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Um exercício refletido no espelho

Carlos H. dos S. Fernandes

À pergunta provocativa “Como poderíamos praticar uma história da arte diversa, sem nos
limitar aos cânones eurocêntricos?”, não nos incita senão dar uma resposta, dentre as possíveis, no
mínimo polêmica, qual seja: retomando, criticamente, nossa cultura.
Não aprofundaremos aqui nossa investigação no termo cultura, mas se nos fosse exigido
uma definição, lançaríamos mão da filosofia existencialista e, inspirados por ela, faríamos nossas as
palavras de J-P. Sartre (1995, p. 216, tradução nossa) nas páginas finais de sua obra autobiográfica
Les mots [As palavras]: “A cultura não salva nada nem ninguém, ela não se justifica. Mas é um
produto do homem: ele projeta-se nela, reconhece-se nela; sozinho, esse espelho crítico lhe oferece
sua imagem.”1 É esta imagem de “espelho crítico” talvez que mais se aproxima do que tentaremos
aqui em poucas páginas discorrer: é para ele que ousaremos olhar, mesmo às vezes não querendo
reconhecer-se no reflexo produzido.
Tentaremos no que se segue defender que, apesar de mirrada, magra e anêmica, como
muitos brasileiros ditos de alma europeia pensam, possuímos sim uma tradição artística brasileira –
e portanto também histórica – que nos permite traçar algumas práticas menos dependentes de nossos
colonizadores, embora sem nos livrarmos completamente de suas fantasmagorias, isto é, das
presenças sutis e invisíveis europeias, como talvez tenha pretendido Oswald de Andrade e seu
manifesto antropofágico, no tocante, para nós, ao campo da história da arte.
Dito isso, que nos seja permitido partir de nosso modernismo mais acanhado, mas talvez por
isso mesmo, a nosso ver, mais crítico. Antes da “ferocidade” oswaldiana, pensemos na consciência
crítica (e, por isso mesmo, séria e infeliz) de Mário de Andrade a respeito da “realidade brasileira”,
que já nos dizia em seu Prefácio interessantíssimo, em Pauliceia Desvairada (1922), considerado
primeiro livro de poemas do modernismo brasileiro: “Ninguém pode se libertar duma só vez das
teorias-avós que bebeu.” (ANDRADE, 2013, p. 45)
Citamos Mário de Andrade para falar sobre história da arte e não é aleatoriamente. Na aula
inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes da Universidade do
Distrito Federal, em 1938 – que na época era a cidade do Rio de Janeiro – intitulada O artista e o
artesão, Mário de Andrade (2012, p. 15) diz o seguinte sobre o programa de aulas que planejara
para seus alunos:
Iniciando as minhas aulas, quero prevenir, desde logo, que serei muito mais um
comentador que um teórico. Vou apenas ensaiar um sistema de conversas que,
através da História da Arte, consiga dar, aos meus companheiros de curso, muito
mais uma limitação de conceitos estéticos que uma fixação deles. Um curso que,
pelo seu aspecto de experimentalismo crítico sobre a História da Arte, será muito

1 No original em francês: “La culture ne sauve rien ni personne, elle ne justifie pas. Mais c'est un produit de l'homme:
il s'y projette, s'y reconnaît; seul, ce miroir critique lui offre son image”. (SARTRE, 1995, p. 216)
mais o convite à aquisição de uma séria consciência artística que a imposição de
um sistema estético […].

