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Patrimônio Imaterial: A trajetória, os debates e os conceitos de

uma política cultural. 1

Aluna: Marcia Conceição da Massena Arévalo


Orientadores: Prof. Dr. Valdei Lopes de Araujo (UFOP)
Prof. Dr. Tiago de Melo Gomes (UNILESTE)
Universidade Federal de Ouro Preto

RESUMO
A política de preservação do chamado patrimônio Imaterial debatida no
Brasil e no mundo desde a década de 1980, mas constituída no âmbito legal a
partir do decreto 3551/2000, utiliza o conceito "Patrimônio Cultural Brasileiro"
numa dimensão ampla, fruto do contexto em que surge: a abertura política e
democrática do país.
O que desenvolvemos nesta pesquisa é o estudo da trajetória desta
política: os debates que surgem em torno do uso de um novo termo para definir o
acervo de bens culturais nacionais, a política cultural federal que é inaugurada em
torno dele e os agentes desta política, a saber, configurada no campo intelectual.

PALAVRAS CHAVES: Patrimônio, políticas públicas, história intelectual.


Introdução
O objetivo principal deste trabalho foi elaborar uma trajetória para o debate
que traz na sua conclusão a formulação de uma nova política de preservação que
tem como foco o bem cultural imaterial. Observando a situação mundial e a
nacional para delimitar uma trajetória temporal para as discussões sobre a
preservação de um patrimônio dito Imaterial no Brasil, obtivemos um esboço no
qual, além do cenário internacional da década de 1960, que traz o debate sobre o
regional, o popular e o tradicional, temos como marco no país, para a introdução
deste mesmo debate, a reformulação pela qual passa o Instituto do Patrimônio

1
Graduanda de história da Universidade Federal de Ouro Preto. Este trabalho traz os resultados
finais da pesquisa "Patrimônio Imaterial: os debates, os critérios e o histórico de uma política
cultural", financiada pelo PIBIC/ CNPq. Contei nesta pesquisa com a orientação dos professores
Dr. Valdei Lopes de Araujo (UFOP) e Dr. Tiago de Melo Gomes (UNILESTE), aos quais deixo aqui
meus agradecimentos.
Histórico e Artístico nacional (IPHAN) durante a década de 1970 sob a direção de
Aloísio Magalhães.
A periodização obtida por esta pesquisa para a trajetória das discussões
sobre a preservação dos bens imateriais no país tem como inicio a reformulação
do IPHAN durante a década de 1970 sob a direção de Aloísio Magalhães, observa
como momentos principais a divulgação do documento da Unesco
“Recomendações para a salvaguarda da cultura tradicional e popular” em 1982, a
declaração da Constituição Federal de 1988 e se encerra com a criação, a partir
do decreto 3551 em 2000, do Registro de Bens Imateriais do Patrimônio Cultural
Brasileiro.

1960 Maio de 1968 1970 1972 1980 1989 1997 2000

Revolta estudantil Convenção Aloísio Recomendações Documento do Decreto


de Nanterre / França Mundial Magalhães sobre a Mercosul 3551/2000
do Patrimônio assume a salvaguarda
direção do da cultura Carta de Fortaleza
IPHAN tradicional e
Proposta de popular
preservação
das Manifestações
folclóricas

I. O debate internacional e o reconhecimento das culturas populares e


tradicionais.

