Você está na página 1de 25

Plaf 1

EDITORIAL

História,
essa estranha
A disciplina de História do Brasil tem sido somente um dos maiores cartunistas do país
uma estranha protagonista de muitos dos e, como tal, uma das figuras que melhor soube
discursos ao redor do país. Estranha por- condensar a História com um olho na estrada
que é muitas vezes a partir da ausência de e outro no retrovisor.
qualquer conhecimento sobre ela, sobre seus
marcos e símbolos fundadores, que ela se faz Foi querendo refletir sobre nosso passado que
de fato presente no centro da cena. convidamos Marcelo Miranda a buscar pelos
momentos em que os quadrinhos nacionais se
É pela costumeira não-familiaridade com a preocuparam em dar conta de episódios his-
nossa constituição enquanto estado-nação tóricos do país e de que forma isso aconteceu.
e com a própria Constituição por esse estado- Foi tentando colocar vírgulas em memórias
nação formulada, que o cenário montado antes pouco problematizadas que fizemos
sobre o palco em que hoje vivemos tem uma revisão crítica de como a mais popular
sido um que arde na pele. E é por isso que revista brasileira ilustrada para crianças na
decidimos tentar de alguma forma desvelar primeira metade do século 20, O Tico-Tico,
essa protagonista. ajudou a sustentar os pilares patriarcais, ra-
cistas e misóginos pelas bandas de cá.
Estamos falando de uma edição inteiramente
pensada para refletir, a partir dos quadrinhos Foi tentando entender melhor o corpo de
e das artes gráficas brasileiras, sobre como símbolos que nos cria que investigamos a
aquilo que supostamente deixamos pra trás construção de imaginário do Sertão que os
ainda nos forma e nos leva para caminhos, quadrinhos brasileiros ajudaram a manter.
às vezes, irreversíveis. Foi com essa intenção Porque somos eternamente responsáveis
que convidamos Breno Pessoa a ter uma por aquilo que decidimos esquecer e pelo que
conversa mais profunda com Luiz Gê, tão decidimos lembrar.

Carol Almeida, Dandara Palankof e Paulo Floro

Equipe
Editores
editorial

2 Plaf Plaf 3
COLABORADORES

Fotos: Divulgação
Thiago Modenesi é licenciado em História pela UFPE,
>
revistaplaf.com.br
mestre e doutor em Educação também pela UFPE. Autor
do livro Educação para Abolição: charges e histórias em
A revista Plaf é uma
quadrinhos no Segundo Reinado e organizador da coleção
iniciativa da Revista
Quadrinhos e Educação (Independente). Para a Plaf, ele
O Grito! e é editada
escreveu sobre a importância de Angelo Agostini para
no Recife (PE).
os quadrinhos brasileiros

Número 3
Outubro / Novembro /
Dezembro de 2019

Editores
Paulo Floro, Dandara
Palankof e Carol Almeida
Produção editorial
Renata Arruda Paulo Floro e
é jornalista carioca com AlexandreFigueirôa

colaborações para diversos Projeto gráfico


Erika Simona
veículos. É uma das
Diagramação
divulgadores do desafio
Erika Simona e Igor Colares
>
#LendoMaisMulheresNegras,
Administração
que incentiva a divulgação de e contabilidade
autoras negras na web. Atualiza Daiane Dultra
seu blog Prosa Instantânea Breno Pessoa, é jornalista pernambucano com passagens
Revisão
(prosainstantanea.blogspot. por veículos como Diario de Pernambuco. Neste número, Túlio Vasconcelos
com), onde escreve sobre livros e ele entrevistou o quadrinista Luiz Gê sobre seu trabalho e Paulo Floro
quadrinhos. Aqui na Plaf, ela fez e também sobre o momento atual do Brasil.
um perfil de Ciça, uma pioneira > A Plaf tem incentivo
das tiras em quadrinhos. do Funcultura - Fundo

Foto: Carol Rossetti / Divulgação


> Pernambucano de Incentivo
à Cultura do Governo do
Estado de Pernambuco.
Jota Mendes é
quadrinista e ilustrador
pernambucano. Seu COMPRE A PLAF
loja.revistaplaf.com.br,
trabalho mais recente com entrega em todo o Brasil
é o zine Caramelo
Quatro (independente). FALE COM A GENTE
Nesta edição da Plaf, Envie seus comentários, sugestões
ele traz um trabalho e críticas para nosso e-mail:
leitores@revistaplaf.com.br.
experimental sobre Se quiser sugerir pautas, enviar
os golpes da vida. releases, propor parcerias, distribuir
nossa revista em seu ponto de
>

venda ou qualquer outro assunto


editorial envie e-mail para
contato@revistaplaf.com.br.
Foto: Leila Fugii / Divulgação
Aline Lemos, é quadrinista, Luiz Gê é cartunista e
ilustradora e cartunista mineira.
Mestre em História pela UFMG, > quadrinista paulista. Foi
um dos fundadores da revista
ANUNCIE / APOIE
A Plaf tem diversas possibilidades
de anúncio, parcerias e ações para
publicou nove fanzines, entre eles Balão (Circo Editorial), que anunciantes. Você também pode
Melindrosa e Lado Bê (ambos revelou talentos como Angeli, nos fazer uma doação para que
Laerte Coutinho e Chico Caruso. nosso projeto tenha vida longa
Independente), além do livro
e próspera. :) Fale conosco no
Artistas Brasileiras (Miguilim). É autor de Avenida Paulista e Ah contato@revistaplaf.com.br.
Nesta Plaf, Aline assina a capa Como Era Boa a Ditadura (ambos
com uma releitura da Graúna, Companhia das Letras). Neste
clássico personagem de Henfil número, Gê fala de HQ e Brasil
e traz ainda uma HQ sobre em uma entrevista e assina a
charge em nossa última página. revistaogrito.com
memória e quadrinhos.
Editor-executivo

Também colaboraram nesta edição:


Alexandre Figueirôa
Editores
Paulo Floro e
Carol Almeida é jornalista, doutoranda em Comunicação pela UFPE e uma das editoras da Plaf. É autora do blog foradequadro. Fernando de Albuquerque

com; Paulo Floro é jornalista, mestre em Comunicação pela UFPB e editor das revistas O Grito! e Plaf.; Marcelo Miranda é
Endereço para
jornalista e crítico de cinema mineiro com textos da Revista Cinética. É também autor de Saco de Ossos (@sacodeossos, Twitter), correspondência
um podcast sobre ficção de horror; Dandara Palankof é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB e uma das editoras da Rua Doutor José Maria,
379. Caixa Postal 6275.
Plaf. ; Alexandre Figuerôa é doutor em Cinema pela Sorbonne-Paris IV e editor-executivo da Revista O Grito!. Encruzilhada, Recife – PE
CEP 52041-970

ISSN: 25270281

4 Plaf Plaf 5
Nesta Plaf
8 SEÇÕES
Imagem: Hemeroteca Nacional / Reprodução Imagens: Reprodução

Entrevista: Luiz GÊ
Passado e presente sob a ótica
do combativo quadrinista. 17 27
27 HQPÉDIA
Cartum político

14
é coisa de mulher, sim;
RELENDO O TICO-TICO Ciça é prova disso.
Uma leitura crítica dos valores
presentes na revista que
formou gerações. 36 RESENHAS
Entre outros, lemos

8
Straight Lines, Luzes
de Niterói e Wilson.

17 ANGELO AGOSTINI, NOSSO


PRIMEIRO QUADRINISTA
Um dos precursores da linguagem HQS
INÉDITAS
e a crítica social de suas obras.

21 AS HQS E
O IMAGINÁRIO
NORDESTINO
39 Cofre do passado,
por Aline Lemos
A memória e a construção
Quadrinhos sobre uma porção de novos caminhos.

14 36
do Brasil envolta em mítica.

43
Murro, por Jota Mendes
Certos golpes nunca

29
são esquecidos.
Histórias sobre
nossa História
21 46 Cruzamento colonial,
Registro, reflexão e a formação
por Luiz Gê
Brasil acima de tudo?
de nossa sociedade.

29 39
6 Plaf Plaf 7
ENTREVISTA

Foto: Leila Fugii / Divulgação


Tendo passado por publicações Alguns anos depois da experiência
tão diversas quanto O Pasquim, no período da universidade, ele

O Brasil diante
Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde editou, ao lado de Toninho Mendes
e Movimento, Luiz Geraldo Ferrari (1954-2017), a revista Circo, um
Martins, ou Luiz Gê, tem como dos títulos da Circo Editorial –
um dos temas centrais de seu empreendimento que, entre os

do Espelho
trabalho o próprio país e “desenhar anos 1984 e 1995, conseguiu o
a realidade do Brasil de uma forma feito de levar para o grande público
instigante”. Arquiteto formado o humor crítico e subversivo de
pela USP e pós-graduado no personagens como Piratas do Tietê
Royal College of Art, de Londres, o (Laerte), Rê Bordosa, Skrotinhos,
ilustrador e quadrinista se debruçou Wood & Stock (Angeli), Geraldão

P
não apenas no noticiário político – (Glauco) e Níquel Náusea
Desde a ditadura ara Luiz Gê, 68 anos, que permeia também sua produção (Fernando Gonzales).
o passado do Brasil
militar, Luiz Gê fez dos atual – como também voltou o
segue vívido no país mas, olhar para o ambiente urbano, Nas páginas das revistas da
quadrinhos e do humor paradoxalmente, a memória principalmente São Paulo, e para o Circo Editorial, Luiz Gê abordou
gráfico sua arma por um sobre períodos anteriores da nossa comportamento de seus habitantes. inquietações de um Brasil que
pais verdadeiramente história não está tão viva assim. retornava à democracia, misturou
democrático. Mas pouco Essa percepção do autor se mostra Além de investigar o Brasil em passado e presente em HQs como
acertada quando resgatamos alguns
aprendemos com a sua obra, Luiz Gê esteve ao lado Entradas e Bandeiras (Chiclete com
de seus trabalhos de décadas atrás, de outros artistas em publicações Banana nº 1), narrativa curta em
história e, enquanto sua como as centenas de charges que revolucionaram os quadrinhos que os bandeirantes do Monumento
obra pregressa continua produzidas para a Folha de São no país. Primeiro, a Balão (1972- às Bandeiras, do escultor Victor
mais atual do que nunca, Paulo nos derradeiros anos da 1975), publicação pioneira idealizada Brecheret, ganham vida nas ruas de
seu trabalho recente ditadura militar, entre 1981 e 1984, na USP, na época em que Gê cursava São Paulo, e Invasões Holandesas
muitas delas surpreendentemente
encontra farta inspiração arquitetura e Laerte fazia jornalismo. (Circo nº 4), espécie de releitura da
atuais. Parte desse material, reunido Ao longo de nove números, a revista ocupação estrangeira no Nordeste,
na conjuntura brasileira na antologia Ah, como era boa a trouxe uma dose de experimentação ambientada no Sítio Histórico de
contemporânea ditadura..., lançada no fim de 2015 gráfica, contracultura e temas Olinda e na praia de Pau Amarelo,
(pela Quadrinhos na Cia), mostra uma mais adultos em suas páginas, em Paulista. Evocar personagens
infeliz coincidência com o presente por onde desfilaram, fora a dupla, e fatos desse período da história
por BRENO PESSOA brasileiro, acredita o quadrinista: “Tem nomes como os irmãos Paulo do Brasil, por sinal, parte de uma
paralelos. Eu acho que, na verdade, a e Chico Caruso, Angeli, Xalberto crença de que pouca coisa mudou:
gente está vivendo uma ditadura”. e Maurício Moura. “o país continua uma colônia”.

