lógica


interna da música. Wilhelm Heinrich Wackenroder, por exemplo, julgava
a palavra limitada, ao passo que a música exprimia o inefável e, destarte,
seria “capaz de falar diretamente à essência da alma humana”. O mistério
da linguagem musical, a suposta obscuridade de seu conteúdo, ganha
caráter divino e a música instrumental passa a engendrar uma ritualística
própria. Não apenas Wackenroder, como também E.T.A. Hoffmann
e Ludwig Tieck enfatizam esse caráter. A partir dessa consideração,
a ideia da música instrumental enquanto música absoluta passa a ser
reforçada; sua autonomia dos textos e dos afetos confere a ela caráter
metafísico. A autonomia da música, para Hoffmann e, posteriormente,
Eduard Hanslick, retira dela qualquer possibilidade de ser considerada
enquanto representação de sentimentos e acontecimentos definidos. Os
afetos seriam sugeridos por meio das palavras. Para Wackenroder, Tieck
e Hoffmann, a música instrumental romântica é considerada em termos
de linguagem do inefável, isto é, o meio de acesso a um mundo para além
do sensível e do conceitual.29
*
Até o presente momento da reflexão, um aspecto de análise foi
inequivocamente privilegiado, a saber, a constituição do sujeito romântico.
Todavia, o exame da caracterização da pintura romântica, representada
aqui pelo Mönch am Meer de Friedrich, permitirá considerar, de modo
mais claro, o outro lado da equação, isto é, o objeto de tal sujeito: trata-se
da natureza, ou melhor, da relação do homem romântico com a natureza,
concebida enquanto um de seus “objetos” primordiais.
No que concerne ao tema da natureza, central na filosofia
romântica, uma visão unívoca não foi compartilhada. Por um lado, para
Fichte e Hegel, a natureza seria a exterioridade relativa ao sujeito que
29
TADDAY, U. Das schöne Unendliche. Ästhetik, Kritik, Geschichte der roman-
tischen Musikanschauung. Stuttgart/Weimar: Verlag J. B. Metzler, 1999, p. 118. Para
uma análise pormenorizada, ver: DAHLHAUS, C.; MILLER, N. Europäische Ro-
mantik in der Musik (Band 2). Oper und symphonischer Stil 1800 – 1850. Von
E.T.A. Hoffmann zu Richard Wagner. Stuttgart/Weimar: Verlag J. B. Metzler, 2007,
pp. 151-279.

85
Murilo Gonçalves

“cria” a realidade existindo, portanto, para uma consciência exterior a


ela. Como tratado acima, a atribuição de uma liberdade pura e uma
capacidade criadora ao sujeito dentro da filosofia de Fichte colocava a
natureza em uma posição secundária, concebida enquanto algo a ser
dominado pelos atributos do eu ligados à constituição da ciência. Hegel
considerava o belo artístico superior ao belo natural, pois a arte derivaria
do espírito absoluto, seria por ele engendrada como uma exposição da
Ideia, assim como a religião e a filosofia. Com efeito, a concepção de
mímesis da natureza é rechaçada: a arte, para Hegel, seria o resultado do
processo histórico protagonizado pelo espírito, o qual passou por três
fases (simbólica, clássica e romântica) nas quais a relação entre forma
e conteúdo se apresenta de maneira específica. O último estágio refere-
se à “interioridade do subjetivo” e contempla a pintura, a música e a
poesia.30 Para Schelling, por outro lado, a natureza seria uma entidade
sublime, a própria manifestação do Absoluto. A consciência e a reflexão
humanas surgem como percepção do deslocamento em relação a esse
Absoluto, uma desarmonia, também responsável por engendrar o
sentimento, resultado da discordância e incoerência mencionadas.
Entretanto, da inadequação surge o movimento “regresso” em direção
à natureza, realizado exclusivamente por meio da expressão (e não
imitação) artística na tentativa de representar o Absoluto, de modo que
“a filosofia, seguindo seu curso, deve inevitavelmente retornar à poesia,
à arte, às raízes das quais ela se desenvolveu”31. Portanto, no caso de
Fichte e Hegel, uma oposição entre espírito e natureza é mantida, ao
passo que, para Schelling, com sua Naturphilosophie, existe uma mútua
complementação, cuja harmonia seria atingida pela obra de arte. Traços
semelhantes dessa visão estão presentes, por exemplo, na reflexão de
Novalis e Hölderlin, dentro da qual a natureza deixa de ser uma entidade
supostamente dominada pelo homem e, por conseguinte, exterior a ele,
para se tornar uma referência ao âmbito do infinito e do absoluto e, dessa
30
WEBER, K.-H. Die literarische Landschaft. Zur Geschichte ihrer Entdeckung
von der Antike bis zur Gegenwart. Berlin/New York: De Gruyter, 2010, pp. 218-220.
31
DAVIS, W. S. Romanticism, Hellenism, and the Philosophy of Nature. Cham:
Palgrave Macmillan, 2018, pp. 91-92; WEBER, op. cit., pp. 219-220.

86
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

forma, constituir-se ambiguamente como parte do sujeito e algo para


além dele.32
Frente a essas breves observações, cabe a indagação sobre as formas
mediante as quais os quadros de Friedrich poderiam ser considerados
românticos, isto é, de que maneira uma determinada concepção
de sujeito contraposta ao “objeto” da natureza, como mostrado
anteriormente, contribui para essa compreensão. A justificativa para
tal indagação repousa no fato da impossibilidade de se considerar
Friedrich e sua obra pura e simplesmente como produtos ou resultado
do movimento romântico; muito pelo contrário, seu pensamento
substancializado em suas pinturas reserva, até o presente, distintas
possibilidades interpretativas.

(Figura 1: Caspar David Friedrich - Der Mönch am Meer - (1808–1810, 1,1 m x 1,72
m, tinta a óleo) - Alte Nationalgalerie, Staatliche Museen zu Berlin)

O cisma entre homem e natureza, bem como a tentativa de sua


conciliação guiada pelo “anseio espiritual” voltado ao absoluto infinito
encontrado na natureza, é um assunto privilegiado na pintura romântica.
32
Cf. DAVIS, op. cit., pp. 91-94; pp. 52-53.

87
Murilo Gonçalves

Essa temática, na obra de Friedrich, assume um caráter não apenas


fundamental, como também muito específico: nela, a natureza é, acima
de tudo, uma representação filosófico-religiosa, ou de caráter religioso
ou espiritual. Entretanto, ao contrário do que pareceria mais óbvio e
convencional, Friedrich não se direcionou aos temas propriamente
bíblicos e religiosos, mas sim ao significado espiritual representado
alegoricamente pela natureza.33 Esse movimento motivou sua predileção
pela pintura paisagística: com Friedrich, a paisagem34, ao elaborar uma
mediação entre o absoluto da natureza e a realidade limitada do homem,
tem reafirmado, dentro da iconografia, seu estatuto enquanto categoria
estética. Curiosamente, a relação com a paisagem está inscrita no próprio
emprego moderno do termo romântico, que, desde a segunda metade
do século XVII, aparecia na literatura inglesa, na qual era atribuída a
uma paisagem a qualidade de romântica (ou pitoresca35) especialmente
pelo fato de que sua descrição era fruto de uma percepção advinda
da perspectiva subjetiva, própria da individualidade do observador:
um aventureiro, viajante ou descobridor.36 A ideia da representação
(entendida, no romantismo, como expressão) de uma experiência
individual está no cerne da pintura paisagística de Friedrich: seus quadros
revelam seus próprios sentimentos, pensamentos e atitudes, os quais a
natureza, observada durante longas caminhadas, despertava de modo
profundo. Portanto, se, objetivamente, a natureza se revela na pintura
de Friedrich primordialmente como ar (das nuvens aos céus), água (dos
oceanos às geleiras), mineral (das planícies às montanhas) e vegetal
(das gramíneas aos abetos), é somente mediante a constituição de uma
paisagem, isto é, a representação da natureza percebida e experienciada por
33
KOERNER, J. L. Caspar David Friedrich and the Subject of Landscape. London:
Reaktion Books LTD, 2009, pp. 147-171.
34
O apreço pelo gênero paisagístico retardou o reconhecimento de Friedrich como um
dos maiores representantes da pintura romântica alemã, haja vista a persistente conside-
ração da paisagem como gênero pictório inferior. Cf. GOMBRICH, E. H. A história
da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2015, pp. 490-497.
35
Cf. MILANI, R. The Art of the Landscape. Montreal & Kingston: McGill-Queen’s
University Press, 2009, pp. 32-37; p. 45.
36
TADDAY, 1999, pp. 13-16.

88
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

um sujeito, que a capacidade artística de expressão de estados espirituais e


sentimentos é plenamente alcançada.
Para Friedrich, o papel da pintura seria o de despertar a
sensibilidade do “olho espiritual”37 (geistige Auge) dos homens, aquele
capaz de apreender a mediação engendrada pela pintura e acessar,
mesmo que de uma forma limitada, o absoluto, o divino (Göttliche),
revelado parcialmente por ela. Essa ideia pretende criar entre homem
e natureza uma certa harmonia, na qual a última deixa de ser vista
somente enquanto oposição ao homem, como hostil e ameaçadora;
assim, uma ambivalência toma lugar: o absoluto da natureza, ao mesmo
tempo em que constitui com o homem uma relação harmoniosa,
de autoconhecimento (por exemplo, quando ele, por comparação
à natureza, percebe a proporção de sua própria medida), não deixa
de implicar ao próprio homem um desassossego desconcertante
e desconsolado. Essa ambiguidade é amiúde representada pela
paisagem de Friedrich, na qual se situa o homem, geralmente uma
figura solitária, no plano da natureza, colossal e envolvente. Em
certas pinturas, a figura humana é substituída por ruínas que, a seu
turno, mantêm, de forma particular, a ambiguidade, na medida
em que são símbolo de uma passagem paulatina da presença para a
ausência humana.38 Esse embate desperta uma espécie de consciência
irônica repousada na concepção da natureza como exterioridade e,
ao mesmo tempo, a contemplação estética por meio da qual, durante
um intervalo e nunca de forma definitiva, o homem se aproxima
harmoniosamente da natureza, vinculando-se à interioridade de uma
37
Friedrich promove um dualismo entre modos de percepção: aquele elaborado pelo
olho corporal/físico (leibliche Auge) e aquele engendrado pelo olho espiritual. O apaná-
gio concedido ao último pretende abjugar sua pintura das limitações pictórias relativas à
imitação e à representação do real e direciona a experiência estética para o âmbito da in-
terioridade: suas paisagens são “caracterizadas por si só como expressão de sentimentos
espirituais [seelische Empfindungen]” (EHLERS, M. Grenzwahrnehmungen: Poetiken
des Übergangs in der Literatur des 19. Jahrhunderts. Kleist - Stifter - Poe. Bielefeld:
Transcript Verlag (Lettre), 2007, p. 96).
38
É o caso, por exemplo, do quadro A Abadia no Carvalhal (Abtei im Eichwald), de
1809-1810.