A década de 1960 se configura no plano internacional como o afloramento


de movimentos sociais parciais e regionalizados. É nesta década que se dá a
consolidação das independências das antigas colônias africanas e asiáticas, que
desde a década de 1940 (com a Europa em guerra) começam um processo de
libertação dos antigos impérios europeus, debilitados pelo conflito e logo depois
pela reconstrução do continente.
Nesse momento de independências das colônias africanas e asiáticas, a
ONU cumpre um papel importante, sua mediação com as antigas metrópoles foi
fundamental para o reconhecimento de alguns paises africanos e asiáticos como
Estados soberanos.
A crítica ao Etnocentrismo já se encontra na época bem formulada e
discutida no âmbito institucional. Em 1950, Claude Lévi-Strauss, em sua
intervenção numa das conferências da recém criada Unesco (1948), afirmava a
propósito do progresso da humanidade que esta “não pode cair num
particularismo cego que tenderia a reservar o privilégio da humanidade a uma
raça, a uma cultura ou a uma sociedade, mas também nunca esquecer que
nenhuma fração da humanidade dispõe de fórmulas aplicáveis ao conjunto [...]”. 2
Esta crítica veio acompanhada de uma compreensão da necessidade do
reconhecimento da diversidade cultural humana, portadora de novas
potencialidades.3
Em maio de 1968 explode na França a revolta estudantil, primeiramente na
faculdade de Nanterre e, logo depois, ampliando-se a um movimento social que
se expande a toda Paris, dando origem, tanto para o meio acadêmico como para a
sociedade, a uma nova visão da realidade.
Dentro desta nova concepção da realidade, que contestava a sociedade
massificante e consumista através da contra-cultura, estava implícito o apoio aos
movimentos de independência das antigas colônias africanas e asiáticas ainda em
curso. Ampliava-se, com as contestações estudantis, a “consciência etnológica
que descobre o interesse que outras civilizações apresentam”,4 colocando em
xeque o eurocentrismo.
O discurso de crítica da modernidade se fará presente neste momento de
agitação social, beneficiando-se dessa concepção de realidade que traz em si o
favorecimento da Tradição como resistência interna a uma sociedade
massificante.
No pós-68 experimentou-se no meio acadêmico a adoção deste novo
discurso para interpretação da realidade, na sociedade observava-se a

2
LEVI-STRAUSS, Claude. “Raça e história” In _____. Coleção Os Pensadores, Abril: São Paulo, pp.86-7.
3
IDEM, p.87.
4
DOSSE, François. “A antropologia histórica” In _____. A historia em migalhas. Dos annales a nova
historia. Ed. Unicamp/ Ensaio: Campinas/São Paulo, 1992.
5
apropriação da Vivência de 68 pelos novos movimentos, agora fragmentados
em reivindicações parciais, como o das mulheres, dos homossexuais e
ecologistas.
Nesse contexto, discutia-se na Unesco a criação de ferramentas legais
para proteção dos bens culturais materiais, considerados de importância para a
humanidade, que estavam seriamente ameaçados pelos confrontos das guerras:
“A Unesco procurou traduzir uma ansiedade dos países recém-descolonizados em
fundamentar suas nacionalidades”.6
Dentro desta mesma organização vê-se, já em 1964, na Carta Patrimonial
de Veneza, uma crescente preocupação com a preservação das tradições
folclóricas, preocupação esta que já teria sido observada em 1952, mas dentro
das discussões sobre os direitos autorais, quando alguns paises africanos
adotaram tais regras de autoria para proteção de certas manifestações culturais,
prevendo que tal atitude pudesse protegê-las.
É em 1972, quando da conclusão da Convenção do Patrimônio Mundial –
estabelecendo regras especificas de preservação para os bens materiais – que se
discutiu com mais clareza a preservação de manifestações folclóricas, como
são assim denominadas as manifestações culturais na época. Neste encontro, a
Bolívia propôs a criação de elementos legais específicos para esse patrimônio
não-material. Essa proposta foi apoiada apenas por alguns paises africanos e
asiáticos, mas iniciaria para toda a década seguinte um debate sobre uma
possível preservação de manifestações folclóricas.
A partir dos anos de 1970, portanto, todas as discussões dentro da Unesco
terão em pauta essa questão, impulsionada pelos membros latino-americanos,
africanos e asiáticos. Ao mesmo tempo, discutia-se os conceitos de folclore e/ou
tradições populares. Para o diplomata brasileiro, membro da comissão da Unesco
no Brasil, João Batista Lanari Bo, esta instituição concluiu “[...] que os esforços
deveriam se concentrar na questão geral do folclore – tema ainda relativamente

