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EDITORIAL
História,
essa estranha
A disciplina de História do Brasil tem sido somente um dos maiores cartunistas do país
uma estranha protagonista de muitos dos e, como tal, uma das figuras que melhor soube
discursos ao redor do país. Estranha por- condensar a História com um olho na estrada
que é muitas vezes a partir da ausência de e outro no retrovisor.
qualquer conhecimento sobre ela, sobre seus
marcos e símbolos fundadores, que ela se faz Foi querendo refletir sobre nosso passado que
de fato presente no centro da cena. convidamos Marcelo Miranda a buscar pelos
momentos em que os quadrinhos nacionais se
É pela costumeira não-familiaridade com a preocuparam em dar conta de episódios his-
nossa constituição enquanto estado-nação tóricos do país e de que forma isso aconteceu.
e com a própria Constituição por esse estado- Foi tentando colocar vírgulas em memórias
nação formulada, que o cenário montado antes pouco problematizadas que fizemos
sobre o palco em que hoje vivemos tem uma revisão crítica de como a mais popular
sido um que arde na pele. E é por isso que revista brasileira ilustrada para crianças na
decidimos tentar de alguma forma desvelar primeira metade do século 20, O Tico-Tico,
essa protagonista. ajudou a sustentar os pilares patriarcais, ra-
cistas e misóginos pelas bandas de cá.
Estamos falando de uma edição inteiramente
pensada para refletir, a partir dos quadrinhos Foi tentando entender melhor o corpo de
e das artes gráficas brasileiras, sobre como símbolos que nos cria que investigamos a
aquilo que supostamente deixamos pra trás construção de imaginário do Sertão que os
ainda nos forma e nos leva para caminhos, quadrinhos brasileiros ajudaram a manter.
às vezes, irreversíveis. Foi com essa intenção Porque somos eternamente responsáveis
que convidamos Breno Pessoa a ter uma por aquilo que decidimos esquecer e pelo que
conversa mais profunda com Luiz Gê, tão decidimos lembrar.
Equipe
Editores
editorial
2 Plaf Plaf 3
COLABORADORES
Fotos: Divulgação
Thiago Modenesi é licenciado em História pela UFPE,
>
revistaplaf.com.br
mestre e doutor em Educação também pela UFPE. Autor
do livro Educação para Abolição: charges e histórias em
A revista Plaf é uma
quadrinhos no Segundo Reinado e organizador da coleção
iniciativa da Revista
Quadrinhos e Educação (Independente). Para a Plaf, ele
O Grito! e é editada
escreveu sobre a importância de Angelo Agostini para
no Recife (PE).
os quadrinhos brasileiros
Número 3
Outubro / Novembro /
Dezembro de 2019
Editores
Paulo Floro, Dandara
Palankof e Carol Almeida
Produção editorial
Renata Arruda Paulo Floro e
é jornalista carioca com AlexandreFigueirôa
com; Paulo Floro é jornalista, mestre em Comunicação pela UFPB e editor das revistas O Grito! e Plaf.; Marcelo Miranda é
Endereço para
jornalista e crítico de cinema mineiro com textos da Revista Cinética. É também autor de Saco de Ossos (@sacodeossos, Twitter), correspondência
um podcast sobre ficção de horror; Dandara Palankof é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB e uma das editoras da Rua Doutor José Maria,
379. Caixa Postal 6275.
Plaf. ; Alexandre Figuerôa é doutor em Cinema pela Sorbonne-Paris IV e editor-executivo da Revista O Grito!. Encruzilhada, Recife – PE
CEP 52041-970
ISSN: 25270281
4 Plaf Plaf 5
Nesta Plaf
8 SEÇÕES
Imagem: Hemeroteca Nacional / Reprodução Imagens: Reprodução
Entrevista: Luiz GÊ
Passado e presente sob a ótica
do combativo quadrinista. 17 27
27 HQPÉDIA
Cartum político
14
é coisa de mulher, sim;
RELENDO O TICO-TICO Ciça é prova disso.
Uma leitura crítica dos valores
presentes na revista que
formou gerações. 36 RESENHAS
Entre outros, lemos
8
Straight Lines, Luzes
de Niterói e Wilson.
21 AS HQS E
O IMAGINÁRIO
NORDESTINO
39 Cofre do passado,
por Aline Lemos
A memória e a construção
Quadrinhos sobre uma porção de novos caminhos.
14 36
do Brasil envolta em mítica.
43
Murro, por Jota Mendes
Certos golpes nunca
29
são esquecidos.
Histórias sobre
nossa História
21 46 Cruzamento colonial,
Registro, reflexão e a formação
por Luiz Gê
Brasil acima de tudo?
de nossa sociedade.