Dois anos após este discurso de Mário, em 1940, o historiador de arte Erwin Panofsky
publicava um ensaio conferência, em Princeton, intitulado The Meaning of the Humanities. Um dos
pontos que podemos relacionar, mutatis mutandis, essas duas personalidades é a do respeito à
tradição: para o alemão, um humanista deve rejeitar a autoridade, mas deve estudar a herança do
passado, “os registros atrás de si” ou “testemunhos-lembranças”; para o brasileiro, a tradição tem
suas “virtudes sociais” para o artista quando não descamba para o “passadismo” ou mesmo para o
“academismo”, em si reacionários, rejeitando sempre o dogmatismo.
Mas podemos ousar pensar, apenas enquanto esforço imaginativo, uma segunda
aproximação entre Mário de Andrade e Erwin Panofsky, quando este último no referido texto
discute uma terceira compreensão do que denomina de “círculo vicioso”, ou melhor, “situação
orgânica”.2 Esta terceira organicidade repousa na intricada relação entre o teórico da arte e o
historiador da arte, tal qual ambos podem sair beneficiados. Dito de outro modo, o teórico ao
formular seus problemas artísticos contribui com o historiador que, por sua vez, ao descrever,
analisar e interpretar as intenções do artista contribui com o primeiro. A nosso ver, Mário de
Andrade parece caminhar, no texto citado acima, enquanto professor de História da Arte, neste
lugar “orgânico” e favorável em que se limitam conceitos sem, no entanto, os fixar; trafegando
assim entre ambos livremente como um “organismo vivo”; ou, quiçá, numa interpretação
metafórica, uma síntese dos vizinhos de Panofsky: ele, Mário, tem às mãos a arma (história da arte)
e as munições (teoria da arte), mas titubeia em atirar (dogma), já que é de seu temperamento refletir
se debatendo e se interrogando.
Em Ensaio sobre a música brasileira, a nosso ver, encontramos uma definição mais clara
sobre o que estamos tentando defender nestas poucas páginas a respeito da prática da história da
arte no Brasil. Mário de Andrade chama a atenção neste outro ensaio para o fato de que o artista
brasileiro (que aqui estendemos para os historiadores de arte também), em sua reação à criação
estrangeira, ao invés de lhe repelir ou ter-lhe aversão, ato no mínimo inútil, deve dela se aproximar
“espertalhonamente”, deformando e adaptando o que lhe interessa nela.

Está claro que o artista deve selecionar a documentação que vai lhe servir de
estudo ou de base. Mas por outro lado não deve cair num exclusivismo
reacionário que é pelo menos inútil. A reação contra o que é estrangeiro deve
ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele. Não pela
repulsa. (ANDRADE, 1972, p. 26).

2 Em seu texto, A história da arte como uma disciplina humanística, Panofsky considera como “situação orgânica”,
além da que falaremos neste texto: 1) a relação entre “monumento” e “documento”, cujas ordens – primário e
secundário – variam dependendo do campo disciplinar e 2) a relação entre “recriação estética intuitiva” e “pesquisa
arqueológica”, pois ambas se interpenetram, qualificam-se e se retificam mutuamente, num jogo talvez entre
irracionalidade e racionalidade, subjetividade e objetividade.
Transpondo as orientações para o artista ao historiador, perguntamo-nos: como poderíamos
ter essa “atitude espertalhona” na história da arte? Suspeitamos que isso já tenha sido iniciado e
que o exemplo que daremos a seguir é uma demonstração preparatória desse caminho, hoje feliz ou
infelizmente institucionalizado, e que poderia ser continuado por nós frente, por exemplo, o
surgimento dos discursos decoloniais das populações africanas e indígenas, e de identidades de
gênero (mulheres, transsexuais, queers, bissexuais, homossexuais etc.).
Falamos aqui de Gilda de Mello e Souza.3 Em seus vários ensaios podemos observar usos
relativizados dos “métodos” da Escola de Warburg às artes brasileiras. Por relativizados queremos
dizer o seguinte: deformando ou adaptando, ou melhor, aclimatando “espertalhonamente” o que lhe
interessava das teorias estrangeiras, sobretudo das de Panofsky e Gombrich, para a “realidade
brasileira” em análise.4
Vejamos rapidamente, no curto espaço que temos, ao menos um exemplo de relativização
dos “métodos” estrangeiros às obras de arte brasileira. No ensaio Pintura brasileira
contemporânea: os precursores, publicado na revista Discurso, em 1974, e republicado em
Exercícios de leitura (1ªed. 1980), Gilda de Mello e Souza sustenta, dentre várias hipóteses, a tese
de que Almeida Júnior (1850-1899) foi o primeiro pintor a retratar, de maneira inovadora, o homem
brasileiro a partir da “notação dos gestos” do caipira, argumento que contraria aquela de que ele
teria inventado a “luz brasileira”.
Inspirada em Ernst Gombrich, especialmente na obra Arte e Ilusão, e no argumento deste de
que é impossível recuperar “a inocência do olho”, e em Marcel Mauss sobre as técnicas do corpo,
Gilda observa como inovador – e teria sido pioneira nesta observação – a “dinâmica dos gestos” nos
quadros do pintor do interior paulista, afirmando que: “é nosso, sobretudo, o jeito do homem se