5
TOURRAINE apud DOSSE, François. “Maio de 1968 e o estruturalismo, ou o mal entendido” In _____.
História do estruturalismo.Vol II. Ed. Unicamp/ Ensaio: Campinas/ São Paulo, 1994, p. 168.
6
M’BOW apud BO, João Batista Lanari. Proteção do patrimônio na unesco: ações e significados.
Brasília: UNESCO, 2003, p.50.
novo, amplo e a espera de maior precisão metodológica - para viabilizar metas e
propostas em relação ao assunto”.7
Em 1989, a 31a Conferência Geral da Unesco autorizou o texto intitulado:
Recomendações sobre a salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, que
adotou o termo Cultura tradicional e popular em detrimento do termo folclore para
a designação do patrimônio considerado não-material. O que mais nos interessa
aqui é a definição desse termo e também observar que embora sendo o primeiro
documento oficial a respeito da preservação de um patrimônio Tradicional e
Popular o texto foi somente uma recomendação que deixava os Estados-
membros livres para a sua aceitação ou não. Este documento trouxe importantes
sugestões de políticas culturais e elementos legais para adoção na preservação
da cultura tradicional e popular em cada país.
II. O Brasil e a reformulação da política preservacionista na década de
1970.
No Brasil a década de 1970 caracterizou-se principalmente pela distensão
do governo militar, crise do “milagre econômico” e luta pela anistia dos presos
políticos do regime. A partir do governo de João Figueiredo, que assumiu o cargo
de presidente em 1979, iniciava-se uma “lenta, gradual e segura abertura política
para a democracia”.8
A crise do milagre econômico havia gerado no regime uma busca de novas
opções de desenvolvimento econômico para o país. Essas novas opções teriam,
porém, que compatibilizar com a idéia de processo modernizador, assentada
desde a década de 1950 pela então política desenvolvimentista, impulsionada
pelo governo de Juscelino Kubitschek.
As políticas de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional
instituída no país em 1937 com a fundação do SPHAN (Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional) sofreriam, na década de 1970, algumas mudanças
estruturais, em vista da crise nacional do discurso desenvolvimentista. 9

7
IDEM, p. 81.
8
WEFFORT, Francisco. Porque democracia. São Paulo: Brasiliense, 1986.
9
BITTENCOURT, José. “Invenção do passado: ascensos e descensos da política de preservação do
patrimônio cultural”. In MENEZES, Lená Medeiros et alli (org.). Olhares sobre o político. Novos ângulos,
A mudança ocorrida é operada por dois princípios norteadores: um o de
construir uma política que pensasse e emitisse um discurso redemocratizante e
outro que fosse uma política que traria em curto prazo soluções para a crise na
qual estava sucumbindo a ditadura militar.
O próprio regime militar já tinha criado órgãos com vistas a pensar a cultura
como espaço de atuação política. Exemplo disso é o Conselho Federal de Cultura,
que tinha como conselheiros nomes importantes, tais como Gilberto Freyre,
Afonso Arinos de Mello Franco e Marcos Vilaça. Mas o nome que operacionalizou
esta mudança no IPHAN e nas políticas preservacionista com maior eficácia foi
Aloísio Magalhães.
Magalhães sabia das demandas por uma política cultural que beneficiasse
o desenvolvimento do país. Propunha uma política orientada por um viés interno e
não externo, enfatizava que o Brasil precisava livrar-se de sua dependência
externa e dar lugar a iniciativas com um olhar mais voltado para os valores
nacionais.
O atrelamento da cultura ao desenvolvimento do país viria através das
iniciativas para o reconhecimento de uma cultura “viva”, patrimônio não-
reconhecido, na qual se encontrava uma das muitas chaves para uma opção
interna de desenvolvimento. Magalhães estava assim seguindo mais uma
reorientação mundial de pensar o cultural não desassociado do desenvolvimento
econômico? Tudo indica que sim, pois em 1978 durante a Conferência da
Unesco, em Bogotá, debate-se e declara-se que “o desenvolvimento deve
encontrar inspiração na cultura” .10 No entanto, suas ações são anteriores a esse
documento e a seu desempenho nos órgãos oficiais de preservação, o que nos
leva a pensar que essas preocupações orientavam-se de forma mais direcionada
por questões nacionais que pela reorientação mundial.
Prova disso é seu empenho em criar, conjuntamente a outros intelectuais
de renome, em 1975, o CNRC (Centro Nacional de Referência Cultural),
vinculado ao Ministério da Indústria e Comércio. Os objetivos do CNRC eram os

novas perspectivas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p. 192.


