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Arte, objetos e coleções

Carlos Fernandes

RESENHA

ELIADE, Mircea. Prefácio; Simbolismo do centro; Notas sobre o simbolismo das conchas In:
Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. 1ª ed. 1979. Ed. nº 768. Lisboa:
Artes e Letras / Editora Arcádia, [ano?].

A presente resenha, organizada em três momentos, abarca o Prefácio (p. 10-26) e os


Capítulos: I. Simbolismo do centro (p. 27-55) e IV. Notas sobre o simbolismo das conchas (p. 122-
146) da obra Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso, do filósofo e
historiador das religiões Mircea Eliade (1907-1986). Seguindo pari passu as articulações reflexivas
centrais do autor, optamos por uma apresentação mais linear, a fim de que o/a leitor/a possa
acompanhar seu percurso tal como desenvolvido na obra, reservando ao fim de nosso texto algumas
breves considerações sobre nossa leitura.

Em seu Prefácio, subdividido em quatro movimentos textuais, a saber, Redescoberta do


simbolismo, Simbolismo e psicanálise, Perenidade das imagens e O plano do livro, o autor romeno
(naturalizado norte-americano na década de 1970) nos introduz ao tema central de seu ensaio: o
ressurgimento do interesse pelo simbolismo no século XX, por psicólogos e críticos literários, e a
necessidade de uma visão da história das religiões deste simbolismo. Senão, vejamos ao menos os
três primeiros subtítulos desta seção.
Em Redescoberta do simbolismo, Eliade defende a ideia de que a difusão da psicanálise,
bem como o estudo sistemático da “mentalidade primitiva” reacenderam, na contracorrente do
racionalismo, do cientificismo e do positivismo, do século XIX, o interesse pelo simbolismo que, a
seu ver, caracteriza o período dos anos de 1925 a 1950, ou melhor, “o segundo quartel do século
XX” (ELIADE, [ano?], p. 10).1
Para o autor, trata-se portanto de uma redescoberta e não de uma descoberta propriamente
inovadora do simbolismo. A prova disso é o “sincronismo” entre o interesse da Europa Ocidental
pelo simbolismo ao mesmo tempo que em que a Ásia, a Oceania e a África passam a reivindicar
seus lugares na “Grande História”. E aqui surge, digamos assim, o primeiro nó na trama de Eliade, a
saber: o fato do positivismo europeu dialogar com as culturas “exóticas”, ou seja, não europeias,
visto que estas possuem “vias de pensamento”, em geral, distintas do daquele. Em geral, porque em
1 Vale lembrar que Imagens e símbolos fora publicado originalmente em francês em 1952 pela Éditions Gallimard.
seguida, Eliade considerar que ao menos dois pensamentos espirituais europeus se aproximam dos
não europeus, pois misturariam “símbolos” e “mitos”, quais sejam: o cristianismo e o comunismo.
Retomando a ideia de sincronismo como uma “feliz conjunção temporal” entre o
ressurgimento do simbolismo e a entrada de outros povos na história contemporânea, em que a
Europa redescobrisse assim “o valor cognitivo do símbolo”, para o autor, ela deve logo
reconsiderar, sendo obrigada ou não, outros modos de pensamento, de aquisição de conhecimento.
A Europa já não está sozinha na elaboração da história a ser narrada e, de acordo com Eliade, a
etnologia serve como modelo dos avanços acerca da compreensão do “pensamento arcaico”, como
podemos ler no seguinte trecho: “O etnólogo dos nossos dias aprendeu, ao mesmo tempo a
importância do simbolismo para o pensamento arcaico, a sua coerência intrínseca, a sua validade, a
sua audácia especulativa, a sua ‘nobreza’.” (ELIADE, [ano?], p. 12).
A despeito portanto de toda pretensão objetivista do século XIX, o simbolismo – e por este
termo queremos dizer tanto o símbolo quanto a imagem e o mito – sobreviveu e ainda sobrevive
como uma forma de ver e compreender o mundo, mesmo que se mantenha sutilmente camuflado, na
latência do pensar, quer na religião, na ciência, na sociologia e, principalmente, na literatura.
Exemplo dessa sobrevivência simbólica neste último caso, segundo Eliade, é a do “mito do Paraíso
Terrestre” cristão adaptado, na literatura, ao “Paraíso Oceânico” e mantido ainda hoje, por muitos,
na psiquê humana: mesmo que a realidade seja outra, “ninguém via senão a imagem que
transportava consigo” (ELIADE, [ano?], p. 13).
Já em Simbolismo e psicanálise, o autor parece querer responder – imaginamos – duas
questões iniciais, a saber: a quem pertence o pensamento simbólico? e qual a sua função? À
primeira, temos como resposta que o pensamento simbólico não é exclusivo de uma geração,
cultura ou área do saber, mas sim que pertence a todo ser humano. Quanto à segunda questão, a
nosso ver, mais complexa de ser respondida, Eliade escreve que o pensamento simbólico preenche a
função de “pôr a nu as mais secretas modalidades do ser.” (ELIADE, [ano?], p. 13).
Mas o que o autor deseja dizer nessa frase um tanto quanto enigmática? Acompanhando o
desenrolar de sua trama, podemos apontar que se trata de trazer à superfície do ser histórico,
condicionado e limitado, uma parte de seu ser ahistórico, isto é, aquela parte da humanidade que
carregamos conosco antes mesmo da História, nossa animalidade escondida que em nada anula
nossa humanidade, aliás à integra, quando entramos em contato com ela, com essa espécie de
“arquétipo” do “homem primordial” historicamente inacessível.
No entanto, como operamos esse contato? Pelos sonhos, como bem souberam os
surrealistas. Mas não só pelos sonhos que temos quando estamos dormindo. Como escreve Eliade
([ano?], p. 14):
Os sonhos, os sonhos acordados, as imagens das suas nostalgias, dos seus desejos,
dos seus entusiasmos, etc., são outras tantas forças que projetam o ser humano
historicamente condicionado num mundo espiritual infinitamente mais rico do que
o mundo fechado do seu “momento histórico”.

