Você está na página 1de 16

moringa.

v8n1p23-28 | E-ISSN 2177-8841

ABORDAGEM SOMÁTICA NA EDUCAÇÃO TEATRAL

Somatic approach in theater education

André Luiz Lopes Magela


Universidade Federal de São João del-Rei

Resumo: O presente artigo analisa o direcionamento para a educação teatral que


pode ser realizado em alguns procedimentos pedagógicos específicos para a atu-
ação. Estes procedimentos, reunidos sob o termo “abordagem somática”, visariam,
neste enfoque, a uma ampliação da percepção teatral na vida daqueles que os ex-
perienciam. Amparado implicitamente em conceitos da filosofia de Gilles Deleuze e
Félix Guattari e em obras de Jerzy Grotowski, o artigo também dialoga com escritos
de Viola Spolin.

Palavras-chave: Grotowski; Educação Teatral; Abordagem Somática.

Abstract: This article analyzes some pedagogical procedures for theater acting, focu-
sed here to theater education. These procedures, gathered under the term “somatic
approach”, intend, in such perspective, an increase in the theatrical perception in the
lives of those who practice these classes. Supported implicitly by the philosophy of
Gilles Deleuze and Félix Guattari and works of Jerzy Grotowski, the article also sta-
blish a dialogue with Viola Spolin precepts.

Keywords: Grotowski ; Theatre Education ; Somatic Approach.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

23
André Luiz Lopes Magela

Aprendizagem inesperada em ação.

O filme “Karatê Kid” (AVILDSEN, 1984) Um fato é de extrema importância: Da-


é um sucesso de bilheteria que associa niel aceita as tarefas sem questionar,
lutas e romance a transformação pesso- preocupando-se com os detalhes das
al. Mas também nos é possível interpre- instruções. Ele acolhe o “treinamento”,
tá-lo como um significante filme sobre que não tem nenhuma credibilidade
pedagogia – especificamente a “peda- para seus parâmetros atuais/anteriores
gogia Senhor Miyagi” – com base nos e apenas recusa-o quando Miyagi, por
elementos principais de seu enredo. um infortúnio (um atraso na chegada
de Daniel em uma manhã), não está lá
Daniel (Ralph Macchio) é um adoles- para dar as instruções pessoalmente e
cente que se muda para uma nova ci- fica pescando durante um dia inteiro en-
dade com sua mãe e logo é persegui- quanto o aluno executou as instruções
do por um grupo de rapazes que lutam que estavam informadas num papel
caratê. Miyagi (Pat Morita) é o faz-tudo pendurado na porta. Daniel apenas re-
do condomínio onde Daniel se instala, siste quando lhe parece que algo falhou
e salva-o quando o rapaz está sendo naquela ética tácita de aceitação incon-
espancado por quatro lutadores. Uma dicional.
pequena relação entre os dois, que já
havia antes se estabelecido, se intensi- A demonstração da eficácia desta pe-
fica e, com dificuldade, Daniel convence dagogia só se dá com uma hora e de-
Miyagi a ensinar-lhe aquele poderoso zessete minutos de filme transcorridos.
caratê para que pare de apanhar. Quando, neste dia de discórdia (e por
conta dela), o jovem protesta energica-
Uma vez firmado o acordo mestre-alu- mente sobre a falta de sentido daquilo
no, Miyagi, sem maiores explicações que vem fazendo há dias, Miyagi lhe
verbais, imediatamente introduz suas solicita verbalmente os movimentos dos
primeiras instruções: trata-se de lim- afazeres domésticos e golpeia Daniel,
par e polir seus carros com movimen- que se defende exatamente com as di-
tos determinados e precisos de braços nâmicas corporais marciais que estava
e mãos, numa repetição exaustiva. No encarnando há dias sem saber. Como
segundo dia, o método migra para a diz Miyagi, aquilo é uma lição para toda
pintura de uma cerca com movimentos a vida...
cuja especificidade também deve ser
totalmente acatada. O mestre chega a Sintoma significativo de que o real tema
falar, enquanto dá instruções dentro do do filme é a pedagogia: a última imagem
fluxo das ações de Daniel, “não olhe do filme não é a de Daniel (o suposto
para mim, olhe para a cerca”, como um protagonista) vencedor, mas a face em
diretor pedagogo instruindo um atuante close de Miyagi, satisfeito pelo ensina-