10
Carta Patrimonial de Bogotá, Unesco, 1978.
de identificar, indexar e devolver à realidade brasileira, situações ou fenômenos
que lhe fossem característicos e dos quais não se tivesse conhecimento gerado,
ou melhor, apropriado.
O discurso de Magalhães pensa o potencial da cultura para o projeto de
desenvolvimento econômico nacional. Mais do que isso, ele observa a cultura
popular como fonte de desenvolvimento econômico regional.
As ações do IPHAN, durante a gestão de Magalhães no âmbito da política
preservacionista foram todas guiadas pelo ideal de promover o desenvolvimento
da região na qual se encontrava um bem cultural. Os tombamentos fugiram do
clássico “cal e pedra”, e da visão da gestão de Rodrigo Melo de Franco Andrade
de pensar o patrimônio cultural do Brasil como obras de excelência do passado.
Por isso, vêem-se ações, tanto no IPHAN, como nos estudos feitos pelo
Pró-memória, do tipo: tombamento da Fábrica de Vinhos de Caju da Paraíba,
Revitalização da estrada de ferro Madeira-Mamoré, elevação de Ouro Preto,
Olinda e Recife de monumento da nação a cidades históricas, que foram
seguidamente tombadas como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o que
inaugurou a noção de sítio histórico em detrimento da de cidade- monumento.
III. A década de 1980 e o inicio do debate sobre patrimônio e
imaterialidade.
Guiados por essa nova orientação dada por Aloísio Magalhães surgem
intelectuais que através da década de 1980 começariam discussões com o fim
concretizar as mudanças idealizadas por ele. Uma idéia que parece nortear estas
discussões é a de trazer para o acervo do patrimônio nacional manifestações de
cunho "popular".
Através da confirmação desta categoria, a de popular, que nos é dada
através de análise dos documentos oficiais das ações da política de preservação
do patrimônio imaterial, que orientamos nosso foco na análise conceitual dessa e
de outras novas categorias e conceitos que surgem nesta nova política cultural,
que como pretendemos comprovar, é fruto de uma séria de discussões
internacionais e do contexto brasileiro do qual surgem.
A constatação da formação de um grupo intelectual a frente das discussões
travadas sobre a preservação do Patrimônio Imaterial, nos permitiu pensar que a
pesquisa deveria usar de uma abordagem, visando incluir nela os novos
problemas teóricos, como a construção dos conceitos e categorias novas que se
dão nesta trajetória, sem deixar de lado o objetivo principal de traçar a trajetória
das discussões sobre a preservação dos bens imateriais, mas visando também
levantar além de seus princípios, os conceitos e categorias utilizadas na pratica
para a atuação desta nova política.
Através da análise das produções escritas sobre patrimônio nas décadas de
1980 e 1990 de intelectuais que viriam depois formar parte da equipe que pensou,
debateu e formulou a construção de um aparelho legal para a preservação dos
chamados bens imateriais conclui-se que a consolidação deste grupo intelectual
nos órgãos federais traz para as políticas de preservação seus conceitos, suas
interpretações e, sobretudo, suas posições políticas. A história intelectual da
política pública do patrimônio Imaterial ajuda a compreender seus critérios,
definidos por seus conceitos de popular, nação, cultura e patrimônio e suas ações,
delimitadas pelas interpretações de seus formuladores acerca das possíveis
formas de preservar.
Já se disse que o inicio da trajetória das discussões sobre a formulação de
uma política de preservação para os bens imateriais no país é a reformulação pela
qual passa o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico nacional (IPHAN) durante
a década de 1970 sob a direção de Aloísio Magalhães.
Este traz novas linhas de atuação para a política pública de preservação e
um novo conceito de patrimônio que passa a reorientar inclusive a política cultural
do país. Diferente da noção de patrimônio até então praticada, o novo conceito é
mais amplo e abrangente, e traz como fundamento a noção de bem cultural
renovada por Magalhães. A saber, para este o bem cultural,
[...]extrapola a dimensão elitista, de “o belo e o velho”, e entra numa faixa mais
importante da compreensão como manifestação geral de uma cultura. O gesto, o
hábito, a maneira de ser da nossa comunidade se constituem no nosso patrimônio
cultural. Evidentemente que as excelências, as sínteses maravilhosas, que são
expressas nos objetos de arte, no prédio extraordinário de pedra e cal, são pontos
das representações de uma cultura. Mas em verdade esta cultura é um todo, é um
amálgama muito mais amplo e rico, cujo extrato dá o perfil e identidade de uma
nação.11

O importante a observar aqui é como nessa noção de bem cultural de


Magalhães pode-se ter a idéia de imaterialidade que irá permear a política de
preservação nas décadas de 1980 e 1990. Ainda chamamos a atenção para um
outro conceito que se apresenta nesta noção de bem cultural, o de cultura popular.
Magalhães argumenta ainda sobre a demanda de “novos” bens culturais,
[...] existe vasta gama de bens – procedentes sobretudo do fazer popular – que
por estarem inseridos numa dinâmica viva do cotidiano não são considerados
como bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômicas e
tecnológicas. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a
vocação e se descobrem os valores mais autênticos de uma nacionalidade. 12

