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Adivinha, Leitura e desejo

Claudemir Belintane
Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo

Já houve quem leu lei-dura na palavra leitura. E leu bem!


Propomo-nos também reler essa palavra, enviesando um pouco suas
letras e seus sentidos. Entraremos nessa lei-dura pela aparentemente
mais amolecida lei das adivinhas e dos enigmas, que originariamente
ocorrem na língua oral. Tomemos uma delas:

O que é? O que é?
campo grande,
gado miúdo.
boiadeiro bom,
abóia tudo?

Antes de fornecer a resposta, busquemos conhecer um pouco mais


os “leitores” desse gênero.
Há, no mínimo, dois tipos de adivinhadores: aquele que até gosta
de se ver diante do enigma, mas não assume a tarefa de enfrentá-lo,
prefere postar-se passivo diante da benevolência da esfinge à espera de
uma resposta, enquanto memoriza a adivinha, para depois, sabichão,
repassá-la adiante. O outro é aquele que não quer que se dê a
resposta, que prefere dar tratos à bola e arriscar-se diante da esfinge.
Aqui na perspectiva que queremos desenvolver, ambos são
leitores, cada um ao seu modo, ainda que estritamente no campo do
oral. O primeiro assume de saída seu não-saber, capitula diante da
esfinge, mas acaba, com sua memória, apropriando-se da adivinha para
levá-la a outros, tomando assim sorrateiramente e sem muito mérito, o
lugar de esfinge. O segundo tenta tirar tudo o que pode de uma outra
lei, a da associação, do jogo. Nesse percurso, enfrenta as armadilhas
do enigma, as associações arbitrárias, as falsas contradições, as
metáforas e metonímias exageradas.
Vejamos aonde poderia chegar um adivinhador ideal diante da
adivinha proposta acima:

• Campo grande: metáfora para folha de papel.


• Gado miúdo : metáfora para letras
• Boiadeiro bom : metáfora para bom leitor
• aboiar : metáfora para ler (devemos lembrar que
aboiar é tanger o gado por meio do “canto de aboio” pra evitar a
dispersão, o estouro da boiada)

Mesmo quando não atina com a resposta, o adivinhador ativo em


sua leitura sabe que a coisa se dá em geral por falsas parecenças, por
jogos desnorteadores, por algum processo de estranhamento. Em toda
adivinha há sempre o gosto de meter o adivinhador na contradição, a
armação é sempre feita com a finalidade de despistar o sentido direto, a
denotação; como, por exemplo, ocorre na voz quase sábia dos oráculos,
magos e profetas, que sempre recorrem às metáforas e a outras
figurações como forma de cair fora da lei dura que o universo denotativo
impõe aos mortais. Não raro o adivinhador encontra uma resposta que
nem sempre bate com a oficial, mantida sob a lei da esfinge ou do
oráculo ou de outras fontes de verdades. Um desses adivinhadores
chegou à sofisticada conclusão de que a resposta para a adivinha acima
seria a “pauta de música”, argumentou levando em conta a idéia de
que o bom aboiador é o músico que lê sua pauta, pastoreia o gado

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miúdo das notas musicais. Uma bela resposta, mas o jogo das
adivinhas como o jogo da leitura em geral é quase sempre tirânico, quer
impor a resposta única como forma de preservar o poder da esfinge.
Já que a adivinha é um gênero de origem oral, experimentemos
tomar como exemplo um analfabeto “leitor” de adivinhas. Imaginemo-lo
criança, lendo e relendo com o ouvido (ou com o olhar?) os enigmas que
seu micromundo parental lhe propõe. A retomada das palavras, a busca
do duplo sentido, das novas coerências para que se evidencie uma
lógica oculta, constitui o prazeroso percurso dessa subjetividade que
parece se comprazer com um cotejo de entre-textos: uma matriz dada à
memória e uma outra que vai sendo reconstruída durante o cotejo.
Entre as duas vislumbramos um ativo hiato que deixa acontecer o vai-
e-vem da experimentação, levando o sujeito a buscar na memória
sentidos e experiências de linguagem que lhe ajudem a certificar-se de
que poderá livrar-se de uma possível devoração. A experiência de
mundo e a linguageira são mobilizadas para o confronto com o texto
que se propõe como estranho, como paradoxo. Entrevê-se aí uma
vontade, um desejo, uma prontidão que se compraz em mover-se no
hiato dado.
Mesmo o não-adivinhador, o passivo, depois de sair de seu tempo
estratégico de espera, de sua pasmaceira diante do outro, também
enxerga esse hiato produtivo, porque acaba fazendo o percurso
retroativo a partir da resposta dada. Sua expectativa de levar o jogo a
outros, leva-o a aceitar a molecagem do texto e o exercício de ir e vir
entre a lei dura de uma escrita cravada na denotação simplória e o
galhofeiro jogo de esconder e revelar sentidos. Embora devamos
ressaltar que em sua passividade acaba ficando preso a um vestíbulo,
talvez demarcado por alguma barra que não lhe permite entrar nesse
hiato mais eletrizado, que o levaria ao jogo de entre-textos e que, ao

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sair desse lugar, levará sempre a marca daquele que não enfrentou a
esfinge, daquele que quedou paralisado diante do enigma do outro.
Um dos rumos de nossa pesquisa é buscar o porquê dessa
capitulação diante dessa barra, desses recalcamentos.
Talvez por causa dessa possibilidade de entrar e sair nesse
vestíbulo, vamos assumir aqui que esse jogo tem alguns elementos
essenciais do campo mais geral da leitura1, independentemente de seus
jogadores serem ou não alfabetizados. O processo que deflagra essa
ultrapassagem do vestíbulo dado parte de uma decisão ou de uma
estratégia em que o jogador ou se põe ou se retrai. Quando se põe, vê-
se diante de um texto, em geral já com algum magnetismo para aderir
na memória (refiro-me à textualização que vem esteticamente
preparada com ritmo, rimas, jogos de semelhanças formais,
polaridades e repetições) e que, ao se inscrever na memória, já se
propõe com uma matriz sobre a qual outros textos, outras formas,
deverão ser encontrados; como ocorre por exemplo em alguns jogos
lúdicos do mundo gráfico, o jogo dos sete erros, os caça-palavras ou
ainda como acontece quando uma condensação gráfica é elaborada com
a explícita intenção de lograr a visão – como na abaixo, onde caveira e
beleza dão nos a ambigüidade do tempo2:

1
G. Goodman ( 1970) já propos a leitura como “um jogo psicolingüístico de
adivinhações”, embora tome o termo de forma bastante genérica.
2
Impossível não evocar (ler aqui) a comparação que Freud faz entre a condensação
que ocorre no sonho e as chapas de Galton: ...projetando duas imagens sobre uma
chapa única, de modo que certas feições comuns a ambas eram realçadas, enquanto
às que não se ajustavam uma a outra se anulavam mutuamente e ficavam indistintas
na fotografia (Interpretação de Sonhos. Vol IV, tomo I, p. 239)

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Voltando às adivinhas.
A matriz dada, o texto que com facilidade (após uma ou duas
repetições) introjeta-se na memória do adivinhador, traz com ele, além
do objeto escondido, uma legenda codificada sob uma dura lei alética:
“uma coisa é ou não é, não vale uma terceira hipótese” - o famoso
interdito de Parmênides, que nos põe como adultos obedientes diante de
um simbólico dicotômico, predisposto a uma só opção. O não-
adivinhador se detém diante dessa lei, enquanto aquele que aceita o
jogo vai tentando perscrutar a monstruosidade da terceira hipótese.
Como jogo é sempre um encontro deleite. De leite no sentido mais
maternal possível já que o outro, o propositor do jogo disfarça sua
cobrança ao mostrar-se como um sujeito que abranda a lei da língua, do
mundo e da lógica. Há, no entanto, carrancas paternalistas contra tudo
o que evoca o acaso, a loucura. Posso imaginar algumas delas diante
da passagem que vai do “não venta” paro o “noventa”, exigida pela
adivinha com a qual vamos lidar mais abaixo. Poderíamos evocar já
aqui Freud e Lacan e revisitar todo um percurso que vai da análise dos
chistes ao conceito de alíngua. No entanto, vamos nos contentar com
uma citação de Guimarães Rosa apenas para animar a discussão e
deixar essa revisão mais pro final deste trabalho.

Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os


planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para
mágicos novos sistemas de pensamento (1979, p. 3)

Vejamos o tipo de adivinha que provoca carrancas:

- Qual a diferença entre um ventilador quebrado e uma cadeira?


- Resposta: trinta.

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A resposta realmente escancha a lei dura da lógica porque é uma
acintosa adivinha de puro logro. Aí o propositor do enigma, satisfeito
com o não-saber do interlocutor, explica-lhe o novo sentido: “ventilador
quebrado venta? Não! Não venta, nãoventa...noventa! E, na cadeira, se
senta...sessenta. A diferença entre noventa e sessenta é trinta! Fácil,
não?!”
Note como a palavra diferença é apreendida nos dois sentidos: no
comum, quando contrapõe os dois objetos no campo do imaginário
(a=b?); e no matemático, onde a palavra tem o peso de uma técnica.
Outro detalhe importante é o deslize do significante e dos sentidos por
meio da homofonia: do verbos comuns do cotidiano (“não venta”, “se
senta”) ao campo dos números (“noventa” e “sessenta”).

Como se pode ver, esses jogos de “à brinca” devem possuir algum


traço comum em relação àquele que Édipo enfrenta para tomar o lugar
do pai. O que tem a ver as nossas esfinges aparentemente inofensivas
com a que atormentava a famosa Tebas? Retomemos o “decifra-me ou
devoro-te” da esfinge tebana:

“Qual é o ser que, de manhã, caminha com quatro pernas,


durante o dia com duas e à noite, com três”

André Gide, em seu humanismo, diz que a resposta só poderia ser


o Homem. Mas a resposta, sobretudo quando ainda estamos sob efeito
das palavras, é um pouco mais que o Homem, é um monstrengo posto
ali para nos fazer perder o eixo das semelhanças: um ser que varia o
número de pés de acordo com as horas do dia. É também uma chave
para um mundo onde as horas do dia se equiparam ao tempo de uma
vida. Édipo teve que reconstituir esse eixo de semelhança, esse campo

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imaginário, para ver no monstrengo a imagem do Homem, do homem
sujeito ao tempo e à decrepitude.
Nos contos populares, encontramos muitos personagens com
sagacidade edipiana, que vencem divindades (deuses e diabos) e reis
por meio da proposição ou resolução de adivinhas, charadas ou
enigmas. Esses adivinhadores enfrentam de início a ameaça de uma lei
dura, a lei de ler sem erros, de não deixar espaços para uma falha
sequer. Depois do risco, há sempre tentadoras compensações: um
prisioneiro ganha a liberdade, um desafortunado casa-se com a
princesa, um jovem sagaz toma o lugar do rei. Só o Édipo é que deu
azar, após ler sem falhar acaba entrando em uma lei mais dura, a do
oráculo que o transforma em enigma para si mesmo. Com a resposta
edipiana o Homem passa a ser, ao mesmo tempo, enigma e adivinho
No enigma da esfinge podemos observar o encontro entre a lei
dura civilizacional - aquela que põe os homens diante de uma narrativa
dramática que, exemplarmente, evidencia a grande cena de um filho
que, por acaso, mata o pai e, por ter sido bom adivinho, casa-se com
mãe - com aquela que, aparentemente mais branda, propõe-nos
enigmas verdadeiramente ontológicos: que espécie de ser é esse que
também pode ser descrito à semelhança de um monstro que varia o
número de pernas com a passagem do tempo? Não é por acaso que os
cidadãos tebanos, apavorados, ficaram no vestíbulo, submissos às
exigências dessa cruel mãe devoradora. Já Édipo, ao entrar no espaço
do desejo, ao confrontar o texto absurdo da esfinge com sua experiência
de homem livre, acaba atinando com a resposta esperada pela esfinge,
no entanto, pesa contra ele a lei do mais duro enigma: quem são de
fato meus pais, aqueles que se submetem à palavra dos deuses e do
destino ou aqueles que me recolhem como pequeno rejeitado?
No final do Édipo, a lei dura, punitiva, exemplar, vai mostrar o
infortunado herói sem os olhos, vagando com três pernas mesmo sem