8 Plaf Plaf 9
/ entrevista / Luiz Gê Luiz Gê / entrevista /

Plaf / O atual presidente Plaf / Nesse contexto de, até o “(Hoje) é mais Acaba dando mais resposta do que a
publicação no jornal e tem a vantagem
demonstra apreço pela ditadura momento, liberdade irrestrita,
militar e tem atitudes incompatíveis você considera mais fácil produzir difícil alcançar de ver o que estoura, o que tem mais
com a de regimes democráticos. atualmente do que no passado? e mobilizar as compartilhamento. Acho que isso de ver
[o retorno] quase que imediatamente é
Tendo vivido e se debruçado,
em sua obra, sobre a ditadura Era mais difícil, porque você podia ter pessoas.” uma coisa bacana, e também é muito
bom ler os comentários. Mas sempre
no Brasil, enxerga semelhanças ideias ótimas que eram censuradas e
tem os caras que chiam, que reclamam,
entre o país nos anos de chumbo isso deixava a gente chateado. E você
na época da eleição do Bolsonaro vinha
lutava diariamente na redação para
e o momento atual? um monte de agressão. É curioso porque
ir aumentando a fronteira daquilo
as charges e os quadrinhos nasceram
que poderia se falar. Mas hoje sinto
Tem paralelos. Eu acho que, no século 19, com o aparecimento dos
dificuldades no momento em que
na verdade, a gente está vivendo jornais e da liberdade de imprensa, então
estou tentando produzir e publicar um
uma ditadura. Não é um momento Plaf / A charge política mantém são filhas dos jornais nesse processo.
material de charges e a cultura está
plenamente democrático. Não o prestígio na atualidade? E, hoje, a charge rebate muito daquilo
em crise. Há uma dificuldade enorme
estamos vivendo uma democracia que é propagado pelos jornais. Ter a
das editoras, que está relacionada às
como ela deveria ser. Existe um charge nessa posição é interessante,
livrarias. O calote da Livraria Cultura Ela não tem mais o lugar que teve
controle, uma série de medidas, na ditadura. Não existia nada disso, mas também não é legal, porque preciso
(que junto com a rede Saraiva acumula
muitas delas totalmente abusivas, Facebook, internet, mas o que você ganhar dinheiro. Neste último semestre,
inconstitucionais, que têm caracteri- dívidas na casa dos milhões) nas
fazia, quando publicava na Folha, acabei não fazendo charge política. É
zado o período que a gente tá editoras, há pouco tempo, foi bastante muito mais um ato de consciência, de
devastador. As quantias que a Cultura todo mundo comentava. Havia uma
vivendo. O que está acontecendo participação (do público) bem grande, cidadania, da sua indignação como
agora é uma perseguição da devia impactaram principalmente cidadão, mas, pô, é um trabalho.
editoras pequenas, algumas tiveram de cheguei a ver gente com charge como
educação, da ciência, de tudo que cartaz em passeata. Sinto, hoje,
é racional, científico e embasado. fechar. Vejo mais dificuldade de publicar
o retorno mais frio. Plaf / Aliás, quando você começou a
Tudo passa a ser colocado em dúvida por conta desse estrangulamento
da economia do que pela questão vislumbrar os quadrinhos como uma
por um obscurantismo absurdo.
É um tipo de ditadura novo. ideológica. Por outro lado, no caso das Plaf / A possibilidade de publicar de possibilidade real de trabalho?
minhas publicações recentes na Folha, forma independente na internet não
por exemplo, elas têm sido mais duras, Já no colegial comecei a criar histórias.
É um projeto de retirar direitos contorna o problema de existirem menos
sociais, de política econômica sem mais verdadeiras. Cheguei a ficar com Na época, comprei um livro do Jaguar
receio do tom, mas, até agora, eles veículos impressos e de os jornais e fiz uma dedicatória para mim
distribuição de renda. É uma quase
uma forma de retorno à colônia, às
vivíamos uma ditadura. A impressão é
que [no passado] tinha mais artistas
“Tudo passa a [do jornal] têm publicado. terem tiragens cada vez menores? mesmo, dizendo algo como “Luiz,
que você no futuro consiga grana
características coloniais, de diferenças
sociais enormes, economia baseada
fazendo esse trabalho; existia O ser colocado em com alguma coisa assim”.
Pasquim, a imprensa alternativa. Imagens: Luiz Gê / Divulgação
na exportação da agricultura, de
indústria quase inexistente.
A gente ia conscientizando, ia vendo dúvida por um Plaf / Como foi o seu primeiro contato
a sociedade evoluir. Ao passo que,
hoje, essa divisão, essa visão fanática obscurantismo com HQs?
Plaf / E quais seriam as diferenças
entre esses dois regimes?
que existe na sociedade, que foi
martelada na cabeça das pessoas, absurdo. É um tipo Eu sou de 1951, morei em sítio e só

Há uma ditadura hipócrita, escondida,


de que a esquerda é corrupta, dos
petralhas, está muito encucada na
de ditadura novo.” fui pra São Paulo (capital) em 1958.
A minha geração tinha os quadrinhos
uma ditadura que não se revela. cabeça das pessoas. É mais difícil como principal forma de expressão
Uma das questões que essa ditadura alcançar e mobilizar as pessoas. Aliás, que era consumida. A banca tinha
impôs é a liberdade de imprensa, de a própria esquerda está em crise. uma variedade grande de temas, de
não ter censura. Procuro fazer meu Na ditadura [militar] ainda existiam gêneros, não como hoje, que só se vê
trabalho que tem relação com política, [muitas] indústrias, existia uma classe super-heróis ou mangá. Tinha histórias
tendo essa força que eu não tinha operária que havia ficado madura de ficção científica, infantis, de guerra,
pra formar um partido, o contato de terror, de aventura, de cowboy e,
na ditadura (militar). Estou falando
com essa classe era mais fácil, o cara nesse meio, tinha material brasileiro, já
com mais clareza do que na ditadura,
chegava na porta da fábrica e falava que algumas editoras brasileiras con-
quando tinha que pisar em ovos,
seguiam distribuição. Mas o ápice das
manter certo controle. Mas me sinto com cinco mil [pessoas]. E agora, sem
HQs eu só fui conhecer na passagem
muito mais isolado do que quando indústria, a esquerda fala com o quê?
da infância para a adolescência.

10 Plaf Plaf 11
/ entrevista / Luiz Gê Luiz Gê / entrevista /

Imagens: Luiz Gê / Divulgação


Plaf / E esse ápice seria? “Eu gostaria muito que houvesse
Little Nemo (de Winsor McCay), é algum tipo de terremoto nesse país. ”
um dos que estão no panteão. Outros
dois que foram fundamentais na
minha formação: Tintim (de Hergé)
e Príncipe Valente (de Hal Foster).
Até hoje não tem nada comparável
com esses três casos, são todos
do começo dos quadrinhos.

Plaf / Embora muito diferentes entre


si, são obras que prezam muito pelo
apuro visual.

Eu acho que eles são completos. Eram


caras que tinham esse lado visual
extremamente desenvolvido, no caso
do Tintim era mais simplificado, mas
ainda assim, sofisticado. E também
eram ótimos contadores de história,
criavam personagens incríveis, eles
não são clichê. Os três (McCay, Hergé
e Foster) são mestres narradores, e
eles têm esse talento duplo que todo
artista deseja, o visual e a narração.

Plaf / E fora dos quadrinhos, há


alguma outra influência que ajudou
a desenvolver o lado artístico?
Plaf / Existe um grande tema, ou criação de um país mesmo, não uma
Minha geração viu muito desenho, temas, em sua obra? colônia, um país em que as pessoas
que era extremamente usado nas vivam com mais igualdade.
publicações, na publicidade, em Acho que, de 1975 a 1992, mais
revistas nacionais como Cruzeiro, ou menos, era o eixo urbano, a Plaf / E você acha que em algum
Manchete, Fatos e Fotos. Tinha cidade, desenhar nossa realidade, momento vai abordar um Brasil
também a Mecânica Popular, uma do Brasil, de São Paulo. Mostrar diferente em seus trabalhos futuros?
revista americana incrível, cheia de caminhos, abordar a realidade de
coisas inventivas, desenhos técnicos uma forma instigante, dinâmica, que Acho que a situação tá crítica, eu não
em perspectiva, notícias de conquistas não é chavão, tipo colocar boi-bumbá, sei se teria condições, eu tô velho. Eu
tecnológicas. Meu pai era um cara coqueiro. Parece que quando a gente gostaria muito que houvesse algum tipo
que tinha muita facilidade para essas vai falar alguma coisa sobre o Brasil, de terremoto nesse país. É uma época
coisas técnicas, era muito criativo, tem sempre esse clichê turístico. de um pessimismo muito grande, todas
“(…) As charges e os quadrinhos nasceram aquilo era algo muito presente na Eu estava buscando mostrar isso, as instituições pertencem à oligarquia,
minha infância. E o desenho tinha como a gente pode abordar nossa
no século 19, com o aparecimento dos muito a ver com isso. Não era um realidade de uma forma que seja
uma oligarquia que mantém o país sem-
pre como uma colônia. Não é apenas
jornais (…) E, hoje, a charge rebate muito mundo em que você ia e comprava cativante, surpreendente. E tem
a exploração da linguagem (dos
comigo, tem uma parte do Brasil muito
as coisas, você mesmo fazia. Lembro desamparada, sem saber qual é a saída.
daquilo que é propagado pelos jornais. ” de meu pai ajudando três primos quadrinhos) em si, que pega um
meus a construir um caiaque nas período ainda maior, está sempre
férias. Construíram, levaram pro comigo. E tem também a questão Breno Pessoa é jornalista pernambucano
especializado em cultura. Acompanhem seu
açude e navegaram em uma coisa de defender o Brasil politicamente,
trabalho pelo Twitter: @outrobreno.
que construíram com as próprias mãos. a democracia, o povo brasileiro, a

12 Plaf Plaf 13
/ ensaio /

Imagens: Reprodução

A violência racial e de gênero


e a intolerância religiosa foram
vendidas e consumidas como humor
e entretenimento na Tico-Tico.