Criticando a visão da psicanálise freudiana como positivista, visto que, de acordo com o
autor, o pai desta nova ciência, Sigmund Freud, concebia e perseguia a ideologia de uma
“sexualidade pura”, o autor afirma por sua vez que esta tem função polivalente, sendo a
cosmológica uma de suas valências. Em outros termos, a posse sexual também é um meio de
conhecimento e não de degradação ou de vergonha, como infelizmente o homem moderno a
compreende hoje.
Assim, influenciado pela psicanálise jungiana, Eliade segue a sua crítica ao “Complexo de
Édipo”, que na tradução freudiana, ao reinterpretar o mito em “termos concretos”, destituiu a
imagem do mito de seus significados, os quais não se esgotam, acredita nosso autor, nas referências
ao concreto; bem como a questão da origem das imagens também não tem um objeto concreto. As
imagens, para usarmos as palavras do próprio Eliade, são “multivalentes”: “É pois a Imagem como
tal, na qualidade de feixe de significações, que é verdadeira, e não uma só das suas significações ou
um só dos seus numerosos pontos de referência.” (ELIADE, [ano?], p. 13).
Em suma, interpretar ou traduzir as imagens de uma única maneira, como a única
verdadeira, seria retirar-lhes a vida e reduzi-las a nada. E se sabemos que a tradução concreta de um
mito é possível e em certo sentido necessária, permanecer nesta concretude, entretanto, diz-nos o
autor, é já sinal de “desequilíbrio psíquico”. Para Eliade, a redução exclusiva de um símbolo a um
significado é fruto de uma interpretação falsa, porque unilateral, parcial e incompleta, da qual não
só a psicanálise, mas também a história das religiões parece estar maculada.
Finalmente, em Perenidade das imagens, é o tempo que toma o lugar de importância em sua
reflexão. A seu ver, até mesmo o mais realista dos homens “vive de imagens”, o que, dito de outro
modo, sinaliza a sobrevivência das imagens em nosso subconsciente: elas teriam uma vida
subterrânea, restando-nos desmascará-las para provarmos a sua “atualidade” e frescor. Às imagens
mais abjetas, segundo Eliade, podemos ver se ocultar, por exemplo, aquela “nostalgia do paraíso”
referida mais acima, que tencionam dizer muito mais do que em palavras, muito mais do que a
“linguagem analítica” é capaz de expressar.
Mas, para o autor, tais imagens, tais “nostalgias” foram negligenciadas pelo homem
moderno e, no entanto, continuam vivas em seu “fluxo semi-consciente”, transformadas,
metamorfoseadas, secularizadas, laicizadas. É o que nos parece dizer quando escreve: “O homem
moderno é livre de desprezar as mitologias e as teologias mas isso não o impedirá de continuar a
alimentar-se de mitos decadentes e de imagens degradadas.” (ELIADE, [ano?], p. 19). E um fato
incontestável, prova dessa sobrevivência perene das imagens, mostra da vivacidade da imaginação
humana, é a própria experiência da Segunda Guerra Mundial, na qual, em meio ao desespero e
terror, nos campos de concentração nazistas, “homens e mulheres cantaram romanzas, ouviram
histórias”, substitutos dos mitos.
Juntamente à redescorberta do simbolismo, há de haver também um despertar, no homem
moderno, de sua imaginação. É por meio deste despertar imaginativo que seremos capazes de
acessar o significado mais profundo de nossa vida e de nossa espiritualidade. De acordo com
Eliade, seguindo de perto a visão de alguns psicólogos, como, por exemplo, Carl Jung, sem a
imaginação tanto a vida individual quanto a coletiva se desequilibram psiquicamente. Por isso, a
imaginação, etimologicamente próxima da “representação” (imago) e da “imitação” (imitor), “imita
modelos exemplares – as Imagens – reprodu-las, reatualiza-as, repete-as sem fim.” (ELIADE,
[ano?], p. 21).
Entretanto, é preciso ir mais longe do que foram os psicólogos e os críticos literatos, neste
ponto, diz-nos o autor romeno, e levar em “conta os resultados da história das religiões, da
etnologia e do folclore”. Eliade justifica, por fim, que sua obra Imagens e Símbolos fora escrito
justamente para levar adiante os conhecimentos iniciados pelos psicólogos e críticos de literatura,
pois é na história das religiões que reside os “arquétipos” dos quais aqueles estudiosos apenas
“contavam com variantes aproximativas.” (ELIADE, [ano?], p. 21).