29 39
6 Plaf Plaf 7
ENTREVISTA
O Brasil diante
Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde editou, ao lado de Toninho Mendes
e Movimento, Luiz Geraldo Ferrari (1954-2017), a revista Circo, um
Martins, ou Luiz Gê, tem como dos títulos da Circo Editorial –
um dos temas centrais de seu empreendimento que, entre os
do Espelho
trabalho o próprio país e “desenhar anos 1984 e 1995, conseguiu o
a realidade do Brasil de uma forma feito de levar para o grande público
instigante”. Arquiteto formado o humor crítico e subversivo de
pela USP e pós-graduado no personagens como Piratas do Tietê
Royal College of Art, de Londres, o (Laerte), Rê Bordosa, Skrotinhos,
ilustrador e quadrinista se debruçou Wood & Stock (Angeli), Geraldão
P
não apenas no noticiário político – (Glauco) e Níquel Náusea
Desde a ditadura ara Luiz Gê, 68 anos, que permeia também sua produção (Fernando Gonzales).
o passado do Brasil
militar, Luiz Gê fez dos atual – como também voltou o
segue vívido no país mas, olhar para o ambiente urbano, Nas páginas das revistas da
quadrinhos e do humor paradoxalmente, a memória principalmente São Paulo, e para o Circo Editorial, Luiz Gê abordou
gráfico sua arma por um sobre períodos anteriores da nossa comportamento de seus habitantes. inquietações de um Brasil que
pais verdadeiramente história não está tão viva assim. retornava à democracia, misturou
democrático. Mas pouco Essa percepção do autor se mostra Além de investigar o Brasil em passado e presente em HQs como
acertada quando resgatamos alguns
aprendemos com a sua obra, Luiz Gê esteve ao lado Entradas e Bandeiras (Chiclete com
de seus trabalhos de décadas atrás, de outros artistas em publicações Banana nº 1), narrativa curta em
história e, enquanto sua como as centenas de charges que revolucionaram os quadrinhos que os bandeirantes do Monumento
obra pregressa continua produzidas para a Folha de São no país. Primeiro, a Balão (1972- às Bandeiras, do escultor Victor
mais atual do que nunca, Paulo nos derradeiros anos da 1975), publicação pioneira idealizada Brecheret, ganham vida nas ruas de
seu trabalho recente ditadura militar, entre 1981 e 1984, na USP, na época em que Gê cursava São Paulo, e Invasões Holandesas
muitas delas surpreendentemente
encontra farta inspiração arquitetura e Laerte fazia jornalismo. (Circo nº 4), espécie de releitura da
atuais. Parte desse material, reunido Ao longo de nove números, a revista ocupação estrangeira no Nordeste,
na conjuntura brasileira na antologia Ah, como era boa a trouxe uma dose de experimentação ambientada no Sítio Histórico de
contemporânea ditadura..., lançada no fim de 2015 gráfica, contracultura e temas Olinda e na praia de Pau Amarelo,
(pela Quadrinhos na Cia), mostra uma mais adultos em suas páginas, em Paulista. Evocar personagens
infeliz coincidência com o presente por onde desfilaram, fora a dupla, e fatos desse período da história
por BRENO PESSOA brasileiro, acredita o quadrinista: “Tem nomes como os irmãos Paulo do Brasil, por sinal, parte de uma
paralelos. Eu acho que, na verdade, a e Chico Caruso, Angeli, Xalberto crença de que pouca coisa mudou:
gente está vivendo uma ditadura”. e Maurício Moura. “o país continua uma colônia”.
8 Plaf Plaf 9
/ entrevista / Luiz Gê Luiz Gê / entrevista /
Plaf / O atual presidente Plaf / Nesse contexto de, até o “(Hoje) é mais Acaba dando mais resposta do que a
publicação no jornal e tem a vantagem
demonstra apreço pela ditadura momento, liberdade irrestrita,
militar e tem atitudes incompatíveis você considera mais fácil produzir difícil alcançar de ver o que estoura, o que tem mais
com a de regimes democráticos. atualmente do que no passado? e mobilizar as compartilhamento. Acho que isso de ver
[o retorno] quase que imediatamente é
Tendo vivido e se debruçado,
em sua obra, sobre a ditadura Era mais difícil, porque você podia ter pessoas.” uma coisa bacana, e também é muito
bom ler os comentários. Mas sempre
no Brasil, enxerga semelhanças ideias ótimas que eram censuradas e
tem os caras que chiam, que reclamam,
entre o país nos anos de chumbo isso deixava a gente chateado. E você
na época da eleição do Bolsonaro vinha
lutava diariamente na redação para
e o momento atual? um monte de agressão. É curioso porque
ir aumentando a fronteira daquilo
as charges e os quadrinhos nasceram
que poderia se falar. Mas hoje sinto
Tem paralelos. Eu acho que, no século 19, com o aparecimento dos
dificuldades no momento em que
na verdade, a gente está vivendo jornais e da liberdade de imprensa, então
estou tentando produzir e publicar um
uma ditadura. Não é um momento Plaf / A charge política mantém são filhas dos jornais nesse processo.
material de charges e a cultura está
plenamente democrático. Não o prestígio na atualidade? E, hoje, a charge rebate muito daquilo
em crise. Há uma dificuldade enorme
estamos vivendo uma democracia que é propagado pelos jornais. Ter a
das editoras, que está relacionada às
como ela deveria ser. Existe um charge nessa posição é interessante,
livrarias. O calote da Livraria Cultura Ela não tem mais o lugar que teve
controle, uma série de medidas, na ditadura. Não existia nada disso, mas também não é legal, porque preciso
(que junto com a rede Saraiva acumula
muitas delas totalmente abusivas, Facebook, internet, mas o que você ganhar dinheiro. Neste último semestre,
inconstitucionais, que têm caracteri- dívidas na casa dos milhões) nas
fazia, quando publicava na Folha, acabei não fazendo charge política. É
zado o período que a gente tá editoras, há pouco tempo, foi bastante muito mais um ato de consciência, de
devastador. As quantias que a Cultura todo mundo comentava. Havia uma
vivendo. O que está acontecendo participação (do público) bem grande, cidadania, da sua indignação como
agora é uma perseguição da devia impactaram principalmente cidadão, mas, pô, é um trabalho.
editoras pequenas, algumas tiveram de cheguei a ver gente com charge como
educação, da ciência, de tudo que cartaz em passeata. Sinto, hoje,
é racional, científico e embasado. fechar. Vejo mais dificuldade de publicar
o retorno mais frio. Plaf / Aliás, quando você começou a
Tudo passa a ser colocado em dúvida por conta desse estrangulamento
da economia do que pela questão vislumbrar os quadrinhos como uma
por um obscurantismo absurdo.