89
Murilo Gonçalves

realidade suprasensorial. O caráter silencioso dessa relação é retratado


por Friedrich em seus múltiplos significados: deslumbramento e
perplexidade, júbilo e melancolia.39
Tal situação, no quadro Mönch am Meer, pode ser qualificada
como uma “solidão fundamental existencial”40 (existenzielle
Grundeinsamkeit) do indivíduo frente ao caráter imensurável da
natureza. A partir da análise41 do quadro, pode-se perceber seu
fracionamento em três zonas horizontais: a terra, o mar e o céu,
divididos um contra o outro, configurando três níveis de planos: de
fundo, central e de frente. Os planos desvanecem um no outro, o
que enfatiza a ausência de uma delimitação precisa, que abre margem
para a consideração da passagem paulatina e irreprimível do tempo.
Frente ao plano horizontal hegemônico, uma única linha vertical
se apresenta: o monge, um contraponto, uma oposição à natureza,
ao mesmo tempo parte integrante dela. Sua posição, deslocada do
centro, corresponde à sectio aurea, a proporção áurea da antiguidade
clássica incorporada pela arte ocidental, situada no primeiro terço do
quadro. Essa proporção cria uma harmonia baseada em uma tensão,
pois a figura supostamente principal não está no centro. O monge está
localizado em uma espécie de península, assemelhando-se a algo como
um farol. Ademais, a discrepância entre o plano do céu e o restante do
quadro, uma proporção aproximada de cinco sextos, também é digna
de nota. Toda a abertura que o quadro propõe com isso, também
39
KOERNER, 2009, pp. 20-23; SEEBERG, U. Dimensões filosóficas na obra de Cas-
par David Friedrich. ARS (São Paulo), v. 3, n. 5, 2005, pp. 78-89.
40
KAHL, J. Über die existenzielle Grundeinsamkeit des Individuums in der gren-
zenlosen Natur. Philosophische Meditation zu Caspar David Friedrichs “Mönch am
Meer”. Aufklärung und Kritik, vol. 2, 2005. Semelhante juízo tem Giulio Argan:
“mais que aversão e fúria, [Friedrich] exprime a sublime melancolia, a solitude, a an-
gústia existencial do homem frente a uma natureza misteriosa e simbólica que se opõe
a ele. Quando se trata da natureza, a relação é quase sempre de atração, mas isso não
exclui a separação, a falta de comunicação, o isolamento nostálgico do homem ‘civil’
no embate com a natureza” (ARGAN, G. C. L’Arte Moderna. Milano: Sansoni per la
Scuola, 1994, p. 54).
41
Cf. WÖLFFLIN, H. Conceitos Fundamentais da História da Arte. Tradução de
João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

90
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

baseada na ausência de elementos claros de delimitação, confere uma


impressão virtual de infinitude. Além disso, suas cores contribuem
para constituir uma homogeneidade monocromática: prevalece um
tom pardacento, que se altera paulatina e fluidamente à medida em
que se adentra a outro plano, passando do céu às águas escuras do
mar, por fim, até a areia, sem qualquer tipo de vegetação, uma plena
ausência do verde. Essa prevalência cria a ideia de uma escuridão
desconfortável, o que sugere um estado melancólico. Toda a imagem
cria uma atmosfera de profundo silêncio, seja pela grandiosidade que
a natureza implica ou pela pequenez do monge frente à paisagem.
Nela, ele apenas é capaz de meditar e observar, em plena confrontação
com o infinito. E, quando se trata do infinito, não há ação prática
possível que parta de um ser finito.
Tipicamente relacionada a outros ambientes, como as planícies
desérticas, a figura do monge à beira-mar pode gerar alguma estranheza.
Com esse deslocamento, é possível pressupor que Friedrich pretende
mostrar que aquilo ao qual o monge é acometido em tal condição é,
na verdade, relativo a toda a humanidade, não apenas a uma parte
específica dela. Ademais, a figura específica do monge sugere a ligação de
Friedrich com a espiritualidade, uma ligação constituída antes de tudo
como resposta à condição do homem moderno, secular, racional. Os
monges também retratam esse homem, pois, dentro de sua ritualística
diária, sistematizam o tempo, organizam-no em frações exatas. O monge,
portanto, representa, no quadro de Friedrich, o homem moderno em sua
particular ausência de orientação. Trata-se, desse modo, de um retorno
específico ao medievo, mas que não pode ser reduzido somente ao signo
da modernidade secular: a partir de um genuíno olhar para fora e para o
passado, Friedrich encontra no monge o símbolo da unidade medieval
conferida pela espiritualidade. A internalização de sua existência vai de
encontro ao espiritual, para Friedrich, substancializado na natureza,
resposta de sua busca por aquilo que se ausenta das banalidades do
cotidiano dos homens.42
42
KAHL, 2005, pp. 229-232.

91
Murilo Gonçalves

O romantismo em Friedrich, portanto, mesmo que não esgote as


possibilidades interpretativas, é manifesto e emblemático: por um lado,
Friedrich tem como “protagonista” o homem romântico, desencantado
e despojado das pretensões sustentadas pela razão e, por conseguinte,
atento à sua experiência subjetiva; por outro lado, atribui à natureza, em
suas diversas formas, o caráter infinito e absoluto daquilo que esse mesmo
homem romântico anseia e do qual é, por conseguinte, dependente. Por
fim, a paisagem representada se revela como o engendramento de uma
síntese, o lugar de encontro desses dois polos.43

Referências
ARGAN, Giulio Carlo. L’Arte Moderna. Milano: Sansoni per la Scuola, 1994.
BICKNELL, Jeanette. The early modern period. In: GRACYK, Theodore; KANIA,
Andrew (ed.). The Routledge Companion to Philosophy and Music. London/
New York: Routledge, 2011.
CAVALCANTI, Anna H. Música, linguagem e criação em Nietzsche. In: Revista
Discurso, n. 37, 2007, pp. 183-199.
DAHLHAUS, Carl; MILLER, Norbert. Europäische Romantik in der Musik
(Band 2). Oper und symphonischer Stil 1800 – 1850. Von E.T.A. Hoffmann zu
Richard Wagner. Stuttgart/Weimar: Verlag J. B. Metzler, 2007.
DAVIS, William S. Romanticism, Hellenism, and the Philosophy of Nature.
Cham: Palgrave Macmillan, 2018.
EHLERS, Monika. Grenzwahrnehmungen: Poetiken des Übergangs in der
Literatur des 19. Jahrhunderts. Kleist - Stifter - Poe. Bielefeld: Transcript Verlag
(Lettre), 2007.
ENDRES, Johannes. Friedrich Schlegel Handbuch. Leben – Werk – Wirkung.
Stuttgart: J. B. Metzler Verlag, 2017.
FICHTE, Johann Gottlieb. A Doutrina da Ciência de 1794. Tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho. In: Fichte (Os Pensadores), São Paulo: Abril Cultural,
1984.
GOMBRICH, Ernst. H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: LTC, 2015.
HYPPOLITE, Jean. Introducción a la filosofía de la historia de Hegel. Buenos
Aires: Ed. Calden, 1970.
43
Cf. KOERNER, 2009, pp. 245-262.

92
O Romantismo em Der Mönch Am Meer, de Caspar David Friedrich: Indivíduo e Natureza

IBER, Christian; BARBOSA, Nicole. Hölderlin, o fragmento juízo e ser e alguns


poemas. Porto Alegre: Editora Fi, 2014.
KAHL, Joachim. Über die existenzielle Grundeinsamkeit des Individuums in
der grenzenlosen Natur. Philosophische Meditation zu Caspar David Friedrichs
“Mönch am Meer”. Aufklärung und Kritik, vol. 2, 2005, pp. 229-232.
KLOTZ, C. Fichte’s Explanation of the Dynamic Structure of Consciousness in the
1794-95 Wissenschaftslehre. In: JAMES, D.; ZÖLLER, G. (org.): The Cambridge
Companion to Fichte. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
KOERNER, Joseph Leo. Caspar David Friedrich and the Subject of Landscape.
London: Reaktion Books LTD, 2009.
MILLÁN, Elizabeth. Fichte and the Development of Early German Romantic
Philosophy. In: JAMES, D.; ZÖLLER, G. (org.): The Cambridge Companion to
Fichte, Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
MILANI, Raffaele. The Art of the Landscape. Montreal & Kingston: McGill-
Queen’s University Press, 2009.
SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Friedrich Schlegel Ausgabe. Erste Abteilung.
Kritische Ausgabe. Band 2: Charakteristiken und Kritiken I (1796-1801).
BEHLER, Ernst; EICHLER, Hans (Hrsg.). München, Paderborn, Wien, Zürich:
Verlag Ferdinand Schöningh, 1967.
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. Tradução de Jair Barboza. São
Paulo: Editora Unesp, 2003.
SEEBERG, Ulrich. Dimensões filosóficas na obra de Caspar David Friedrich. ARS
(São Paulo), v. 3, n. 5, 2005, pp. 78-89.
TADDAY, Ulrich. Das schöne Unendliche. Ästhetik, Kritik, Geschichte der
romantischen Musikanschauung. Stuttgart/Weimar: Verlag J. B. Metzler, 1999.
VIDEIRA, Mário. O Romantismo e o Belo Musical. São Paulo: Editora Unesp,
2014.
WEBER, Kurt-H. Die literarische Landschaft. Zur Geschichte ihrer Entdeckung
von der Antike bis zur Gegenwart. Berlin/New York: De Gruyter, 2010.
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. Tradução
de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

93
Urbe: uma visão artística de
G. Fogaça (1985-2010)
Bianca Cristina Barreto Casanova1

Meu nome é Jecimar, é Di Souza, é G.


Fogaça.
“Não escreveram os Goncourt que os artistas japoneses da grande época
mudavam de nome várias vezes ao longo da vida? Isso me agrada: eles
queriam preservar a liberdade.”
Henri Matisse, 2007

De Jecimar a Di Souza
Jecimar de Souza Arruda nasceu em 1967, na cidade de Goiás2, em
uma família muito modesta. Aos três anos de idade, mudou-se com seus
pais para Britânia3, pequeno município do norte de Goiás cuja economia
baseava-se na agricultura. Ainda pequeno, seus pais se separaram e sua
mãe decidiu morar em Mato Grosso, levando os filhos. Mas Jecimar
preferiu ficar com o pai em Britânia, segundo seu próprio depoimento
(G. FOGAÇA, 2017).
1
Mestranda e graduanda em História pela Universidade Federal de Goiás, advogada.
E-mail: biancac.casanova@gmail.com
2
Goiás ou Cidade de Goiás é um município brasileiro do Estado de Goiás. O municí-
pio foi reconhecido em 2001 pela UNESCO como sendo Patrimônio Histórico e Cul-
tural Mundial por sua arquitetura barroca peculiar, por suas tradições culturais seculares
e pela natureza exuberante que o circunda.
3
Britânia, fundada em 1957,  é um  município do  interior  do  Estado  de  Goiás. Sua
população estimada em 2004 era de 5.583 habitantes.  A região desenvolveu inicialmente
a agricultura, mas hoje predomina a pecuária e desperta para o desenvolvimento do
turismo. Seu ponto turístico mais conhecido é o Lago dos Tigres.