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ter chegado à velhice. Com ele, além da aceitação da lei, os cidadãos
reafirmam que a leitura de enigmas só deve ser executada pelos
Tirésias da vida – talvez a cegueira seja aí o contributo necessário para
enfrentar oráculos e esfinges que nos põem diante da lei dura do
incesto. Se um Édipo adivinhador é posto diante dos nossos olhos como
cena daquele que se cega, que aceita autopunição por ter ido além na
leitura do texto da esfinge, então fica pra nós, vinculada ao nosso
secreto desejo de tomar o trono do pai, a herança de seres que devem
obnubilar a visão diante do texto da esfinge para não perdê-la depois –
em outras palavras, cabe-nos aceitar um tipo de recalque, que ao
interditar o incesto, ao produzir sua castração, pode produzir também
essa subjetividade avessa a enigmas, amedrontada, que se queda
passiva no vestíbulo.

Já “ o herói de nossa gente”, o Macunaíma, de Mário de Andrade,


que vive uma lei civilizacional menos dura, é o contra-exemplo do que
vimos até aqui porque pôde contar com uma esfinge benevolente, a
filha de Ceuci, “a velha gulosa”. Como era a filha mais nova da
“comedora de gente” e “não era nada habilidosa”, resolveu brincar com
o herói. Primeiro “brincou” no quarto até se rirem um pro outro, depois,
dando uma de esfinge conivente, joga com as liberdades do herói.
Vejamos o delicioso trecho:
– Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que
é o que é: é comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz
o gosto da gente e não é palavra indecente?
- Ah? Isso é indecência sim!
- Bobo! É macarrão!
- Ahnn...é mesmo!...Engraçado, não?
- Agora o que é o que é: Qual o lugar onde as mulheres têm o
cabelo mais crespinho?
- Oh, que bom! isso eu sei! é aí?
- Cachorro! É na África, sabe!
- Me mostra, por favor!

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- Agora é a última vez. Diga o que é o que é:
Mano, vamos fazer
Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pêlo com pêlo
Deixar o pelado dentro3:

E Macunaíma:
- Ara! Também isso quem não sabe! Mas cá pra nós que
ninguém nos ouça, você é bem senvergonha, dona!
- Descobriu. Não é dormir ajuntando os pêlos das pestanas e
deixando o olho pelado dentro que você está imaginando? Pois
se você não acertasse pelos menos uma das adivinhas te
entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja...”4

Vemos que, assim proposta, essa não é a adivinha de adivinhar,


de pôr-se verdadeiramente diante de uma esfinge, mas a de maliciar, a
de fazer o sujeito erotizar o mundo. Macunaíma livra-se da “Mãe gulosa”
em troca apenas dessa brincadeira erótica. Esse nosso Édipo, nada
adivinho, não se casa com a mãe, antes prefere a própria esfinge, a
filha mais nova, a “senvergonha”, que depois da “brincadeira”, permite-
lhe a fuga. Também, para quem já havia se tornado rei, por ter
brincado com a poderosa Ci, mãe do mato, líder das guerreiras
amazonas, a filha do gigante só podia ser um retorno mais leve desse
incesto.
Se lembrarmos que o Édipo, antes de ser drama de Sófocles, era
também literatura popular, lenda, texto que se transmite através da
memória, podemos ver a afinidade umbilical das adivinhas com as

3
Márcia Fortunato Vescovi deu-nos uma versão da mesma adivinha, coletada no
interior de São Paulo – interessante notar o vocativo aludindo ambiguamente à menina
dos olhos e à feminilidade:
Menina, minha menina,
vamos fazer o que deus mandou
juntar pêlo com pêlo
debaixo do cobertor

4
Andrade, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizontd/Rio de
Janeiro: Livraria Garnier, 2000(p. 99)

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narrativas e, conseqüentemente, com as exigências postas pelo ato de
ler e de ouvir.
Entre os dois incestuosos, Édipo e Macunaíma, fica a diferença: o
grego passou pelo enigma; o herói brasileiro se evadiu mesmo sem
mérito, mesmo tendo interpretado o sentido direto vinculado a seu
gozo.
Na poesia popular, os cantadores costumam também pôr o
desafeto em apuros diante de adivinhas em versos. O prêmio é a
consagração popular como violeiro esperto que, em versos, escande as
armadilhas do outro. Vejamos um trecho da peleja entre Chica Barrosa
e José Bandeira5:

- Pois agora Zé Bandeira,


Responda o que eu lhe disse:
É rapa sem sê de pau,
Rapa sem sê de cuié,
É rapa e não rapadura,
Me diga que rapa é.

- É rapa sem sê de pau,


Rapa sem sê de cuié,
Eu já te dou o sentido
Te digo que rapa é:
É rapaz e é raposa,
Rapariga e rapapé...
7
- Sim sinhô, seu Zé Bandeira,
Já vejo que sabe lê:
Pelo ponto que eu tou vendo
Inda é capaz de dizê
O que é que neste mundo
O homem vê e Deus não vê.