É um tipo de ditadura novo. ideológica. Por outro lado, no caso das Plaf / A possibilidade de publicar de possibilidade real de trabalho?
minhas publicações recentes na Folha, forma independente na internet não
por exemplo, elas têm sido mais duras, Já no colegial comecei a criar histórias.
É um projeto de retirar direitos contorna o problema de existirem menos
sociais, de política econômica sem mais verdadeiras. Cheguei a ficar com Na época, comprei um livro do Jaguar
receio do tom, mas, até agora, eles veículos impressos e de os jornais e fiz uma dedicatória para mim
distribuição de renda. É uma quase
uma forma de retorno à colônia, às
vivíamos uma ditadura. A impressão é
que [no passado] tinha mais artistas
“Tudo passa a [do jornal] têm publicado. terem tiragens cada vez menores? mesmo, dizendo algo como “Luiz,
que você no futuro consiga grana
características coloniais, de diferenças
sociais enormes, economia baseada
fazendo esse trabalho; existia O ser colocado em com alguma coisa assim”.
Pasquim, a imprensa alternativa. Imagens: Luiz Gê / Divulgação
na exportação da agricultura, de
indústria quase inexistente.
A gente ia conscientizando, ia vendo dúvida por um Plaf / Como foi o seu primeiro contato
a sociedade evoluir. Ao passo que,
hoje, essa divisão, essa visão fanática obscurantismo com HQs?
Plaf / E quais seriam as diferenças
entre esses dois regimes?
que existe na sociedade, que foi
martelada na cabeça das pessoas, absurdo. É um tipo Eu sou de 1951, morei em sítio e só
10 Plaf Plaf 11
/ entrevista / Luiz Gê Luiz Gê / entrevista /
12 Plaf Plaf 13
/ ensaio /
Imagens: Reprodução
O Tico-Tico
da própria linguagem em quadrinhos de artistas da data e da importância que O Tico-Tico teve
nacionais e o arcabouço afetivo e impacto que no imaginário de figuras conhecidas da elite
ela exerceu, de fato, na formação de várias intelectual brasileira. Na edição comemorativa,
gerações que vieram a ter o primeiro contato apenas dois capítulos se aprofundam em uma
com personagens clássicos infantis, tais como contextualização crítica: um deles deixando
Mickey Mouse e O Gato Félix. explícitas as estratégias de criar um conteúdo
prioritário para meninos (com algumas seções
Isso dito, o que se segue é uma análise de e histórias especiais para meninas, geralmente
como não apenas as edições dessa famosa ligadas a tarefas domésticas ou moda) e
revista, como as publicações diretamente o último, que faz justamente uma revisão
A publicação tem importância histórica herdeiras, mais o livro que foi feito em dos aspectos racistas e moralistas de vários
M
feiras desde outubro de 1905 até janeiro de igualmente racistas publicados no mesmo
uito se tem perguntado – e do outro publicações em quadrinhos dedicadas
1962; ou seja, ele viu duas guerras mundiais semanário (impossível não se espantar, por
lado, muito se tem comemorado – à formação do público infantil brasileiro.
acontecerem e, no Brasil, testemunhou o Golpe exemplo, com um texto “bobinho”, para crianças,
sobre um suposto retorno de códigos Entre essas publicações, certamente a mais
do Estado Novo, a fundação da Ação Integralista de 1930, com o nome de “A escrava fiel”, em que
morais extremamente conservadores no núcleo importante, ou aquela que durante mais
Brasileira (inspirada no fascismo italiano), a “moral da história” é que a subserviência das
familiar brasileiro. De um lado, percebe-se um tempo ajudou a fundar as bases do racismo
ambos em 1937, bem como nos anos 1950, foi pessoas negras pode ser recompensada quanto
certo ar de espanto diante da completa ausência e do machismo no seio da classe média
contemporâneo de acontecimentos como o 1º mais subserviente se for).
de pudor em enunciados da tríade tradição- branca brasileira, chama-se O Tico-Tico.