Assim, Magalhães se mostra antenado nas discussões mundiais de uma


necessária regionalização das lutas e demandas, mas não deixava de observar as
demandas do país, a saber, por parte do regime militar que governava o país
havia a necessidade de novas fórmulas para o nacional – desenvolvimentismo,
presente na política desde a década de 1950; e por parte da sociedade uma
necessidade de democratização que viria através de uma revisão do acervo que
compunha o patrimônio nacional.
O que nos chama a atenção ainda é de onde surge a idéia de
imaterialidade, convertida aqui em um conceito definidor de um acervo próprio de
nossas manifestações culturais.
A trajetória de documentos que nos ilustram as discussões da formação
dessa nova política de preservação nas décadas de 1980 e 1990, não apresentam
essa idéia de forma clara e ainda, definida.
O primeiro documento que nos norteia aqui é a Carta patrimonial de
Fortaleza, produzida no Seminário “Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de
proteção”, realizado em Fortaleza com a presença de autoridades do IPHAN e da
Unesco. Este documento remete a concepção de imaterialidade à Constituição de
1988, onde no artigo 216 se afirma “Constituem patrimônio cultural brasileiro os

11
MAGALHÃES, Aloísio de. “Entrevista com Aloísio Magalhães, abril de 1979”. In _____.E
Triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 72.
12
IDEM, p.60.
bens de natureza material e imaterial”, mas algo deve ser ressaltado, a própria
constituição não traz nenhum atrelamento desses bens a um acervo notadamente
de cunho “popular”, no entanto o documento atesta:

O objetivo do Seminário foi recolher subsídios que permitissem a elaboração de


diretrizes e a criação de instrumentos legais e administrativos visando a identificar,
proteger, promover e fomentar os processos e bens [culturais] (Artigo 216 da
Constituição), considerados em toda a sua complexidade, diversidade e dinâmica,
particularmente, "as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as
criações científicas, artística e tecnológicas", com especial atenção àquelas
referentes à cultura popular.13
Confirma-se assim que para os formuladores desta política cultural nova o
conceito de imaterialidade está necessariamente ligado ao conceito de cultura
popular.
A idéia de popular e “cultura popular” aparece então norteando as
discussões sobre como trazer para o acervo do patrimônio nacional os novos bens
culturais desejados por Magalhães.
Para tal, as ações da política pública de preservação no país se re-orientam
por categorias diferentes daquelas até então pensadas, a saber, de belo, arte e
histórico.14 Os intelectuais engajados nessa nova orientação do IPHAN nas
décadas de 1980 e 1990 apresentam em contrapartida categorias como memória
social e referências culturais.
Referências culturais
Os intelectuais ligados a Aloísio de Magalhães propunham para o SPHAN
uma orientação que estivesse baseada na sua categoria de referência cultural.
Esta categoria expressava, para esses intelectuais, uma posição democrática,
pois estava construída na idéia de que seria através da comunidade que se teria
uma noção de quais eram realmente os bens culturais que deveriam ser