- Barrosa, os teus ameaço


Eu não troco pelos meus:
O home vê outro home

5
Leonardo Mota, Cantadores. (pp.175,176)

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Mas Deus não vê outro Deus!

Temos nesse jogo, além da adivinha, uma outra lei. A da


métrica, do ritmo e a da rima. O cantador possivelmente já conhece a
adivinha, cabe-lhe, no entanto, a difícil tarefa de metrificar a resposta,
de encaixá-la na estrofe, no esquema rímico. O interessante nessa
peleja é que a capacidade de lidar com a adivinha leva Chica Barrosa a
concluir que seu adversário sabe ler - que é a tese que estamos
defendendo aqui desde o início. O saber ler aqui nesta adivinha-peleja é
exercer o jogo que desmancha uma escrita (ainda que oral) para sair de
seu visgo e rescrevê-la. Novamente, podemos pressupor aí um ouvido-
olhar-leitor, uma capacidade de lidar com semelhanças sonoras e
formais em gêneros que fixam o espaço sonoro-visual da estrofe.
Remetemos também nosso leitor à interessante peleja entre Bilbo
Bolseiro e o Gollun, no romance “O Hobbit” de Tolkien (2001) ,
momento em que o astuto hobbit livra-se da devoração jogando com
habilidade o jogo das adivinhas. Em uma dessas páginas desse
brilhante capítulo, Tolkien, por meio de Bilbo, lembra-nos a tradição do
jogo:

“Sabia, é claro, que o jogo de adivinhas era sagrado e


extremamente antigo, e que mesmo criaturas malvadas tinham medo
de trapacear quando jogavam.” (p. 79)

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UM SUPORTE PARA QUE OUTROS TEXTOS SE INSCREVAM?

O vezo da adivinha, em geral, é nos levar à confirmação de que


convivemos cotidianamente com os absurdos da linguagem. Nesse
sentido, é prima-irmã da poesia. Vejamos mais alguns exemplos:

O que é? O que é?
De boca pra cima está vazio,
De boca pra baixo está cheio.

Já de imediato temos aí uma gostosa ingenuidade que nos põe


diante de um aparente paradoxo newtoniano. Nosso imaginário, sempre
afeito à polarização simplória, se espanta: se está cheio, só pode estar
de boca pra cima, ainda que a palavra boca tenha lá sua exagerada
semântica. A resposta é “chapéu” e, então, a cabeça passa a ser esse
objeto que se sustenta no interior de um vazio emborcado. São esses
prazerosos jogos de sentidos e de significantes que dão ao sujeito
alguns ímpetos para descolar um pouco da lei dura, não só do código,
mas também do imaginário que ditam textos e mundos sem hiatos,
sem espaços de vacilação. Vejamos outra:

O que é que a formiga tem maior do que o boi?

No campo da visão, o boi é enorme diante da formiga, mas


contrasta com seu pequeno nome, monossilábico, apesar de trazer um
certo volume sonoro para a boca do falante com sua consoante oclusiva
seguida de uma vogal fechada: [boy]. A formiga, com suas patas
trissilábicas, não possui o mesmo estrondo. Mas, aqui na pauta da
adivinha, como podemos conceber que um pequeno inseto possa ser

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maior que um boi, senão por meio de uma ruptura com as comparações
que se dão meramente no eixo denotativo da representação? Cabe ao
adivinhador atrever-se na camada significante, buscar a partição
silábica, que põe em jogo a lei da segmentação ou, mais precisamente,
uma habilidade estética, sonoro-visual? Saberemos que a formiga, no
nome, é maior que o boi. Poderíamos ainda vacilar, buscando a
contagem do número de patas, mas não, pois sabemos que, na regra da
adivinha, há sempre a intenção do logro, do deslocamento – como nos
sonhos, diria Freud. Não é à toa que quando propomos uma adivinha a
alguém, a interlocução abre-se para um momento de alívio, dois leves
sorrisos marcam a interação, como se os interlocutores contratassem o
seguinte: estamos no campo do “de à brinca”, onde ler vira treler6, ou
seja, a leitura aqui é para pessoas abusadas.
É aqui que o trelente-adivinhador, se quiser brincar e aboiar no
campo miúdo dessas escritas, aprende que adivinhar é ir além da lei
mais dura, mais pregnante, que é a da representação. O criador de
adivinha codifica para o logro, como qualquer outro escrevivente, a
idéia é quase sempre tungar o outro pra imobilizá-lo, para que ele
nunca se arrisque diante de uma esfinge, para que, subjugado,
humildemente, implore pela resposta. Talvez um dos objetivos do
espetáculo edipiano seja exercitar esse medo de arriscar, como se
ficasse eternamente alertando: “desloque-se no simbólico e pague o
preço de uma maldição”.

6
Esse interessante verbo é muito usado na zona rural paulista, tem a mesma raiz do
verbo ler. Vejamos o Dicionário Houaiss:
v. (1899 cf. CF1) 1 t.i.int. conversar despretensiosamente, de maneira amigável; tagarelar
<Juventina trelava sem cansaço horas a fio> <quando posso, trelo um pouco com a
vizinha> 2 t.i.int. mostrar-se metediço, intrometido ou implicante ¤ GRAM a respeito da
conj. deste verbo, ver gram do verbete crer ¤ ETIM tre- (el. de comp. do lat. trans-
'exagero') + ler; ver leg- )