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

24
Abordagem somática na educação teatral

mento bem concretizado. vez mais usado, e sua atual e predo-


minante acepção deriva da nomeação
Trabalho somático realizada por Thomas Hanna nos anos
setenta, que descreve “abordagens de
A idéia presente nesta parábola é sim- integração corpo-mente que ele e ou-
ples e não foge de um modo bem senso tros terapeutas e educadores estavam
comum sobre como ensinar: colocar o desenvolvendo” (FERNANDES, 2015,
aprendiz em situações que o modifica- p. 12), no sentido de fomentar em cada
rão pela experimentação reiterada, sem participante um “processo de crescen-
que ele saiba que está aprendendo – um te maturidade e autonomia relacional”
aprendizado indireto e eminentemente (FERNANDES, 2015, p. 13). Relacio-
corporal, que se entranha no educan- nando-se, mas distinguindo-se de ma-
do. Muitas práticas teatrais são assim; neira sutil da Educação Somática, a
Augusto Boal, apesar de valorizar a abordagem somática seria um campo
consciência racional e reflexão (BOAL, mais amplo do que esta e “premissas
2000, p. 333), propõe muitos exercícios somáticas podem ser aplicadas a qual-
que fomentam a transformação do pen- quer instância, inclusive a técnicas cor-
samento corporal. Um exemplo pode porais variadas” (FERNANDES, 2015,
ser o chamado “hipnotismo colombiano” p. 16). Se na dança e em terapias cor-
(BOAL, 2000, p. 91), em que um atuan- porais o termo já é bem explorado e re-
te conduz outro com sua mão, havendo lativamente definido, no meio teatral ele
variações em que alguns atuantes são (ainda?) não é muito corriqueiro.
conduzidos por várias partes do corpo
de apenas um atuante. Este exercício é Mas aqui neste artigo há diferenças em
uma maneira interessante de promover relação à delimitação conceitual realiza-
que alguém vá, gradativa e consisten- da por Ciane Fernandes, porque utiliza-
temente, percebendo seu corpo como rei a acepção proposta no livro Systems
significativo, expressivo, capaz de alte- of Rehearsal, de Shomit Mitter (1992),
rar o espaço e as pessoas à sua volta. que analisa o trabalho de Peter Brook
Exercícios como estes constroem uma em três montagens teatrais bem distin-
gramática que acaba sendo assimilada tas, mas que se relacionam quanto a
como um “segundo instinto” (SUZUKI, seus procedimentos construtivos. O que
2002, p. 163) ou uma “segunda espon- Mitter avalia são práticas corporais indi-
taneidade” (KASTRUP, 2005, p. 1279) retas, que abordam, através de exercí-
em seus praticantes e, por seu modo cios e experiências, algumas questões
e lugar de ação predominantes, pode- que o condutor dos processos teatrais
mos chamar esta forma de trabalhar de deseja confrontar (principalmente a
“abordagem somática”. construção de um personagem). Soma-
ticamente, esta abordagem aprofunda
O termo “somático(a)” vem sendo cada o trabalho teatral e atinge locais de ex-