94
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

Começou a pintar e desenhar durante o período escolar, de


forma autodidata. Como nunca havia ido a um museu, baseava-se nas
poucas imagens que via em seus livros de história, todas em branco
e preto, como era comum nos livros didáticos da década de 70. Por
isso, também, só pintava em branco e preto suas paisagens do lago de
Britânia e da cidade de Goiás, usando como materiais aquilo a que
tinha acesso: tinta de caminhão e tela de lona, que ele preparava com
farinha de trigo, e sem qualquer moldura. Chegou inclusive a usar
casco seco de tartaruga como suporte para suas primeiras pinturas. Seu
dom para as artes plásticas era tão evidente que, nas aulas do colégio,
quando a professora o chamava para resolver tarefas no quadro negro,
Jecimar desenhava.
Costumava viajar para a cidade de Goiás para visitar a avó paterna,
que morava em um lote que divisava com o fundo da casa de Goiandira
do Couto, renomada pintora vilaboense que se destacou pelo uso de areia
naturalmente colorida em suas paisagens de casarões da antiga capital.
Quando tinha 12 anos de idade, brincando na casa da avó, Jecimar
atravessou o quintal da artista para roubar manga. Goiandira flagrou-o e
levou-o para seu atelier, onde lhe apresentou materiais de arte.
Foi então que Jecimar descobriu o que é tinta, o que é tela, e
demais instrumentos de pintura. O menino contou à artista que
sempre gostou de pintar e desenhar, e Goiandira convidou-o a ficar em
sua casa. Jecimar ficou um mês morando em um quartinho na casa da
pintora com o aval de sua avó. Goiandira do Couto propôs a Jecimar:
“vou te dar pincel, tinta, mas primeiro você vai ali e pinta minha casa,
que eu vou comprar o quadro de você”. O menino ficou tão nervoso
que não conseguiu pintar!
Passado o mês de incentivo e aprendizado sobre o que era material
de pintura, Jecimar voltou a Britânia, à casa do pai. Continuou pintando
paisagens de sua cidade, mas ainda não tinha condições de comprar
materiais de pintura e seguiu utilizando seus meios precários. Certa vez,
com um amigo, ocupou o prédio da Câmara Municipal de Britânia e
fez uma exposição com seus quadros para a cidade ver.

95
Bianca Cristina Barreto Casanova

Problemas com o alcoolismo paterno impeliram Jecimar a sair


de casa aos 14 anos. Morou algumas semanas na casa do avô, que
já cuidava de outros dois netos. O avô era carpinteiro e fabricava
caixões, que ficavam expostos na sala de casa por falta de outro local
para alocá-los, o que deixava Jecimar envergonhado quando recebia
visitas. Os caixões de adultos eram forrados em cetim violeta e os
infantis em cetim azul claro – duas cores que marcariam a obra do
futuro pintor.
Visto que o avô não tinha condições de cuidar de mais um neto,
Jecimar foi morar sozinho em um quarto em Britânia. Vivia com a
ajuda de algumas pessoas, como uma tia que levava comida para ele. A
situação do garoto sensibilizou a então diretora do colégio onde Jecimar
estudava e também filha do prefeito da cidade. Cleusa de Assunção
lhe arrumou um emprego no supermercado. O garoto não gostou do
serviço e então Cleusa arranjou um trabalho no banco Bradesco da
cidade quando o rapaz tinha 15 anos. Jecimar permaneceu lá durante
um ano e meio, mas sua personalidade artística não conseguiu prosseguir
na função entediante.
Segundo Jecimar (G. FOGAÇA, 2018), Cleusa, que ele tinha
como uma mãe, pacientemente percebeu a inclinação artística do rapaz
e lhe disse que seu lugar seria em Goiânia, onde os artistas conseguiam
viver de sua arte. Tendo contatos com o então prefeito de Goiânia,
Iris Rezende, Cleusa arrumou um emprego para Jecimar no Ipasgo4,
na capital goiana, visto que não eram necessários concursos para
provimento de cargos públicos antes da Constituição de 1988. Jecimar
assumiu o cargo pouco antes de completar 18 anos. Cleusa pagou
seis meses de aluguel para Jecimar morar em Goiânia enquanto se
estabilizava e lhe comprou todo o material de que necessitava, inclusive
de pintura. A partir de então, Jecimar passou a assinar em seus quadros
“Di Souza”.
4
O Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás, IPASGO, em
sua origem abrigava todos os benefícios aos servidores estaduais, mas com o desenvolvi-
mento do Estado e da sua máquina administrativa, foi transferindo obrigações a outros
órgãos, cuidando hoje exclusivamente da assistência à saúde (IPASGO, 2018).

96
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

De Di Souza a G. Fogaça
O jovem Di Souza, assim, em 1985, se deparou pela primeira
vez com uma cidade grande e também com o ritmo que ela impunha.
Durante o dia trabalhava no Ipasgo, à noite pintava seus quadros sob uma
fraca lâmpada em um quartinho minúsculo nos fundos de uma casa na
rua 70 do centro de Goiânia. E, quando lhe sobrava tempo, expunha seus
quadros como ambulante na avenida Anhanguera. Também fazia pintura
de cavalete, de paisagens de arredores de cidades. Viajava para cidades
históricas, como Sabará e a cidade de Goiás, e armava seu cavalete na
parte de fora da cidade. Costumava tirar fotos das paisagens para ajudar
em suas pinturas.
Di Souza passou a frequentar galerias, oferecendo suas obras de
porta em porta. Conseguiu vender alguns quadros, juntou algum
dinheiro e passou a dividir apartamento com amigos. Seu jeito
carismático continuou proporcionando que pessoas o ajudassem durante
sua trajetória. Seu chefe o incentivava a pintar, e o presidente do Ipasgo
à época, Luís Rassi (de 15/03/83 a 05/02/86), custeava as exposições que
Di Souza conseguia fazer nas galerias. Di Souza ficaria durante 15 anos
trabalhando no Ipasgo.
Durante as férias, Di Souza ia a Britânia visitar sua família. Aos 19
anos, fez uma pequena exposição na Câmara dos Vereadores da cidade.
Dentre os visitantes, havia uma moça de 20 anos, que estudava economia
em Goiânia, bancária, noiva de um rapaz da capital e que também estava
de férias em Britânia visitando os pais recém-chegados na cidade. Ela,
que sempre amou artes e literatura, assinou seu nome no caderno de
visitas e escreveu também uma crítica sobre a obra, que havia adorado.
Di Souza ficou encantado com o comentário no caderno e saiu
procurando pela cidade a pessoa que o tinha escrito. Cidade pequena,
logo descobriu o endereço de Maria de Lourdes, ou Malu, e lhe mandou
flores. A moça deixou o noivo para ficar com o artista, casaram-se três
anos depois na igreja de Britânia.
A cerimônia foi o maior fiasco. Dias antes, Di Souza foi à casa dos
sogros exigir o carro emprestado: “eu não vou a pé no meu casamento,

97
Bianca Cristina Barreto Casanova

não quero nem saber!” (MARIA DE LOURDES, 2018). Chegou à igreja


no carro junto com sua noiva, quebrando o protocolo. Também não
havia feito o ensaio cerimonial, entrou pelo lado errado do altar. Após
o casamento, vieram morar no centro de Goiânia, Malu sempre sendo a
maior incentivadora da arte de Di Souza.
Em 1989, Di Souza se inscreveu no Concurso Novos Valores,
promovido pela renomada Casa Grande Galeria de Arte5. O prêmio
seria o prestígio de expor nesta galeria, que só trabalhava com grandes
artistas, e aparecer nos jornais, o que traria muito reconhecimento a
um artista iniciante. Entre os quatro jurados estava o poeta e crítico
de arte Miguel Jorge e o artista plástico Amaury Menezes6. Muitos
5
A abertura da Casa Grande Galeria de Arte, de propriedade da marchand Maria Célia
Câmara, consolidou o mercado de arte em Goiânia nos anos 70, mesma época em que o
mercado de arte no Estado de Goiás se profissionalizou, quando comerciantes de arte assu-
miram suas próprias galerias. A Casa Grande Galeria de Arte estabeleceu um novo patamar
na negociação de arte em Goiás “com a criação de uma nova estrutura de venda de arte, aju-
dando a construir e profissionalizar o mercado de arte goiano” (COELHO, 2013, p. 143).
“O que realmente deu base para a primavera do mercado de arte dos anos 80, o coração
e o motor de todo o sistema mercadológico, foi a Casa Grande Galeria de Arte, que, por
circunstâncias especiais e pela competência em seu gerenciamento, criou um modelo de
circuito de arte próprio e eficaz. A Casa Grande construiu um modo de operação que
funcionou por mais de uma década. Baseado em uma tríade de relações que tinha por
base um grupo pequeno de artistas locais de renome, um grupo de jornalistas e colunis-
tas do Jornal O Popular, que cobria seus eventos, e uma agenda repleta de exposições
de estrelas das artes plásticas nacional, que agregavam valor tanto ao espaço quanto
aos artistas com quem ela trabalhava. A Casa Grande foi exemplo para o restante das
galerias que surgiriam daí em diante. Seu modelo de operação, com os três pilares de
sustentação, funcionava bem, e foi a maior responsável pela disseminação do colecionis-
mo de arte local, e principalmente pela ressignificação da pintura enquanto decoração.
A mídia do jornal O Popular, proprietários da galeria, um grupo seleto de artistas goia-
nos, premiados e com boas críticas vindas de fora, junto com exposições de artistas dos
grandes centros fizeram a arte goiana saltar de um circuito de culto entre professores
universitários e entendidos do meio para a popularização da arte de assinatura como
uma opção de decoração, que carregava consigo significância, informação e status e
atingia a nova burguesia, os emergentes sociais. A Casa Grande tinha o poder financeiro
para movimentar o circuito local, tinha o poder midiático para alavancá-lo e os contatos
necessários para criar seu espaço de legitimação (...)” (COELHO, 2013, pp. 144 e 145).
6
Amaury Menezes, nascido em 1930, é um  pintor  e desenhista de Luziânia, Goiás.
Começou seus estudos de pintura com Frei Nazareno Confaloni, D.J. Oliveira e Gustav
Ritter na Escola de Belas Artes da Universidade Católica de Goiás no final dos anos 30.

98
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

anos mais tarde, Di Souza viria a descobrir, através de Amaury, que


os demais jurados, encabeçados por Miguel Jorge, não queriam
dar o prêmio a Di Souza porque sua obra era muito parecida com
o fauvismo do artista mineiro Inimá de Paula. A pintura parecia
mesmo, mas Di Souza nunca havia visto uma obra dele. Porém
Amaury Meneses, simpatizando com a temática paisagística de Di
Souza, convenceu os outros jurados com a declaração: “esse menino
tem futuro”, selecionando-o como um dos novos valores do ano de
1989 (figura 1).