II

Assim chegamos ao primeiro capítulo da obra, intitulado Simbolismo do centro, o qual


encontra-se subdividido em seis partes, e que busca dar conta de algumas perguntas, tais como: O
que faz um historiador das religiões? Quais seus dilemas em campo? Qual a imagem de mundo das
sociedades arcaicas e em que medida nossa sociedade atual daquela imagem se aproxima? Quais os
significados por trás do simbolismo do Centro? O que são ritos ou mitos de ascensão? Como um
“Centro” pode ser construído? Na tentativa de responder estas questões e compreender a démarche
analítica do autor, vejamos as subseções deste capítulo uma por uma, ressaltando as suas principais
ideias.
Inicialmente, em Psicologia e história das religiões, Eliade nos conta que, a despeito do que
se possa imaginar sobre o métier dos historiadores das religiões, em verdade eles se encontram
tomados em suas especialidades e se igualam, talvez, aos amadores no tocante aos mais diversos
assuntos sobre as mitologias, as técnicas e os ritos das civilizações arcaicas. Presos a sua
especialização, muitas vezes superficialmente trabalhadas, os historiadores das religiões sentem-se
limitados, para manter a integridade científica do que fazem, a um único assunto e, com isso, lidos
apenas entre os seus pares, oferecendo ao leitor uma história objetiva das religiões.
De acordo com o autor romeno, o quadro dos estudos de história das religiões poder-se-ia
resumir na ideia de progresso das informações e de dependência desta disciplina a métodos da
historiografia e da sociologia moderna, ao invés de se pautar, primeiramente, pelos próprios “fatos
religiosos.” (ELIADE, [ano?], p. 29). Nesse sentido, Eliade cita dois nomes que contribuíram para
despertar o interesse pela história das religiões: o professor Van der Leeuw e o já citado psicanalista
Carl Jung.
Já os problemas que este quadro impõem são, para o autor, em primeiro lugar, enfrentar as
objeções dirigidas ao historicismo, visto que a história das religiões visa à objetividade, à
cientificidade, e, em segundo, responder ao desafio de que a “psicologia de profundidade” lança ao
ser mais feliz em suas observações do que até então fora a própria história das religiões. Eis por
que, para compreender estas duas dificuldades, Eliade propõe que analisemos o “simbolismo do
Centro” ou, como ainda veremos melhor mais adiante, o ritual da imortalidade. É preciso, segundo
o autor, analisar primeiro o fenômeno religioso em sua concretude, isto é, em sua manifestação “na
história e através da história”, para depois, e somente depois, sistematizar os ritos de imortalidade
ou os símbolos do Centro.
Para nosso autor, retomando Kant, os filósofos historicistas e existencialistas, o homem é um
“ser histórico, concreto, autêntico”, sendo o homem em geral uma abstração, condição que no
entanto não esgota a sua vida espiritual. Como exemplo deste fenômeno religioso condicionado pela
história, podemos ler o seguinte trecho, no qual escreve Eliade ([ano?], p. 31):
Quando o Filho de Deus encarnou e se fez Cristo, teve de falar aramaico; não podia
deixar de comportar-se como um hebreu do seu tempo — e não um como yogi, um
taoísta ou um Xamã. A sua mensagem religiosa, por universal que fosse, estava
condicionada pela história passada e contemporânea do povo hebreu.