Congresso Negro do Brasil e a Lei Afonso Arinos,
família-propriedade, embalados em diferentes
que instituiu pela primeira vez o racismo como Todos esses personagens eram desenhados
roupagens e utilidades de um falso cristianismo. Mas antes que se condene este texto por uma
crime. Usando esses fatos como termômetros, com o estereótipo do “black face”, de olhos
Do outro, um respiro aliviado de finalmente análise anacrônica, ou seja, desinteressada
digamos, portanto, que a linha editorial esbugalhados e lábios gigantes, tal como o
poder emitir discursos de ódio disfarçados de em contextos históricos e culturais em que
de O Tico-Tico esteve sempre muito mais primeiro personagem negro numa HQ seriada
opiniões. Pouco, no entanto, se olha para a as obras foram originalmente publicadas, dois
alinhada moralmente aos fatos de 1937 brasileira – o menino Gibi, que fez tanto
História da formação moral de nossa sociedade, recados: é justamente por entender o contexto LONGEVIDADE A revista O
que aos eventos do começo dos anos 1950. sucesso de público (o sucesso em cima de
talvez uma das mais tradicionalmente sócio-político-cultural em que O Tico-Tico
uma estereotipia racista) a ponto de seu nome Tico-Tico foi um dos maiores êxitos
conservadoras de toda a América Latina. surgiu, e no qual se manteve periodicamente
O livro que foi feito em tributo ao seu centenário de tornar sinônimo por aqui de “histórias em editoriais da história dos quadrinhos
sendo publicado entre 1905 e 1962, que se
– e, sim, trata-se de uma edição historicamente quadrinhos”. A pontuar que é sintomático que e teve vida longa. Aqui, alguns
E nessa História, não se pode deixar de lado pode jogar uma lente sobre a naturalização
necessária – ressalta a missão moralista Benjamin, por exemplo, foi um personagem momentos distintos da publicação,
o papel também essencial das primeiras de algumas práticas da sociedade brasileira.
basilar à linha editorial da publicação que igualmente decalcado para revistas holandesas que circulou de 1905 até 1962.
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/ ensaio / Relendo O Tico-Tico / artigo /
Imagens: Reprodução
Ângelo
que rapidamente teve suas feições alteradas para que
M
ele se aproximasse mais dos cantores de soul norte- uito se discute acerca de quem
americanos, enquanto no Brasil ele permaneceu com foi o primeiro a produzir uma
o traço “black face” ao longo dos anos. história em quadrinhos. Alguns
Agostini,
defendem que foi Richard Outcault; outros,
“Construiu-se em torno de O Tico-Tico uma imagem que Rodolphe Töpffer; e ainda há aqueles que
correspondia a um conjunto de representações projetado acham possível ter sido o ítalo-brasileiro
pelas classes privilegiadas e assimilado por setores de Angelo Agostini.
classe média: a organização de uma sociedade modelar,
dirigida pelos mais aptos, competentes e criativos e
assistida em suas misérias e diferenças. Procurava-se,
desse modo, transformar a visão constrangedora de um
Brasil atrasado, subdesenvolvido, enfermo e repleto de
nosso primeiro Agostini nasceu em Vercelli, região italiana
de Piemonte, em 1843. Depois, mudou-se
para Paris, onde estudou desenho. Após
quadrinista
concluir o curso, em 1858 (aos 16 anos de
analfabetos”, escreve Zita de Paula Rosa em sua tese idade), veio para o Brasil acompanhando
de doutorado cujo título já anuncia de onde se parte: “O sua mãe, a cantora lírica Raquel Agostini.
Tico-Tico: mito da formação sadia.” Leia-se: tratava-se de Estabeleceram-se em São Paulo e, antes
uma revista infantil, tão importante quanto para as últimas de chegar à Revista Illustrada, Agostini
gerações foi e é a Turma da Mônica, que tinha um propósito publicou em vários jornais e revistas na
recreativo-pedagógico completamente alinhado com as cidade - como O Diabo Coxo e O Cabrião,
forças mais conservadoras da nação para que se pudesse que ele também editou.
blindar todas as mazelas do país.
O autor ítalo-brasileiro criticou o regime Já no Rio de Janeiro, contribui em alguns
O civismo, patriotismo, catolicismo, machismo (são várias as
personagens mulheres que se encaixam no perfil do adorno
imperialista brasileiro, teve papel importante números de Arlequim, em 1867 e segue para
Vida Fluminense em 1868. Lá, seus desenhos
bobo e ingênuo) e, naturalmente, o tom indisfarçadamente na luta abolicionista e foi um artista fundamental amadurecem e ele publica pela primeira
escravocrata de O Tico-Tico ajudaram a fundar um ambiente vez a sua obra Nhô Quim ou Impressões de
em que várias outras histórias infantis “educaram” gerações nos primórdios das HQs no Brasil (e no mundo) uma viagem à Corte, no dia 30 de janeiro
e gerações de brasileiros brancos ou socialmente de 1869. Essa é considerada por muitos
“embranquecidos” a estabelecerem pilares morais por thiago modenesi nossa primeira história em quadrinhos.
conservadores. Uma das revistas derivadas diretamente
de O Tico-Tico foi a Cirandinha, lançada em 1951, voltada
para o público feminino com seções do tipo “Coisas feias
que não fazem as meninas bonitas” e quadrinhos como Hemeroteca Nacional / Reprodução
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/ artigo / Ângelo Agostini, nosso primeiro quadrinista Ângelo Agostini, nosso primeiro quadrinista / artigo /
18 Plaf Plaf 19
/ artigo / Ângelo Agostini, nosso primeiro quadrinista / capa /
Imagem: Reprodução
O imaginário N
o mito da coesão nacional, o Nordeste tem um
espaço bem delimitado. É aquele território mágico,
cercado de sabores fortes, sol onipresente e campos
nORDESTE
abertos, de uma cultura rica, plena de misticismo e mistério.