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

25
André Luiz Lopes Magela

pressividade alternativos àqueles oriun- planejamento, aparentemente questio-


dos de um trabalho mais racional. nável, é historicamente comum no tra-
tamento reservado aos atores, mesmo
Se investigamos influências que Cons- por parte de diretores pedagogos2:
tantin Stanislavski e Jacques Copeau
exerceram no século XX na formação Stanislavski acredita fielmente que
de atores, também constatamos o uso o único caminho para o desenvolvi-
mento da arte do ator é “a partir de
desta opção técnica por parte de direto- si próprio”, caso contrário, começa
res que “instauraram práticas nas quais a atuação baseada em clichês e em
a razão é minimizada por intermédio de procedimentos repetitivos.
exercícios nos quais o ato de pensar1 é Para deixar livre a imaginação do ator
tido como um mau sinal.” (ICLE, 2010, e instigar seu estado criador, o mestre
propõe uma abordagem bastante ra-
p. 52). Do mesmo modo, podemos re- dical: (...) Por isso, Stanislavski rejei-
tomar as indicações de John Dewey ta a leitura prévia pelos atores do tex-
(2010) quanto a importância da expe- to dramático, ou seja, aquilo que era
riência na educação. Ou considerar a primeira condição sine qua non no
propostas oriundas dos estudos sobre processo da encenação do espetácu-
lo. Afirma que, no início dos ensaios,
a cognição – por exemplo (LAKOFF; apenas o diretor deveria conhecer a
JOHNSON, 1999) (JOHNSON, 1987) peça. (VÁSSINA, 2015, p. 125)
(DAMASIO, 2000) –, que desde o final
do século XX vêm catapultando toda A finalidade é liberar o atuante ou o edu-
uma série de pesquisas que mostram cando para agir: “Como os atores não
que a separação entre aspectos corpo- podem escolher conscientemente o seu
rais, emocionais e cognitivos (em resu- estado de ser, a questão de rejeitar isto
mo, separar mente e corpo) é arbitrária, não ocorre” (MITTER; 1992: 15). Um
uma vez que a cognição é, de fato, sem- dos resultados desta abordagem é que
pre corporal. o atuante não precisa retomar delibera-
damente as atividades cênicas, porque
Pedagogia como condução os comportamentos são entranhados
nele (a “pedagogia Miyagi”), ou são
Um problema que devemos notar já de compostos a partir dele:
início é que, principalmente neste as-
pecto de mitigação dos aspectos mais Estas técnicas devem ser dominadas,
racionais do pensamento, o trabalho so- estudadas, até que sirvam como uma
mático pode ser um tanto manipulativo, “hipótese operacional”, de modo que
os atores possam realmente sentir-se
na medida em que o atuante ignora in- “fictícios” no palco. Pois para que os
tenções do condutor. Tal sonegação do atores percebam as imagens que per-
1 Aqui, note-se uma terminologia que identifica totalmente, seguem, eles terão de desenvolver
sinonimizando, “pensar” com “pensar racional”. Diferente-
mente, aqui neste artigo o pensamento sempre é corporal, e 2 Na verdade, talvez diretores pedagogos soneguem seus
a mente não é tomada como separada do corpo. objetivos mais do que outros tipos de diretores.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

26
Abordagem somática na educação teatral

pelo menos essa sensibilidade física - mesmo que sejam apenas pequenas
básica. (SUZUKI; 2002: 163) centelhas de vida.

O material extraído de si mesmo é aná- Educação teatral


logo ou familiar ao papel, porque ele é
provocado pelas mesmas ações e cria- As colocações de Mitter, Suzuki e Vás-
do por impulsos humanos interiores. sina concernem à construção de perso-
(VÁSSINA, 2015, p. 128) nagens. O trabalho somático ali consis-
te essencialmente na transposição de
De todo modo, não é exclusividade do exercícios de atuação para a cena: “Os
teatro ou de treinamentos corporais a atores não devem tentar sentir cons-
tentativa de diminuição das resistên- cientemente as emoções do persona-
cias mais racionais. Análises sobre a gem; essas emoções serão produzidas
aprendizagem assinalam os paradoxos por habitar fisicamente3 uma condição
presentes na modificação pessoal con- análoga ao que é exigido pelo papel”
comitante ao abandono de padrões ex- (MITTER, 1992, p. 25). Mas o nosso
cessivamente fixos de pensamento: foco neste momento não é a forma-
ção de atores, e sim a experiência do
O aprendizado depende, de saída, da teatro para todos, nas escolas de ensi-
suspensão da atitude recognitiva. Co-
meçando por mobilizar uma intenção
no formal ou em iniciativas em ensino
consciente, torna-se aos poucos inin- não-formal. Adotar uma abordagem so-
tencional. Depraz, Varela & Vermers- mática na educação teatral, valendo-se
ch [(2003)] apontam que, no longo de elementos da artesania da atuação
prazo, uma segunda espontaneidade para acarretar transformações pessoais
tem lugar. (...) Partindo da suspensão
da recognição, o aprendizado estabi-
(educação), em processos bem práticos
liza um tônus atencional singular que e experienciais: “... estratégias pedagó-
envolve a ativação de uma atenção gicas que envolvem sempre certo grau
aberta ao encontro de experiências de transformação dos modos de ser do
pré-egóicas. (KASTRUP, 2005, p. ator num sentido mais abrangente que
1279)
o aprendizado de habilidades” (QUILI-
CI, 2015a, p. 76). Estes instrumentos
Estas operações de desapego ao co-
privilegiados afetariam um campo de
nhecido (ao ego?) requerem treina-
percepção teatral, junto aos educandos,
mento, processo, intimidade - experiên-
que constitui e influencia toda a sua vida
cias afetivamente significativas. Deste
e seu cotidiano. E esta forma de edu-
modo, é necessária a construção grada-
cação teatral aproxima-se de uma con-
tiva e conjunta de um setting de trabalho
cepção mais consagrada de educação
propício à abertura dos atuantes. Isto
estética e suas indagações e interesses
exige do pedagogo uma aguda escuta
dos processos em curso nos atuantes 3 No caso, pelos exercícios preparados no processo de cria-
ção dos espetáculos.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