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Fenômeno semelhante se dá com nossos textos escritos (artigos
de jornais, editoriais, notícias, reportagens, resenhas etc) produzidos
por meio de alguns artifícios que põem os leitores sob a rigidez de uma
lei dura, aquela que arma uma leitura de tal modo a engrandecer os
mecanismos diretos da representação. Simbólico minguado, encurtado,
que engendra a subjetividade amedrontada, que capitula diante da
esfinge.
Com um pouco de esforço, podemos perceber aí um paradoxo, o
da lei da subjetividade que vigora nas interlocuções faladas ou escritas.
Talvez a adivinha apenas estereotipe boa parte de toda intenção
comunicacional. Primeiro é o jogo egótico, o jogo pronominal que
constitui esse tipo especial de interlocução, as duas pessoas em causa,
o aceite de que há o momento do outro dizer “eu”. No caso da
adivinha, é o de deixar o outro se pôr no lugar de esfinge e de se
acomodar como o “você”, no papel de quem aceita que só há uma
resposta, só há uma leitura, um só foco possível e, no caso, o foco que
propõe um logro.
Em toda fala, em toda escrita, somos obrigados a reconhecer que
o outro nos leva a silenciar sobre os outros focos, caso contrário,
ficaríamos enredados no “não é disso que se trata”, que um pouco mais
nos leva ao um não-dito que sempre pressupõe nosso narcisismo, mas
em geral não anunciamos: “você não é um interlocutor desejado”. Ser
desejado é aceitar um pouco o logro proposto pelo outro, mesmo que
seja “pra começo de conversa”.
Daí que os adivinhadores de verdade, como Édipo, são poucos. Em
geral, o propositor de adivinhas espera sempre um “não sei” de seu
oponente, pra que ele possa pôr o foco no lugar certo, desfazer as
contradições, os paradoxos, as hipérboles, as metáforas e metonímias,
diante do outro embasbacado. Quando se depara com um verdadeiro
adivinhador, um Édipo – alguém forro, que tenha acabado de matar o

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pai, ainda que por engano - o jogo entra no campo da rivalidade, ou
seja, é bem possível que o adivinhador, em vez de desposar a mãe,
tome o lugar de esfinge – se é que tudo isso não seja a mesma coisa, já
que só resta a ele a tarefa de propor um novo enigma, um novo foco,
um novo reinado.
O que é que faz um bom adivinhador senão atrever-se na técnica
de ler além da lei dura, do cânone, da lei de um simbólico - de um pai
que institui o sentido único por meio do esquecimento dos demais? Isso
normalmente tem custos e, como já vimos, é tão assustador que o pólo
dos adivinhadores é rarefeito, poucos se atrevem diante da esfinge.
Sabemos que, como no sonho, a leitura tem seu umbigo, que
mesmo em campo miúdo não se pode aboiar tudo, que há buracos
negros e limites na interpretação. Mas, é exatamente entre os limites
imperceptíveis da análise e do atrevimento que se dá a adivinhação-
leitura, aquela que realmente desmonta, que desconstrói e exige o lugar
do outro – diria Barthes (1988), a leitura que escreve.
Por outro lado, é no espaço de um certo atrevimento sem técnica,
sem análise, que o jogo deixa de existir. Como acontece na escola, nos
livros didáticos em geral, nas permissividades interpretativas, lugar
onde o corpo material do texto dado à interpretação pouco importa,
onde verdadeiramente não há leitura. É como se o adivinhador, em vez
de desmontar, de analisar, ficasse chutando respostas e a esfinge as
aceitasse, todas. E, pior: não há o repassamento da adivinha-texto
para a frente. Tudo morre ali, no ato mesmo em que se devora a
primeira sílaba da palavra esfinge e se faz restar apenas “o finge”.
A leitura de adivinhas ou de gêneros com alguns mecanismos
lingüísticos semelhantes parece constituir um requisito básico para que
códigos mais óbvios, como o alfabético, sejam decifrados. Quem
consegue lidar com um texto sem que ele esteja em um suporte fora do
corpo, que se vê obrigado a abrir um espaço entre dois textos virtuais e

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fazer cotejos entre seus elementos, como forma de enfrentar a
monstruosidade do estranhamento, já é um leitor.
Na próxima parte veremos como a adivinha já foi vista, por alguns
autores, como uma espécie de ferramenta de leitura.

II
Adivinhas e Estranhamentos

Ginzburg (2001) nos mostra que o tema da adivinha já foi


tomado, entre outros, por Chklovski, como modelo de texto para
abordar o tema do estranhamento e, conseqüentemente, o da leitura do
texto literário. Retomaremos aqui essa perspectiva com o objetivo de
buscar novos operadores para estranhar o campo da leitura e de seu
ensino e tentar redescobrir uma metáfora mais útil para o campo do
letramento.
Ginzburg compara a perspectiva de Chklovski sobre o
estranhamento a uma reflexão do imperador Marco Aurélio (II d. C)
sobre as possibilidades de uma “epistemologia” do estranhamento
cotidiano. O ponto de partida do imperador, guardadas as devidas
diferenças, está próximo de uma preocupação pós-moderna - Lacan,
Derrida e outros - o famoso “cancela a representação”. Para Marco
Aurélio, a forma estóica de suspender a representação ( entendida como
fantasia) tinha como objetivo suspender também a emoção, o
sentimento. Era compreendida como “passo necessário para alcançar
uma percepção exata das coisas, e portanto atingir a virtude.” (p. 19).
Essa técnica de estranhamento lançava mão de alguns
procedimentos, por exemplo, subdividir um objeto em suas partes
constitutivas como forma de minimizar o poder do todo. Um fenômeno,
como a relação sexual, se submetido a uma dissecação fria, no caso, o

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copular não passaria de “esfregação de uma víscera e secreção de
muco acompanhadas de espasmos”. A técnica do imperador, segundo
Ginzburg, uma técnica de estranhamento, está muito próxima do jogo
analítico exigido pelas adivinhas:

“A auto-educação moral 7 requer, antes de mais nada, que se


anulem as representações erradas, os postulados tidos como óbvios, os
reconhecimentos que nossos hábitos perceptivos tornaram gastos e
repetitivos. Para ver as coisas devemos, primeiramente, olhá-las como
se não tivessem nenhum sentido: como se fossem uma adivinha” (p.
22).