Dentro de uma perspectiva irreal de uma identidade
do nacional conciliatória, essa idealização do Nordeste
pode soar suficiente, mas está longe da realidade e não
contempla, nem de longe, a complexidade de uma região
nos QUADRINHOS
tão diversa social e culturalmente. A própria ideia de
Nordeste é algo construído socialmente como fruto de
uma batalha por uma hegemonia geopolítica, que emerge
de uma tentativa de contrapor um sul industrializado e
moderno a um Norte mais pobre e subalterno. Seria um
Joaquim Nabuco do mundo e capturando muito da cultura, mais humilde, do cidadão do interior,
Assim como outras artes, território destinado a guardar o conjunto das memórias
do povo brasileiro, em suas páginas. tudo com muito humor e sarcasmo. coloniais (e com ela todas as suas violências e contradições),
chegou a dizer as HQs também contribuíram o que o historiador Durval Albuquerque chamou de
que a Illustrada A influência de Agostini ainda é grande
no Brasil do século 21. Uma das principais
As minúcias de nossa história têm sido
revisitadas por vários autores nacionais para inventar a ideia do território
“espaço da saudade”.
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/ capa / O imaginário do Nordeste nos quadrinhos O imaginário do Nordeste nos quadrinhos / capa /
Diversas charges
Imagem: Reprodução
mostram que o sertão foi
um dos principais assuntos Imagens: Reprodução
da imprensa no início do
século 20, como esta, da Os quadrinhos pegaram carona nessa proposta e
usaram as histórias do cangaço como uma tentativa
revista O Malho (RJ).
de encontrar um tom nacionalista para a incipiente
indústria de HQs brasileira. José Lanzelloti lançou
O pernambucano Raimundo, o cangaceiro no mesmo ano do filme de
Jô Oliveira rompe com Barreto; uma obra bem realista no traço, ainda que
um nordeste idealizado totalmente desconectada da realidade, com diversas
ao adicionar camadas imprecisões históricas que iam de roupas e armas até
de complexidade em o fato dos cangaceiros andarem a cavalo pela caatinga
(o que não acontecia). Jerônimo, heroi do sertão, escrita
seus quadrinhos,
por Moises Whiltman, que também assinava os roteiros
nos anos 1970.
de uma novela de rádio de mesmo nome, fez ainda
mais sucesso com a mesma ideia e trazia desenhos
de Edmundo Rodrigues e Flavio Colin.
22 Plaf Plaf 23
/ capa / O imaginário do Nordeste nos quadrinhos O imaginário do Nordeste nos quadrinhos / capa /
As HQs sobre o Nordeste também serviram de veículo para [Nos anos 1990] a anticapitalista e de resistência contra o
governo militar, mas seu sertão ainda é
anos 1990, mas só conseguiu ser publicada
em 2004 pela Cluq. Vieira se baseou em
um enfrentamento ao imperialismo cultural estadunidense e
seus heróis fantasiados. proposta não era aquele espaço da terra miserável, castigada
do sol, das cabeças de gado, cactos, distante
material de pesquisa iconográfica e de
indumentária para contar os primeiros
a de fazer uma ode da complexidade do território. 22 anos de Virgulino Ferreira da Silva (o
Apostando no apelo mercadológico do público infantil, Lampião). A arte do álbum é de Eugenio
Antonio Cedraz criou um série toda baseada em personagens nacionalista ou de Flavio Colin, nos anos 1990, é parte de Colonnese e a capa de Mozart Couto. A
sertanejos, a Turma do Xaxado.
adaptar clássicos, uma linha de frente de autores brasileiros
que lançam obras autorais baseadas em
revista Maturi, do Rio Grande do Norte, teve
papel importante nessa proposta de buscar
mas de explorar referências brasileiras. Ao contrário dos anos outras representações nordestinas, com
Imagens: Reprodução
1950, a proposta não era a de fazer uma ode um corpo interessante de colaboradores
as possibilidades nacionalista ou de adaptar clássicos, mas de como, entre outros, Mozart Couto. O
explorar as possibilidades do imaginário de período também foi repleto de produções
do imaginário de diversas regiões. Sua HQ Mulher Diaba no independentes, que traziam um Nordeste
Imagem: Reprodução
Os quadrinhos, cangaceiros Gringo e Capitão Corisco e com ESPAÇO DE DEBATE
misturas de referências que vão do candomblé
já nos anos 1970, às lutas políticas na região; tudo em um tom
de aventura e erotismo que aproxima a obra
Nos anos 1970 e 1980, Henfil fez muito
sucesso com seus personagens Graúna,
traziam uma do gênero western nos quadrinhos. Zeferino e Bode Orelana, que traziam o
sertão como pano de fundo para fazer crítica
desconstrução O belga Hermann também dedicou uma obra social em plena ditadura militar. Com um
do sertão, o que o ao sertão brasileiro em Caatinga, uma HQ
com um trabalho bastante detalhado e feito
traço minimalista e inovador (“anti-Disney”,
como chegou a batizar), as HQs faziam um
cinema iria explorar todo em cores, onde é possível ver paisagens
bem realistas do território sertanejo. O
panorama do Brasil usando o Nordeste como
veículo de contradições do Brasil do período.
apenas em meados quadrinista retrata os cangaceiros como
revolucionários em uma trama que explora Os personagens da série servem como sátira
dos anos 1990. a questão do latifúndio e da concentração para arquétipos presentes na sociedade
de terras. A editora Globo lançou uma brasileira do período, a exemplo da Graúna,
versão da obra no Brasil em 1998. uma ave escura típica do Nordeste que
representa uma mulher de classe média, e o
O que se constata é que os quadrinhos bode Orelana, que come livros — paródia
experimentaram, já nos anos 1970, uma de uma classe média intelectualizada,
desconstrução do imaginário do sertão que porém inerte. Já o Capitão Zeferino é um
o cinema iria explorar apenas em meados típico cangaceiro cabra-macho valente.