27
André Luiz Lopes Magela

quanto a:
Mas a teatralidade imbricada à vida é
... novas formas de questionamen- também a percepção mais complexa do
to das relações entre a experiência espaço, do tempo e de relações huma-
estética e sua inserção no cotidiano,
suas potencialidades de modificar nas ou a capacidade de invenção cola-
formas de percepção, criar novas borativa de outros mundos de experiên-
relações sociais e outros modos de cia e novas formas de viver. Ela seria
subjetivação. Nesse sentido, a edu- um dos grandes campos que estas au-
cação estética não é pensada como las abordariam: um estrato teatral que
meio exclusivo de formar artistas do
palco, mas como uma via para uma forma a vida cotidiana e que a prática
transformação mais ampla do sujeito, qualificada da cena exercita e amplia.
que pode se desdobrar numa multipli-
cidade de estratégias pedagógicas e Trata-se de um fomento a que o edu-
ações artísticas. (QUILICI, 2015b, p. cando se atente melhor ao teatro, pro-
62) blematize, invente teatro. Mas um
“teatro expandido”, o teatro em seus
Neste contexto, podemos conceber en- aspectos intensivos, qualitativos, ope-
sinar teatro em escolas como preparar, rativos, e não tanto em suas configura-
propor e conduzir experiências que am- ções formais. A atenção teatral, ou ao
pliem a disposição do educando de es- teatral, seria o cerne de uma cognição
tar ativo em dimensões teatrais (sejam ou pensamento que pode ser abordado
estas do cotidiano, das aulas ou dos somaticamente por improvisações, jo-
espetáculos), para que sua percepção gos, exercícios teatrais e processos de
possa se conectar com, e produzir, o construção e exibição de cenas.
teatral. Um “teatral” que pode ser des-
crito resumidamente como modulações Indução pedagógica
imbricadas do tempo, do espaço e do
comportamento. “Dimensões teatrais” O teor somático desta educação teatral
da vida, cujo exemplo mais visível é o consiste no entranhar-se em experiên-
planejamento e compreensão de acon- cias que são conduzidas para tocarem
tecimentos: algo qualitativamente teatral: a percep-
ção4 do que ocorre teatralmente. Deste
A imaginação dramática, a faculdade
de nos colocarmos no lugar do outro modo, os corpos constituídos nas aulas
ou em circunstâncias que não estão podem se expandir ou transbordar para
presentes fisicamente para os nossos fora dela, em aulas baseadas na epis-
sentidos, continua por toda a vida e temologia da atuação e em sua artesa-
caracteriza grande parte de nosso nia. A somatização é que possibilita um
pensamento quando estabelecemos
hipóteses sobre o futuro, reconstruí- salto das operações ocorridas em aula
mos o passado ou planejamos o pre- 4 Note-se que perceber é agir, numa concepção onde
sente. (KOUDELA, 2009, p. 37) a percepção é sempre ativa.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

