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COLABORADORES

03.02.2011

A perversão da ciência pela ideologia política


MARIO GUERREIRO *

Ao iniciar este artigo, creio ser oportuno reconhecer uma diferença entre três
coisas claras e distintas:

(1) Uma hipótese científica não pode nunca ser


confirmada, mas abriga sempre a possibilidade de ser
falsificada, entenda-se: refutada por um experimento
crucial (a este respeito vide: K. Popper: The Logic of
Scientific Discovery. Nova Iorque. Harper & Raw.
1968).

(2) Uma hipótese científica falsificada é uma coisa, porém uma suposta prova
feita mediante fraude, outra e notadamente distinta. Por exemplo, a hipótese
heliocêntrica de Copérnico mostrou que a concepção geocêntrica de Ptolomeu
era falsa, mas de nenhum modo fraudulenta. Era apenas um equívoco causado
pelo ponto de observação assumido pelo observador.

É uma feição característica de uma hipótese científica abrigar falsificadores


potenciais, i.e.determinadas asserções que, caso submetidas a um experimento
podem ou não serem falsificadas.

Por exemplo, a teoria da relatividade de Einstein não foi falsificada até hoje, mas
tem a possibilidade de ser, caso se descubra, por exemplo, que a velocidade da
luz (a saber: 300.000 km por segundo) – que é uma constante para Einstein -
sofre uma alteração, para mais ou para menos, em algum lugar no universo.

Mas quando Haeckel colocou em diferentes recipientes embriões alegados por


ele serem de um macaco, de um cachorro e de um homem - para mostrar que a
morfologia dos três era a mesma e só posteriormente sofria modificações -
cometeu uma fraude, pois foi constatado posteriormente que se tratava de três
embriões de três indivíduos humanos.

(3) Outra coisa ainda plenamente distinta de hipóteses falsificadas e de fraudes


científicas é a perversão da ciência pela ideologia política.

A fraude de Haeckel, assim como outras do mesmo tipo, não estava a serviço de
nenhuma ideologia de caráter político ou mesmo de qualquer outro tipo. Espírito
sequioso de fama, ele ambicionava o aplauso da comunidade científica e do
mundo.

No entanto, a perversão a que me referia acima ocorre quando motivado por


interesses de caráter ideológico político, alguém cria uma teoria alternativa em
franca discordância com a que é aceita pela comunidade científica ou então
distorce uma teoria científica unicamente para atender às exigências de seu credo.

Conta-se que Hitler estava para escolher um cineasta


para a propaganda nazista e acabou nomeando Leni
Riefensthal, autora do famoso documentário O Triunfo
da Vontade. Antes disso, porém, o Führer tinha
procurado Fritz Lang, autor de um clássico do cinema:
Metrópole. Mas quando Hitler fizera o convite ao
grande cineasta, este alegou: “Mas, eu sou judeu!”. Ao
que o grande líder do nazismo devolveu de pronto:
“Ora, quem determina aqui quem é judeu ou não sou
FRITZ LANG eu!” Goebbels estava mais certo que pensara, quando
lhe pediram uma breve definição do nazismo e ele vomitou: “O nazismo é a
vontade do Führer”. Mas, para felicidade geral, o triunfo da vontade foi coisa que
doeu muito mas passou.

Ambas as formas de perversão podem ocorrer em regimes democráticos ou


totalitários, porém estes últimos favorecem bastante a ocorrência. E a razão de tal
coisa é muito fácil de compreender: um ditador pode determinar que uma teoria é
científica a seu bel prazer, sem que tenha de oferecer justificativas nem dar
satisfações a ninguém.

Mediante a força ou a cooptação, tendo silenciado o pensamento crítico de


cientistas e filósofos, tendo amordaçado a mídia e passando a ter o controle quase
total das informações, ele fica completamente à vontade para determinar quais
teorias devem ser e quais não devem ser aceitas pela comunidade acadêmica e
propagadas em larga escala pelo ensino.

Isso foi o que ocorreu de fato com a ciência durante os regimes totalitários do
nazismo e do comunismo - não que todos os ramos da ciência tenham sido
perversamente distorcidos ou substituídos por versões alternativas, mas tão-
somente aqueles que incomodavam a ideologia política vigente. E com igual
empenho os autocratas davam seu apoio e promoviam a divulgação em larga
escala das teorias capazes de reforçar sua ideologia política.