13
Carta de Fortaleza, redigida durante o Seminário "Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de
Proteção" em 14 de novembro de 1997. In: CURY, Isabelle. (org).Cartas patrimoniais. Rio de
Janeiro: IPHAN/MINC, 1995.
14
Aqui podemos ter como trabalhos principais sobre o assunto: ARANTES, Antonio Augusto.
Produzindo o passado: estratégias e construção do patrimônio cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1984 - BO, João Batista Lanari. Proteção do patrimônio na unesco. Ações e
significados. Brasília: Unesco, 2003 - CHOYA, François. A alegoria do patrimônio.São Paulo:
Editora da Unesp, 2001 - CHUVA, Márcia. (org). A invenção do patrimônio: continuidade e
ruptura na constituição de uma política de preservação no Brasil.Rio de Janeiro: IPHAN, 1995
- FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/ IPHAN, 1997.
preservados. Assim, pela primeira vez teria a sociedade a possibilidade de criar
suas próprias referências culturais.
Maria Cecília Londres Fonseca atuou no CNRC e na Fundação Pró-
memória nos fins da década de 1970 e durante a década de 1980 no SPHAN,
define seu trabalho na década de 1970 como orientado por essa referência
cultural que se traduzia em mostrar “que o interesse não era só valorizar um
determinado tipo de bem, mas chamar a atenção para o fato de que o que a
sociedade brasileira considera bem cultural é algo mais diversificado e plural
[...]”.15
Para esse grupo a adoção dessa categoria, daria um caráter democrático
que, na década de 1980, a sociedade e o regime esperavam ver implementado na
prática preservacionista, além de estar incluindo nela uma outra visão: a do povo
como potencial para construção de uma democracia verdadeira. Abria-se assim
espaço para a preservação de bens de outros grupos sociais, bens que seriam
preservados através da demanda deles próprios, garantindo-se a participação da
comunidade na construção de sua memória.
Ainda na década de 1980 e dentro do debate sobre as reformulações que a
política de preservação deveria passar Sergio Miceli apontava para a fraqueza de
se querer construir um acervo de bens pautados unicamente em um parâmetro, o
de inclusão do “popular”.
[...] numa sociedade como a nossa, marcada por iniqüidades de todo tipo, até a
tendência de reorientar a política do patrimônio na mira dos acervos e
experiências dos grupos populares, pode redundar numa folclorização sofisticada,
ou então numa tentativa conceitualmente problemática e um tanto contraditória de
se querer comprovar empiricamente a existência e sobretudo a validade simbólica
de acervos irredutíveis à lógica de sentido dos grupos dirigentes.16

Mas o que observamos é que a categoria “referências culturais” na prática


mais uma vez terminou por ser uma tentativa de construir a almejada “identidade

15
FONSECA, Maria Cecília Londres. “A noção de referência cultural”. In MOTTA Lia & SILVA,
Maria Beatriz Resende. (org). Inventários de Identificação. Rio de Janeiro: IPHAN/MINC, 1998,
p.33.
16
MICELI, Sergio. Sphan: refrigério da cultura oficial. Revista do patrimônio histórico e artístico
nacional. n° 22. Brasília: SPHAN, 1987, p.47.
nacional”, mas dessa vez acreditando-se que através do reconhecimento da
diversidade há uma construção mais democrática.
Memória Social
Ligada a essa categoria surge a de memória social, construída pelos
próprios grupos sociais através da preservação de seu patrimônio cultural. Nas
ações da política de preservação pode-se notar esta categoria através de outra, a
de Lugares de memória, implementada na discussão teórica do Decreto 3551,
mas já presente no país desde a década de 1980.
O autor Pierre Nora, que gerou o uso deste termo, afirma:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória


espontânea que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter
aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações
não são naturais.17
Isto faz parte de sua idéia de que os lugares de memória se configuram
essencialmente ao serem espaço onde a ritualização de uma memória-história
pode ressuscitar a lembrança, tradicional meio de acesso a esta.

A política de preservação utiliza esta categoria percebendo o espaço como


parte importante na criação de uma memória coletiva que identifica grupos sociais
importantes e atuantes na formação de uma identidade maior, a da nação.

O exemplo que podemos observar claramente é o da preservação do


terreiro Casa Branca em Salvador. A polêmica gerada a partir da preservação
deste bem nos mostra como estava em jogo uma visão de patrimônio diferente
daquela desenvolvida desde 1937.

O terreiro Casa Branca, segundo seus integrantes, foi fundado no começo


do século XIX, inicialmente atrás da Igreja da Barroquinha, no centro de Salvador,
posteriormente (na metade do mesmo século) foi transferido para a periferia de
Salvador onde se encontra até hoje. Considerado o terreiro mais antigo do país,
teria sido fundado por um grupo de sacerdotisas da nação Nagô que o teriam
consagrado a Xangô.

17
NORA, Pierre.Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo:
PUC-SP. N° 10, 1993, p. 13
Na década de 1980 a região onde se encontra o terreiro começou a passar
por uma revalorização imobiliária, o terreno do terreiro não pertencia à
comunidade religiosa e o dono estava querendo reaver o conjunto para vendê-lo.
Isto mobilizou a comunidade religiosa deste terreiro para que o espaço fosse
considerado patrimônio cultural da nação, pois nele se tinha a prática simbólica
coletiva de um grupo social importante, e não poderia ter outro uso que o da
prática do sagrado.