28
Abordagem somática na educação teatral

para a vida. do local, estabelecendo uma distância


estésica de sua condição:
A lógica deste processo é indutiva: da
operação já consagrada no teatro (a Pois para os dominados a questão
transposição das experiências dos nunca foi tomar consciência dos me-
canismos de dominação, mas criar
exercícios para a cena), podemos indu- um corpo votado a outra coisa, que
zir que a experiência pedagógica pode não a dominação. Como nos indica o
também ir para além das aulas. Mas isto mesmo marceneiro, não se trata de
se as aulas são corporalmente teatrais, adquirir conhecimento da situação,
somáticas, se mobilizam formas teatrais mas das “paixões” que sejam inapro-
priadas a essa situação. (RANCIÈRE,
de pensamento, se constituem situa- 2012, p. 61-62)
ções de caráter teatral intensivo. Mais
explicitamente, se suas relações são te- As aulas de teatro advogadas aqui
atrais, e não se elas apenas têm formas agem eminentemente neste âmbito do
convencionalmente teatrais. regime estético, pois formas de pensar
teatrais são ampliadas para a inven-
Esta transposição pode ser também ir- ção de corpos outros que escapem do
manada ao “regime estético” proposto instituído. Em relação, sim, com as for-
por Jacques Rancière (2012); algo que mas de poder existentes, mas também
se situa nos modos de sentir, e não em inventando outras forças e formas. E
uma conscientização. Neste sentido, o transbordamento estético das aulas,
nada do que concerne a temas traba- eminentemente político, corrobora o im-
lhados ou a uma exibição estetizada de bricamento entre vida e arte:
ideias previamente definidas está em
questão aqui, mas sim a cognição que Não há mundo real que seja o exterior
é operada pela aula, a percepção, os da arte. Há pregas e dobras do tecido
regimes de sensibilidade, a produção sensível comum nas quais se jungem
de outras configurações do sentir. As- e desjungem a política da estética e
a estética da política. Não há real em
sim, nas aulas mensagens e informa- si, mas configurações daquilo que é
ções não importam tanto, mas sim os dado como nosso real, como o obje-
modos estéticos que se produzem, os to de nossas percepções, de nossos
corpos outros que se produzem - criar pensamentos e de nossas interven-
um espaço de virtualidade, suspender, ções. O real é sempre objeto de uma
ficção, ou seja, de uma construção do
estabelecer uma cisão naquilo que está espaço no qual se entrelaçam o visí-
dado, definido, configurado. Esta cria- vel, o dizível e o factível. É a ficção
ção de uma dimensão estética “extra” dominante, a ficção consensual, que
pode ser exemplificada por um relato nega seu caráter de ficção fazendo-
sobre um operário que, no século XIX, -se passar por realidade e traçando
uma linha de divisão simples entre o
colocava tacos no chão de uma mansão domínio desse real e o das represen-
e se dispõe a olhar pela janela para fora tações e aparências, opiniões e uto-