Figura 1: Fac-símile do Convite do Concurso Novos Valores realizado no dia 22 de


agosto de 1989, onde consta entre os participantes o nome de “Gecimar di Souza”, em
grafia equivocada de “Jecimar”.
Fonte 1: acervo pessoal de G. Fogaça

Entre 1963 e 1986, tornou-se professor de desenho e plástica na Escola Goiana de Belas
Artes e no Departamento de Artes e Arquitetura da Universidade Católica de Goiás. O
artista foi um nome importante para amplificar a visibilidade da arte goiana com suas
representações de cenas urbanas e cotidianas. Já entre 1968 e 1971, torna-se diretor do
curso de Arquitetura da Universidade Católica de Goiás. Em 1970, quando Amaury
resolve se dedicar à técnica em que mais se destacaria, a aquarela, Goiânia passava por
um movimento artístico e cultural intenso. Foi o momento em que diversos ateliês
foram abertos na cidade e que artistas como Amaury, D.J. Oliveira, Sáida Cunha e Juca
di Lima saíam pela cidade para pintar ao ar livre, retomando uma prática atrelada ao
movimento impressionista francês do século XIX. Além dessa articulação com artistas,
Amaury atuou na Exposição do Congresso Nacional dos Intelectuais em 1954, foi um
dos fundadores do Museu de Arte de Goiânia, onde uma das salas leva seu nome, e re-
cebeu, em 1990, o Prix Lucien Martial, concedido pela Societé Internacionale da Beaux
Arts (MENEZES, 1998).

99
Bianca Cristina Barreto Casanova

O primeiro jornalista a fazer uma reportagem com Di Souza foi


Ulisseas, que na época trabalhava para O Popular. Tornou-se amigo
particular do artista, e, a partir de então, toda vez que Di Souza fazia
uma exposição, Ulisseas o apoiava na divulgação.
O casal Di Souza e Malu costumava procurar lugares para vender
as pinturas. Uma vez, foram a uma loja de móveis na Avenida Goiás
que também vendia obras de arte, e ofereceram as telas de Di Souza.
A atendente disse não podia comprar naquele momento, mas que ela
conhecia alguém que iria gostar do trabalho. Assim, o jovem casal vai
pela primeira vez à Galeria Vanda Pinheiro7. Tímidos, chegaram com
duas telas debaixo do braço à elegante galeria. Vanda Pinheiro, artista
plástica e empresária, austera, olhou os quadros e perguntou:“Você tem
mais obras?” Di Souza diz que tinha 20 obras prontas para uma exposição
que iria fazer. “Eu vou ficar com as 20!” O casal quase caiu para trás.
Compraram moto e geladeira nova (MARIA DE LOURDES, 2018).
Com o tempo, Malu acabou se tornando a empresária de Di Souza,
juntamente a seu emprego na secretaria da saúde. Ela buscava as galerias
e os concursos para o marido se inscrever, e, como tinha facilidade para
escrever, redigia os projetos de exposições. Um dos primeiros em que
foram selecionados foi pela Itaú Cultural8, galeria onde expôs com mais
três artistas (figura 2).

7
Vanda Pinheiro Gabinete de Arte pertencia à pintora e gravadora Vanda Pinheiro
Dias. Nascida em Itaberaí/GO em 1930, Vanda Pinheiro estudou na Escola Goiana de
Belas-Artes da UCG, quando foi aluna de Frei Nazareno Confaloni e de D.J. Oliveira.
Possui obras de sua autoria no acervo do Museu de Arte de Goiânia. Frequentou a Es-
cola de Belas-Artes da Universidade Católica de Goiás e recebeu orientação de Cleber
Gouvêa (COELHO, 2015).
8
A Itaú Galeria faz parte da Fundação Itaú Cultural, “em que curadores e diretores
são escolhidos pela fundação, e não pelo banco (...). Gilmar Camilo foi durante anos
diretor da Itaú Galeria, e configurou nome importante para o mercado de arte goiano
por ser a principal ponte que levava galeristas a diretores de museus. Posteriormente
veio a ser diretor do Museu de Arte Contemporânea de Goiás, na gestão do governador
Marconi Perillo.” (COELHO, 2015, pp. 100 e 109).

100
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

Figura 2: Fac-símile da carta informando que Di Souza fora indicado, dentre os


proponentes da seleção de 26 e 27 de abril de 1989, a participar de exposições da
Galeria Itaú Cultural, que seriam realizadas no período de 21 de setembro a 13 de
outubro de 1989.
Fonte 2: acervo pessoal de G. Fogaça.

Até o início da década de 90, Di Souza vendeu muito bem. Valores


medianos, mas vendia em quantidade. Entretanto veio a inflação, o plano
real, e o mercado de arte goiano, que nos anos 80 estava em ascensão,
estagnou. Concomitantemente, Di Souza, que passou a ficar insatisfeito
com sua produção, parou de expor durante sete anos. Buscava uma nova
linguagem, não estava satisfeito com o que pintava. Apenas produzia
e guardava em casa, tentando mudar. Às vezes recebia algum convite
para expor, mas dizia não estar pronto naquele momento, que queria
amadurecer sua arte. Continuava pintando as paisagens interioranas,
estudava e tentava aprimorar sua obra. E, enquanto isso, trabalhava no
Ipasgo.
Em 1994, nasceu a filha de Di Souza e Malu, Kahena. Malu, que
trabalhava no Estado, queria passar no concurso do Tribunal Regional
do Trabalho (TRT), mas não conseguia conciliar seus horários. Di Souza

101
Bianca Cristina Barreto Casanova

então lhe propôs um acordo: ela sairia do emprego, ficaria só por conta
de estudar e, depois que ela passasse, ele sairia do Ipasgo e viveria por
conta da arte. Viver apenas com o salário do Ipasgo e a venda de algumas
poucas pinturas fez a família passar por dificuldades. Malu ficou dois
anos estudando para o concurso. No dia seguinte ao que Malu tomou
posse no cargo do TRT, Di Souza saiu do Ipasgo. A partir daí, ele só se
dedicou à arte.

Simplesmente G. Fogaça
Nos idos dos anos 90, havia outro artista plástico em Goiânia
assinando Di Souza9. Era necessário mudar de nome artístico. Filho de
Jeciron Fogaça, Jecimar foi o único filho a não herdar o sobrenome do
pai. Durante toda a infância, fora chamado de Gerson como um apelido
diminutivo de Jecimar. É então que cria G. Fogaça, nome com o qual
alcançaria o reconhecimento internacional como artista.
Tendo saído do Ipasgo e passado anos mergulhado em sua arte, no
final da década de 90, G. Fogaça se sentiu seguro para recomeçar. Nessa
época, mesclava paisagens do interior e paisagens urbanas, sempre com
um expressionismo10 bem evidente. Malu tomou a iniciativa de procurar
um lugar para G. Fogaça expor e ele concordou. A partir de então, ficou
delimitada a divisão de tarefas: G. Fogaça pintava os quadros e Malu fazia
a divulgação e organização das exposições.
9
O homônimo de Di Souza seria o pintor César José de Souza, natural de Goiânia e
nascido no mesmo ano do artista de que tratamos, 1967. César José, entretanto, par-
ticipou de salões e coletivas em galerias de diversas cidades brasileiras desde os anos 80
(Menezes, 1998, p. 102), enquanto Jecimar dava seus primeiros passos na capital goiana
nessa mesma época.
10
O  Expressionismo  foi um movimento artístico e cultural de  vanguarda,  surgido
na Alemanha no início do século XX; “não era somente um estilo com características
em comum, mas um amplo movimento que propunha uma nova forma de entender a
arte e que aglutinou diversos artistas de várias tendências. O expressionismo surge como
uma reação ao positivismo associado aos movimentos impressionista e naturalista, pro-
pondo uma arte pessoal e intuitiva, onde predominasse a visão interior do artista – a
‘expressão’ – em oposição à mera observação da realidade – a ‘impressão’” (CHILVERS,
2007, p. 334).

102
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

O primeiro lugar para esse recomeço foi a Fundação Jaime


Câmara, antiga Casa Grande Galeria de Arte, que havia mudado de
nome e endereço depois da morte de sua dona e grande mecenas
da arte goiana, Célia Câmara. Lá, conheceram o diretor Antônio da
Mata11, recém-chegado a Goiânia, hoje diretor do Museu de Arte de
Goiânia (MAG). Travaram uma grande amizade, que renderia frutos
futuramente.
Malu passou a procurar outros lugares para G. Fogaça expor.
Como trabalhava no TRT de Goiânia, conseguiu fazer exposições no
prédio desse tribunal e no do TST, em Brasília. G. Fogaça vendeu
muito para colegas da esposa, juízes e desembargadores. Expôs 20
obras e vendeu as 20.
A partir de então, passou a expor em diversos museus e galerias. As
galerias se destinam ao comércio de arte; os museus, pela importância
institucional, dão um peso ao currículo do artista. Compreendendo
bem a dinâmica da arte como produto e como cultura, G. Fogaça
traçou um plano de carreira tendo em Malu sua produtora e seu
grande alicerce. Começaram se apresentando aos museus e, depois que
conseguiram algum reconhecimento da crítica, passaram a trabalhar
com curadores como Antônio da Mata, Enock Sacramento12 e, mais
recentemente, com a cubana Dayalis González Perdomo e a franco-
argentina Patrícia Avena Navarro.
11
Antônio Rodrigues da Mata Neto nasceu em 1952, em Campinas, São Paulo. É pin-
tor e crítico de arte, dono de um rico currículo na sua formação como artista plástico,
com um mestrado em Artes pela UNICAMP/SP em 1995. Atualmente é diretor do
Museu de Arte de Goiânia – MAG (Menezes, 1998, p. 76).
12
Enock Fernandes Sacramento “é curador, fotógrafo e crítico de artes visuais. Nasceu
em 1937  no município mineiro de Francisco Sá. É membro das Associações Paulista,
Brasileira e Internacional de Críticos de Arte. Participou de aproximadamente 180 júris
de salões de arte, curou mais de 200 exposições no Brasil, América Latina, Estados Unidos
e Europa, prefaciou cerca de 200 catálogos de exposições, publicou numerosos artigos
na imprensa e 33 livros sobre arte e artistas brasileiros. Em função de sua atuação como
crítico e curador de arte, recebeu, em 2004 e 2016, o Prêmio Gonzaga Duque, da ABCA
- Associação Brasileira de Críticos de Arte - por atividades desenvolvidas no ano anterior
e, em 2011, o Prêmio Mário de Andrade por sua trajetória como crítico e curador de arte.
É curador da Fundação José e Paulina Nemirovsky, São Paulo” (Portal Artes, 2018).