Mas, para além das situações históricas, das condições impostas ao ser histórico, o “homem
integral” – como escreve Eliade – não é exclusivamente condicionado pela história contemporânea:
ele também é atravessado por inúmeros outros estados, como o “onírico, ou de sonho acordado, ou
de melancolia e de desprendimento, ou de beatitude estética, ou de evasão, etc.” (ELIADE, [ano?],
p. 32).
Retomando os dilemas dos historiadores das religiões, em História e arquétipos, Eliade
considera que tal historiador, mais do que apenas registrar as manifestações históricas estudadas,
deve delas tentar extrair também significados. No entanto, muitos dos mitos e símbolos que
conhecemos hoje nos chegaram indiretamente por meio de etnólogos, filósofos e psicólogos, por
meio também de determinados tipos de cultura que, após assimilá-los, selecioná-los e classificá-los,
a nós os apresenta a sua maneira, cabendo ao historiador das religiões, escreve Eliade, perguntar-se
“a que respondem estes mitos e estes símbolos para terem tido uma tal difusão?” (ELIADE, [ano?],
p. 34) [itálicos do autor].
Servindo do conceito situação-limite, situação em que o homem “toma consciência do seu
lugar no Universo”, o autor observa que a tarefa do historiador das religiões é a de esclarecer estas
situações-limite indo ao encontro da psicologia da profundidade e da filosofia. Nesse sentido,
Eliade utiliza-se de dois termos para explicar essa tarefa do historiador das religiões: o de
metapscianálise, “técnica espiritual” que nos despertaria a consciência para os símbolos e os
arquétipos arcaicos; e o de maiêutica, que traria à luz um homem novo (antropo-cosmos) que
reencontraria “um comportamento arcaico” e “tomaria […] consciência da riqueza espiritual que
implica um tal comportamento.” (ELIADE, [ano?], p. 35).
Dito de outro modo, o homem moderno despertaria, por meio deste simbolismo arcaico,
para uma “nova dimensão existencial”, pois o estudo racional da história das religiões, acredita
Eliade, demonstraria que há nos símbolos uma “lógica interna” que os ordena e sistematiza. O que,
enfim, poria também alguns problemas ao inconsciente entendido pela psicologia da profundidade,
levando-nos a cogitar num possível “transconsciente” simbólico.
Tendo em mente esta ideia de “lógica interna” do simbolismo, em A imagem do mundo, o
autor procura nos mostrar como tal lógica funcionaria em relação à imagem que sociedades arcaicas
e tradicionais têm de mundo. E mais: como tal simbolismo ainda sobrevive nas sociedades
modernas. Segundo Eliade, para estas sociedades (mesopotâmicas, chinesas, egípcias) existiria uma
polaridade entre um mundo cosmisado (da ordem, do familiar, do habitado) e o seu redor (do caos,
da morte, da noite), concepção que sobrevivera na Idade Média, por exemplo, e até mesmo nos dias
atuais, como a noção do inimigo como encarnando as “forças do mal”.
Neste sentido, as defesas mágicas arcaicas dos faraós, mágicas porque visavam impedir a
invasão das forças demoníacas, como por exemplo os labirintos, fossos e muralhas, assim como as
defesas medievas, como os muros dos feudos “ritualmente consagrados como uma defesa contra o
Demônio, a doença e a morte”, ligam-se, para o autor, de alguma maneira a essa lógica simbólica.
Entretanto, Eliade avança em sua argumentação ao nos propor que nestes microcosmos, isto
é, nestes sistemas de mundo fechado destas sociedades arcaicas e tradicionais sempre há “um lugar
sagrado por excelência”, ou melhor, um Centro, ou ainda melhor, vários Centros, espaços sagrados,
todos eles igualmente “Centros do mundo”. E aqui mais uma vez o autor se vale da polaridade entre
um espaço sagrado, hierofântico, ritualístico, mítico, real e um espaço profano, objetivo,
homogêneo, geométrico, teórico.
Mas, o mais curioso é notar como mito e realidade aparecem paradoxalmente juntos de um
lado dos dois polos. De acordo com o autor, o espaço mítico é real, pois, para tais sociedades
arcaicas, “ele [o espaço mítico] relata as manifestações da verdadeira realidade: o sagrado.”
(ELIADE, [ano?], p. 40). Para as sociedades que concebem as três regiões cósmicas (Céu, Terra e
Inferno), o centro é justamente o lugar sagrado de intersecção entre elas, como se pode observar nos
pigmeus Semang da península de Malaca – o exemplo é de Eliade – os quais acreditavam que, no
centro do mundo, abaixo de uma montanha se encontra o Inferno e, em cima dela, cresce um tronco
até o Céu (Cf. ELIADE, [ano?], p. 39).
E, com isso, chegamos ao subtópico Simbolismo do centro, aliás, título do presente capítulo,
e, por isso, talvez, o mais importante desta parte. Eliade retoma o simbolismo do Centro, as três
regiões cósmicas, Inferno, Terra e Céu, ligadas por um eixo, acrescentando mais exemplos de outras
sociedades em que tal simbologia reaparece, como as orientais e indo-europeias.
Diz-nos o autor, por exemplo, que “toda a cidade oriental se encontra no centro do mundo”