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

29
André Luiz Lopes Magela

pias. (RANCIÈRE, 2012, p. 74) balho, intensificações e modificações,


digamos, “metabólicas” na atenção dos
A arte e a educação, nesta conformação participantes (o aquecimento teatral é
ética, podem propor situações em que quase sempre isto, não?).
composições estéticas são construídas,
experienciadas, agenciamentos que au- Um exemplo mais imediato podem ser
mentem a potência de vida teatral. Se aulas iniciadas com um exercício que
estas composições são o maior orienta- pratique certos elementos de atenção,
dor de nossas ações, o trabalho na aula para imediatamente ir para uma impro-
é mais do que uma mimese da vida. As- visação cujo processo (e não o tema)
sim, a aula é vida, remete à vida, se ex- demande e ative mais estas modalida-
pande para a vida, expande a vida. des de percepção6. Na improvisação,
um locus de confluência, tudo está em
Mas, é preciso observar (e a verificação jogo, profundidade e superfície, tempo-
realizada em pesquisa sobre este tema5 ralidades, composições, camadas mais
apenas confirma procedimentos e co- elaboradas e percepções imediatas e
nhecimentos presentes difusamente na pontuais. Se outras percepções são ati-
pedagogia do teatro), algumas percep- vadas antes desta improvisação, o cor-
ções teatrais só são tocadas em aulas po é outro7 (corpo @ cognição @ ação).
com ambientes de trabalho cuidadosa-
mente construídos. A aula de educação Ou então, exemplo inverso, após se
teatral é dirigida à vida cotidiana, mas as constatar o uso, por parte do atuan-
sessões de trabalho, mesmo nas aulas te, de um excesso de recursos cêni-
corriqueiras nas escolas, precisam ser cos previamente adquiridos e viciados
especiais para operar a “educação”. Na numa improvisação (expressões faciais
tentativa de consecução prática desta excessivas e clichetípicas ou soluções
proposta, dois potentes recursos podem cênicas imediatas que sabotam a sus-
ser adotados: as tarefas (e suas regras) tentação da angústia ante o desconhe-
e o contato. cido), retornar para atividades antigas
que demandam um engajamento corpo-
Recursos práticos: tarefas ral mais simples, direto, mínimo - como
procurar uma chave escondida ou fazer
Nesta abordagem somática há um for- trajetos pela sala carregando coletiva-
te componente “construtivista”, tanto no mente um atuante com regras que com-
fato de ela ser gradativa e acumulativa 6 Note-se que não há aqui uma pretensão de con-
no processo pedagógico, como na ne- trole da experiência pela categorização. A intenção é
apenas sistematizar o trabalho pedagógico para que,
cessidade de construção de settings inclusive, equívocos sejam melhor percebidos.
que promovam, em cada sessão de tra- 7 Isto não é exclusivo ao âmbito desta abordagem
5 Tese de doutorado defendida na Universidade Fe- investigada. É um processo muito comum em aulas
deral do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (MAGE- de teatro e apenas aqui estamos tomando estes pro-
LA, 2015). cessos como matéria específica de trabalho.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

30
Abordagem somática na educação teatral

plexificam e estetizam esta tarefa. Um simples organizadas de modo que evo-


procedimento de retorno, um retrocesso luam gradativamente para estruturas
de segurança8: tentar atingir ou retomar complexas baseadas em regras” (ZAR-
um ponto de consistência válida no tra- RILLI, 2009, p. 100). O objetivo é que se
balho, para dali voltar a complexificar e atue de maneira concreta e engajada;
articular os elementos férteis. e este engajamento é que promove a
transformação pedagógica.
Trata-se, nestes casos, do educando-
-atuante enfrentar tarefas fisicamente Não se trata aqui de aumentar a capa-
concretas e conexas somática e teatral- cidade de execução de tarefas, e sim
mente ao trabalho desejado. Parado- a de afetação, de relacionar-se, devir
xalmente, nestas situações os atuantes outra coisa9 (DELEUZE & GUATTARI,
têm uma oportunidade de experiência 1997). O mesmo pode ser dito do Ponto
corporal mais autônoma e provavel- de Concentração (POC) de Spolin: cada
mente com resultados mais singulares relação, de certo modo, é um problema
e fora dos rótulos, que talvez nem cor- – a ser inventado e com o qual tem-se
respondam a expectativas do condutor. de lidar –, e com o parceiro ocorre um
Sob certos aspectos, o procedimento de certo modo de atenção que talvez re-
propor tarefas se assemelha à divisão meta à “concentração”, o elemento de
da experiência em etapas promovida instrução que foca, por vezes, o exercí-
pelo Ponto de Concentração (POC), de cio, como uma bola em um jogo, e que
Viola Spolin (SPOLIN, 2010, p. 20). Está “atua como catalisador entre um joga-
implícita aí uma experiência de delimita- dor e outro, e entre o jogador e o pro-
ção da atenção para que o atuante mer- blema” (SPOLIN, 2010, p. 21). O POC
gulhe mais ainda na situação, para que torna compartilhada a experiência do
outras formas de agir advenham. E a ig- atuante com as propostas do condutor,
norância circunstanciada da tarefa pode como um início de relacionamento: “a
produzir uma riqueza e diversidade inte- apresentação do material de uma ma-
ressantes. Questão abordada por Mitter neira segmentada liberta o jogador para
(1992), o fato do atuante se ocupar em agir em cada estágio de seu desenvolvi-
executar muito situadamente o que lhe mento” (SPOLIN, 2010, p. 21).
foi proposto, e isto mobilizar todo o seu
corpo, acaba por levá-lo a situações to- O importante é o contato do educando
talmente inusitadas. Esta delimitação de com o problema. Lidar com a diversi-
experiência é também a que ocorre nas dade das ocorrências, colocando-o em
abordagens nominadamente “psicofísi- modos de atenção para perceber (in-
cas” de atuação, onde, por exemplo, as ventar) novos problemas, sustentando
improvisações se estruturam como “um as angústias destes “desconhecidos”.
conjunto de tarefas psicofísicas muito
9 Note-se que “devir” é um fenômeno desejável tanto
8 Ou fallback. na atuação quanto na transformação pessoal.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