Relendo Segundo, é preciso reconhecer a importância


que essa publicação teve para o desenvolvimento
vinha como um encarte no jornal O Malho,
mas alivia bastante em nome da celebração

O Tico-Tico
da própria linguagem em quadrinhos de artistas da data e da importância que O Tico-Tico teve
nacionais e o arcabouço afetivo e impacto que no imaginário de figuras conhecidas da elite
ela exerceu, de fato, na formação de várias intelectual brasileira. Na edição comemorativa,
gerações que vieram a ter o primeiro contato apenas dois capítulos se aprofundam em uma
com personagens clássicos infantis, tais como contextualização crítica: um deles deixando
Mickey Mouse e O Gato Félix. explícitas as estratégias de criar um conteúdo
prioritário para meninos (com algumas seções
Isso dito, o que se segue é uma análise de e histórias especiais para meninas, geralmente
como não apenas as edições dessa famosa ligadas a tarefas domésticas ou moda) e
revista, como as publicações diretamente o último, que faz justamente uma revisão
A publicação tem importância histórica herdeiras, mais o livro que foi feito em dos aspectos racistas e moralistas de vários

na publicação de HQs no Brasil, mas também homenagem ao centenário de O Tico-Tico,


organizado por professores do Núcleo de
personagens que atravessaram décadas
em histórias da revista.
colaborou com a naturalização do racismo, do Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da USP e
publicado em 2005, refletiram a perseverança Figuras como Benjamin, o funcionário obediente
machismo e do preconceito de classe por décadas de se blindar o status quo e suas estruturas de
poder e como essa blindagem pode nos ajudar a
de Chiquinho – o menino branco loiro decalcado
de um personagem norte-americano, Buster
entender processos históricos contemporâneos Brown – e Lamparina, a menina negra que
por carol almeida que nunca nascem no vácuo. constantemente bordejava a caricatura de
um animal selvagem, eram populares entre as
Em breves linhas, O Tico-Tico foi um suplemento crianças brancas. Esses personagens circulavam
infanto-juvenil publicado todas as quartas- ao lado de vários textos, contos e causos

M
feiras desde outubro de 1905 até janeiro de igualmente racistas publicados no mesmo
uito se tem perguntado – e do outro publicações em quadrinhos dedicadas
1962; ou seja, ele viu duas guerras mundiais semanário (impossível não se espantar, por
lado, muito se tem comemorado – à formação do público infantil brasileiro.
acontecerem e, no Brasil, testemunhou o Golpe exemplo, com um texto “bobinho”, para crianças,
sobre um suposto retorno de códigos Entre essas publicações, certamente a mais
do Estado Novo, a fundação da Ação Integralista de 1930, com o nome de “A escrava fiel”, em que
morais extremamente conservadores no núcleo importante, ou aquela que durante mais
Brasileira (inspirada no fascismo italiano), a “moral da história” é que a subserviência das
familiar brasileiro. De um lado, percebe-se um tempo ajudou a fundar as bases do racismo
ambos em 1937, bem como nos anos 1950, foi pessoas negras pode ser recompensada quanto
certo ar de espanto diante da completa ausência e do machismo no seio da classe média
contemporâneo de acontecimentos como o 1º mais subserviente se for).
de pudor em enunciados da tríade tradição- branca brasileira, chama-se O Tico-Tico.
Congresso Negro do Brasil e a Lei Afonso Arinos,
família-propriedade, embalados em diferentes
que instituiu pela primeira vez o racismo como Todos esses personagens eram desenhados
roupagens e utilidades de um falso cristianismo. Mas antes que se condene este texto por uma
crime. Usando esses fatos como termômetros, com o estereótipo do “black face”, de olhos
Do outro, um respiro aliviado de finalmente análise anacrônica, ou seja, desinteressada
digamos, portanto, que a linha editorial esbugalhados e lábios gigantes, tal como o
poder emitir discursos de ódio disfarçados de em contextos históricos e culturais em que
de O Tico-Tico esteve sempre muito mais primeiro personagem negro numa HQ seriada
opiniões. Pouco, no entanto, se olha para a as obras foram originalmente publicadas, dois
alinhada moralmente aos fatos de 1937 brasileira – o menino Gibi, que fez tanto
História da formação moral de nossa sociedade, recados: é justamente por entender o contexto LONGEVIDADE A revista O
que aos eventos do começo dos anos 1950. sucesso de público (o sucesso em cima de
talvez uma das mais tradicionalmente sócio-político-cultural em que O Tico-Tico
uma estereotipia racista) a ponto de seu nome Tico-Tico foi um dos maiores êxitos
conservadoras de toda a América Latina. surgiu, e no qual se manteve periodicamente
O livro que foi feito em tributo ao seu centenário de tornar sinônimo por aqui de “histórias em editoriais da história dos quadrinhos
sendo publicado entre 1905 e 1962, que se
– e, sim, trata-se de uma edição historicamente quadrinhos”. A pontuar que é sintomático que e teve vida longa. Aqui, alguns
E nessa História, não se pode deixar de lado pode jogar uma lente sobre a naturalização
necessária – ressalta a missão moralista Benjamin, por exemplo, foi um personagem momentos distintos da publicação,
o papel também essencial das primeiras de algumas práticas da sociedade brasileira.
basilar à linha editorial da publicação que igualmente decalcado para revistas holandesas que circulou de 1905 até 1962.

14 Plaf Plaf 15
/ ensaio / Relendo O Tico-Tico / artigo /

Imagens: Reprodução

Ângelo
que rapidamente teve suas feições alteradas para que

M
ele se aproximasse mais dos cantores de soul norte- uito se discute acerca de quem
americanos, enquanto no Brasil ele permaneceu com foi o primeiro a produzir uma
o traço “black face” ao longo dos anos. história em quadrinhos. Alguns

Agostini,
defendem que foi Richard Outcault; outros,
“Construiu-se em torno de O Tico-Tico uma imagem que Rodolphe Töpffer; e ainda há aqueles que
correspondia a um conjunto de representações projetado acham possível ter sido o ítalo-brasileiro
pelas classes privilegiadas e assimilado por setores de Angelo Agostini.
classe média: a organização de uma sociedade modelar,
dirigida pelos mais aptos, competentes e criativos e
assistida em suas misérias e diferenças. Procurava-se,
desse modo, transformar a visão constrangedora de um
Brasil atrasado, subdesenvolvido, enfermo e repleto de
nosso primeiro Agostini nasceu em Vercelli, região italiana
de Piemonte, em 1843. Depois, mudou-se
para Paris, onde estudou desenho. Após

quadrinista
concluir o curso, em 1858 (aos 16 anos de
analfabetos”, escreve Zita de Paula Rosa em sua tese idade), veio para o Brasil acompanhando
de doutorado cujo título já anuncia de onde se parte: “O sua mãe, a cantora lírica Raquel Agostini.
Tico-Tico: mito da formação sadia.” Leia-se: tratava-se de Estabeleceram-se em São Paulo e, antes
uma revista infantil, tão importante quanto para as últimas de chegar à Revista Illustrada, Agostini
gerações foi e é a Turma da Mônica, que tinha um propósito publicou em vários jornais e revistas na
recreativo-pedagógico completamente alinhado com as cidade - como O Diabo Coxo e O Cabrião,
forças mais conservadoras da nação para que se pudesse que ele também editou.
blindar todas as mazelas do país.
O autor ítalo-brasileiro criticou o regime Já no Rio de Janeiro, contribui em alguns
O civismo, patriotismo, catolicismo, machismo (são várias as
personagens mulheres que se encaixam no perfil do adorno
imperialista brasileiro, teve papel importante números de Arlequim, em 1867 e segue para
Vida Fluminense em 1868. Lá, seus desenhos
bobo e ingênuo) e, naturalmente, o tom indisfarçadamente na luta abolicionista e foi um artista fundamental amadurecem e ele publica pela primeira
escravocrata de O Tico-Tico ajudaram a fundar um ambiente vez a sua obra Nhô Quim ou Impressões de
em que várias outras histórias infantis “educaram” gerações nos primórdios das HQs no Brasil (e no mundo) uma viagem à Corte, no dia 30 de janeiro
e gerações de brasileiros brancos ou socialmente de 1869. Essa é considerada por muitos
“embranquecidos” a estabelecerem pilares morais por thiago modenesi nossa primeira história em quadrinhos.
conservadores. Uma das revistas derivadas diretamente
de O Tico-Tico foi a Cirandinha, lançada em 1951, voltada
para o público feminino com seções do tipo “Coisas feias
que não fazem as meninas bonitas” e quadrinhos como Hemeroteca Nacional / Reprodução

os da personagem Caxuxa, uma menina negra também


representada como uma criança mais boba que as outras
(em uma das suas histórias, Caxuxa é vista queimando o
cabelo de água oxigenada para ficar loira como as mocinhas
dos contos de fada e é xingada por sua mãe de “negrinha
endiabrada” e por seu irmão de “assombração”) ou da
ELENCO O civismo, o personagem Maria Fumaça, a mulher negra trabalhadora
patriotismo e o catolicismo doméstica para quem sobravam as piadas sobre ser burra.
da revista convivem com
machismo e racismo A violência racial e de gênero, a intolerância religiosa,
de diversas séries em e a preservação acima de tudo da propriedade privada
foram e ainda são vendidas e consumidas como humor e
quadrinhos publicadas ao
entretenimento. Esse é um pilar na formação da sociedade
longo dos anos. Ao lado, é
brasileira. O Tico-Tico e várias outras revistas “ingênuas”
possível ver um painel de são provas disso. Se espantar com o movimento do eterno
personagens publicados retorno dessas forças conservadoras é sintoma de um
em 1958, entre eles os desconhecimento histórico sobre como nos constituímos
negros estereotipados, enquanto nação a partir de fabulações as mais “inocentes”
como a Lamparina. possíveis. É fundamental revisitar a história das histórias
em quadrinhos no Brasil também a partir dessa perspectiva.
Caso contrário, corremos o risco de nos imobilizar para
sempre nesse estado de desavisada perplexidade diante
da nossa imagem no espelho.

Carol Almeida é doutoranda em comunicação


e editora da Plaf.