Desse modo, durante o nazismo era plenamente aceita a teoria da relatividade de


Einstein por ser ter sido a mesma bem recebida pela maioria da comunidade
científica e não produzir nenhum inconveniente de caráter político.

O próprio Einstein ironicamente previu seu destino quando disse que se sua
teoria não fosse falsificada e permanecesse de pé, os nazistas diriam que ele era
um grande cientista alemão, mas se fosse refutada por um experimento crucial,
ele passaria a ser um equivocado cientista judeu.

Mas o fato era que se alguma coisa pudesse ter abespinhado os nazistas era o
mencionado cientista ser judeu, não a teoria da relatividade que não afetava em
nada o antissemitismo, a concepção expansionista do Lebensraum (espaço vital),
a superioridade da raça ariana predestinada a dominar o mundo, etc, entre os
principais tópicos da monstruosa ideologia nacional-socialista.

Mas a Antropologia Física não foi considerada politicamente inócua pelo regime
nazista, pois havia um forte interesse ideológico político em apresentar
evidências da superioridade racial ariana, mediante investigação da morfologia
craniana e de caracteres genéticos terciários das diferentes “raças”. E desse modo
foi criada uma antropologia física nazista repleta de preconceitos e
arbitrariedades.

Por outro lado, durante o período stalinista, a Antropologia Física - fora breves
alusões feitas por seus autores à Dialética da Natureza de Friedrich Engels – não
apresentava marcantes diferenças em relação à adotada e ensinada nos países do
bloco ocidental.

No entanto, nas universidades e laboratórios de pesquisa, era mantido um grave


equívoco cometido por Kant e pela maioria dos filósofos e cientistas do século
XVIII: o de que a última palavra da Física era a mecânica newtoniana tida como
definitiva e irrefutável.

E acrescentemos que a irrefutabilidade, para K.Popper, antes de ser um atributo


positivo de teorias científicas, era considerado justamente um sinal de que, por
carecer de falsificadores potenciais, uma teoria não podia ser considerada
científica, como era o caso da psicanálise de Freud e da psicologia individual de
Alfred Adler.

Quanto a Einstein, para a Física soviética oficial não passava de um cientista


burguês com sua teoria nutrida pelo “subjetivismo burguês”. Inacreditável!

Porém, o caso mais escandaloso de perversão da ciência feita pela ideologia


política foi a genética de Lysenko, da qual iremos falar, mas não sem antes fazer
uma breve digressão.

Algumas vezes, teorias científicas não são distorcidas nem substituídas por
teorias alternativas, porém simplesmente desprezadas pelas decisões arbitrárias e
autoritárias de ditadores, que as tomam sem consultar nenhum cientista, e os
efeitos práticos podem ser simplesmente catastróficos.
Durante o período da Revolução Cultural do camarada Mao-Tsê-Tung
comandando a Guarda Vermelha, a China estava sendo assolada por um
crescimento desmesurado de pardais devastando sua agricultura.

O Grande Timoneiro (mas só se fosse o da Nau dos Insensatos!)


não quis saber de pesquisas nem consultou biólogos, ecologistas e
agrônomos, indagando qual a melhor maneira de se livrar daquela
praga.

Do alto de seu palanque oracular, convocou todos os chineses e chinesas a uma


grande cruzada para exterminar aquele passarinho “burguês”, perdão:
indesejável, que se tornara o inimigo número um do socialismo maoísta.

Milhões de jovens e velhos, homens e mulheres, adultos e crianças obedeceram


ao comando do grande líder e, munidos de espingardas, garruchas, bodoques e
até a pedradas, saíram matando pardais pelos verdes campos. Tão forte foi seu
empenho em cumprir sua missão política que pouquíssimos pardais restaram para
contar a estória.

Acontece, no entanto, que os pardais eram os maiores


predadores das lagartas e a drástica diminuição de sua
população causou um grande crescimento da população de
lagartas. E estas, por sua vez, produziram uma devastação
colossal da colheita muito maior do que a causada pelos pardais. Como em casos
semelhantes, o remédio mostrou-se pior do que a doença!