103
Bianca Cristina Barreto Casanova

Na passagem para a década de 2000, em uma conversa com o


amigo Antônio da Mata, este sugeriu a Fogaça: “por que você não entra
de vez na cidade?” O crítico se referia aos diversos elementos urbanos,
como carros e torres, que G. Fogaça incorporava em suas paisagens
de cidades históricas, sempre vistas pelo lado de fora. É assim que
começa a fase Urbe, com a qual G. Fogaça teria maior reconhecimento
(FOGAÇA, 2018). Agora, em planos a partir de dentro da cidade, o
artista passou a enaltecer a verticalidade e a representar o caos da vida
contemporânea.
Ainda no início dos anos 2000, o casal G. Fogaça e Malu recebeu a
dica do fotógrafo Marcos Lôbo de usar leis de incentivo para patrocinar
suas exposições. Era um momento interessante da política cultural em
Goiás, em que foram aprovadas leis de incentivo que possibilitaram
aos artistas terem respaldo financeiro em suas carreiras, “não dependia
mais de ser amigo do gestor para ser apoiado pelo governo municipal
ou estadual” (MARIA DE LOURDES, 2018). A Lei Municipal de
Cultura13 e a Lei Goyazes14 foram criadas em 2000, e o Fundo de
Cultura15 em 2006. São três mecanismos que passaram a ser primordiais
na carreira de G. Fogaça, importantes tanto na manutenção de sua
independência financeira quanto na possibilidade de alçar voos, fazer
exposições no exterior, boas exposições no Brasil e uma boa produção
gráfica dos catálogos e livros.
Tudo isso, é claro, através do competente trabalho de Malu, que,
após a experiência de ter que pagar quatro mil reais para um produtor
fazer um projeto, foi até o Ministério da Cultura em Brasília para
13
LEI N° 7.957, DE 06 DE JANEIRO DE 2000 alterada pela LEI N° 8146, DE 27
DE DEZEMBRO DE 2002, que institui incentivo fiscal em favor de pessoas físicas e
jurídicas de direito privado, para a realização de projetos culturais e dá outras providên-
cias (BRASIL, 2000).
14
LEI Nº 13.613, DE 11 DE MAIO DE 2000 institui o Programa Estadual de Incen-
tivo à Cultura – GOYAZES e dá outras providências (BRASIL, 2000).
15
LEI Nº 15.633, DE 30 DE MARÇO DE 2006. Dispõe sobre a criação do Fundo de
Arte e Cultura do Estado de Goiás - FUNDO CULTURAL - e dá outras providências
(BRASIL, 2006).

104
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

aprender como se redigia projetos culturais para entrar com pedido


de lei de incentivo – no caso, a Lei Rouanet16. Malu nunca havia feito
qualquer curso, visto que produção cultural é uma área muito recente
no Brasil. Passou um dia no ministério e foi orientada sobre o que
fazer. A partir de então foi aprendendo com a prática.
O uso das leis de incentivo permitiu a G. Fogaça se organizar
profissionalmente em direção ao exterior, para compor seu currículo. O
artista sempre teve o sonho de expor no Chile e em Cuba, os países que
ele mais admira. Malu, à procura de um lugar no exterior para o marido
expor, começa pelo Chile, por ser mais fácil, estar mais próximo e ser
um projeto mais barato, uma vez que ir a Cuba era mais dispendioso.
Malu enviou um catálogo de G. Fogaça para a embaixada do
Brasil no Chile pedindo para expor, visto que as embaixadas costumam
apoiar projetos nesse sentido. O catálogo permaneceu algum tempo
sobre a mesa da diretora da embaixada, sem resposta. Até que, à espera
da diretora em uma visita, Jaime Ramirez, do setor cultural de uma
universidade do Chile, viu o catálogo em cima da mesa. Perguntou
quem era o artista, a diretora respondeu que era um artista brasileiro
que queria expor no Chile, e Jaime então disse: “eu quero fazer uma
exposição com ele”. Mandou uma carta para G. Fogaça. Malu fez o
projeto para conseguir verba, chamaram Antônio da Mata como
curador e Jaime organizou os espaços para exposição (MARIA DE
LOURDES, 2018).
Dessa forma, em 2006, G. Fogaça fez a primeira exposição
internacional de sua carreira. E foi a primeira viagem internacional
do casal também. A exposição foi na Universidade Tecnológica
Metropolitana do Chile e na Universidade Católica de Temuco,
também no Chile, como intercâmbio cultural.
A partir de então, G. Fogaça deslanchou como um dos artistas
goianos que mais fazem exposições no exterior (PX SILVEIRA, 2018).
16
LEI Nº 8.313, DE 23 DE DEZEMBRO DE 1991 (LEI ROUANET), reestabelece
princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de
Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências (BRASIL, 1991).

105
Bianca Cristina Barreto Casanova

Começando em espaços menos prestigiados, com o tempo pôde


selecionar onde iria expor, inclusive recusando convites de lugares que
considerava não serem interessantes para mostrar o seu trabalho.
Esse breve relato das experiências de G. Fogaça visam à construção
do conhecimento do trabalho do artista, através da valorização de sua
identidade, de sua formação cultural e de sua memória. A partir de sua
biografia e da estética de sua obra, combinados a elementos compositivos
utilizados junto com universo do imaginário, procuramos alcançar as
particularidades de significação e sensibilidade que G. Fogaça busca
exprimir.

Breve estudo da paisagem em G. Fogaça


G. Fogaça, como todo artista, é uma antena que capta os anseios
e visões de mundo do período em que vive. Como bem disse Nathalie
Lescop-Boeswillwald, doutora em História da Arte, “G. Fogaça é
uma testemunha da sua época” (URBS URBIS, 2010, p. 29), ideia
que vai ao encontro da noção de “testemunha ocular histórica”, de
Peter Burke, e que também está em consonância com Georges Didi-
Huberman, que descreve, interroga e defende o valor das imagens
na reconstituição da história, além da necessidade de se analisá-las
criticamente.
Segundo Didi-Huberman (2012, p. 15), é preciso “saber ver
nas imagens aquilo de que elas são sobreviventes”. Aplicado ao nosso
estudo, logo, é necessário saber ver nas pinturas de G. Fogaça o porquê
de sua proposta plástica: a transição do retrato de cidades históricas em
cores fauvistas nos anos 80 e 90 para o trânsito caótico das metrópoles
a partir dos anos 2000, do qual o pintor e nós, espectadores, somos
sobreviventes – por enquanto –, juntamente com a obra Urbs Urbis –
que se eternizará como registro histórico do tempo em que vivemos.
“Imagens apesar de tudo”, de Georges Didi-Huberman, reforçado
por “Ambições Eucrônicas: História Cultural e Interpretação
de Imagens”, de Heloísa Selma Fernandes Capel, tratam da

106
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

impossibilidade de se chegar a uma “verdade” na história, mas, ao


mesmo tempo, da importância da imagem para se interpretar, o
quanto possível, determinado momento histórico. O trabalho de
interpretar a obra de G. Fogaça como essa testemunha histórica
seria, então, “facilitado” por não haver o risco do anacronismo, visto
que ele é nosso contemporâneo. Mas, ainda assim, nossa “ambição
eucrônica”, alertada por Heloísa Capel, não é totalmente saciada:
nunca passaremos pelas mesmas experiências de G. Fogaça para
compreendermos exatamente sua mensagem artística.
Mas vale a intenção. A transição de G. Fogaça das paisagens
bucólicas do interior de Goiás e de Minas Gerais para cidades sem nome,
urbanizadas – ou melhor, asfaltadas, concretadas – é paralela à transição
de Goiânia, o lugar onde Fogaça cresceu como artista, de uma cidade
de porte médio para uma metrópole, em um contexto globalizado.
Por esse motivo, seguindo a ideia do geógrafo Milton Santos (2000),
Goiânia passa a fazer parte de uma cultura homogeneizada ao resto do
mundo – o que explicaria a falta de um “rosto” às cidades pintadas por
Fogaça.
Inserir o contexto da capital goiana no complexo das metrópoles
de um planeta globalizado é mostrar o quanto estamos mundialmente
interligados, compartilhando sensações. É o que nos mostra Fogaça
ao pintar cidades-coringa, sem caracterizações ou particularidades. O
trânsito retratado pode ser visto como o de Goiânia, Belo Horizonte, São
Paulo, Cidade do México ou Nova York.
Mas, ao mesmo tempo, há especificidades das impressões goianienses
de se viver em uma metrópole congestionada, com um ritmo de vida
“alucinante”; logo nós, que possuímos tradições rurais, que há poucas
décadas vivíamos em cidades do interior ou mesmo em fazendas, com
um cotidiano extremamente diferente, mais lento e contemplativo. E é
exatamente este traço de heterogeneidades em um mundo homogêneo
que caracteriza o homem contemporâneo e que faz de G. Fogaça sua
testemunha histórica.

107
Bianca Cristina Barreto Casanova

Figura 3: G. Fogaça, Sem Título, segunda metade da década de 80.


Fonte: acervo pessoal de G. Fogaça

As duas paisagens da Cidade de Goiás (figura 03), criadas na mesma


época, com as mesmas características, apresentam uma casa simples e
antiga ao centro ligeiramente deslocado à esquerda do enquadramento,
rodeada por mata muito densa. Os planos na horizontal enfatizam
a sensação do verde tomando conta da tela, sobrepondo as casas e se
espraiando até depois dos limites do quadro.
A vasta vegetação é contraposta timidamente pela construção humana,
à qual é destinado o menor espaço da composição. Na figura da esquerda,
as casas escondidas entre a vegetação compõem a metade traseira da obra;
enquanto que, na obra da direita, a quota de intervenção humana sobre o
meio natural se dá na metade dianteira da perspectiva, sob a forma de um
baixo muro e uma estradinha que encaminham o olhar para a casa ao centro.
Ambas as obras diferenciam-se do conjunto estudado neste trabalho
pela posição da natureza como subjugadora da ação humana. São
paisagens produzidas em meados da década de 1980, ainda no início da
carreira de G. Fogaça. O artista não sabe precisar (G. FOGAÇA, 2018)
se foram feitas antes ou depois da mudança para Goiânia.
Essas telas (figura 03) têm, assim, um caráter sui generis do conjunto
da obra de G. Fogaça. O artista, que começou, através delas, dando
ênfase à natureza em suas paisagens, logo depois se firmou com o retrato
da intervenção humana sobrepondo a natureza. Nessa tensão urbano-
rural que marca a fase de cidades históricas de G. Fogaça, as construções
passaram a ocupar cada vez mais espaço, tendo o verde como mero intruso
da composição, que resistiu até chegar à fase Urbe, em que a metrópole
solapou de uma vez a natureza das paisagens de G. Fogaça.

108
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

Tema recorrente em G. Fogaça durante os anos 80 e 90, as cidades


históricas de Sabará e Ouro Preto são abordadas pelo artista em linguagem
fauvista. A obra Paisagem de Ouro Preto (figura 4) remonta sobremaneira
à pintura tradicional mineira, com a Igreja Matriz encabeçando uma rua
sinuosa, enfatizando o relevo acidentado; e, principalmente, o apelo à
monumentalidade histórica da arquitetura.

Figura 4: G. Fogaça, Paisagem de Ouro Preto, década de 1990.


Fonte: acervo pessoal de G. Fogaça.