16 Plaf Plaf 17
/ artigo / Ângelo Agostini, nosso primeiro quadrinista Ângelo Agostini, nosso primeiro quadrinista / artigo /

Imagens: Hemeroteca Nacional / Reprodução

A Revista Illustrada Ainda que Agostini se junte à causa


À ESQUERDA
A Revista Illustrada
foi a revista mais não por motivos humanitários, ao menos
não em princípio, ele acaba tendo uma
trazia uma espécie

relevante nas artes participação bastante expressiva na luta


de crônica visual
dos costumes
pela libertação dos escravos e pela
gráficas no período proclamação da República. e polêmicas do
período, sempre
do Segundo Reinado. O desenho detalhado de Agostini fez com destaques na
A ironia de Agostini dele o principal artista gráfico brasileiro
da segunda metade do século 19. Chama
capa do veículo.

e suas críticas ao atenção a forma como deu destaque aos


maus tratos que sofriam os escravizados, À DIREITA
Imperador foram com imagens fortes e detalhes sobre Agostini também
utilizava sua
as condições de trabalho e as punições.
suas marcas. Agostini fazia ilustrações elaboradas, publicação para
com esmero de detalhes que tinham defender suas
alcance e grande repercussão na Corte posições e fazer
e nas províncias. A defesa do fim da comentários
escravidão marca sua obra em especial
políticos, quase
a partir de 1880. Neste momento,
a obra de Agostini atingiu parte da sempre imaginando
intelectualidade, dos jornalistas, bastidores do poder.
dos parlamentares, chegando até a
Na sequência, Agostini publica no jornal Após o sucesso, Agostini decide lançar o Zé sensibilizar parte dos proprietários
O Mosquito, de 1869 a 1875 e, após Caipora em fascículos, criando o que pode ser de terra.
sua saída, passa os meses seguintes considerada a primeira história em quadrinhos
organizando o lançamento da sua Revista com personagem fixo publicada no Brasil. No princípio, o foco da Revista Illustrada
Illustrada, que ocorre em 1876. Agostini não se deu propriamente na escravidão.
contribuiu decisivamente para a imprensa Agostini desenhava de tudo um pouco,
no Segundo Reinado do Império do Brasil.
Autor prolífico,
levando um tempo razoável para nela O mais curioso é que isso acontece depois da abolição. Pioneiro das HQs
No Rio de Janeiro, publicou e editou sua figurar a primeira ilustração que criticou o Agostini retorna à Europa justo em em um momento que
famosa publicação, que carregou o nome do período barra-pesada regime escravocrata em si. Isso só ocorreu havia passado a elogiar o Imperador e a família real. Não há como contestar que a página 8 da Revista
autor até deixar de ser publicada, mesmo em 1880, na capa da edição 222 do 5º Illustrada trazia uma ilustração que podemos
quando ele não desenhava nela Foram cerca de duas mil páginas durante ano da publicação. As charges e histórias Agostini desenhou a Revista Illustrada até a edição de número tranquilamente considerar uma charge de algum
há bastante tempo. os doze anos da publicação da Revista em quadrinhos colaboraram muito para a 510, que circulou no dia 18 de agosto de 1888. A própria acontecimento do período, geralmente vinculada a
Illustrada, em meio a um dos períodos tomada de consciência por parte da elite da revista viria a noticiar que ele seguiu para a Europa naquele figuras de destaque da corte e das políticas da época.
A Revista Illustrada foi o que de mais relevante mais conturbados da história brasileira. desumanidade no trato com os negros. mesmo ano. Sua saída do Brasil se deu por conta de um
circulou nesse período no campo das artes relacionamento com uma jovem menor de idade, Abigail de As páginas centrais, contudo, não são simples de
gráficas. A ironia de Agostini e a retratação Curiosamente, os autores do Império tinham A obra de Agostini desnuda nuances pouco Andrade, com quem teve a filha Angelina - um escândalo à classificar. A sequência de quadros com textos no rodapé
permanente do imperador como expressão a liberdade de desenhar o que quisessem, pois conhecidas e estudadas da História de época. Em Paris, Agostini vive a tragédia de perder seu segundo não é considerada por todos os pesquisadores da área
máxima da política da época foram as marcas a Revista Illustrada não tinha nenhum tipo de nosso país. Exemplo disso é o retrato da filho, que morre ainda bebê, e logo depois sua esposa. como sendo necessariamente uma história em quadrinhos.
do que o autor produziu. Joaquim Nabuco, financiamento governamental. Na verdade, escravidão de orientais, que antecedeu a
figura expressiva do movimento abolicionista seu sustento se dava com o apoio dos leitores. dos negros africanos, feita pelo autor em Após a saída de Agostini, Luiz Andrade e Pereira Neto Particularmente, me arrisco a enquadrá-las na categoria
e parlamentar no período imperial, chegou Chegou a ter o espantoso número de 4 mil 1878 no 3º ano de publicação da Revista passaram a comandar a Revista Illustrada em todos os da arte sequencial. Mesmo não tendo balões, as entendo
a dizer que a Revista Illustrada era a bíblia assinantes semanais, em uma Corte com Illustrada. Também pudemos ver o que foi seus aspectos, se esforçando para manter a semelhança como histórias em quadrinhos no seu estágio embrionário.
abolicionista dos que não sabiam ler. grande presença de analfabetos, índice até o carnaval no Brasil, as campanhas de saúde com as ilustrações de Agostini. O Menino Amarelo de Outcault também não os possuía -
então não alcançado por qualquer jornal pública da época, detalhes do cotidiano o texto estava contido no camisolão do personagem
É de se destacar a força da revista como da América do Sul. da Corte, tudo ricamente retratado no Agostini então volta ao Brasil e funda a Revista Don Quixote, principal. Ainda assim, todos consideram essa uma
instrumento na campanha abolicionista, desenho realista do autor. que seria publicada por quase dez anos (1895 - 1906). história em quadrinhos.
que se caracterizou como referencial A Revista Illustrada também não publicava Colabora também com a revista O Tico-Tico, importante
político e cultural na campanha pelo fim os chamados “pedidos” e não possuía publicação do período, onde traz de volta um personagem O que mais chama a atenção nas sequências ilustradas
da escravidão, a luta mais importante do anunciantes até 1889. Agostini denunciava, que o havia marcado: o Zé Caipora. Ainda colaborou na nas páginas centrais da Revista é que podemos entender
período para Agostini. por exemplo, o Jornal do Commércio por mARGINAL, AFINAL Gazeta de Notícias e na revista O Malho. Nela, ele publica as imagens sem sequer ler os textos, bem como poderíamos
receber favores oficiais. Crítico do Império mais 40 capítulos inéditos da saga do Zé Caipora, de 1905 cobrir as ilustrações e compreender perfeitamente o escrito
Também foi publicada na Revista Illustrada do Brasil, principalmente da figura de Dom Angelo Agostini foi posto à margem da corte a 1906, encerrando-a no 75º capítulo com um gancho abaixo destas.
a segunda grande obra sequencial do Pedro II, aderiu à causa abolicionista por do Império. Suas publicações incomodavam para uma continuação que nunca viria a acontecer. A obra
autor. Após Nhô Quim, surge o Zé Caipora, ver nela uma forma de minar mais e mais e desestabilizavam a figura do imperador, tem momentos cômicos, uma fase de aventura e outra Mas a obra de Agostini só é plena aqui justamente
em 27 de janeiro de 1883 - personagem as estruturas de sustentação da monarquia principal retrato das ideias em uso na época. de romance. O Senado Federal chegou a publicar, em 2002, quando admiramos o conjunto, a sequência como um
que figura nas páginas da Revista em 24 brasileira. Suas charges desmoralizaram a Todo o possível foi feito para desacreditar o um álbum reunindo as histórias de Nhô Quim e Zé Caipora todo, com texto e com imagem, dando materialidade a
capítulos publicados de maneira irregular. escravidão e os senhores de escravos. desenhista e mandá-lo de volta à Europa. publicadas entre 1869 e 1883 - uma leitura essencial. uma das (se não for a primeira) história em quadrinhos

18 Plaf Plaf 19
/ artigo / Ângelo Agostini, nosso primeiro quadrinista / capa /

Imagens: Hemeroteca Nacional / Reprodução

Imagem: Reprodução
O imaginário N
o mito da coesão nacional, o Nordeste tem um
espaço bem delimitado. É aquele território mágico,
cercado de sabores fortes, sol onipresente e campos

nORDESTE
abertos, de uma cultura rica, plena de misticismo e mistério.
Dentro de uma perspectiva irreal de uma identidade
do nacional conciliatória, essa idealização do Nordeste
pode soar suficiente, mas está longe da realidade e não
contempla, nem de longe, a complexidade de uma região

nos QUADRINHOS
tão diversa social e culturalmente. A própria ideia de
Nordeste é algo construído socialmente como fruto de
uma batalha por uma hegemonia geopolítica, que emerge
de uma tentativa de contrapor um sul industrializado e
moderno a um Norte mais pobre e subalterno. Seria um
Joaquim Nabuco do mundo e capturando muito da cultura, mais humilde, do cidadão do interior,
Assim como outras artes, território destinado a guardar o conjunto das memórias
do povo brasileiro, em suas páginas. tudo com muito humor e sarcasmo. coloniais (e com ela todas as suas violências e contradições),
chegou a dizer as HQs também contribuíram o que o historiador Durval Albuquerque chamou de
que a Illustrada A influência de Agostini ainda é grande
no Brasil do século 21. Uma das principais
As minúcias de nossa história têm sido
revisitadas por vários autores nacionais para inventar a ideia do território
“espaço da saudade”.

era a “bíblia premiações de HQs do Brasil leva o seu nome,


o Troféu Angelo Agostini da Associação de
nos últimos anos. São herdeiros diretos
da tradição que busca compreeder quem como parte de um imaginário místico
Por outro lado, ainda que nosso olhar se liberte desse
verniz condescendente e imaturo, é impossível ignorar
abolicionista dos Quadrinhistas e Caricaturistas. Mas não é e como vive o brasileiro, quais as suas
e tradicional, o que leva a um debate todas as tradições e riquezas culturais que se apropriam
só: há pesquisadores que consideram os contradições, angústias e características - algo do imaginário do Nordeste. Desde o início do século 20,
que não sabiam ler”. desenhos publicados por Agostini para O que podemos ler hoje nas HQs de Flávio Colin, complexo sobre identidade nacional, diversas obras de arte beberam dessas imagens e, com
Cabrião como a primeira charge produzida Marcelo D’ Salete, José Aguiar, mas também abordagens bem diversas, reforçaram ou desconstruíram
no Brasil. A partir desse material, se deram as nas sátiras do cotidiano feitas por Laerte, relações de poder e preconceitos estereótipos da região. O que é pouco debatido nos
bases para o conjunto das charges do século Angeli e Glauco nos tempos da Chiclete com estudos sobre os processos históricos e midiáticos do
20 e 21, que são veiculadas em praticamente Banana. Tudo tem um toque de Agostini. desenvolvimento do Nordeste imagético é a contribuição
todos os grandes jornais do país. por PAULO FLORO das histórias em quadrinhos. Desde as primeiras charges de
Angelo Agostini, as artes gráficas comunicam experiências
Ali está o toque do deboche, ora sútil, ora Thiago Modenesi é Licenciado em História cotidianas que ajudaram a formar essas representações
escrachado, das autoridades constituídas, pela UFPE, com Especialização em Ensino nordestinas na cabeça do brasileiro. E se hoje falamos da
do poder e da política brasileira - tradição de História pela UFRPE, mestre e doutor urgência de uma nova visualidade para o Nordeste, para que
inaugurada ainda no Império na crítica ao em Educação também pela UFPE. Autor se rompa com esses discursos bem demarcados do “povo
rei e sua corte, seguida na República pelos do livro Educação para Abolição: charges nordestino”, são também os quadrinhos que podem trazer
mais variados chargistas. Também está e histórias em quadrinhos no Segundo novas referências nesse debate — o que vemos em novas
no Zé Caipora e em Nhô Quim o retrato do Reinado e organizador da coleção obras como Cangaço Overdrive, Bando de Dois e Aterro.
cotidiano do brasileiro, em particular do Quadrinhos e Educação.