Mais adiante, completa a reflexão relacionando os procedimentos


de estranhamento com a técnica das adivinhas e vê aí uma relação
circular entre cultura popular e erudita:

“A possibilidade de que Marco Aurélio tenha se inspirado num gênero


popular como as adivinhas se afina bem como uma idéia que me é cara:
a de que entre cultura douta e cultura popular costuma existir uma
relação circular” (p. 23)

Apesar do denso moralismo de Marco Aurélio e de que Ginzburg,


ao longo desse artigo, faz questão de tornar evidente que há diferenças
entre as técnicas de estranhamentos em diversas acepções literárias
(por exemplo, entre as técnicas de estranhamento propostos por Marco
Aurélio, Tolstoi, Dostoievski e Proust), o que fica claro para nós nessas
aproximações é que a adivinha – como um jogo popular que atravessa
as mais diferentes e afastadas culturas – pode ser uma chave
importante para compreendermos melhor o ensino da leitura. Talvez,
desse olhar zombeteiro que se posta diante de um código tendo como
referência o mundo dos sentidos, dos jogos significantes e suas
relações paradoxais com o mundo sensível, possamos abstrair alguns

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caminhos para aproveitar melhor o que há de poder inscritivo na
tradição oral – em outras palavras, como tais textos ao mobilizar um
jogo intertextual na memória, mobiliza um sujeito que se posta no hiato
interpretativo que se abre entre um texto atual (aquele recebido no
momento) e outros que advém da memória como ferramentas de
interpretação.
Como vimos atrás, no capítulo 1, a adivinha pede ao decifrador o
processo inverso ao de Marco Antônio, exige que o outro perceba a
técnica usada para promover o estranhamento de um objeto. No caso
da técnica que enfoca a descrição, como a usada para o sexo,
poderíamos inverter o processo e chegarmos à proposição de uma
adivinha, ainda que um tanto besta: “o que é esfregação de víscera,
seguida de secreção de muco e espasmo?” Com alguns arranjos
estéticos e distanciamento metafórico, poderíamos chegar a uma
quadra-adivinha, com rima e métrica pra se levar à memória do outro.
Se a compararmos com aquelas propostas pela filha de Ceuci ao
herói Macunaíma, podemos perceber que tais adivinhas, além de fazer
estranhar o objeto, põem também as subjetividades em situação de
estranhamento. Se Macunaíma não fosse tão adito a um erotismo
direto, certamente estranharia a si mesmo: “ora, como fui ver sexo no
macarrão, no cabelo das mulheres africanas e na esfregação entre cílios
e olhos? – indagaria o herói. É como se a adivinha estivesse disposta a
mostrar que somos tomados por uma subjetividade maliciosa, que se
deixa levar pela lei da semelhança, enfim, pela pulsão erotizada que
recai sempre sobre o modo de olhar, que obnubila a visão e realça na
tela-mancha do mundo um já visto, um já desejado.
Por outro lado, a propositora da adivinha recebe de Macunaíma
um elogio erótico: “você é bem senvergonha, dona!”. Aqui o jogo

19
parece caracterizar um “smut”8 invertido. Se o smut, segundo Freud,
é devotado preferencialmente às mulheres com explícitas segundas
intenções, aqui é a mulher, a filha inábil, que propõe o jogo erótico e
espera que Macunaíma tome as adivinhas por sem-vergonhices. De
fato, propor uma adivinha desse tipo é estar disposto a uma
interlocução sujeita a implicaturas que, segundo Grice (1975), ocorrem
quando algumas normas de conversação são rompidas, levando o
interlocutor a elaborar juízos outros sobre a imagem do emissor. No
caso do smut freudiano, a implicatura põe o receptor a se perguntar “o
que o outro quer de mim?”. Já a adivinha erótica simula esse jogo e
devolve a pergunta ao receptor: “é você que quer alguma coisa de você
mesmo, já que está me vendo como aquele que propõe o erótico,
quando estamos falando de coisas ingênuas, como macarrão, cabelos
crespos e olhos humanos”. É claro que esse equívoco simulado acaba
desandando em riso e na plena aceitação do jogo.
A adivinha, com seus dois tipos de leitores - edipiano que mata o
pai e o Macunaíma, o herói que interpela logo o outro, constitui um
gênero que, no ensino, sobretudo na fase inicial de letramento, pode
fornecer ferramentas para ajudar a abrir esse hiato onde o desejo de ler
além da lei dura da representação denotativa engendra sua
subjetividade.

VISÃO E AUDIÇÃO

Se a visão é um contínuo que, como diz a psicanálise, se deixa


recortar pela pulsão escópica, que intensifica brilhos na mancha do
mundo, a audição também é uma escrita que recorta o contínuo dos
sons e sobre ele imprime ou realça somente aquilo que, de alguma

8
“Sabemos o que se entende por smut : a intencional proeminência verbal de fatos e
relações sexuais” (Freud, 1987. p. 98)

20
forma, a língua aparelha o sujeito a receber – seja no nível do textos,
dos diversos gêneros, seja no nível das palavras, sílabas e fonemas.
Não é por acaso que Freud9 isolou não apenas o lapso de fala e de
ouvido (lapsus linguae), mas também os de escrita e leitura (lapsus
calami). A maquinaria do psiquismo se interpõe tanto para os olhos
como para os ouvidos, na recepção e, na produção interfere tanto no
aparelho “olhador” como no fonador ou ainda na ação mecânica das
mãos que segura a pena ou da que desliza sobre o teclado do
computador – essa máquina de apagar lapso.
O que fica claro no aparelho freudiano é uma memória interposta,
tanto imagética como de palavras que está sempre querendo lograr-se
em um ponto da paisagem, das letras ou no contínuo dos sons. As
representações de palavras e as de imagens se engatam no circuito
pulsional, desvelando uma subjetividade sempre pronta a fazer
diferença no encadeamento consciente do olhar e da voz.
Talvez o valor que se atribui à leitura tenha muito a ver com essa
trama toda do inconsciente. Sabemos que, para vencer na vida, para
obter um local de destaque no mundo das mercadorias e do poder, nem
sempre é preciso ser um assíduo leitor de livros. No entanto, a função
leitora recebe essa aura toda porque talvez seja uma extensão histórica
de outras leituras, desde o caçador que bem lia as escritas deixadas na
natureza até o adivinho, como Tirésias, que não usava os olhos para ler,
ou ainda a liturgia que impunha aos monges medievais a leitura-
escutada.
O bom leitor, como nos mostram alguns autores cognitivistas
Smith (1999), Foucambert(1994), usa pouco os olhos, lê o já lido,
saltita sobre a página a partir da localização de núcleos que sua
memória ilumina. Soletrar é o contrário de ler, é apegar-se ao ato de