dos anos 1990. Henfil deixa claro seu posicionamento
24 Plaf Plaf 25
/ capa / O imaginário do Nordeste nos quadrinhos HQPÉDIA
A B C D E F G H I J K LM N O P Q R S T U V W X Y Z
Imagens: Reprodução
Ciça: humor pela liberdade
Cecília Alves Pinto driblou a censura da ditadura, o machismo
no meio editorial e foi pioneira no humor gráfico
com personagens como O Pato e Bia Sabiá
por RENATA ARRUDA
Henfil utilizava os personagens da Graúna como uma crítica mordaz à sociedade Flavio Colin conseguiu ir além dos
C
Foto: Acervo Pessoal / Divulgação
brasileira e à ditadura militar, mas suas ideias também reforçavam estereótipos do território. estereótipos do cangaço em suas HQs. iça, nome artístico de Cecília Alves Pinto, é considerada uma das
grandes pioneiras dos quadrinhos nos jornais brasileiros. Nascida
em São Paulo, atuou como jornalista até começar a publicar suas
Zé Pequeno, que tem como característica que está inserida dentro do território do Também refletindo sobre essa metrópole tiras no Jornal dos Sports, em 1967. O feito era pouco comum: na época,
marcante a preguiça; Marieta, conhecida pela sertão, e se passam em 1920. Coronéis, tão rica de histórias humanas temos os não havia mulheres publicando cartuns em veículos de imprensa no
inteligência; e Capiba, que sonha em ser um jagunços, disputas e cenas cotidianas vários zines de Rogi Silva, que baseou suas Brasil. Começou a investir no humor gráfico por puro prazer. “Sempre
cantor famoso. Há também muitos seres do sertanejas perpassam a história do temido narrativas a partir de suas vivências na soube que, pelo menos aqui no Brasil, essa carreira é muito pouco
folclore brasileiro, como o Saci, a Mula-Sem- cangaceiro Antônio Mortalma. periferia do Recife em obras como Aterro compensadora para se ganhar a vida”.
Cabeça e a Caipora. e Mergulhão (ambas de 2018).
Já Bando de Dois, com roteiro e desenhos Entre as suas influências, Ciça menciona “autores diversos, mestres
Os anos 2000 trouxeram uma retomada da de Danilo Beyruth, é um remix de imaginário O sertão, no entanto, segue como dos quadrinhos, jornalistas do Pasquim, revistas de humor europeias
inspiração do imaginário do sertão nas HQs do sertão com referências pop, como repositório importante das HQs do e mesmo americanas”. Porém, é o cotidiano que costuma inspirá-la:
brasileiras, com diversas obras, grande parte assombrações e zumbis. A influência do Nordeste. Cangaço Overdrive (2018), de “para criar, na época, eu lia os jornais de cabo a rabo, do título ao ponto
delas adaptações literárias. Destacam- faroeste spaghetti de Sergio Leone e Sergio Zé Wellington, Walter Geovani e Luiz Carlos final. Toda a inspiração vem do que acontece”. E é de um momento
se, entre outras, Estórias Gerais (2001), Solima é evidente, bem como do norte- Freitas, se vale da estética cyberpunk em particularmente turbulento no país que surge O Pato, série que
de Wellington Srbek e Flavio Colin e Bando americano Clint Eastwood. O desenho é uma HQ de ação e ficção científica que projetou Ciça nacionalmente e a transformou em um dos maiores
de dois (2010), de Danilo Beyruth, além de bastante ligado ao realismo de ação norte- mistura experimentos tecnológicos com nomes da mídia gráfica no Brasil.
Morte e Vida Severina (2010), de Miguel; americano, de Alex Toth e companhia. cangaço, ambientados no Ceará do futuro.
O Quinze (2012), de Shiko (adaptação do Também futurista, vale citar Pindorama, Publicada durante a ditadura militar, a série utilizava personagens
romance de Rachel de Queiroz); Vidas secas Bando de Dois surge no mercado brasileiro de Erick Volgo e Lehi Henri, um gibi que sempre em forma de animais para analisar criticamente a situação
(2015), de Guazzeli (adaptação do romance em um momento de transição, quando se passa em uma Recife semissubmersa política e social do país. A linguagem empregada pela cartunista fazia
de Graciliano Ramos); O Cabeleira (2008), de grande parte da produção autoral passa e que traz uma travesti cangaceira. com que seu trabalho corresse menos risco de sofrer censura. “Nos anos
Allan Alex, Leandro Assis e Hiroshi Maeda; e a ganhar destaque nas livrarias, dividindo mais duros, acredito que o fato de ‘falar’ através de pequenos animais
Grande Sertão Veredas (2016), de Guazzelli espaço com outras produções do mercado O lugar do Nordeste já foi muitas vezes me defendeu das autoridades, que talvez não se dispusessem a se
(adaptação do romance de Guimarães Rosa). editorial. Depois dela, outras obras deslocado, reconstruído, estereotipado, reconhecer como formigas, por exemplo”, reflete. E embora revele ter se
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/ HQPédia / Cecília Alves Pinto / memória /
ESQUADRINHANDO
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A
pela redação majoritariamente masculina
história com H maiúsculo também
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do semanário. Também pondera sobre as
acusações de que a publicação, uma das mais pode ser escrita em quadrinhos. Num
importantes da imprensa brasileira no período, momento da política brasileira em que
era machista. “O Pasquim tinha um olhar são questionados ou relativizados referenciais
machista, sim, mas era mais um certo olhar históricos mal resolvidos, em especial a
de superioridade, mais de condescendência ditadura civil-militar iniciada em 1964, é
do que de hostilidade. Não era uma atitude ainda mais fundamental perceber que os
de ataque, mas de um desrespeito leviano”. autores de HQs estão atentos à importância
do passado para refletir o presente – não
Alinhada ao movimento de mulheres nos apenas como forma de detectar um ciclo de
anos 1970, a cartunista criou a Bia Sabiá, equívocos, mas também para reconfigurar as
personagem concebida especialmente para formas de olhar sob novos pontos de vista.