20 Plaf Plaf 21
/ capa / O imaginário do Nordeste nos quadrinhos O imaginário do Nordeste nos quadrinhos / capa /

Diversas charges

Imagem: Reprodução
mostram que o sertão foi
um dos principais assuntos Imagens: Reprodução
da imprensa no início do
século 20, como esta, da Os quadrinhos pegaram carona nessa proposta e
usaram as histórias do cangaço como uma tentativa
revista O Malho (RJ).
de encontrar um tom nacionalista para a incipiente
indústria de HQs brasileira. José Lanzelloti lançou
O pernambucano Raimundo, o cangaceiro no mesmo ano do filme de
Jô Oliveira rompe com Barreto; uma obra bem realista no traço, ainda que
um nordeste idealizado totalmente desconectada da realidade, com diversas
ao adicionar camadas imprecisões históricas que iam de roupas e armas até
de complexidade em o fato dos cangaceiros andarem a cavalo pela caatinga
(o que não acontecia). Jerônimo, heroi do sertão, escrita
seus quadrinhos,
por Moises Whiltman, que também assinava os roteiros
nos anos 1970.
de uma novela de rádio de mesmo nome, fez ainda
mais sucesso com a mesma ideia e trazia desenhos
de Edmundo Rodrigues e Flavio Colin.

Juvêncio, o justiceiro do sertão (1957), criado pelo


jornalista Reinaldo Santos, foi outro personagem que
surgiu no hibridismo do sertão com as histórias de
faroeste. Baseado em uma famosa radionovela do
período, o gibi do herói foi lançado pela Editora Prelúdio
e teve entre seus roteiristas nomes como Gedeone
Malagola, Helena Fonseca, R. F. Lucchetti e Fred Jorge.
Entre os desenhistas estavam Sérgio Lima, Rodolfo
Zalla, Eugênio Colonnese e Edmundo Rodrigues. Vale
ainda citar Cangaceiros, de André LeBlanc, que saiu na
Os primeiros quadrinhos publicados no Brasil já se mítico que desafiava até mesmo o governador Edição Maravilhosa, em 1954; a obra que adaptava o
apoiavam numa lógica que reproduzia essa ideia de Pernambuco, Dantas Barreto, diversas vezes clássico de mesmo nome de José Lins do Rêgo.
do homem do campo subalterno e bruto. Um dos pressionado e ridicularizado. Outros temas que
pioneiros das HQs no Brasil, Angelo Agostini, usava entravam no bojo dessas charges eram a seca,
esse imaginário para fazer crítica social com seu a mortalidade, as migrações e, mais tarde, as
personagem Nhô Quim, de 1870 — um caipira que andanças de Lampião e seu bando.
Regionalismo
tenta se introduzir na metrópole, um pária deslocado também casa com realismo
de uma sociedade que se orgulhava de sua recente Um dos primeiros registros de uma história em quadrinhos
modernização. A presença do Nordeste (e sobretudo completa surge em 1938, Vida de Lampeão, do O pernambucano Jô Oliveira sempre usou o imaginário
do sertão) nos quadrinhos brasileiros é, portanto, pernambucano Euclides Santos, publicadas entre agosto do Nordeste como motor criativo de suas histórias. Entre
quase tão antiga quanto na literatura. Mas trata-se e dezembro de 1938 na Noite Illustrada (suplemento do os anos 1960 e 1970, ele iniciou uma rica produção de
de mídia escassa em termos de análises bibliográficas, jornal carioca A Noite). A biografia de Virgulino Ferreira quadrinhos e ilustrações que ia de encontro às produções
ao contrário da tradição da crítica literária brasileira. dos Santos é apresentada desde a infância, passando simplistas sobre a região (tanto nos quadrinhos quanto Cangaço Overdrive, de Zé Wellington, Walter
Mesmo o capital intelectual da crítica de arte, que formou pela vida adulta, quando torna-se um cangaceiro famoso em outras artes). Seu estilo se utiliza da estética do Geovani e Luiz Carlos Freitas atualiza a estética do
paineis diversos sobre artes visuais, cinema, teatro, em todo o Brasil, até sua morte na Grota de Angicos, em cordel e de diversas referências nordestinas, em uma imaginário nordestino para uma proposta cyberpunk
fotografia, etc, ignorou — deliberadamente ou não — o Poço Redondo, Sergipe. O autor decidiu dividir a obra narrativa que encontra diálogo com os trabalhos de
meio das histórias em quadrinhos. Parte disso deve-se em 20 capítulos e consegue, ainda que timidamente, Ariano Suassuna e o movimento armorial, sobretudo
à disputa ideológica na academia, que considerou tentar entender a figura complexa que foi Lampião. O no amálgama de mitos europeus à cultura popular —
por muito tempo as HQs como um produto de massa cangaço como um todo teve sua narrativa dominada como a cavalgada, caboclinho e bumba-meu-boi.
“inferior”, conferindo a ela uma posição subalterna pela mídia sulista, que colocava seus membros dentro
dentro de uma perspectiva intelectual e acadêmica. de uma espécie de “banditismo social” — guerreiros que Seu trabalho é baseado em pesquisas e, por isso,
pareciam surgir como produtos de uma terra sem lei, parte desse desejo de compreensão ao mesmo tempo
Foi o cangaço o principal repositório do imaginário
sertanejo na imprensa brasileira, como atestam
ainda que diversos autores já desconstruíssem essa
ideia pelo menos desde os anos 1940.
em que evoca imagens facilmente reconhecíveis do
Nordeste. A Guerra do Reino Divino saiu primeiro
As HQs, com sua linguagem
as charges em revistas ilustradas como O Malho e na Itália, em 1975, assim como L’Uomo di Canudos
(1979), ainda inédita por aqui.
tão particular, adiciona novas
Fon-Fon, entre 1907 e 1935. Uma charge de 1907 O cinema se apoiou muito nesse cangaço romantizado
mostrava o assalto do cangaceiro Antonio Silvino e ainda fez a lambança conceitual de unir o faroeste camadas de significado sobre
A presença de Oliveira no exterior, atuando em revistas
à Mesa de Rendas (instituição relacionada ao Fisco
da época), em Barra de São Miguel (AL), cujo saque
norte-americano com os cangaceiros. O maior hit desse
bangue-bangue sertanejo talvez seja O Cangaceiro, como Corto Maltese, ajudou a levar o imaginário do o imaginário nordestino.
deixou os funcionários nus. Silvino apareceria como de Lima Barreto, de 1953, mas diversas outras sertão para o mercado de quadrinhos internacional.
um dos principais personagens das charges, sendo obras surgem pelo menos até os anos 1970, o que Em 1981, Hugo Pratt publicou L’uomo del sertao, uma
constantemente romantizado como um bandoleiro fez pesquisadores cunharem o termo “nordestern”. trama passada no Nordeste brasileiro, estrelada pelos

22 Plaf Plaf 23
/ capa / O imaginário do Nordeste nos quadrinhos O imaginário do Nordeste nos quadrinhos / capa /

As HQs sobre o Nordeste também serviram de veículo para [Nos anos 1990] a anticapitalista e de resistência contra o
governo militar, mas seu sertão ainda é
anos 1990, mas só conseguiu ser publicada
em 2004 pela Cluq. Vieira se baseou em
um enfrentamento ao imperialismo cultural estadunidense e
seus heróis fantasiados. proposta não era aquele espaço da terra miserável, castigada
do sol, das cabeças de gado, cactos, distante
material de pesquisa iconográfica e de
indumentária para contar os primeiros
a de fazer uma ode da complexidade do território. 22 anos de Virgulino Ferreira da Silva (o
Apostando no apelo mercadológico do público infantil, Lampião). A arte do álbum é de Eugenio
Antonio Cedraz criou um série toda baseada em personagens nacionalista ou de Flavio Colin, nos anos 1990, é parte de Colonnese e a capa de Mozart Couto. A
sertanejos, a Turma do Xaxado.
adaptar clássicos, uma linha de frente de autores brasileiros
que lançam obras autorais baseadas em
revista Maturi, do Rio Grande do Norte, teve
papel importante nessa proposta de buscar
mas de explorar referências brasileiras. Ao contrário dos anos outras representações nordestinas, com

Imagens: Reprodução
1950, a proposta não era a de fazer uma ode um corpo interessante de colaboradores
as possibilidades nacionalista ou de adaptar clássicos, mas de como, entre outros, Mozart Couto. O
explorar as possibilidades do imaginário de período também foi repleto de produções
do imaginário de diversas regiões. Sua HQ Mulher Diaba no independentes, que traziam um Nordeste

diversas regiões. rastro de Lampião, escrita por Ataíde Braz,


é parte dessa premissa. Na trama, uma
mais realista; porém, grande parte das HQs
tinham um didatismo muito marcante, com
mulher atacada pelo bando de cangaceiros histórias engessadas, sem muito ritmo.
de Lampião faz um pacto demoníaco para se
vingar dos seus agressores. A obra saiu pela Ainda nos anos 1990, o quadrinista baiano
editora Sampa e se destaca pelo desenho Antonio Cedraz fez sucesso com sua série de
de Colin, que traz bastante influência de quadrinhos infantis Turma do Xaxado. A obra
xilogravura, cordel, mas também dos traços buscava referências em diversos elementos
do quadrinho europeu. do imaginário sertanejo, sobretudo as peças
O nordestern (mistura de de couro e a paisagem da caatinga. Na trama,
western com estética sertaneja), Wilson Vieira foi outro autor importante a o menino Xaxado é neto de um cangaceiro
comum no cinema, aparece em trabalhar o tema. Sua obra Cangaceiros - que fez parte do bando de Lampião. Ele é
HQs como Bando de Dois, homens de couro foi produzida ainda nos acompanhado nas histórias pelos amigos
de Danilo Beyruth.