31
André Luiz Lopes Magela

Este setting de trabalho, com suas deli- ocorrendo em cena (o contato, relacio-
mitações, visa tanto “manter viva a aten- nar-se). Outro ponto de nota é que o
ção ao plano de forças e dos devires” contato se irmana com o que podemos
(KASTRUP, 2005, p. 1285) onde algo chamar de “escuta”:
de novo é experimentado, quanto evitar
a dispersão. Talvez uma das ambições A noção de ‘escuta’ pressupõe que o
deste tipo de trabalho paradoxalmente ator trabalha todo o tempo em ‘rela-
ção’ ou em ‘contato’ com os inúmeros
seja este treino de atenção despreten- parceiros materiais (textos, sequên-
ciosa, que não almeja algo excepcional, cias, companheiros, espaço físico,
que se contenta em estar em contato etc.) e imateriais (imagens, senti-
com algo imediato, concreto, específico, mentos, sensações). Ele não se vê
local. como ‘separado’ da relação com es-
ses parceiros (como se houvesse um
lado ‘de fora’, ou lugar objetivante)
Contato e, muito menos, como ‘manipulador’
desses elementos (como se houves-
O contato, interpretado a partir de lei- se um lugar de trabalho separado do
turas de obras escritas de Jerzy Gro- lugar de ‘afetação’). Estar em conta-
to significa, ao contrário, perceber-se
towski, seria a ação de um atuante de como parte da anima mundi e, perma-
se relacionar com outro “alguém”, seja nentemente, reagir e ajustar-se ao di-
este ente o que for, a conexão concre- namismo desses parceiros sem sub-
ta que o atuante estabelece com este metê-los a uma ‘objetivação’ ou, em
parceiro. A relação se dá através deste outras palavras, a um controle estrito
da ‘expressão’. Essa é, portanto, uma
contato, e colocaria o atuante num lugar subjetividade (de ator? de homem?)
de potência, uma vez que ele se afeta mais ‘aberta’ aos atravessamentos do
pelo parceiro – a potência de afetar-se10 fluxo da vida no corpo (ou melhor, que
(DELEUZE, 2002). E responder ao par- compreende o corpo enquanto partí-
ceiro em contato com ele é uma ação, cipe do fluxo da vida). (LIMA, 2009,
já que o atuante se transforma ao afe- p. 29)
tar-se.
A prevalência destes elementos no tra-
A utilização da noção de contato para a balho é um modo procedimental de to-
prática de atuação tem um caráter mi- car diretamente as questões vitais dos
mético ou “metonímico”. Porque se a atuantes, de mesclar somaticamente
vida são relações, afecções, o que ocor- sua atuação com o que vive e viverá.
re em cena “é vida”, na medida em que A transformação pessoal é, assim, con-
operações da vida (as afecções) estão dição necessária neste processo de
atuação. Redirecionando o olhar para
10 A referência aqui é o estudo de Deleuze sobre Es-
pinosa (DELEUZE, 2002). O corpo é constituído por
a educação teatral, perceber se o atu-
afecções, composições infinitas de elementos. A po- ante-educando está em contato e a
tência aqui é vista como a capacidade de afetar-se qualidade destas relações seria um in-
mais e melhor.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