Na figura 04 percebemos um enquadramento semelhante aos de


paisagistas históricos que atuaram em Minas Gerais, como Antônio da
Veiga Guignard17, Wilde Lacerda18 e Inimá de Paula19. Estes também
17
Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), nascido em Nova Friburgo, no Rio de Ja-
neiro, foi um pintor e professor que ficou famoso por retratar paisagens mineiras. Cola-
borou para a formação de artistas que romperam com a linguagem acadêmica e ajudou
a consolidar o modernismo nas artes plásticas em Minas. 
18
Wilde Damaso Lacerda (1929-1996), nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, é es-
cultor, pintor e desenhista. Realizou sua formação artística com Guignard (pintura) e Franz
Weissmann (escultura), na Escola de Belas Artes de Belo Horizonte, na qual veio mais tarde
a lecionar escultura. “Lacerda, talvez, seja o representante da arte mineira que se notabiliza
graças aos Salões Municipais de Belas Artes (SMBA)”, que seria transformado em Salão Na-
cional de Arte Contemporânea (SNAC) em 1969. (ANDRADE, 2008, p. 107).
19
Inimá José de Paula (1918-1999), natural de Itanhomi, Minas Gerais, foi pintor, de-
senhista e professor. A pintura de Inimá é marcada pelas cores fortes e vibrantes, que

109
Bianca Cristina Barreto Casanova

retrataram a clássica Ouro Preto, cidade histórica escolhida e difundida


pelos modernistas como símbolo de brasilidade20.
Apesar de na Paisagem de Ouro Preto (figura 04) encontrarmos
a reunião de todos os elementos da pintura tradicional mineira, estes
são associados a um fauvismo muito similar ao de Inimá de Paula, de
tons encorpados que, em alguns pontos, assemelham-se ao efeito neon
da pop art, o que traz um aspecto moderno à composição. Mas, em G.
Fogaça, diferentemente das paisagens tradicionais de cidades históricas,
encontramos carros, elementos que remetem à modernidade urbana e
que já sinalizam para a fase Urbe que G. Fogaça iniciaria pouco menos
de uma década depois.
A figura 05 consiste em uma obra de transição de G. Fogaça, no
liame entre o natural e o urbano na paisagem. Na metade dianteira nos
são apresentadas casas aglomeradas, alguns carros à direita e uma pessoa
ao centro. Na metade traseira e superior, uma enorme árvore, como
figura focal, disputa o espaço entre palmeiras à esquerda, entre semáforos

o aproximam do fauvismo. No que diz respeito aos temas, predominam as paisagens,


especialmente as urbanas.
20
Em que pese a temática das cidades históricas do interior de Minas Gerais, que foram
abordadas recorrentemente por G. Fogaça em sua primeira fase nos anos 80, foi de
importância crucial a viagem que o grupo de modernistas fez em 1924 pelo interior mi-
neiro. Participaram da caravana Oswald de Andrade, seu filho Nonê, Tarsila do Amaral,
Mário de Andrade, o jornalista René Thiollier, a fazendeira Olívia Guedes Penteado, o
advogado Goffredo Telles e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars. Permanecem na capi-
tal mineira entre os dias 15 e 30 de abril, para pesquisar os fundamentos da brasilidade.
Aproveitaram, nessa ocasião, as festividades da Semana Santa, pretendendo fazer os
estudos de manifestações religiosas, as quais eles pensavam ser genuinamente Brasileiras,
e passaram por Ouro Preto, São João del-Rei, Tiradentes, Mariana e Congonhas.
O escritor Mário de Andrade escreveu uma verdadeira apologética ao passado colonial
brasileiro a partir dessa excursão, colocando o Barroco Mineiro como cânone da antro-
pofagia cultural que o modernismo defendia: uma deglutição de vertentes europeias
que, apropriadas pela mestria de artistas cujo expoente é Aleijadinho, produziu uma
arte, segundo Andrade, autenticamente brasileira.
Foi uma retroalimentação cultural-conceitual. Utilizando-se do arcabouço histórico,
Mário de Andrade promoveu o modernismo, incentivando novas publicações da mes-
ma vertente. Em contrapartida, o Barroco Mineiro, esquecido no século XVIII, voltou
à “moda” no século XX. A partir disso, iniciaram-se muitos estudos sobre essa nossa arte
“legítima”, inclusive por parte de pesquisadores internacionais.

110
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

e prédios ao fundo – primeiros traços da verticalidade urbana em G.


Fogaça.

Figura 5: G. Fogaça, Sem Título, década de 90.


Fonte: acervo pessoal de G. Fogaça

A árvore monumental em meio à urbe talvez seja o último suspiro


de natureza na obra de G. Fogaça. Os tons utilizados ainda são os
mesmos das obras com temática de cidades coloniais, mas, na figura 05,
a metrópole já começa a surgir, com sobreposições de construções, carros
e uma incipiente exaltação da verticalidade dos prédios, que ladeiam a
composição. Poucos anos depois dessa obra, G. Fogaça produziria cidades
de puro concreto, em tons escuros de azul, dando o golpe definitivo sobre
a natureza em suas urbes.
A escola que declaradamente (G. FOGAÇA, 2018) mais influenciou
o gosto e a obra de G. Fogaça foi o Expressionismo Alemão. Com origens
no expressionismo pioneiro de Van Gogh, na França, caracterizado pela
distorção das formas e o uso de cores brilhantes, essa escola se tornou
um movimento na Alemanha do começo do século XX, estendendo-
se por várias linguagens artísticas além da pintura, como a poesia, a
dança, as artes gráficas e o cinema, em negação ao mundo burguês e seu
racionalismo e mecanicidade do trabalho.

111
Bianca Cristina Barreto Casanova

Tratava-se de uma ruptura com critérios de representação que


remontavam à Antiguidade Clássica, radicalizando uma problemática
niilista21 em uma crítica contundente ao establishment social e à arte. O
Expressionismo Alemão combatia a razão com a fantasia, tornando a
arte uma expressão da subjetividade psicológica do artista, criando uma
atmosfera de rápidas mudanças, que alteraram visceralmente o conceito
das artes e das letras ocidentais.
A convergência histórica a um momento de mudanças políticas,
econômicas, culturais e intelectuais intensificou o caráter angustiado da
arte alemã. Após a perda da Primeira Guerra22 e o consequente Tratado
de Versalhes23,  que arruinou o país, e a instalação da efêmera  República
de Weimar24, a nova postura estética expressionista refletia um período
21
Niilismo (do latim nihil, “nada”) é uma doutrina filosófica ancorada em um ceticismo
extremo em relação às interpretações da realidade, que aniquila valores e convicções.
Consiste na negação de todos os princípios políticos, religiosos e sociais, desprezando
convenções, verdades absolutas, normas e preceitos morais. Desfaz qualquer possibili-
dade de sentido da existência humana. No que tange à arte, até mesmo os princípios
estéticos são repudiados (PECORARO, 2007).
22
A Primeira Guerra Mundial (28 de julho de 1914 a 11 de novembro de 1918) foi uma
guerra global centrada na Europa, cujas causas convergem nas políticas imperialistas das
grandes potências europeias. Dois grupos de estados poderosos organizaram-se em duas
alianças opostas: os  aliados,  com base na  Tríplice Entente  entre  Reino Unido,  Fran-
ça e Império Russo, e os Impérios Centrais: o Império Alemão e a Áustria-Hungria,
que “se agrediram mutuamente com todos os meios que lhes brindava a ciência militar,
incluído o gás tóxico. Quando finalizou, restaram mortos nove milhões de soldados e
quatro impérios destruídos” (GILBERT, 2017, p. 6).
23
O  Tratado de  Versalhes  (1919) foi um tratado de paz assinado pelas
potências europeias, que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial. O principal
ponto do tratado, que a Alemanha classificou como imposição, determinava que este
país aceitasse todas as responsabilidades por causar a guerra e que fizesse reparações a um
certo número de nações da Tríplice Entente. Os termos impostos à Alemanha incluíam
a perda de uma parte de seu território para um número de nações fronteiriças, de todas
as colônias sobre os oceanos e sobre o continente africano, uma restrição ao tamanho
do exército e uma indenização pelos prejuízos causados durante a guerra. A República de
Weimar alemã também aceitou reconhecer a independência da Áustria. “Na Alemanha,
o tratado causou choque e humilhação à população, o que contribuiu para a queda da
República de Weimar, em 1933, e a ascensão do Nazismo” (MAGNOLI, 2008, p. 17).
24
República de Weimar é a designação histórica pela qual é conhecida a república es-
tabelecida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, e que durou até
o início do regime nazista em 1933, tendo como sistema de governo uma democracia

112
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

de rompimento da moral burguesa, da crença religiosa e da obediência à


autoridade política, dada a humilhação do povo alemão e sua incerteza quanto
ao futuro. Tais características, obviamente, seriam combatidas quando da
posterior instalação do regime nazista25, que iria destruir muitas das obras
desse momento expressionista com a alegação de serem “decadentes”.
Emil Nolde, um dos expoentes do Expressionismo Alemão, em
sua autobiografia, elucida o que foi a angústia por algo “novo” que esses
artistas buscavam:

1909... Já não me satisfazia o modo como eu desenhava e pintava nos


últimos anos, imitando e dando forma à natureza (...). Ao desenhar, eu
apagava e rabiscava o papel até enchê-lo de buracos, tudo na tentativa
de obter algo diferente, mais profundo, a essência mesma das coisas.
As técnicas do impressionismo pareciam-me apenas um caminho
já trilhado, e não uma meta capaz de satisfazer-me (NOLDE apud
CHIPP, 1988, p. 143).

Diferentemente do expressionista Emil Nolde, entretanto, em


G. Fogaça não há a elaboração por parte do artista de escritos de
natureza teórico-filosófica que embasem a práxis artística. O goiano
atém-se à técnica e ao desenvolvimento estético da noção de paisagem,
experimentando variados suportes e pigmentos, como tela, cartão, tinta
a óleo, aquarela e giz.
representativa semipresidencial. Prestes a perder a Primeira Guerra Mundial, a liderança
militar alemã, altamente autocrática e conservadora, atirou o poder para as mãos dos
democratas, em particular o SPD, que acabou por ter de negociar a paz ou a derrota na
guerra. “Com isso, ficava no ar o saudosismo de uma nação outrora poderosa, nos tem-
pos do imperador, em comparação com a nova realidade democrática, cheia de derrotas
e humilhações. Essa situação política acabou por lançar os fundamentos que permitiram
mais tarde a Adolf Hitler posicionar-se com o passado imperial da Alemanha e implan-
tar o nazismo.” (HOBSBAWM, 2000, p. 34).
25
O regime nazista, ou Terceiro Reich, ocorreu na Alemanha durante os anos de 1933
e 1945, quando o seu governo era controlado por Adolf Hitler e pelo Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), mais conhecido como Partido Nazista.
Sob o governo de Hitler, a Alemanha foi transformada em um Estado totalitário fascis-
ta, que controlava quase todos os aspectos da vida. A Alemanha nazista deixou de existir
após as forças aliadas derrotarem os alemães em maio de 1945, encerrando a Segunda
Guerra Mundial na Europa (HOBSBAWM, 2000).