Imagem: Reprodução
Os quadrinhos, cangaceiros Gringo e Capitão Corisco e com ESPAÇO DE DEBATE
misturas de referências que vão do candomblé
já nos anos 1970, às lutas políticas na região; tudo em um tom
de aventura e erotismo que aproxima a obra
Nos anos 1970 e 1980, Henfil fez muito
sucesso com seus personagens Graúna,
traziam uma do gênero western nos quadrinhos. Zeferino e Bode Orelana, que traziam o
sertão como pano de fundo para fazer crítica
desconstrução O belga Hermann também dedicou uma obra social em plena ditadura militar. Com um
do sertão, o que o ao sertão brasileiro em Caatinga, uma HQ
com um trabalho bastante detalhado e feito
traço minimalista e inovador (“anti-Disney”,
como chegou a batizar), as HQs faziam um
cinema iria explorar todo em cores, onde é possível ver paisagens
bem realistas do território sertanejo. O
panorama do Brasil usando o Nordeste como
veículo de contradições do Brasil do período.
apenas em meados quadrinista retrata os cangaceiros como
revolucionários em uma trama que explora Os personagens da série servem como sátira
dos anos 1990. a questão do latifúndio e da concentração para arquétipos presentes na sociedade
de terras. A editora Globo lançou uma brasileira do período, a exemplo da Graúna,
versão da obra no Brasil em 1998. uma ave escura típica do Nordeste que
representa uma mulher de classe média, e o
O que se constata é que os quadrinhos bode Orelana, que come livros — paródia
experimentaram, já nos anos 1970, uma de uma classe média intelectualizada,
desconstrução do imaginário do sertão que porém inerte. Já o Capitão Zeferino é um
o cinema iria explorar apenas em meados típico cangaceiro cabra-macho valente.
dos anos 1990. Henfil deixa claro seu posicionamento

24 Plaf Plaf 25
/ capa / O imaginário do Nordeste nos quadrinhos HQPÉDIA

A B C D E F G H I J K LM N O P Q R S T U V W X Y Z

Imagens: Reprodução
Ciça: humor pela liberdade
Cecília Alves Pinto driblou a censura da ditadura, o machismo
no meio editorial e foi pioneira no humor gráfico
com personagens como O Pato e Bia Sabiá
por RENATA ARRUDA

Henfil utilizava os personagens da Graúna como uma crítica mordaz à sociedade Flavio Colin conseguiu ir além dos

C
Foto: Acervo Pessoal / Divulgação
brasileira e à ditadura militar, mas suas ideias também reforçavam estereótipos do território. estereótipos do cangaço em suas HQs. iça, nome artístico de Cecília Alves Pinto, é considerada uma das
grandes pioneiras dos quadrinhos nos jornais brasileiros. Nascida
em São Paulo, atuou como jornalista até começar a publicar suas
Zé Pequeno, que tem como característica que está inserida dentro do território do Também refletindo sobre essa metrópole tiras no Jornal dos Sports, em 1967. O feito era pouco comum: na época,
marcante a preguiça; Marieta, conhecida pela sertão, e se passam em 1920. Coronéis, tão rica de histórias humanas temos os não havia mulheres publicando cartuns em veículos de imprensa no
inteligência; e Capiba, que sonha em ser um jagunços, disputas e cenas cotidianas vários zines de Rogi Silva, que baseou suas Brasil. Começou a investir no humor gráfico por puro prazer. “Sempre
cantor famoso. Há também muitos seres do sertanejas perpassam a história do temido narrativas a partir de suas vivências na soube que, pelo menos aqui no Brasil, essa carreira é muito pouco
folclore brasileiro, como o Saci, a Mula-Sem- cangaceiro Antônio Mortalma. periferia do Recife em obras como Aterro compensadora para se ganhar a vida”.
Cabeça e a Caipora. e Mergulhão (ambas de 2018).
Já Bando de Dois, com roteiro e desenhos Entre as suas influências, Ciça menciona “autores diversos, mestres
Os anos 2000 trouxeram uma retomada da de Danilo Beyruth, é um remix de imaginário O sertão, no entanto, segue como dos quadrinhos, jornalistas do Pasquim, revistas de humor europeias
inspiração do imaginário do sertão nas HQs do sertão com referências pop, como repositório importante das HQs do e mesmo americanas”. Porém, é o cotidiano que costuma inspirá-la:
brasileiras, com diversas obras, grande parte assombrações e zumbis. A influência do Nordeste. Cangaço Overdrive (2018), de “para criar, na época, eu lia os jornais de cabo a rabo, do título ao ponto
delas adaptações literárias. Destacam- faroeste spaghetti de Sergio Leone e Sergio Zé Wellington, Walter Geovani e Luiz Carlos final. Toda a inspiração vem do que acontece”. E é de um momento
se, entre outras, Estórias Gerais (2001), Solima é evidente, bem como do norte- Freitas, se vale da estética cyberpunk em particularmente turbulento no país que surge O Pato, série que
de Wellington Srbek e Flavio Colin e Bando americano Clint Eastwood. O desenho é uma HQ de ação e ficção científica que projetou Ciça nacionalmente e a transformou em um dos maiores
de dois (2010), de Danilo Beyruth, além de bastante ligado ao realismo de ação norte- mistura experimentos tecnológicos com nomes da mídia gráfica no Brasil.
Morte e Vida Severina (2010), de Miguel; americano, de Alex Toth e companhia. cangaço, ambientados no Ceará do futuro.
O Quinze (2012), de Shiko (adaptação do Também futurista, vale citar Pindorama, Publicada durante a ditadura militar, a série utilizava personagens
romance de Rachel de Queiroz); Vidas secas Bando de Dois surge no mercado brasileiro de Erick Volgo e Lehi Henri, um gibi que sempre em forma de animais para analisar criticamente a situação
(2015), de Guazzeli (adaptação do romance em um momento de transição, quando se passa em uma Recife semissubmersa política e social do país. A linguagem empregada pela cartunista fazia
de Graciliano Ramos); O Cabeleira (2008), de grande parte da produção autoral passa e que traz uma travesti cangaceira. com que seu trabalho corresse menos risco de sofrer censura. “Nos anos
Allan Alex, Leandro Assis e Hiroshi Maeda; e a ganhar destaque nas livrarias, dividindo mais duros, acredito que o fato de ‘falar’ através de pequenos animais
Grande Sertão Veredas (2016), de Guazzelli espaço com outras produções do mercado O lugar do Nordeste já foi muitas vezes me defendeu das autoridades, que talvez não se dispusessem a se
(adaptação do romance de Guimarães Rosa). editorial. Depois dela, outras obras deslocado, reconstruído, estereotipado, reconhecer como formigas, por exemplo”, reflete. E embora revele ter se

Estórias Gerais talvez seja a mais emblemática


começaram a chegar, tendo como proposta
trabalhar aspectos do Nordeste.
celebrado, criticado, ignorado, valorizado.
E as HQs, com sua linguagem própria,
envolvido com política institucional, ela afirma que nunca chegou a ter
problemas com as autoridades: “meu nome constou em listas de nomes Ficha
HQ a carregar essa proposta de deslocar o contribuíram desde sempre para esse debate. ‘censuráveis’ ou ‘de interesse’, mas ficou nisso”.
debate sobre o espaço nordestino e seus Tô Miró (2012), organizada por Raoni Assis, Ler essas obras, por tanto tempo ignoradas
afetos. Srbek e Colin pensaram uma obra parte da obra do poeta pernambucano Miró dos estudos sobre a cultura brasileira, Ao analisar o período, Ciça diz que o momento que o Brasil passava
lhe amadureceu enquanto artista. “Me fez evoluir de comentários Nome: Cecília Alves Pinto
que desse conta da complexidade social do da Muribeca para dar conta da complexidade permite reconhecer novas camadas de
comportamentais e humor simples para as críticas à situação política Natural de São Paulo, SP.
sertão, com sua relação cheia de nuances do Recife e da relação das pessoas com significado nesse intrincado jogo de relações
entre governo, igreja e sociedade. A história a metrópole. Christiano Mascaro, um dos de poder e construção de imaginários. que transformou o país durante os vinte anos de autoritarismo”, diz. Carreira: 1967 - Atualmente
“Uma ditadura é sempre uma tragédia, mas tem muito de ridículo.
é dividida em seis capítulos, que trabalham autores mais conhecidos da revista Ragú, Principais trabalhos: Pagando o
com diversos temas relativos ao sertão, também registrou essas contradições da E o humor é uma das armas com que se pode lutar pela liberdade, assim
como todas as outras formas de arte”. Driblando a censura, as tiras de Pato (L&PM), Dois Meninos na
com destaque para o cangaço. As HQs paisagem urbana com seus meninos de rua Paulo Floro é mestre em comunicação
são situadas na fictícia cidade de Buritizal, gigantes, uma história que ainda ressoa e pesquisador de quadrinhos. O Pato foram publicadas na Folha de S. Paulo entre os anos 1970 e 1980 Chuva (Melhoramentos)
localizada no norte de Minas Gerais, região poderosa e que saiu na Ragu 6 (2004). É editor da Plaf e da Revista O Grito! e, posteriormente, reunidas em duas coletâneas: a primeira em 1986 e
outra lançada em 2006 com o título de Pagando o Pato (L&PM Editora).

26 Plaf Plaf 27
/ HQPédia / Cecília Alves Pinto / memória /

ESQUADRINHANDO
Imagens: Reprodução

“os tempos difíceis


estimulam a criatividade,
aumentam a capacidade
de indignação”.
a história brasileira
Autores de HQs estão atentos à importância
do passado para refletir o presente
Além da Folha de S. Paulo, Ciça colaborou
com diversos veículos de imprensa, como
o aclamado O Pasquim, fundado por seu por MARCELO MIRANDA
marido, o artista plástico Zélio Alves Pinto.
A autora conta jamais ter sofrido preconceito
em relação ao seu trabalho, mas admite que
era vista “quase [como] uma curiosidade”

A
pela redação majoritariamente masculina
história com H maiúsculo também

Imagem: Reprodução
do semanário. Também pondera sobre as
acusações de que a publicação, uma das mais pode ser escrita em quadrinhos. Num
importantes da imprensa brasileira no período, momento da política brasileira em que
era machista. “O Pasquim tinha um olhar são questionados ou relativizados referenciais
machista, sim, mas era mais um certo olhar históricos mal resolvidos, em especial a
de superioridade, mais de condescendência ditadura civil-militar iniciada em 1964, é
do que de hostilidade. Não era uma atitude ainda mais fundamental perceber que os
de ataque, mas de um desrespeito leviano”. autores de HQs estão atentos à importância
do passado para refletir o presente – não
Alinhada ao movimento de mulheres nos apenas como forma de detectar um ciclo de
anos 1970, a cartunista criou a Bia Sabiá, equívocos, mas também para reconfigurar as
personagem concebida especialmente para formas de olhar sob novos pontos de vista.
jornais feministas como Mulherio, Brasil
Mulher e Nós Mulheres. Nas tirinhas, Ciça É difícil detectar onde o quadrinho brasileiro
problematizava o machismo presente nas começou a refletir a história do país, mas
relações entre homens e mulheres, criticando é bastante comum que autores apontem a
a invisibilidade do trabalho doméstico. De própria origem da linguagem como base de
lá pra cá, ela acredita ter havido “muitos tudo. A primeira HQ brasileira, As Aventuras
avanços, principalmente na percepção dessa de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem
invisibilidade. E do longo caminho que ainda à Côrte, de Angelo Agostini e publicada na
resta percorrer”. revista Vida Fluminense em janeiro de 1869,
seria, para pesquisadores e quadrinhistas
Premiada com o 21º Troféu HQ Mix na ouvidos pela Plaf, já uma primeira abordagem
categoria “Grande Mestre”, em 2009, e primeira histórica brasileira, por ser uma espécie
cartunista a receber espaço no Museu da de instantâneo de determinado presente
Imagem e Som em São Paulo, Ciça deixou de ali retratado pelo autor. “Me parece que o
produzir quadrinhos para se dedicar aos livros quadrinho brasileiro tem tendência maior
infantis. Aos 80 anos, a autora lamenta que a registrar o presente histórico do que o
o Brasil esteja repetindo os mesmos erros do passado, provavelmente devido a nossa
passado, mas mantém a esperança: “os tempos tradição de cartuns e charges na imprensa”,
difíceis estimulam a criatividade, aumentam a diz o pesquisador e tradutor Érico Assis.
capacidade de indignação e, em todas as áreas “Desde Agostini temos, no formato, o registro
de criação, as vozes dos artistas costumam se histórico das opiniões que circulam em cada
levantar contra a opressão. Que isso também época na política e nos costumes”.
se repita, que essas vozes sejam presentes”.
PIONEIRA Ciça atuou em diferentes veículos da imprensa, mas ficou famosa pelo NOVOS OLHARES Adaptação de
seu personagem O Pato, lançado durante a ditadura militar; a personagem Bia Sabiá Renata Arruda, jornalista carioca. É autora Os Sertões revisita o clássico com outro
foi criada para publicações feministas como Mulherio e Nós Mulheres. do blog prosaespontanea.blogspot.com.br. enfoque sobre o momento histórico