(ELIADE, [ano?], p. 41) e que se poderia compreender que as cidades, assim como os templos e
palácios, seriam “réplicas infinitamente multiplicadas” de uma imagem arcaica: “a Montanha
Cósmica, a Árvore do Mundo ou o Pilar central que sustém os níveis cósmicos”. No entanto, além
do ponto mais alto da Terra, importa também, para Eliade, a ideia de que a “Montanha Cósmica” é o
“umbigo da Terra”, isto é, o lugar de onde a criação se iniciou como textos rabínicos ou da Índia
antiga, mesopotâmicos, sírios ou judaicos atestam.
Mas a imagem mais difundida, afirma o autor, é a da “Árvore do Mundo”: “A Índia de Veda,
a China antiga, a mitologia germânica tal como as religiões ‘primitivas’ conhecem, sob formas
diferentes, esta Árvore Cósmica, cujas raízes mergulham até aos Infernos e cujos ramos tocam o
Céu.” (ELIADE, [ano?], p. 41).
Sem intencionalmente se aprofundar nisso, o que interessa para o autor é apontar que a
maioria das árvores sagradas são réplicas desta “Árvore Cósmica”, ou seja, tais árvores estariam
para aquelas religiões no “Centro do Mundo”. Eliade passa então a nos dar alguns exemplos – a
subida pelo poste ou mastro sacrificial (yûpa) veda, a escalada da árvore pelo Xamã tártaro e a
escada cerimonial do padre-rei trácio – concluindo que por trás deste simbolismo reside a ideia de
imortalidade, uma passagem mística de ascensão ao Céu.
E, uma vez que falamos em ascensão, vejamos em detalhe o Simbolismo da ascensão,
penúltimo subtópico deste capítulo. Embora considere a possibilidade de influências entre algumas
religiões a respeito do simbolismo do centro, Eliade é reticente quanto a uma teoria cosmológica,
preferindo sempre, nos parece, deter suas análises no próprio simbolismo do centro em si. É o que
podemos observar em sua análise sobre os ritos de ascensão, quando unifica a finalidade desses
ritos à subida ao Céu. Entrementes, essa ascensão, que a escada, por exemplo, simboliza, dá-se da
morte à ressurreição e se encontra do Egito antigo até à Austrália. Nesse sentido, vale citar as
palavras do próprio Eliade: “ela [a escada] representa plasticamente a ruptura de nível que torna
possível a passagem de um modo de ser a um outro; ou, colocando-nos no plano cosmológico, que
torna possível a comunicação entre Céu, Terra e Inferno.” (ELIADE, [ano?, p. 49) [itálicos do
autor].
Assim sendo, para Eliade, nos ritos e mitos de iniciação, nos ritos fúnebres e, até mesmo,
nos ritos de entronização real e sacerdotal, a escada ou a escalada possui um forte simbolismo de
que a psicanálise (nossa ciência contemporânea) também se serve, o que confirma, a seu ver, que o
simbolismo da ascensão faz parte de um “comportamento arcaico da psiquê humana” (ELIADE,
[ano?], p. 49). Prova disso, de acordo com Eliade, é o relato do romancista Julien Green em seu
diário, no qual escreve que em seus livros haveria uma presença inconsciente da imagem da escada,
presença interpretada por nosso autor como “o caminho para a realidade absoluta”, “do irreal à
realidade”.
Por fim, em Construção de um centro, Eliade considera que o centro, isto é, o espaço
sagrado, pode ser construído e sua construção é uma criação do mundo. Existem diversas
construções ritualísticas de um centro e a construção do mandala, segundo o autor, é um exemplo
dessa “centralização”, seja enquanto objeto concreto (mandala exterior), seja enquanto puramente
mental e espiritual ou corporal e fisiológico (mandalas interiorizados).
Dito isso, o autor chama a atenção para a contradição que podemos observar no simbolismo
do centro e que poderíamos resumir do seguinte modo: por um lado, tal simbolismo enfatiza a
dificuldade de se penetrar num centro; por outro lado, a ideia presente em vários ritos e mitos de
que o centro é facilmente acessível.
Essa contradição fica esclarecida, acreditamos, com a habitação humana como homóloga ao
Universo, de que nos fala Eliade aqui, já que, embora a “Árvore do Mundo” seja inacessível,
encontra-se, no entanto, em cada yurta. Essa situação contraditória, para o autor, é a mais
significativa, pois se assimila à “nostalgia do Paraíso”, ou seja, ao desejo da humanidade de se
encontrar, sempre e sem esforço, no “Centro do Mundo”, de ultrapassar a condição humana e
recuperar a condição divina. (Cf. ELIADE, [ano?], pp. 53-54)
Eliade termina o capítulo Simbolismo do centro lembrando-nos do grande mito europeu de
Parcifal pela busca do santo Graal, o qual, mesmo indiretamente, relaciona-se com o simbolismo do
centro. Segundo nosso historiador das religiões, a pergunta de Parcifal ao Rei pescador, um
pormenor na narrativa, no entanto era a questão central que anima e dá vida a todo o resto. Não
fosse essa pergunta, considera Eliade, o mundo morreria pela indiferença, concluindo que, se somos
indiferentes a questão da imortalidade hoje, então dá-se justamente como justificada a prevalência,
entre nós, da morte.