Voltando agora ao caso de Lysenko, não podemos dizer que se trata de


ignorância e desprezo pela ciência, mas sim de obstinada teimosia de um
agrônomo que não teria feito o menor sucesso, caso sua concepção não tivesse
adquirido o status de doutrina oficial, contando com o entusiasmo irrestrito de
Stalin e posta em prática pela agronomia socialista, coisa em total desacordo com
as “teorias burguesas” de Mendel e de Morgan.
Durante 30 anos, a agricultura coletiva planejada pelo Estado
soviético foi obrigada por Stalin a pôr em prática a política
agrícola sob o comando de Trofim Denisovich Lysenko
(1898-1976), que discordava veementemente das “teorias
burguesas” do pai da Genética e seus seguidores. Podemos
antecipar o resultado dizendo que foi um estrondoso fracasso!

Lysenko discordava da Genética aceita no bloco ocidental por diversas razões, a


mais estapafúrdia das quais era a de que ela contrariava a “lei da transformação
da quantidade em qualidade” – uma filosofice (i.e. idiotice filosófica) sustentada
por Hegel e prazerosamente incorporada à Dialética da Natureza de Friedrich
Engels, filho de grande industrial, comparsa e financiador de Karl Heinrich
Marx.

Além disso, contra todas as evidências empíricas de caráter genético “burguês”,


Lysenko insistia em sustentar que características adquiridas por uma espécie no
meio ambiente podiam ser herdadas com transformação gradativa de uma espécie
em outra.

Como agrônomo e geneticista, ele podia ser considerado um perfeito idiota. Mas
como já dizia o sábio e sereno Cervantes: “Loco si, pero no tonto”. Raposa
política das mais felpudas e sem nenhum escrúpulo, Lysenko se livrou de todos
os biólogos sérios da União Soviética mandando-os para o Arquipélago Gulag
cuja existência o mundo livre só ficou sabendo muitos anos mais tarde, graças à
corajosa denúncia do escritor A. Soljenitsin.

Finalmente, Lysenko acabou sendo nomeado Presidente da Academia de


Ciências da União Soviética por Stalin, cargo em que fez uso de todos seus
poderes repressivos e discricionários durante os 24 anos de sua gestão.
Controlava a publicação de livros didáticos e mandava recolher todos os que não
estavam de acordo com sua rígida ortodoxia, bem como exonerava todos os que
ousavam criticar a “genética dialética”.
A agricultura soviética que já era altamente deficiente graças às fazendas
coletivas – sistema que não deu certo e que dificilmente dará em qualquer país do
mundo! – só piorou com as “sábias” medidas ecológicas de Lysenko que, entre
outras coisas, proibiu o emprego de fertilizantes e sementes híbridas.

Essas foram as causas principais da incompetência crônica e atroz da agricultura


na União Soviética e continuam sendo as das agriculturas dos dois Museus do
Comunismo: o museu oriental na Coréia do Norte e o ocidental em Cuba. E está
para ser inaugurado um terceiro museu na Venezuela do camarada Hugorila
Chávez.

Tendo morrido em 1976, Lysenko não presenciou a invenção das sementes


transgênicas – marca registrada da Monsanto – mas se estivesse vivo, não há
dúvida de que se tornaria um fiel aliado das esquerdas mais doentemente
ideológicas, fazendo passeatas e tecendo imprecações contra essa “perversidade
do imperialismo ianque”, uma vez que a detentora da propriedade intelectual é
uma empresa privada americana. Ah! Mas se fosse uma empresa estatal cubana...

Sucintamente relatado como exemplo de perversão da ciência pela interferência


de uma ideologia política, o caso Lysenko constitui uma clara evidência de que o
comunismo mata de fome ou por dissidência! – não só pessoas,
como os 150.000.000 de vítimas segundo S. Courtois e outros em
Le Livre Noir du Communisme: crimes, terreur, répression (Paris.
Robert Laffont. 1997), mas mata também a liberdade e a
prosperidade dos indivíduos e das nações.

* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ.


Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da
Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da
Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade.

N.E.- Ref imagens: Wikipedia

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