Aqui podemos observar a questão que Nora denomina de apropriação de


Lugares de Memória pela sociedade para a construção de sua identidade e
acesso a um lugar compartilhado. O terreiro é considerado, na sua preservação,
como espaço onde um grupo social ritualiza sua memória e se identifica, no caso,
o grupo social seria o dos negros.18

Assim podemos dizer que a defesa e a preservação do terreiro esteve


pautada numa concepção de patrimônio que busca construir o nacional através da
reconstrução das identidades dos grupos sociais formadores desse espaço
territorial chamado Brasil.

A política de preservação do chamado patrimônio Imaterial, inaugurada com


a legislação do decreto 3551/2000, traz essa categoria como norteadora de suas
ações definida já no seu âmbito oficial, ela tem como suporte metodológico a
abertura de livros temáticos, onde acoplados por sua característica principal serão
registrados os bens culturais.

Um destes livros tem como nome Livro de registro dos Lugares no qual
segundo o texto do decreto estarão inscritos "mercados, feiras, santuários, praças
e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas".
O decreto ainda observa a finalidade desta inscrição: "A inscrição num dos livros
de registro terá sempre como referencia a continuidade histórica do bem e sua
relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade
brasileira".19

18
NORA. Op cit, p. 27.
19
DECRETO 3551/2000. Artigo 1, 2º parágrafo.
A idéia exposta no livro de registro dos lugares é essencialmente aquela
aqui já apresentada, que o espaço pode e traz uma memória coletiva,
fundamentada pela realização nele de práticas culturais e que, por isso, deve ser
preservado. A política de preservação, no entanto, ainda observa a categoria
nação. O espaço que tem uma memória coletiva que deve ser preservada é
aquele que identifica um grupo social importante na construção de uma identidade
maior: a da nação brasileira.

Nação no discurso da política de preservação é tida como múltipla, diversa.


A constituição de 1988 tem no seu artigo 215 a função de assegurar essa
premissa. Mas olhando para a preservação de alguns bens durante a década de
1980, durante o debate destas questões, vemos que a diversidade somente é
vista através do prisma de nela se poder construir uma unicidade.

Observamos assim que esta política esconde o fato de que ela está
formando a nação através de memórias fragmentadas, configurando-a em espaço
de luta de grupos sociais para o reconhecimento de suas memórias especificas
como portadoras de algo que forma ou formou a nação.20

IV. Conclusões: Os Intelectuais e o IPHAN

Nesta pesquisa constatamos que na trajetória de discussões que levaram à


formulação de uma política de preservação diferente para os bens “imateriais”, foi
essencial a atuação dos intelectuais nela engajados. O corpus teórico no qual se
baseia essa nova política traz impregnada a necessidade de se pensar o popular,
as providencias metodológicas que surgiram, como a criação de uma nova
ferramenta legal de preservação – O Registro, são articuladas para poder
implantar no acervo patrimonial bens advindos da “cultura popular”, todas as
discussões e afirmações desta política estão sempre visando no discurso público
mostrar como uma política publica mais democrática se constrói através do
popular.

20
Observar sobre esta questão: NASCIMENTO, Rodrigo Modesto. "Patrimônio Cultural e embate
político: um estudo sobre o oeste paulista". In: Anais eletrônicos do XVII Encontro Regional de
História: O lugar da história/Sylvia Basseto (Coordenação Geral). Campinas: Unicamp, 2004.
Questões como: Como esse corpo de intelectuais se formou? Através de
que disputas conceituais e acadêmicas? Apareceram nesta pesquisa através da
concretização da nossa hipótese de que categorias e conceitos estavam sendo
criados para esta nova política de preservação durante a década de 1980 e 1990,
pautados na nova definição de bem cultural de Aloísio Magalhães, que gerou a
necessidade de uma também nova definição de patrimônio.
A hipótese que se tem como orientadora destas novas questões e que
devem ser objeto de estudo futuramente é a de que há durante a década de 1980
uma disputa entre vários grupos regionais de intelectuais em torno da idéia de
concretizar a reorientação dada por Aloísio Magalhães às políticas públicas de
preservação.
Acredita-se que a consolidação de um grupo intelectual nos órgãos federais
traz para as políticas de preservação seus conceitos, suas interpretações e,
sobretudo, suas posições políticas, sendo assim importante prosseguir com uma
abordagem que privilegie o estudo do desenvolvimento dos intelectuais e sua
atuação no âmbito político definidor de políticas públicas.

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