III

E assim chegamos ao último momento de nosso texto. O capítulo IV, Notas sobre o
simbolismo das conchas, de Imagens e símbolos, é subdividido também em seis movimentos
expositivos: indo das águas às conchas, das conchas à perola, passando por funções rituais, crenças,
magias, medicina e até economia. Como vimos fazendo até aqui, analisemos en passant os tópicos
deste capítulo.
Em A Lua e as águas, Eliade parte do princípio de que as ostras, as conchas marinhas, o
caracol e a pérola participam tanto da cosmologia das águas quanto do simbolismo sexual feminino,
e pertencem à “camada mais profunda do pensamento ‘primitivo’”, como, por exemplo, afirma o
autor, podemos observar nas iconografias da América pré-colombiana (Água-ostras), da China
antiga (Lua-ostras) e mesmo da antiguidade clássica (Lua-ostras).
Já em Simbolismo da fecundidade, Eliade detém sua análise à analogia das ostras, conchas
marinhas e pérolas com a vulva, à associação da concha com o órgão genital feminino. Como
escreve o autor: “Assim, usadas sobre a pele como amuleto ou ornamento, ostras, conchas marinhas
e pérolas impregnam a mulher de uma energia favorável à fecundação, ao mesmo tempo que as
protegem de forças nocivas e da má sorte.” (ELIADE, [ano?], p. 126).
Discorrendo especialmente acerca da pérola, Eliade nos revela que a função cosmológica e o
valor mágico dela é reconhecido desde os tempos védicos até à terapêutica hindu moderna: o pó das
pérolas, por exemplo, podem ter tanto qualidades afrodisíacas, quanto de defesa do medo, de
proteção contra os demônios, as doenças e a pobreza. (Cf. ELIADE, [ano?], pp. 126-127). Por sua
vez, para a medicina chinesa e a crença japonesa, de acordo com o que nos conta o autor, a pérola é
uma droga que possui propriedades “fertilizantes e ginecológicas”: ela ajuda no parto, por exemplo.
E, para os gregos, ela é “símbolo do amor e do casamento.” (ELIADE, [ano?], p. 127) como o
complexo “Afrodite-concha” o atesta. Aliás, não só para os gregos, continua a observar o autor
romeno, pois na Índia e entre os Aztecas o emblema da concha, ou do caracol, com a fecundidade
também se faz presente.
Apesar de relativamente curto, no subtópico Funções rituais das conchas, Mircea Eliade
traz à discussão dois pontos muito importantes acerca do simbolismo das conchas: a sua ligação
com as cerimônias agrárias e de iniciação. No primeiro caso, a fertilização da terra favorecida pela
influência da pérola e das conchas: o sopro num búzio, na Índia, na costa de Malabar, no Sião ou
ainda entre os Aztecas. Já no segundo caso, a relação nascimento e renascimento das conchas
bivalves, búzios e ostras com as cerimônias de iniciação nas tribos da América e da Oceania: a
decoração das entradas com conchas, as oferendas destas às águas; ou, ainda nas cerimônias de
iniciação, os colares de conchas que funcionam como símbolos de defesa e proteção contra, entre
outras coisas, a esterilidade feminina.
Todavia, O papel das conchas nas crenças funerárias, a nosso ver, é um dos subtópicos mais
importantes para a argumentação de Eliade sobre o simbolismo das conchas. O autor analisa
primeiro os rituais fúnebres de diversas sociedades arcaicas e, em seguida, discute o uso das pérolas
artificiais, destacando daí, por fim, observações valiosas sobre o motivo espiralado presente na
cerâmica chinesa.
Nosso historiador das religiões lembra que, assim como nos rituais de iniciação há um
“segundo nascimento”, ou seja, um “nascimento espiritual”, nos rituais funerários ocorre a mesma
simbologia, e as conchas marinhas e pérolas nestes ritos preparam o defunto para a vida no além,
como o jade e as pérolas nos túmulos chineses: o primeiro, o jade, preservando, acreditam eles, o
cadáver da putrefação, enquanto as pérolas, mexilhões e moluscos bivalves o preparam para o novo
nascimento. (Cf. ELIADE, [ano?], p. 132)
Nesse sentido, Eliade passa a considerar as cerimônias funerárias tanto da Índia, nas quais as
conchas assumem também importante papel, como, por exemplo, enfeitar de conchas o caminho da
casa do morto até o cemitério ou encher de pérolas a sua boca, quanto da África e de povos antigos
americanos, nas quais cerimônias se estendiam camadas de conchas no fundo do túmulo. E continua
numa profusão de exemplos, desde os ritos fúnebres do Egito pré dinástico, nos quais conchas
funcionavam como amuletos, até os depósitos de conchas encontrados em túmulos da Bósnia,
França, Alemanha e Inglaterra.
Em seguida, o autor passa a considerar a presença das pérolas artificiais (pedras, porcelanas,
vidros) nos rituais mortuários, nas cerimônias agrícolas e de sacrifício, em Bornéu e em Laos. Para
Eliade, a presença dessas pérolas artificiais é sinal de “degradação”, de “corrupção” do “sentido
metafísico” do simbolismo, cujo poder sagrado vinha das águas e ligava-se ao simbolismo
ginecológico (a forma bivalve).
No tocante à imagem, e não somente ao objeto material, das conchas, o autor analisa a
presença dos “motivos decorativos” e, dentre estes, principalmente o da espiral, o qual aparece,
quase exclusivamente, aponta nosso autor apoiando-se em outros estudiosos, nas urnas funerárias.
Segundo Eliade ([ano?], p. 139):
Este motivo de decoração [o da espiral], típico da cerâmica chinesa, tem papel
ativo no culto dos mortos. A imagem da concha ou os elementos geométricos
derivados da representação esquemática da concha, põem o defunto em
comunicação com as forças cósmicas que comandam a fertilidade, o nascimento e
a vida. Pois o que tem valor religioso é o simbolismo da concha: a imagem é por si
só eficiente no culto dos mortos, quer esteja presente através da concha, quer atue
[sim]plesmente através do motivo ornamental da espiral ou de “cowrie-pattern”.
[itálicos do autor]