113
Bianca Cristina Barreto Casanova

A identidade pictórica do uso de cores intensas para expressar


as incertezas do indivíduo e da sociedade está presente nos pintores
expressionistas alemães, como o já referenciado Emil Nolde26, Oskar
Kokoschka27, Paul Klee28, e Ernst Ludwig Kirchner29, assim como
também na obra de G. Fogaça, setenta anos depois. Mas o pintor russo
Wassily Kandinsky30 (1866-1944) é o integrante do movimento alemão
26
Emil Nolde (1867-1956) foi pintor e artista gráfico alemão, “um dos mais vigorosos
representantes do expressionismo” (CHILVERS, 2001, p. 379).
27
Oskar Kokoschka (1886-1980) foi pintor, artista gráfico e escritor austríaco. “Tor-
nou-se conhecido por volta de 1910 com seus ‘retratos psicológicos’, que supostamente
desnudavam a alma do retratado” (CHILVERS, 2001, p. 288).
28
Paul Klee (1879-1940) foi pintor e artista gráfico suíço, “uma das figuras mais indivi-
duais e mais influentes da arte do século XX. (...) É impossível encerrar sua obra numa
única categoria estilística; Klee movimentou-se com total liberdade entre a figuração e a
abstração, absorvendo incontáveis influências e transformando-as através de seu talento
imaginativo” (CHILVERS, 2001, p. 285).
29
Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938) foi pintor, escultor e artista gráfico alemão,
“personagem dominante no grupo expressionista Die Brucke. (...) A obra de Kirchner
foi declarada degenerada pelos nazistas em 1937, o que colaborou para piorar a aguda
depressão do artista, já abalado pelos rumos da política na Alemanha; no ano seguinte,
Kirchner suicidou-se.” (CHILVERS, 2001, p. 283).
30
Wassily Kandinsky (1866-1944) foi pintor e teórico da arte russo, “um dos mais impor-
tantes pioneiros da arte abstrata. (...) Em 1901, foi um dos fundadores de uma sociedade de
vanguarda chamada Falange, que foi, na Alemanha, o principal porta-voz do Jugendstil (Art
Nouveau) (...). Suas pinturas, na virada do século, combinavam características da Art Nou-
veau com reminiscências da arte popular russa, num estilo de cores próxima ao dos fauvistas.
Em 1908, Kandinsky voltou para Munique e começou a eliminar de suas obras o elemento
figurativo, chegando, com isso, numa série de Composições, Improvisações e Impressões (feitas
entre 1910 e 1913), à abstração pura. O próprio Kandinsky afirmou que sua compreensão
do poder da arte não-figurativa adveio de uma noite em que, ao entrar em seu estúdio em
Munique, não conseguiu reconhecer uma de suas próprias pinturas, que estava de cabeça
para baixo, vendo nela uma obra ‘de extraordinária beleza, brilhando com um íntimo res-
plendor’. A partir de 1911, o artista foi um dos principais expoentes do Der Blaue Reiter,
editando com Franz Marc um almanaque com o mesmo nome do grupo (...). Kandinsky
foi, tanto por sua obra pictórica quanto por seus escritos, um dos artistas mais influentes de
sua geração. Esteve à testa daqueles que investigaram os atributos expressivos dos materiais
artísticos sem referência às aparências naturais. Seu progresso em direção à abstração deu-se
em conformidade e ressonância com suas visões filosóficas acerca da natureza da arte, que
foram influenciadas pela teosofia e pelo misticismo. Não repudiava completamente a repre-
sentação, mas afirmava que o artista ‘puro’ deveria expressar somente sentimentos ‘interiores
e essenciais’, ignorando o superficial e o fortuito (...). ” (CHILVERS, 2001, p. 279)

114
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

cuja trajetória artística mais se assemelha à produção fogaciana, tanto


nas características da fase figurativa quanto no trabalho em direção à
abstração.
Kandinsky é mais conhecido como o introdutor da arte abstrata no
ocidente, tendo começado seus estudos não-figurativos na  década
de 1910,  desenvolvendo a abstração até o final de sua vida. Mas o
pioneirismo de Wassily Kandinsky na abstração ocidental não subjuga
sua também mestria na fase expressionista, que é a que conta para nosso
estudo sobre G. Fogaça, tendo ambos em comum o fascínio pela cor
desde seus primeiros trabalhos, com inclusive uma fase que se vale do uso
de cores brilhantes sobre fundo negro, como podemos observar na tela a
seguir (figura 06):

Figura 6: Wassily Kandinsky, Rua em Murnau com Mulheres, 1908, Óleo em cartolina
(71x97 cm).
Fonte: < https://www.wassilykandinsky.net/work-291.php>

Esse estágio de Wassily Kandinsky demonstra sua influência na


evolução artística de G. Fogaça, que, na fase Urbe, também se utilizava da
técnica do fundo preto para contrastar ao máximo com os tons vibrantes
da paisagem urbana, utilizando sempre os tons azul e violeta em suas
composições (figura 07):

115
Bianca Cristina Barreto Casanova

Figura 7: G. Fogaça, Vista do Apartamento, óleo sobre tela, 100x110cm, 2005.


Fonte: Catálogo Meu Brasil, de exposições realizadas nas Faculdades Alfa, Brasil, Universi-
dad Tecnológica Metropolitana, Chile, e Pontificia Universidad Catolica de Temuco, Chile.

Em Vista do Apartamento (figura 07), a luz se dá por meio dos tons


de verde e vermelho sobre a obra escura. O grande prédio espelhado à
esquerda destaca-se diante do amontoado de construções. Carros trafegam,
mas não há pessoas retratadas nessa cidade. O azul-violeta predominante
nos quadros dessa fase Urbs Urbis, apesar de ser classificado como um tom
“frio”, em composição com a obra, transmite uma impressão “quente”,
sufocante, nauseante, estressante, como se se pudesse sentir o cheiro de
poluição, a luz cegando os olhos, o sol queimando a pele e o mormaço
sufocante. Esse azul cortado por algumas pinceladas de tons puros de
verde, vermelho e amarelo expressam os reflexos solares na cidade ao
mesmo tempo em que se assemelha com imagens vistas através de câmeras
de infravermelho, que captam o calor e a radiação da cidade, expondo as
variações do índice de albedo no concreto, no asfalto e na lataria dos carros.
Relacionada com seu título, a obra fica ainda mais significativa.
Significando “cidade do cidadão”, em tradução livre do latim, o título
Urbs Urbis remonta à urbe romana, símbolo de civilidade e de como
o espaço urbano foi originalmente pensado para atender ao cidadão,

116
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

afinal, a cidade deveria ser do cidadão. Entretanto, esse título é quase um


paradoxo com a obra que nomeia. O cidadão na urbe de Fogaça quase
não é identificado pessoalmente, e as pessoas retratadas são poucas. Suas
presenças são indireta e subjetivamente percebidas através dos inúmeros
carros trafegantes, que logicamente devem comportar condutores e
passageiros.
Nos poucos quadros onde pessoas são retratadas (figura 08), elas
são anônimas, sozinhas, com parcas denotações de alguma relação afetiva
entre si. O que se percebe é que o cidadão não é o centro da obra. É a
cidade. Ela, como que um ente de vida própria, tem as pessoas e os carros
como células que a compõem e as ruas como veias que a alimentam.
Nesse sentido, antagonicamente ao que significa o título, o cidadão é
visto como posse da cidade. O cidadão é da cidade, seu único propósito
existencial é servir à cidade: passar horas no trânsito sob tensão constante
nos faz perder momentos preciosos de vida. O tempo que passamos
cotidianamente transitando é a parcela de vida que deixamos de viver
para entregá-la à cidade.

Figura 8: Chuva Ácida (2010), 130x150cm, G. Fogaça, óleo sobre tela.


Fonte: Catálogo Urbs Urbis, 2010, pg. 43.

117
Bianca Cristina Barreto Casanova

G. Fogaça, assim, utiliza alguns recursos do expressionismo para


retratar a angústia em suas paisagens urbanas. Além das cores e das
pinceladas agressivas, são empregadas formas grotescas para representar
as pessoas, à maneira como é feito em obras expressionistas.
Apesar de haver rara presença humana nas paisagens fogacianas,
quando ela existe, como em Chuva Ácida (figura 08), são desenhos
repetitivos de contornos disformes, formando uma massa homogênea da
população urbana. A metrópole de G. Fogaça trucida a individualidade.
A degradação dos corpos, assim, reflete a degradação do espírito dos que
vivem em urbes caóticas.
Nas cores também percebemos influência da pop art, que, através
dos tons fortes, de pigmentação pura, dão um efeito neon à composição.
A festa de cores, de certa forma, também enaltece a figura da cidade
como signo de modernidade. A verticalidade na arquitetura, ainda que
subjugadora, é bela. Logo, percebemos uma ambivalência no tratamento
da urbe em G. Fogaça. A mesma obra que perturba, exalta a cidade.
No contexto goiano de uma sociedade advinda do meio rural e ainda
muito permeada por ele, pode-se intuir que a beleza da cidade fogaciana
também corresponde a uma demanda simbólica. Desde a fundação de
Goiânia, em 1933, há um esforço por adequar a nova capital goiana à
modernidade e ao progresso, em contraposição à velha capital, atrelada às
oligarquias tradicionais antagônicas às pretensões varguistas31.
Dessa forma, um artista goiano retratar metrópoles – ainda
que genéricas, e que não se possa reconhecer Goiânia ou qualquer
outra cidade – como eternas Nova Yorks em neon, ícone da agitada e
31
Pedro Ludovico Teixeira, aliado de Getúlio Vargas, fundou Goiânia para descentrali-
zar o poder local do Estado de Goiás, arregimentado na antiga capital, Cidade de Goiás.
O poder era então concentrado em famílias oligárquicas como os Caiado, os Jardim e
os Bulhões, ocorrência típica de regiões do interior do Brasil durante a República Velha.
Dessa maneira, Goiânia é um dos símbolos da Revolução de 1930, que instaurou a Era
Vargas, época da história  brasileira que compreende os anos de 1930 a 1945, quan-
do Getúlio Vargas governou o Brasil de forma contínua. Foi um período transformador
na história nacional pelas inúmeras alterações que Vargas fez no país, tanto econômicas
quanto sociais. A Revolução de 1930 depôs a oligarca República Velha e apoiou diversos
líderes pelo país para fazerem oposição às lideranças regionais tradicionais, como no
caso de Goiás (CPDOC, FGV, 2018).