jornais feministas como Mulherio, Brasil
Mulher e Nós Mulheres. Nas tirinhas, Ciça É difícil detectar onde o quadrinho brasileiro
problematizava o machismo presente nas começou a refletir a história do país, mas
relações entre homens e mulheres, criticando é bastante comum que autores apontem a
a invisibilidade do trabalho doméstico. De própria origem da linguagem como base de
lá pra cá, ela acredita ter havido “muitos tudo. A primeira HQ brasileira, As Aventuras
avanços, principalmente na percepção dessa de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem
invisibilidade. E do longo caminho que ainda à Côrte, de Angelo Agostini e publicada na
resta percorrer”. revista Vida Fluminense em janeiro de 1869,
seria, para pesquisadores e quadrinhistas
Premiada com o 21º Troféu HQ Mix na ouvidos pela Plaf, já uma primeira abordagem
categoria “Grande Mestre”, em 2009, e primeira histórica brasileira, por ser uma espécie
cartunista a receber espaço no Museu da de instantâneo de determinado presente
Imagem e Som em São Paulo, Ciça deixou de ali retratado pelo autor. “Me parece que o
produzir quadrinhos para se dedicar aos livros quadrinho brasileiro tem tendência maior
infantis. Aos 80 anos, a autora lamenta que a registrar o presente histórico do que o
o Brasil esteja repetindo os mesmos erros do passado, provavelmente devido a nossa
passado, mas mantém a esperança: “os tempos tradição de cartuns e charges na imprensa”,
difíceis estimulam a criatividade, aumentam a diz o pesquisador e tradutor Érico Assis.
capacidade de indignação e, em todas as áreas “Desde Agostini temos, no formato, o registro
de criação, as vozes dos artistas costumam se histórico das opiniões que circulam em cada
levantar contra a opressão. Que isso também época na política e nos costumes”.
se repita, que essas vozes sejam presentes”.
PIONEIRA Ciça atuou em diferentes veículos da imprensa, mas ficou famosa pelo NOVOS OLHARES Adaptação de
seu personagem O Pato, lançado durante a ditadura militar; a personagem Bia Sabiá Renata Arruda, jornalista carioca. É autora Os Sertões revisita o clássico com outro
foi criada para publicações feministas como Mulherio e Nós Mulheres. do blog prosaespontanea.blogspot.com.br. enfoque sobre o momento histórico
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/ memória / Esquadrinhando a história brasileira Esquadrinhando a história brasileira / memória /
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a vergonha de repensar quem somos”,
acredita Aguiar. fundamental para o resgate
Em seu premiado A Infância do Brasil de parte da história brasileira
(2017), ganhador do HQ Mix e finalista
no Jabuti, José Aguiar faz justamente secularmente invisibilizada.”
o movimento de tentar compreender
determinados aspectos da narrativa
histórica brasileira nunca antes olhados
com atenção. “Metaforicamente, acho
que estamos vivendo o fim da infância do
nosso país. Não por ele ter mais de 500
anos, mas por estarmos tropeçando em
nossas próprias pernas para tentar andar
sozinhos. Sempre estivemos sob a tutela
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de Portugal e seus credores, ou sob a tutela
dos militares, e agora que podemos escolher
nós mesmos para onde ir, estamos errando
muito para tentar seguir andando”, descreve
o autor. Em A Infância do Brasil, Aguiar, com
consultoria da historiadora Cláudia Regina
Moreira, ficcionaliza personagens infantis
que atravessam a história brasileira desde
a colonização no século XVI. Em tramas
separadas, ele aborda sexismo, abusos,
excesso de trabalho, racismo, discriminação
social e consumismo, temas variados
que ele aponta como exemplares para se
chegar ao atual estado das coisas – e
ainda distantes de acabar.
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ACIMA dominante, o que é muito diferente do uma ideia forte de narrativa e ambientação
Certas obras tem Brasil de 50 anos atrás”, compara o autor pesquisadas e pensadas. A verossimilhança
importantes momentos de Angola Janga. Com seu trabalho anterior, é muito importante na sua estética”,
históricos como pano
Cumbe (2014), também ambientado no analisa Érico Assis.
período escravocrata no Brasil, Marcelo
de fundo, a exemplo de
D’Salete venceu o Prêmio Eisner de melhor Alguns quadrinhos do país são mais
La Dansarina. publicação estrangeira nos EUA em 2018. específicos a tratar determinados momentos
ou personagens históricos, como D. João
À ESQUERDA O pendor à ficção do real nos quadrinhos se Carioca – A corte portuguesa chega ao Brasil
O Brasil ainda colônia estende a outros aspectos da historiografia (1808-1821), de Lilia Moritz Schwarcz e
brasileira, mesmo que de forma tangencial. Spacca, que narra com irreverência, o recorte
é tema de Holandeses,
Caso de obras como Bando de Dois (Danilo adiantado no título, ou Os Sertões – A luta
de André Toral.