21
ver cada sílaba, cada palavra, de fazê-las consoar em sons e sentidos. É
a prisão da memória, é a prisão do leitor.
Esse apego, essa adesão submissa à pauta que faz o não-leitor - o
leitor lento - talvez seja da mesma natureza da que age na instância do
sujeito não-adivinhador, aquele que, diante da esfinge, fica obnubilado
pela lei dura da representação, lei tautológica de uma letra que, cega
para a dinâmica do simbólico, insiste em reafirmar o “macarrão” no
“macarrão”, o “olho” no “olho”, a “verdade da guerra” na “guerra
verdadeira” e assim por diante. Do mesmo modo que uma sílaba é uma
sílaba, uma palavra é uma palavra, enfim um modo de sempre reafirmar
a lei dura que trava o interjogo esperto que deveria ocorrer entre o
eixo metafórico (paradigmático) e o metonímico (sintagmático) de
Jakobson (1995), Lacan (1998).
No jogo da adivinha, a palavra macarrão além de conter a imagem
do mole que balança e pinga e evoca o pênis depois do coito, contém
também uma superfície de “massa” significante dada ao olhar (ainda
que não esteja escrita em suporte fora do corpo), que nos traz, por
exemplo, no fragmento “maca”, a imagem de um doente sendo
transportado na porta do hospital e, ao mesmo tempo o “carrão”,
veículo último tipo pertencente a um milionário padrão ou patrão.
Vejamos a reescrita, na forma de adivinha, dessa leitura da imagem:

O que é o que é
É mais que massa pro vivente
É a fria cama do doente,
É do transporte o mais decente?

Tomemos agora o olho humano ou olhar - “esse fazer o que Deus


consente, que é juntar o pêlo com pêlo e deixar o pelado dentro” e em
vez de recriarmos uma adivinha, tomaremos um poema de Augusto dos
Anjos e vamos propô-lo no formato de jogo:

22
O que é o que, que quer ser olhado nas rimas do poema10 abaixo?

O MORCEGO
Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me à goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”


- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?

A Consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Aqui neste jogo de adivinha proposto pelo poeta, acerta quem se


propõe a ser o maior cego quanto aos significados. É preciso, como na
adivinha abaixo, deixar de ouvir e de ver o sempre mesmo alfabeto, já
que a beleza do poema só se desnuda para o amor cego que usa a
escuta e o olhar no campo do treler, do adivinhar – embora o nosso
Augusto dos Anjos tenha sido esfinge benevolente, pois nos dá a chave
“morcego-consciência” gratuitamente (verso 12).

Ouçamos e vejamos uma outra adivinha:

- Onde está o defeito no rádio?

10
Augusto dos Anjos

23
Embora essa até pareça exigir plástica só de escrita gráfica, o bom
adivinhador sabe que não pode dispensar o ouvido. Talvez seja aí nessa
conjunção que se situa a verdadeira leitura. Nessa escritura que de um
defeito, faz-se um dê feito. A resposta, portanto, é o dê que está
feito no rádio, e bem no meio do rádio. Palavra auscultada, palavra
vista, leitura feita.
Aqui vemos, como Lacan bem viu, que o significante pode partir
de uma imagem dada – sobretudo dessas que evocam coisas que
balançam e pingam - mas é na escansão da palavra, de sua massa
significante que a habilidade da escrituração faz seu jogo.
Barthes já bem disse sobre a leitura que escreve, embora poucos
a retomem nesse campo da escritura. Nós estamos fazendo isso por
meio das adivinhas, esse jogo de escrita que, em muitas culturas,
dispensa o alfabeto – dispensa, no sentido também de dizer e pensar:
diz e pensa o alfabeto para além das letras no papel. Insistir nisso!!! A
leitura que escreve: uma palavra nonsense que evoca outra – o quem
conta um conto aumenta um ponto, o oral que muda as parlendas, o pé
de cachimbo e pede cachimbo.
O que nos põem as adivinhas – esses jogos “de à brinca” próprios
do campo da escrituração - é essa incrível possibilidade de ampliar as
reflexões sobre o ensino de leitura, tratando o campo do oral e da
escrita gráfica para além da dicotomia do verba volant, que se
contrapõe ao “scripta manent”. Esse provérbio latino, ele próprio como
escrita, só é re-escrito e grafado nesse momento graças a ter sido
gerado por uma pregnante força escriturária que o torna apropriado às
nossas impressões não gráficas - são essas gangorras de gozo que nos
dão os provérbios e as dicotomias, que não deixam de ser algum tipo de
adivinha sem perguntas.
Gangorras e tobogãs de desejo e gozo, as adivinhas, parlendas,
contos acumulativos, contos folclóricos, provérbios, trovas, mnemonias,