118
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

produtiva modernidade capitalista, é uma tentativa de inserir Goiás num


contexto globalizado. Refletidamente ou não, por parte do artista, é uma
adequação que pode justificar em parte o sucesso com o público, que
tem sua demanda simbólica saciada. Em G. Fogaça, Goiás faz parte do
mundo moderno.
Goiânia, fundada em 1933, com um plano diretor de 1938 que
comportava 50 mil habitantes, logo nos anos 50 já possuía um crescimento
superior ao planejamento inicial e, em 60, o surgimento de novos bairros
dava mostras de que seria uma das maiores metrópoles do Brasil. Na
década de 70, Goiânia possuía mais que o dobro da população da década
anterior e ganhou o acréscimo de milhares de carros. Em 1999, a Região
Metropolitana de Goiânia é criada, totalizando 20 municípios, com um
processo de conurbação que vem ocorrendo até hoje.
O fenômeno da metropolização da capital goiana tem poucas
décadas, porém, para que seja entendido, deve-se considerar que “a
população do mundo passou de rural a prevalentemente urbana em
menos de um século, não apenas com a proliferação de cidades, mas
também com o crescimento delas, produzindo uma nova forma espacial
denominada área ou região metropolitana” (ROSA, 2006, p. 27).
Observa-se, dessa maneira, a metropolização de muitas cidades,
que, diante da perspectiva de estagnação, tratam logo de se autoinserirem
na lógica capitalista. “Goiânia encontra-se nessa roda viva, criando
oportunidades e eventos que permitem sua continuidade neste mundo
em movimento, a continuidade temporal e a coerência espacial dentro
do sistema vigente” (ROSA, 2006, p.24).
Milton Santos aborda essa nova fase da urbanização brasileira
referindo-se à multiplicação das cidades milionárias, que eram duas –
São Paulo e Rio de Janeiro – até 1960 e se contavam quinze no ano
2000, inclusive Goiânia, com mais de um milhão de habitantes. E
justifica na rapidez do desenvolvimento das novas relações espaço-tempo
que afetaram as cidades médias desta região o reforço da capital ao ser
alçada à condição metropolitana, apesar de sua proximidade de Brasília
(SANTOS, 2005).

119
Bianca Cristina Barreto Casanova

Milton Santos explica a fundamental importância que o fenômeno


de macrourbanização e metropolização ganhou nas últimas décadas
mediante, além de outros fatos, a “concentração da população e da
pobreza, contemporânea da rarefação rural e da dispersão geográfica
das classes médias” (SANTOS, 2005, p. 206). A capital goiana, assim,
no início do século XXI, com o status de metrópole, tenta superar o
estereótipo de cidade-rural, retaguarda do agronegócio.
Sob outra ótica, a globalização também suscita questionamentos
sobre identidade cultural, que se refletem na arte e ajudam a pensar a
obra de G. Fogaça. Stuart Hall explica que globalização é “o complexo
de processos e forças de mudança que têm o poder de deslocar as
identidades culturais nacionais, intensificado no fim do século
XX”. Globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala
global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo mais interconectado. Essas “novas características
temporais e espaciais, que resultam na compressão de distâncias e
de escalas temporais, estão entre os aspectos mais importantes da
globalização a ter efeito sobre as identidades culturais” (Hall, 2006,
p. 18).
A partir dos anos 1970, tanto o alcance quanto o ritmo da integração
global aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e os laços entre
as nações. A Pós-Modernidade, que é o aspecto cultural da  sociedade
pós-industrial, inscreve-se nesse contexto como conjunto de valores que
norteiam a produção cultural subsequente. Entre esses, a multiplicidade
e a fragmentação32, que, com a aceitação de todos os estilos e estéticas,
32
A fragmentação cultural surgiu paralelamente ao processo de globalização.
A natureza excludente do capitalismo foi acentuada a partir da globalização, pois o
movimento é delineado especialmente pelo avanço dos fluxos de capitais. Dentro desse
quadro financeiro e tecnológico nações inteiras são excluídas desse processo. A margina-
lização socioeconômica desses povos desencadeia impressionantes movimentos migra-
tórios no sentido sul-norte. Esses fluxos tendem a acentuar a fragmentação cultural, ou
seja, o rompimento do lugar de origem, com a sua paisagem, sua família e sua comuni-
dade. (Disponível em <https://culturaecomunicacao.com.br/2015/03/31/a-identidade-cul-
tural-na-pos-modernidade-stuart-hall/> Acesso em 1 de dezembro de 2017).

120
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

pretende a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores.


No modelo pós-industrial de produção, que privilegia serviços
e  informação  sobre a produção material, a  comunicação  e a  indústria
cultural ganham papéis fundamentais na difusão de valores e ideias do
novo sistema.
Uma “homogeneização” advinda da globalização é a “tese” mais
perceptível na obra de G. Fogaça, que trocou a tradicional pintura de
paisagens de cidades históricas para algo mais moderno esteticamente,
pelo menos para a cena artística goianiense. Suas metrópoles genéricas
congestionadas por transeuntes anônimos reforçam a noção de
homogeneização cultural, que, para muitos teóricos, é um grito
angustiado daqueles que estão convencidos de que a globalização ameaça
solapar as identidades e a “unidade” das culturas nacionais.
Entretanto, Stuart Hall questiona se as identidades nacionais
realmente estariam sendo “homogeneizadas”. Para o autor, esse quadro,
da forma como é colocado, é muito simplista, exagerado e unilateral.
Para ele, “parece improvável que a globalização vá simplesmente
destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir,
simultaneamente, novas identificações globais e novas identificações
locais” (Hall, 2006).
A visão de Stuart Hall, assim, apresenta as pessoas como produtoras
e consumidoras de cultura ao mesmo tempo, assumindo dessa maneira
uma posição “pós-gramsciana” (Martins, 2011), abrangendo questões
sobre a hegemonia e cultura. Ele considera o uso da linguagem como
operador de uma estrutura de poder, instituições, política e economia.
Na teoria gramsciana, hegemonia refere-se à produção sociocultural
de “consentimento” e “coerção”; para Hall, a cultura não era algo
para simplesmente apreciar ou estudar, mas um “local crítico da ação
social e de intervenção, onde as relações de poder são estabelecidas e
potencialmente instáveis”. Essa possibilidade de negociação e oposição
por parte do público significa que este não se limita a aceitar passivamente
uma informação, sendo questionável, assim, a ideia de um total controle
social.

121
Bianca Cristina Barreto Casanova

Nesse sentido, é praticável abordar uma possível demanda simbólica


do cidadão goiano percebida por G. Fogaça. Sendo a população, segundo
Hall, ao mesmo tempo assimiladora e produtora de cultura, vemos que
o homem goiano não só está na lógica da globalização, mas quer se ver
inserido nela, representado à maneira dos grandes centros que aparecem
na mídia. Sua identidade cultural, assim, produz um sentido de
“goianidade” atrelado ao mundo capitalista das grandes metrópoles. Seria
uma espécie de antropofagia, no mesmo sentido dado pelo modernismo,
de fazer da goianidade algo único, misturando elementos tradicionais
com os advindos da cultura globalizante.
Essas novas relações espaço-tempo constatadas por Milton Santos
e Stuart Hall são expostas de maneira intensa e vibrante pelo artista
plástico G. Fogaça, que reflete as angústias e ansiedades diante do estresse
diário das grandes cidades e da sociedade atual, ao mesmo tempo em
que opera como um mediador ao representar Goiás como um signo de
modernidade, à maneira como o goiano quer se ver e ser visto.
Concluímos com o entendimento de que a trajetória de G. Fogaça
foi uma busca da melhor expressão da paisagem, concernente aos
momentos de sua vida inseridos na história goiana e respondendo aos
anseios goianos, sem, contudo, perder a personalidade de sua obra. Com
mestria no ofício da pintura, G. Fogaça tenta assimilar o caos resultante
das dinâmicas históricas pelas quais Goiás perpassou, sempre mantendo
uma coerência artística no desenvolver da obra ao longo de sua trajetória.

Referências
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contemporânea em Belo Horizonte: 1960-1969. Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Tese de Doutorado. Campinas, São
Paulo, 2008.
BURKE, Peter. História Cultural das Imagens. In: Testemunha Ocular. História e
Imagem. Tradução de Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru, São Paulo: EDUSC,
2004. pp. 225-238.
CAPEL, Heloísa S. F. Ambições Eucrônicas: História Cultural e Interpretação de Imagens.
Disponível em: http:// locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2807

122
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

CHILVERS, Ian (org.). Dicionário Oxford de arte. Tradução de Marcelo Brandão


Cipolla. 2ª ed. Martins Fontes. São Paulo, 2001.
CHILVERS, Ian. Dicionário de arte. Alianza Editorial, Barcelona, 2007.  Pg. 334.
CHIPP, Herschel B. Teorias da Arte Moderna. Colaboração de Peter Selz e Joshua C.
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Bianca Cristina Barreto Casanova

Entrevistas
DA CUNHA, Maria de Lourdes. Depoimento [02 mai. 2018]. Entrevistadora:
Bianca Cristina Barreto Casanova. Goiânia, 2018.
DA MATA, Antônio. Depoimento [17 mai. 2018]. Entrevistadora: Bianca Cristina
Barreto Casanova. Goiânia, 2018.
G. FOGAÇA. Depoimento [02 mai. 2018]. Entrevistadora: Bianca Cristina
Barreto Casanova. Goiânia, 2018.
JORGE, Miguel. Depoimento [01 mai. 2018]. Entrevistadora: Bianca Cristina
Barreto Casanova. Goiânia, 2018.
MENEZES, Amaury. Depoimento [18 mai. 2018]. Entrevistadora: Bianca Cristina
Barreto Casanova. Goiânia, 2018.
PERDOMO, Dayalis González. Depoimento [21 mai. 2018]. Entrevistadora:
Bianca Cristina Barreto Casanova. Goiânia, 2018.
SILVEIRA, PX. Depoimento [24 abr. 2018]. Entrevistadora: Bianca Cristina
Barreto Casanova. Goiânia, 2018.

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Temuco - Chile, 2006.
G. FOGAÇA, Urbs Urbis. Exposições feitas na Fundação Centro de Estudos
Brasileiros, Buenos Aires, Argentina, Ville de Saint-Ghislain, Bélgica, Centro
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124
Urbe: uma visão artística de G. Fogaça (1985-2010)

Leis
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providências. Brasília, DF, jan. 2000.
BRASIL. Lei nº 13.613, de 11 de maio de 2000. Institui o Programa Estadual de
Incentivo à Cultura – GOYAZES e dá outras providências.  Brasília, DF, mai. 2000.
BRASIL. Lei nº 15.633, de 30 de março de 2006. Dispõe sobre a criação do Fundo
de Arte e Cultura do Estado de Goiás - Fundo Cultural e dá outras providências.
Brasília, DF, mar 2006.
BRASIL. Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (Lei Rouanet). Restabelece
princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de
Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. Brasília, DF, dez. 1991.

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Informações Gráficas
Formato: 15,24 x 22,86cm
Mancha: 11,8 x 20,7cm
Tipologia: Adobe Garamond Pro - Theano Didot
Projeto editorial e acabamento: Editar Editora Associada – Juiz de Fora/MG
Tel.: (32) 3213-2529 – (32) 3241-2670 – www.editar.com.br – contato@editar.com.br
Junho de 2019

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