Entretanto, prossegue Eliade, o motivo em espiral não é exclusivo à cerâmica chinesa, ele
aparece também nas urnas da Escandinávia, da Rússia, nas Américas e em outras regiões da Europa
e da Ásia; bem como a sua presença não se limita aos ritos funerários, aos cultos dos mortos, mas
surge em “todos os atos essenciais da vida do homem” e, por isso, a espiral possui uma enorme
“polivalência simbólica” (ELIADE, [ano?], p. 140).
Em A pérola na magia e na medicina, retoma a ideia de degradação do símbolo da pérola, de
objeto sagrado em “objeto de valor”, como vimos com as cerâmicas e seus motivos em espiral, mas
agora no campo da medicina, campo em que a pérola também teve um papel relevante nas
sociedades orientais e ocidentais. Nestas a pérola possuía o efeito de cura de diversas doenças,
sendo recomendada por médicos em casos de hemorragias até a loucura, dos males dos olhos até o
afastamento dos demônios, da epilepsia à melancolia.
De acordo com Eliade, as origens dessa presença importante da pérola na medicina
derivaram antes da religião e da magia. Os poderes de cura, por exemplo, derivam das relações
míticas das pérolas com as cabeças de serpentes e de dragões, assim como é mítico o caráter de
longevidade a elas atribuída; aliás, atribuição curiosa de um filósofo como Francis Bacon, já que era
empirista. Acerca ainda da longevidade, escreve o historiador das religiões: “A sua presença [a da
pérola] sobre o corpo do homem, como, aliás a da concha, projeta este nas próprias fontes de
energia, de fecundidade e de fertilidade universais.” (ELIADE, [ano?], p. 142).
A pérola, quer para a medicina, quer para a magia, funciona como um talismã, como uma
fonte de prosperidade para aquele que a usa como amuleto. E, além dos valores mágico-religioso e
medicinal, Eliade observa, por fim, o valor econômico que as conchas e pérolas desempenhavam,
visto que funcionavam como moedas. Tal função, no entanto, em nada diminuiu a preciosidade
delas, visto que continuaram a significar “a força”, “a vida e a fertilidade” (ELIADE, [ano?], p.
144).
E concluímos o capítulo Notas sobre o simbolismo das conchas com O mito da pérola.
Eliade retoma o mito em três versões, ou tradições: a iraniana, a cristã e a gnóstica.
A origem da pérola, no oriente, dar-se-ia pela penetração de um raio num mexilhão, embora
outros estudos apontam, na tradição iraniana, que a pérola seria o símbolo por excelência do
Salvador, e que, no caso, poderia representar tanto Jesus Cristo quanto a alma humana. Já a versão
gnóstica considera a pérola como um símbolo da queda e da salvação do homem. E, finalmente, a
versão cristã assimila a pérola ao batismo, como podemos perceber quando escreve: “tal como o
caçador de pérolas deve mergulhar nu no oceano e abrir caminho por entre os monstros marinhos,
assim também os ascetas penetram nus por entre os ‘homens deste mundo’ (Edsman, p. 198).”
(ELIADE, [ano?], p. 146).