Beyruth, 2010), que retrata o período do (2011), em que Carlos Ferreira e Rodrigo
cangaço no nordeste, ou La Dansarina (Lilo Rosa retratam a Guerra de Canudos sob
Parra e Jefferson Costa, 2015), que aborda inspiração do livro de Euclides da Cunha,
o surto de gripe espanhola na São Paulo de ou ainda Adeus, Chamigo Brasileiro – Uma
1918. O quadrinho brasileiro, portanto, fala história da guerra do Paraguai (1999), de
muito melhor da história do país quando André Toral, sobre o sangrento conflito
se deixa levar pelo misto de conhecimento ocorrido entre 1864 e 1870. Nenhum
oficial, reconfiguração de ponto de vista destes – e de vários tantos, como Beco do
e imaginação. Rosário (2015), no qual Ana Luisa Koehler
reconstitui a Porto Alegre dos anos de 1920
Nas obras de Marcello Quintanilha sob a perspectiva de uma jovem aspirante a
(Sábado dos Meus Amores, 2009; Almas jornalista – trata da história brasileira com
Públicas, 2011; Tungstênio, 2014; entre algum tipo de condescendência.
outros), o formato de crônica ou narrativas
frenéticas serve também como atualização O que importa é a subjetividade dos autores
daquele instantâneo social criado por e dos personagens, o cuidado na pesquisa
Angelo Agostini, agora com a sensibilidade e reconstrução do passado e a necessidade
dos tempos atuais. “Todas as HQs do de revisar aspectos até então apagados,
Quintanilha, mesmo as que se passam no propiciando ao leitor embarcar em viagens
presente, têm um forte elemento histórico e de imaginação e revelação.
de representação fidedigna. Seja falando do
Rio e Niterói (Luzes de Niterói, Talco de Vidro,
Fealdade de Fabiano Gorila), seja falando Marcelo Miranda é jornalista
de Salvador (Tungstênio), ele transmite e crítico de cinema.
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RESENHAS / resenhas /
a história das HQs LGBTQI+ revisitada quadrinhos é esta nova série há um desses perdedores que talvez mereça [Quadrinhos na Cia/
Por Petra Leão (roteiro) e uma atenção maior justamente porque foi, na Companhia das Letras,
Geração 12. Ao contrário da
Roberta Pares (desenhos) contínua e prolífica carreira de Clowes, mais 80 páginas, R$ 55]
TMJ, que incorporava as influ-
perdedor em seu sucesso editorial. Fala-se Tradução de Érico Assis
ências do mangá basicamente [Mangá MSP/Planet
em sua estética, esta nova sé- Manga/Panini Comics, aqui do desagradável e solitário Wilson.
rie segue todos os preceitos do 100 páginas, R$ 14,90]
por Alexandre Figueirôa documentar a rica produção de queer comics voltada O livro acompanha esse sujeito pouco simpático, de estatura mediana, vida
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/ resenhas /
abarcam as vertentes mais pesadas do gênero: do Seu humor é permeado de (auto) ironia e uma certa esca-
punk a todos os “cores” e metais possíveis, elas vice- tologia – ainda que certos chistes fossem dispensáveis
jam em territórios escuros e escondidos, sujos literal e (mesmo se tratando não só de uma visão como de uma
figuradamente, povoados por figuras um tanto quanto cena predominante e ortodoxamente masculina). Mas
singulares, a serem desbravados por poucos. Um sub- não se furta a críticas, por exemplo, às ideologias supre-
mundo. O underground. macistas das quais muitos metaleiros extremos e afins
se mostram adeptos. Não que os hipsters estejam em
E desbravá-lo é o que faz Pedro D’Apremont – como ob- maiores graças junto a D’Apremont.
servador participante, ainda mais; afinal, segundo Allan
Sieber, o quadrinista é um verdadeiro “adorador do cramu- O inusitado retratado nas histórias é um componente de
lhão”. E a partir de suas experiências, ele traz aos leitores peso na composição desse humor, mas grande parte dele Notas do
suas Notas do Underground. Trata-se de uma coletânea também se deve ao traço limpo e leve do artista; bem Underground
de histórias curtas publicadas anteriormente pela Vice, como de seu trabalho admirável com as expressões fa-
revista virtual norte-americana, entre 2017 e 2018. ciais, bastante cartunescas. No fim, fica a impressão de Pedro D’Apremont
que se aventurar pelo underground, de fato, pode ser um [Independente/Pé de
Transitando entre casos autobiográficos e outros (assim tanto quanto divertido – mas nem sempre; muito menos Cabra, 48 páginas, 2019]
esperamos) ficcionais, D’Apremont mostra como mesmo é seguro a todo tempo.
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Aline Lemos é quadrinista, ilustradora e cartunista mineira. Mestre em História pela UFMG, ela é autora de vários zines, entre eles Lado Bê e
Melindrosa (ambos Independentes), além do livro Artistas do Brasil (Miguilin). Conheça mais do trabalho dela em https://desalineada.tumblr.com/.
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Jota Mendes é quadrinista e artista visual pernambucano. É autor da HQ Caramelo Quatro (Independente).
Acesse seu portfolio em instagram.com/@_jotamendes.
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SAIDEIRA
Luiz Gê é quadrinista paulista. Entre seus livros publicados estão Avenida Paulista
e Ah, Como Era Boa A Ditadura (ambos pela Companhia das Letras).
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