28 Plaf Plaf 29
/ memória / Esquadrinhando a história brasileira Esquadrinhando a história brasileira / memória /

Nos últimos anos, parecemos ter perdido


“A imaginação tem sido

Imagem: Reprodução
a vergonha de repensar quem somos”,
acredita Aguiar. fundamental para o resgate
Em seu premiado A Infância do Brasil de parte da história brasileira
(2017), ganhador do HQ Mix e finalista
no Jabuti, José Aguiar faz justamente secularmente invisibilizada.”
o movimento de tentar compreender
determinados aspectos da narrativa
histórica brasileira nunca antes olhados
com atenção. “Metaforicamente, acho
que estamos vivendo o fim da infância do
nosso país. Não por ele ter mais de 500
anos, mas por estarmos tropeçando em
nossas próprias pernas para tentar andar
sozinhos. Sempre estivemos sob a tutela

Imagem: Reprodução
de Portugal e seus credores, ou sob a tutela
dos militares, e agora que podemos escolher
nós mesmos para onde ir, estamos errando
muito para tentar seguir andando”, descreve
o autor. Em A Infância do Brasil, Aguiar, com
consultoria da historiadora Cláudia Regina
Moreira, ficcionaliza personagens infantis
que atravessam a história brasileira desde
a colonização no século XVI. Em tramas
separadas, ele aborda sexismo, abusos,
excesso de trabalho, racismo, discriminação
social e consumismo, temas variados
que ele aponta como exemplares para se
chegar ao atual estado das coisas – e
ainda distantes de acabar.

A imaginação tem sido fundamental para


o resgate de parte da história brasileira
RESGATE O Quilombo dos Palmares Para Marcelo D’Salete, autor de obras Figuras em Quadrinhos, da Ebal, eram secularmente invisibilizada. Por sua
entre fatos e ficcionalização em Angola importantes na proposição de novas narrativas de exaltação, nacionalismo e liberdade estética, as HQs não precisam
Janga, de Marcelo D’Salete. formas de pensar o passado brasileiro, o hagiografia (a começar pelo próprio título ser necessariamente “documentais” na
ítalo-brasileiro Angelo Agostini foi pioneiro da coleção). Entre 1957 e 1961, foram 20 apresentação de um recorte histórico. Como
também na representação do negro, edições, trazendo biografias de nomes como negar o impacto sem precedentes de Angola
inclusive por sua posição abolicionista Marechal Rondon, Oswaldo Cruz, Castro Janga (2017), uma das representações
– o que não o isentou de contradições e Alves, D. Pedro II, Tiradentes e Getúlio mais marcantes já feitas do Quilombo de
estereótipos impregnados na sociedade Vargas, entre vários outros. Chamava Palmares? Seu autor, Marcelo D’Salete,
“Desde Agostini da época. “Ele tinha charges com algumas
visões sobre a população negra que
atenção a arte, muitas vezes a cargo de
Nico Rosso, um dos mais expressivos
se baseou em profundas pesquisas, mas
criou essencialmente uma grande narrativa
temos, no formato, seriam hoje classificadas, no mínimo, desenhistas do quadrinho brasileiro e ficcional. “O autor trabalha com registros
como discriminatórias e racistas”, comenta parceiro de Rubens Francisco Luchetti
o registro histórico D’Salete, que percebe no trabalho de numa sequência de gibis de horror da
mínimos dos quilombos e quilombolas e
convence o leitor quanto a uma história
das opiniões que Agostini o princípio de uma preocupação
histórica dos artistas de HQs – em sua
editora Taika, em 1970. possível do que se passou nos séculos 17
e 18”, destaca Érico Assis. “Me parece que
circulam em cada maioria, ao menos até a metade do século
20, preponderantemente formada por
Para José Aguiar, desenhista de Ato 5
(lançada em 2009 com roteiro de André
os trabalhos dele respondem a uma nova
configuração dos estudos históricos no
época na política e criadores que continuamente davam seu
ponto de vista sobre estratos sociais
Diniz e que retrata a ditadura pós-1968), Brasil – e até colaboram com eles”.
foi somente a partir de alguns trabalhos de
nos costumes”. e raciais que não os deles mesmos, Luís Gê, Laerte e André Toral que teve início Desde 2004, D’Salete pesquisa o Brasil
ampliando certa homogeneidade de olhar. um olhar mais crítico sobre episódios reais Colonial, com ênfase na escravidão e nas
da historiografia brasileira, fosse no formato populações periféricas deixadas à margem
ÉRICO ASSIS Por décadas, para além da crônica do de crônica, de narrativas mais longas ou do pelo poder público ao longo dos séculos.
presente, o quadrinho brasileiro pouco se humor. “Passamos a primeira década deste “Temos um público leitor interessado em ECOS NADA DISTANTES
preocupou em retratar a história do país. século nos acostumando a nos redescobrir, desconstruir as formas de ver a nossa José Aguiar revisita o passado para
Se aconteceu, como na série Grandes a nos detestar, amar e a nos expor. história e a nossa sociedade pelo olhar entender o presente em A Infância do Brasil.

30 Plaf Plaf 31
/ memória / Esquadrinhando a história brasileira Esquadrinhando a história brasileira / memória /

Imagem: Reprodução

Imagem: Reprodução
ACIMA dominante, o que é muito diferente do uma ideia forte de narrativa e ambientação
Certas obras tem Brasil de 50 anos atrás”, compara o autor pesquisadas e pensadas. A verossimilhança
importantes momentos de Angola Janga. Com seu trabalho anterior, é muito importante na sua estética”,
históricos como pano
Cumbe (2014), também ambientado no analisa Érico Assis.
período escravocrata no Brasil, Marcelo
de fundo, a exemplo de
D’Salete venceu o Prêmio Eisner de melhor Alguns quadrinhos do país são mais
La Dansarina. publicação estrangeira nos EUA em 2018. específicos a tratar determinados momentos
ou personagens históricos, como D. João
À ESQUERDA O pendor à ficção do real nos quadrinhos se Carioca – A corte portuguesa chega ao Brasil
O Brasil ainda colônia estende a outros aspectos da historiografia (1808-1821), de Lilia Moritz Schwarcz e
brasileira, mesmo que de forma tangencial. Spacca, que narra com irreverência, o recorte
é tema de Holandeses,
Caso de obras como Bando de Dois (Danilo adiantado no título, ou Os Sertões – A luta
de André Toral.
Beyruth, 2010), que retrata o período do (2011), em que Carlos Ferreira e Rodrigo
cangaço no nordeste, ou La Dansarina (Lilo Rosa retratam a Guerra de Canudos sob
Parra e Jefferson Costa, 2015), que aborda inspiração do livro de Euclides da Cunha,
o surto de gripe espanhola na São Paulo de ou ainda Adeus, Chamigo Brasileiro – Uma
1918. O quadrinho brasileiro, portanto, fala história da guerra do Paraguai (1999), de
muito melhor da história do país quando André Toral, sobre o sangrento conflito
se deixa levar pelo misto de conhecimento ocorrido entre 1864 e 1870. Nenhum
oficial, reconfiguração de ponto de vista destes – e de vários tantos, como Beco do
e imaginação. Rosário (2015), no qual Ana Luisa Koehler
reconstitui a Porto Alegre dos anos de 1920
Nas obras de Marcello Quintanilha sob a perspectiva de uma jovem aspirante a
(Sábado dos Meus Amores, 2009; Almas jornalista – trata da história brasileira com
Públicas, 2011; Tungstênio, 2014; entre algum tipo de condescendência.
outros), o formato de crônica ou narrativas
frenéticas serve também como atualização O que importa é a subjetividade dos autores
daquele instantâneo social criado por e dos personagens, o cuidado na pesquisa
Angelo Agostini, agora com a sensibilidade e reconstrução do passado e a necessidade
dos tempos atuais. “Todas as HQs do de revisar aspectos até então apagados,
Quintanilha, mesmo as que se passam no propiciando ao leitor embarcar em viagens
presente, têm um forte elemento histórico e de imaginação e revelação.
de representação fidedigna. Seja falando do
Rio e Niterói (Luzes de Niterói, Talco de Vidro,
Fealdade de Fabiano Gorila), seja falando Marcelo Miranda é jornalista
de Salvador (Tungstênio), ele transmite e crítico de cinema.

36 Plaf Plaf 37
RESENHAS / resenhas /

Turma da Mônica Agridoce


abraça de vez o mangá cotidiano
Por PAULO FLORO Por Carol almeida

C omo força hegemônica do


quadrinho nacional, Maurí- N as premissas do status social norte-ame-
ricano, o mundo é dividido em dois blo-
cos de gente: os vencedores e os perdedores.
cio de Sousa segue expandin-
do fronteiras — tanto esté- Aos primeiros, as batatas, o cinema, a TV, as
ticas quanto mercadológicas. capas de revista e, se possível, as de super-
Depois de uma bem-sucedida heróis também. Aos segundos, bem, todos
investida nos álbuns autorais conhecem a história.
(as Graphic MSP), da estabe-
lecida Turma da Mônica Jovem Mas essa vastíssima e majoritária camada da
(que ultrapassou uma década população que ficou de fora do holofote tem,

Uma antologia de todxs: e ganhou expansões) e no-


vas versões para o exterior,
a maior aposta na seara dos
Turma da Mônica:
Geração 12
sim, uma ficção para chamar de sua. O gran-
de mestre daqueles que morrem sem seus 15
minutos de fama se chama Daniel Clowes – e
Wilson
De Daniel Cloves

a história das HQs LGBTQI+ revisitada quadrinhos é esta nova série há um desses perdedores que talvez mereça [Quadrinhos na Cia/
Por Petra Leão (roteiro) e uma atenção maior justamente porque foi, na Companhia das Letras,
Geração 12. Ao contrário da
Roberta Pares (desenhos) contínua e prolífica carreira de Clowes, mais 80 páginas, R$ 55]
TMJ, que incorporava as influ-
perdedor em seu sucesso editorial. Fala-se Tradução de Érico Assis
ências do mangá basicamente [Mangá MSP/Planet
em sua estética, esta nova sé- Manga/Panini Comics, aqui do desagradável e solitário Wilson.
rie segue todos os preceitos do 100 páginas, R$ 14,90]
por Alexandre Figueirôa documentar a rica produção de queer comics voltada O livro acompanha esse sujeito pouco simpático, de estatura mediana, vida
Imagem: Reprodução

quadrinho japonês — tanto


para uma linha mais literária do que erótica. Segundo na trama quanto no ritmo da mediana e ambições medianas. O que se sobressai nele é esse irritante sen-
o próprio Hall, foi uma maneira de representar melhor narrativa, bem como no for- so de (mau) humor que, quanto mais desagrada os demais personagens do

A s histórias com temática LGBTQI+ nunca estiveram


na linha de frente do mundo das HQs. As queer comics,
embora circulem já há algum tempo, apareciam quase
o sentimento da comunidade queer e poder ampliar o
alcance público da obra.
mato (a exceção é o modo de
leitura, que aqui segue o estilo
Os desenhos mimetizam toda
a estética do gênero shonen
livro, mais apaixona quem está externo a ele – nós.