Considerações finais

Neste estudo ensaístico, como o próprio autor nomeia sua obra, tendo em vista o recorte que
nos propusemos, podemos notar uma construção narrativa bastante coerente e instigante que se
inicia pelo ressurgimento do interesse pelo simbolismo no século XX, por psicólogos e críticos
literários, e a necessidade de uma visão da história das religiões, passa, em seguida, a discutir a
atividade de um historiador das religiões, os dilemas que enfrenta e os significados do simbolismo
do Centro, terminando com o simbolismo das conchas. Dito isso, gostaríamos de fazer alguns
apontamentos sobre certas passagens dos textos, as quais nos despertaram o interesse por sua força
imaginativa de ir mais além do que é estabelecido.
Já na primeira nota de rodapé do Prefácio, Eliade considera que é possível ver a mistura
entre imagens e mitos nos slogans do pensamento panfletário comunista – e o aproxima assim do
cristianismo. O assunto é espinhoso e realmente se desenvolvido pelo autor resultaria em outra obra.
No entanto, ficamos nos perguntando até que ponto tal aproximação é válida, sobretudo quando
compreendemos o que o autor considera como sistema mítico, já que no caso o comunismo parte,
pelo menos o de Karl Marx e não das correntes marxistas que o precederam, até onde sabemos, da
análise social e econômica e, portanto, a nosso ver, sistematicamente racional e teórica e não mítica
ou religiosa como nosso autor sugere. Em outras palavras, transpondo para os termos de Eliade,
permanecemos até o fim de nosso texto com a seguinte questão: não estaria o comunismo,
diferentemente do cristianismo, enquanto um aparato abstrato ideológico racionalmente construído
(sobretudo o materialismo histórico), ao contrário do que nos diz o autor, mais próximo do espaço
profano (objetivo, teórico) do que do espaço sagrado (mítico)?
Um outro apontamento refere-se mais à edição do livro talvez e a um anseio nosso, aliás
muito particular. Após, por exemplo, a leitura do capítulo Simbolismo do centro, ficamos curiosos
em visualizar os símbolos dos quais Eliade se refere nele. Como seria o poste ou mastro sacrificial
veda, a escada cerimonial ou mesmo a mandala, hoje secularizada, de que nos conta o autor?
Teríamos exemplares preservados? Ou ainda: como é a yurta, àquela habitação dos pastores-
criadores da Ásia central, cujo significado no texto nos pareceu tão importante, na medida em que
seria uma réplica do próprio Universo? Como não tivemos acesso a obra completa nem à
publicação original, ficamos sem saber se a obra Imagens e símbolos contém imagens e símbolos
em suas páginas. Claro que a ausência de tais figuras em nada diminui a obra, mas certamente daria
mais “realidade” a nossa compreensão à la São Tomé.
O apontamento anterior também pode ser aplicado, a nosso ver, para o simbolismo das
conchas: gostaríamos de “tocar com os olhos” alguns amuletos ou ornamentos feitos com conchas
marinhas ou pérolas, ou mesmo as cerâmicas chinesas com seus ornamentos em espiral.
Ao término de sua leitura, ficamos com a impressão de que se trata certamente de três textos
de uma obra imprescindível para a compreensão da relação das imagens e dos símbolos, ao menos
para aqueles que se dedicam de algum modo ao estudo das imagens, sejam as do passado ou as do
presente.

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