3 Como sabemos que sua fortuna crítica ainda é escassa, deixamos em nota de rodapé uma breve biografia da crítica
de arte, filósofa e ensaísta, produzida por nós em outra pesquisa: nascida na cidade de São Paulo em 1919, Gilda
Rocha de Mello e Souza, em solteira Moraes Rocha, recebeu seus primeiros ensinamentos na fazenda Santa Isabel,
perto da cidade de Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, onde residiu com seus pais e irmãos até os 11
anos de idade. Em 1931, transferiu-se para a sua cidade natal, capital do Estado, a fim de cursar o secundário em
colégio privado e, em seguida, a universidade, residindo nesse período na casa de seu primo de segundo grau, o
poeta, romancista e contista Mário de Andrade (1893-1945). Sendo assim, fez em 1936 a 2ª série do Colégio
Universitário Anexo à Universidade de São Paulo (USP) e nesta última ingressou, um ano depois, no curso de
Filosofia, tornando-se bacharel em 1939 e licenciada em 1940. Assumiu, em 1943, o cargo de terceira assistente na
cadeira de sociologia I na mesma universidade, na qual também defendeu, em 1950, sua tese de doutoramento O
espírito das roupas, em Ciências Sociais/Sociologia, sob a orientação de Roger Bastide (1898-1974), ocupando o
lugar de segunda assistente da já referida cadeira até 1953. No ano seguinte, a convite de João Cruz Costa (1904-
1978), Gilda tornou-se responsável pela disciplina de estética no curso de Filosofia, sendo, posteriormente, a chefe
deste Departamento nos árduos anos de ditadura no Brasil (precisamente de 1969 a 1972). Neste intermeio,
inclusive, criou a Discurso (1970) – revista até o presente momento em vigência no país. Aposentou-se em 1973 e
tornou-se professora emérita em 1999. Viveu até os 86 anos. Seus contos e ensaios críticos foram publicados em
diversas revistas, catálogos de arte, jornais, além de compilados em livros; bem como, postumamente, foi publicado
o volume A palavra afiada (2014), livro que resgata entrevistas, pequenos escritos e falas, além de cinco cartas de
Gilda a Mário de Andrade.
4 Dois comentários exemplares sobre a relativização do “método” de Warburg por Gilda são os de Otília Beatriz Fiori
Arantes (Notas sobre o método crítico de Gilda de Mello e Souza) e de Bento Prado de Almeida Ferraz Jr. (Entre
Narciso e o colecionador ou o ponto cego do criador), ambos publicados na revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, n° 43, 2006. Acessado em 18/04/21. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/issue/view/2811
apoiar no instrumento, sentar-se, segurar o cigarro entre os dedos, manifestar no corpo largado a
impressão de força cansada [...]” (MELLO E SOUZA, 2009, p. 276). Segundo Marilena Chauí:
Se Dona Gilda pôde realizar essa leitura da obra de Almeida Júnior é porque ela
também, menina de fazenda do interior paulista, teve gravada em seu corpo a
mesma experiência que, em lugar de ser tomada desdenhosamente como arcaísmo,
deu a seu olhar a especial argúcia para, etnóloga de sua gente, ver aquilo que os
outros, olhando para o mesmo que ela, não puderam enxergar. (CHAUÍ, 2007, p.
30).