Porque se esse sujeito é completamente desapaixonante, sua insuportável


ocidental, da esquerda para a (Sakura Card Captors, Sailor
exclusivamente em jornais da comunidade gay, publi- No Straight Lines é apresentado em três partes de modo a direita). Moon, entre outros) e funcio- trivialidade é nada menos que sintomática de alguns códigos de identifica-
cadas por editores gays e só eram vendidas em livrarias contextualizar as HQs no seu momento histórico e cultural. nam bem. No meio da leitura, ção que estabelecemos ao longo da leitura. Wilson tem um pouquinho aqui
gays. Esse isolamento, todavia, criou uma cena artística A primeira abrange os anos 1960 e 1970 e intitula-se As histórias serão divididas em a experiência se torna mais e ali de todos nós. E não é todo artista que sabe catar esses pedaços de
underground interessantíssima e de certa forma vibran- Comics Coming Out: Gay Gag Strips, Underground Comix, volumes, lançados bimestral- próxima do mangá do que de cotidiano que a gente sempre deixa cair pela rua. Clowes faz isso com uma
te e criativa, espelhou a própria and Lesbian Literati, com cartuns mente, e fazem parte do recém um gibi da Turma da Mônica, elegante e cruel ironia diante do comum.
comunidade, retratando seu com- das primeiras publicações gays -inaugurado selo Mangá MSP. ainda que exista certo exces-
portamento, suas fantasias, seus após os eventos do Stonewall e Na história, saem as aventu- so de referências do universo As grandes tirinhas temáticas de página inteira funcionam como episódios
No straight lines: de um seriado que podem ser vistos separados, mas cujo sentido vai se
medos e esperanças. também comix feministas e lés- ras baseadas no cotidiano do Maurício de Sousa permean-
four decades of costurando de forma linear. O ir além de Clowes é fazer desse formato uma
bicas. A segunda parte chama-se bairro e na relação já tão co- do toda a trama. Interessante
queer comics maneira de jogar uma camada de morango em uma torta de carne. Ele que-
E é exatamente essa cena rica e File Under Queer: Comix To Comics, nhecida entre as personalida- a escolha da turma, que rom-
Justin Hall (org). divertida que a antologia No Strai- Punk Zines, and Art During the Pla- des dos personagens e entra pe com os quatro tradicionais bra qualquer possibilidade de se levar Wilson a sério (algo que o persona-
ght Lines: Four Decades of Queer gue e inclui obras dos anos 1980 e uma abordagem mais próxima protagonistas ao incluir Mile- gem não gostaria que acontecesse) ao desenhar cada página com traços
[Fantagraphics,
Comics apresenta. Com curadoria da ficção científica e ação. O na, uma das primeiras perso- distintos, ora em seu mais conhecido estilo simétrico e vertical, com régua
304 páginas, R$96 1990 com ênfase nas respostas
(importado)] gibi é uma tentativa da Mau- nagens negras de destaque na mão; ora cartunizado, infantilizando à canastrice, salientando essa dis-
do cartunista Justin Hall e publi- artísticas à epidemia da AIDS.
rício de Sousa Produções de na Mônica. Uma pena que a tância entre a ideia do personagem e de seu autor.
cada pela Fantagraphics Books,
em 2012, o livro reúne alguns explorar o mercado japonês, MSP retomou o péssimo há-
A terceira seção abrange a pro-
um dos mais concorridos do bito de esconder a autoria A ausência de afeto parece dar a Wilson a legitimidade de julgar as pessoas.
dos melhores quadrinhos norte-americanos das últimas dução mais contemporânea, que inclui trabalhos feitos
mundo. Neste novo universo, das HQs. As artistas foram O homem que passa quase o livro inteiro fingindo inícios de conversas para
quatro décadas e ganhou o prêmio Justin’s Lambda Li- por cartunistas transgêneros, detalhando as mudanças
Mônica e seus amigos têm 12 creditadas apenas no expe- dar sequência a um sem-fim de monólogos é, na verdade, aquele vizinho
terary Award e foi indicado ao Prêmio Eisner, em 2013. apresentadas pelos quadrinhos queer. Ela se chama A que você nunca se interessou em conhecer (ou talvez seja você o vizinho
anos e são alunos do Instituto diente, nas letras minúsculas,
New Millennium: Transcreators, Webcomics, and Ste- pelo qual seu vizinho nunca esboçou curiosidade). Sujeito que, nas páginas
Astro de Exploração Espacial, e não dentro da obra. Por isso
Para selecionar os quadrinhos integrantes da antolo- pping Out of the Ghetto, pois também mostra a entrada de uma ficção, espelha em reflexo convexo nosso próprio julgamento de
onde irão se deparar com alie- damos destaque aqui em ne-
gia, Hall adotou alguns critérios, evitando a inclusão dessas HQs nas plataformas on-line, incrementando a grito: Petra Leão (roteiro) e tudo e de todos. E não deixa de ser constrangedoramente engraçado ver o
nígenas e equipamentos de
de obras que não seguissem a sua ideia central de aceitação das histórias queer pelo mainstream. alta tecnologia. Roberta Pares (desenhos). Wilson que há dentro de cada um de nós.

36 Plaf Plaf 37
/ resenhas /

Memória, futebol e afetos Por PAULO FLORO

M arcello Quintanilha buscou em suas memórias a


inspiração para criar sua nova HQ, Luzes de Niterói.
Estão presentes aqui reminiscências de sua infância
entre os dois. Enquanto isso, em terra firme, os técnicos
do clube esperam o atleta para uma importante partida
contra o Vasco da Gama.
em Niterói e lembranças de seu pai, Hélcio Carneiro
Quintanilha, que era um promissor jogador de futebol em Quintanilha retorna novamente a dois universos que
início de carreira. são centrais em sua obra: o cotidiano dos subúrbios
fluminenses (presentes também no brilhante Talco de
A HQ narra uma dia cheio de aventuras na vida de Vidro) e o futebol (tema de Fealdade de Fabiano Gorila,
seu pai, que começa quando Hélcio e seu amigo Noel seu primeiro gibi). O principal ponto de diferenciação aqui
decidiram aproveitar uma pesca ilegal com bombas na é o modo como ele trabalha fatos reais de algo vivenciado
Baía de Guanabara para recolher os peixes e vender através da memória contada por seus familiares. A
na feira. Passada em meados dos anos 1950, a trama reconstrução do período, com detalhes das fábricas,
tem início no momento em que o jogador deixa o clube partidas de futebol e todo o microcosmo de Niterói dos
Manufatora Atlético Clube e vai para o Canto do Rio Foot- anos 1950 é primorosa.
Ball Club, ambos de Niterói. O que parecia simples se Luzes de Niterói
transforma em uma sucessão de erros, que levam a um Mas o maior talento de Quintanilha — e que aqui aparece De Marcello Quintanilha
encontro com nudistas na Ilha do Sol (primeira colônia com força sobretudo na dinâmica dos dois personagens [Veneta, 232 páginas,
nudista que tinha como participante mais famosa a atriz principais — é sua capacidade de criar personagens
R$ 69]
Luz Del Fuego). complexos, cheios de nuances. O domínio do tom realista
nos diálogos, com falas coloquiais e emotividade que
Na volta, os amigos ainda precisam sobreviver a uma remetem aos folhetins (mas sem soar piegas), ajudam
tempestade, momento em que ambos têm a amizade a manter uma conexão muito próxima com aqueles
posta à prova, contada em uma das mais lindas personagens. Quintanilha é um dos melhores contadores
sequências já criadas por Quintanilha, onde a turbulência de história dos quadrinhos brasileiros e este livro é talvez
das águas parece ser o pano de fundo afetivo da relação seu trabalho mais pessoal.

Desbravando o Underground Por


DANDARA PALANKOF

S ob o grande guarda-chuva que é o termo “rock”,


poucas cenas são tão alternativas – no sentido
mais estrito possível do termo – quanto aquelas que
uma cidade aparentemente asséptica como Brasília
pode abrigar em suas entranhas uma grande “podreira”.

abarcam as vertentes mais pesadas do gênero: do Seu humor é permeado de (auto) ironia e uma certa esca-
punk a todos os “cores” e metais possíveis, elas vice- tologia – ainda que certos chistes fossem dispensáveis
jam em territórios escuros e escondidos, sujos literal e (mesmo se tratando não só de uma visão como de uma
figuradamente, povoados por figuras um tanto quanto cena predominante e ortodoxamente masculina). Mas
singulares, a serem desbravados por poucos. Um sub- não se furta a críticas, por exemplo, às ideologias supre-
mundo. O underground. macistas das quais muitos metaleiros extremos e afins
se mostram adeptos. Não que os hipsters estejam em
E desbravá-lo é o que faz Pedro D’Apremont – como ob- maiores graças junto a D’Apremont.
servador participante, ainda mais; afinal, segundo Allan
Sieber, o quadrinista é um verdadeiro “adorador do cramu- O inusitado retratado nas histórias é um componente de
lhão”. E a partir de suas experiências, ele traz aos leitores peso na composição desse humor, mas grande parte dele Notas do
suas Notas do Underground. Trata-se de uma coletânea também se deve ao traço limpo e leve do artista; bem Underground
de histórias curtas publicadas anteriormente pela Vice, como de seu trabalho admirável com as expressões fa-
revista virtual norte-americana, entre 2017 e 2018. ciais, bastante cartunescas. No fim, fica a impressão de Pedro D’Apremont
que se aventurar pelo underground, de fato, pode ser um [Independente/Pé de
Transitando entre casos autobiográficos e outros (assim tanto quanto divertido – mas nem sempre; muito menos Cabra, 48 páginas, 2019]
esperamos) ficcionais, D’Apremont mostra como mesmo é seguro a todo tempo.

38 Plaf Plaf 39
40 Plaf Plaf 41
Aline Lemos é quadrinista, ilustradora e cartunista mineira. Mestre em História pela UFMG, ela é autora de vários zines, entre eles Lado Bê e
Melindrosa (ambos Independentes), além do livro Artistas do Brasil (Miguilin). Conheça mais do trabalho dela em https://desalineada.tumblr.com/.
42 Plaf Plaf 43
Jota Mendes é quadrinista e artista visual pernambucano. É autor da HQ Caramelo Quatro (Independente).
Acesse seu portfolio em instagram.com/@_jotamendes.

44 Plaf Plaf 45
SAIDEIRA

Luiz Gê é quadrinista paulista. Entre seus livros publicados estão Avenida Paulista
e Ah, Como Era Boa A Ditadura (ambos pela Companhia das Letras).

46 Plaf Plaf 47
48 Plaf

Você também pode gostar