24
brincos e outros ludismos lingüísticos originários da língua oral, incluindo
a poesia popular (com seu imenso repertório de formas fixas:
redondilhas, sextilhas, quadrões, mourões, ligeiras etc.), ainda não
encontraram os pontos de apoio para uma ponte que poderia ser
construída entre a cultura oral e a escrita gráfica – ponte esta que
alguns poetas, escritores ou mesmo leitores proficientes originários da
cultura oral construíram, ainda que inconscientemente.
A discussão sobre a tal consciência fonológica poderia encontrar
no estudo dos gêneros da tradição oral algumas estratégias importantes
que evidenciam uma ponte de memória que se interpõe entre a escuta e
o olhar, sobretudo se aceitarmos que entre o ver e o ouvir não se
estende uma barreira intransponível. Cada gênero formular ao se dar ao
ouvido como uma estrutura, como partes interligadas de um todo, evoca
sempre um olhar. Alguns jogos, como as adivinhas, chegam a ser mais
explícitos – não é por acaso que entre os dois cantadores, quando Chica
Barrosa diz que Zé Bandeira sabe “ler”, de alguma forma, ela quer dizer
que ele bem viu a letra algorítmica, ou seja, o mecanismo literante que
faz com que qualquer palavra empreste seu corpo para enes variações:
“é rapa, rapadura, rapapé...”, sobretudo quando o efeito paronomástico
embala a cantoria pondo o sujeito no campo do desejo.
Nossa concepção vê um profícuo campo de pesquisas nos jogos
orais infantis e na poesia popular. Retomando um eixo teórico que
parte de Freud, passa por Saussure e Jakobson por meio da releitura
lacaniana, buscamos nesses jogos discernir algumas estratégias de
leitura que estão presentes na língua oral, ou seja, buscamos um
“saber ler” que nos revele a mobilidade de uma subjetividade de
entretextos, que aceite abrir um hiato entre o texto do Outro e o que
vem de sua singularidade. Em outras palavras, perquirir sobre o sujeito
num campo simbólico marcado pelo desafio do jogo, quando um sujeito
é chamado diante de uma esfinge para enfrentar um simbólico que pode

25
ser tensionado por um imaginário ameaçador (modelo edipiano) ou por
um permissivo (modelo Macunaíma). O imaginário adesivo, narcisico,
afeito ao gozo de sempre, como vimos em Macunaíma, fica obnubilado,
aprisionado à significação dada pelo outro, enquanto que o mais
simbólico se atreve, enfrenta o temor do incesto e faz do texto do outro
um suporte de inscrições e sobre ele opera com atrevimento.
Se a pesquisa de Ferreiro (1999) procurou detectar como as
crianças concebem a escrita gráfica sob o domínio de um ver, estamos à
busca de algo, talvez, mais complexo: como as crianças se posicionam
diante da possibilidade de emergência de um sujeito escritor-leitor
mesmo quando não estejam diante da escrita gráfica, ou seja, como
lidam com a conjunção escuta-olhar quando são convocadas ao jogo, ao
desafio. Como lidar com a adesão submissa à palavra, à subjetividade
que se deixa cair no visgo do outro, opondo-se à possibilidade de uma
cisão, ou seja, quando um sujeito é convocado a manejar dois textos
em contraste, o memorizado vindo do outro e a habilidade linguageira
que se atreve a ler e a imprimir sobre o texto recebido.
Nossa hipótese leva em conta que se a tradição oral acumula e
filtra determinados tipos de textos e os mantém como um acervo de
todos é porque tais textos se prestam ao desenvolvimento de
determinadas estratégias linguageiras que, entre tantas outras funções,
também preparam a leitura, mesmo quando não há suportes gráficos
diante dos olhos.
Alguns de nossos trabalhos já vêm evidenciando resultados
interessantes, como o caso de um menino11, sujeito de uma nossa
pesquisa, que se recusava a ler e que diante de um trabalho que
buscou conhecer essa capacidade inscritora em sua fala, em sua
experiência oral, deu a essa criança uma nova perspectiva, talvez tenha

11
O relato completo deste caso já está no prelo.

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ocorrido aí mudanças em uma subjetividade que via nas exigências
escolares uma séria ameaça, como aquela dos cidadãos tebanos diante
da esfinge.
Neste trabalho, tematizamos a adivinha como um gênero
privilegiado que permite algumas reflexões importantes sobre o campo
da leitura e do letramento porque, nas culturas orais, a adivinha (ou
enigma) já estava posta como condição para que um sujeito pudesse
ser reconhecido como autônomo (rei ou príncipe) ao provar sua
capacidade de ler por sobre o texto proposto, por sobre a representação
dominada pelo outro.

Referências bibliográficas:
ANDRADE, M. Macunaíma: O herói sem nenhum caráter. São Paulo:
Livraria Martins, 1977.

BARTHES, R. “Escrever a leitura”. O rumor da língua. São Paulo: Editora


Brasileiense, 1988. [pp40-42]

FERREIRO, E. Los processos constructivos de apropriación de la


escritura. In. Ferreira, E. Palácio, M.G. Nuevas perspectivas sobre los
procesos de lectura y escritura. México.Siglo Vintiuno editores,1999
[pp. 128-154]

FOUCAMBERT, A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

FREUD, S. O chiste e sua relação com o inconsciente. Obras completas


de Sigmund Freud, Edição Standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago,
1987.

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GRICE, H.P. “Logic and conversation”, in. Cole, P. and Morgan, J.L.
Sintax and semantics: speech acts. New York: Academic Press, 1975
[pp.41-58]

ROSA, G. “Aletria e Hermenêutica”. In Tutaméia. Rio de Janeiro:


Livraria José Olympio, 1979 [pp. 3-12]

GINZBURG. C. “Estranhamento: pré-história de um procedimento


literário.” In. Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
[pp. 15-41]

JAKOBSON, R. “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In


Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1995 [pp.34-62]

LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”.


In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorg Zahar Ed., 1998 [p. 496-533]

MOTA, L. Cantadores. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987.

SMITH, F. Leitura significativa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.

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