Com este breve exemplo de Gilda de Mello e Souza sobre a pintura brasileira queremos insinuar
que outros campos nos são abertos para, incorporando criticamente teorias estrangeiras, quer
europeias ou asiáticas, quer estadunidenses ou mesmo sul-americanas, podermos construir práticas
no campo da história da arte mais livres e próximas de nossa realidade, com movimentos
racializados e descentrados, como acreditamos ver, atualmente, nas performances de Grada
Kilomba ou nas reflexões de Walter Mignolo.
Antes de finalizarmos nossa breve reflexão, gostaríamos de lembrar de uma fala de Gilda de
Mello e Souza numa comunicação ao Seminário Nacional de Pós-Graduação, em Belo Horizonte-
MG, em 1967, quando diz: “A incorporação do ensino das artes aos currículos universitários é
recente e deu-se um pouco tardiamente, se a consideramos em relação à admirável expansão
artística do Brasil contemporâneo.” (MELLO E SOUZA, 2014, p. 173). Gilda continua sua
apresentação traçando um panorama, digamos assim, da institucionalização das artes em nosso
território, em três etapas, a saber, 1) a explosão das artes plásticas, da literatura e da música com a
Semana de Arte Moderna de 1922, 2) a conjunção pintura e escultura com a consagração de
Portinari e Niemeyer, e 3) o surgimento do teatro moderno brasileiro e o Cinema Novo, que
impulsionou a reavaliação curricular e estruturação dos cursos superiores do país;
institucionalização que só atingiria, como bem sabemos, a História da Arte no início do século XXI.
Levantamos esses dados no momento, pois nos incomoda nossa relação com o curso de
História – ou antes a falta desta relação. Partindo do que vimos até agora, bem como das
experiências paupérrimas que temos sobre os cursos de História da Arte no país e, por isso, nos
limitando às experiências institucionais deste curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
perguntamo-nos: qual a relação do curso de História com o de História da Arte? Por que esses
cursos encontram-se geograficamente separados, um no centro histórico da cidade, no Largo de São
Francisco, junto à Filosofia, e, o outro, na Escola de Belas Artes, em contato íntimo às artes e não à
História?
Nossas inquietações partem da questão lógica de que do departamento de História teríamos,
como derivado e autônomo, o curso de História da Arte5 e, enquanto irmãos, deveriam ser
5 Na comunicação acima referida, de 1967, Gilda chega a dizer sobre essa disciplina o seguinte: “A conclusão a que
se chega […] é que a pós-graduação em artes, longa e exclusivamente teórica, baseada no modelo do Departamento
de Filosofia, só se justificaria na Faculdade de Filosofia e nas disciplinas de estética (Departamento de Filosofia) ou
próximos; o que não ocorre, pelo menos não na UFRJ. Feito essa observação e visto os
desdobramentos de nossa cultura aqui esboçada, o que nos permite afirmar talvez é que, numa
espécie de lógica inversa do que poderíamos chamar de “natural”, nosso curso surgiu em sua forma
“independente” mais ligada aos cursos de Artes do que ao curso de História propriamente dito,
como se aqueles fossem, embora tardiamente se institucionalizando, paradoxalmente mais
adiantados do que o próprio curso de História, que, se não estamos redondamente enganados, foi
institucionalizado em 1939, com o extinto Departamento de História do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (IFCS), que em 2010 criou o Instituto de História. Duvidamos que o curso de
História da arte tenha brotado do nada e, por isso, indicamos sua relação às artes, citando Mário de
Andrade e Gilda de Mello e Souza. Todavia, a fortiori, podemos dizer que a a institucionalização da
História da arte, no Brasil, não tem nada ou pouco a ver com a da História?
Bom, aqui chegamos ao limite do que podemos alcançar no momento. Finalizamos,
esclarecendo que, no limite, nossas questões não passam de divagações de um aluno recém
ingresso, sem tato apurado e consciência crítica afinada aos problemas da história da História da
arte, ou antes, da formação de sua própria cultura neste campo, que por isso mesmo vê, no espelho
que olha, um reflexo talvez muito pouco nítido... mas não por isso, ao menos para nós, inquietante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo In: Poesias Completas: volume 1. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

______ . O artista e o artesão In: O baile das quatro artes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012,
pp. 6-19.

______ . Primeira Parte: Ensaio sobre a Música Brasileira In: Ensaio sobre a Música Brasileira.
São Paulo: Martins; Brasília: INL, 3ª edição, 1972, p. 11-73.

CHAUÍ, Marilena. A dignidade do feminino In: Gilda, a paixão pela forma. Organização de
Franklin de Mattos e Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul. São Paulo: Fapesp, 2007, pp.
23-49.

MELLO E SOUZA, Gilda de. Graduação e Pós-graduação em artes In: A palavra afiada. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014, pp. 171-181.

_______ . Pintura brasileira contemporânea: os precursores In: Exercícios de leitura. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2009, pp. 273-303.

PANOFSKY, Erwin. A história da arte como um disciplina humanística In: Significado nas artes
visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 19-46.

SARTRE, Jean-Paul. II. Écrire In: Les mots. 1ªed. 1964. Paris: Gallimard, 1995.

de história da arte (Departamento de História). Foi a partir desta ligação lógica entre história da arte e
Departamento de História que nos levaram às questões postas no final de nosso exercício de reflexão.

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