32
Abordagem somática na educação teatral

dicador de que algumas operações cog- entonação, e sim apenas escutar e res-
nitivas teatrais estão se dando ou não, e ponder” (GROTOWSKI, 1987, p. 187)
como elas estão se dando: “A pergunta - perguntar, mas perguntar ao parceiro.
principal a ser feita a qualquer exercício A entonação, a qualidade da atuação é
quando se estava em busca da organici- constituída pelo que ocorre no diálogo,
dade era, segundo Grotowski, a seguin- na relação.
te: esse tipo de trabalho desenvolve os
impulsos vivos do corpo?” (LIMA, 2008, E, pedagogicamente, instruir o educan-
p. 226). do em termos de contato é claro, con-
creto e produtivo: pedir-lhe que entre
A avaliação contínua dos processos dos em contato com algo é mais pedagógico
atuantes, se centelhas de potência te- do que instruir que ele se relacione com
atral é que estão sendo percebidas e algo, porque de certo modo a relação é
fomentadas, teria no contato não ape- um resultado. O trabalho educativo se
nas um grande gerador, mas um critério direciona ao desimpendimento de en-
condutor desta educação. Ao ser guiado trar e transformar-se ao contato. Dentro
por este modo de perceber, o condutor desta perspectiva, Grotowski frisa por
lida melhor com as especificidades dos diversas vezes a importância do contato
educandos, respeitando-as e não as no treinamento e atuação:
reduzindo a suas compreensões e ca-
tegorias estéticas prévias. Por muitas Algo os estimula e vocês reagem:
vezes o condutor nem sabe o que está aí está todo o segredo. Estímulos,
impulsos, reações. (...) Falando dos
ocorrendo em termos de significados, problemas de impulsos e reações,
mas sim em termos de intensidades que frisei, durante as aulas, que não há
estão colocando o educando em potên- impulsos ou reações sem contato.
cia, uma vez que ele está em contato, (...) Mas este companheiro imagi-
vivo. nário deve ser fixado no espaço
desta sala real11. Se não se fixar o
companheiro num lugar exato, as rea-
Priorizar o contato também mina a in- ções permanecerão dentro da gente.
fluência, sobre o educando, de preo- (GROTOWSKI, 1987, p. 187)
cupações prejudiciais para a atuação e
seus processos pedagógicos, como a E o engajamento físico nestas relações
fidelidade a um significado arbitrário e é bem importante - conectar-se a algo
a um suposto personagem com carac- bem concreto no espaço, uma questão
terísticas preexistentes, viver ou mos- de impulsos e movimentos concretos di-
trar emoções, ser interessante ao públi- rigidos a parceiros:
co (LIMA, 2004). Porque o trabalho do
educando é em seus parceiros, aquilo Do mesmo modo, o contato com um
com que ele se relaciona: “O problema companheiro real (um outro ator) tam-
bém se dava em uma dimensão es-
não é ouvir e perguntar qual é o tipo de 11 Grifo meu.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

33
André Luiz Lopes Magela

pacial facilitada, é claro, pela presen- tação causa angústia – promover sus-
ça física desse companheiro. Estar tentar os vazios, sustentar a angústia.
em contato significava direcionar, in-
clusive espacialmente, pensamentos,
E este vazio é uma pobreza rica, que
ações, intenções e voz para um com- atuantes tentam preencher, dentre ou-
panheiro, imaginário ou não. (LIMA, tros motivos, pela tentativa de ser inte-
2012a, p. 193) ressantes para a plateia. Estes recursos
vêm para dar a eles a experiência de
Neste aspecto, é importante a cons- ficar tranquilos ao fazer, simplesmen-
trução de “subsídios somáticos” para o te fazer: “a fim de agir sem inibição, o
trabalho dos atuantes, para aumentar ator (...) deve tornar-se fascinado com a
a experiência do movimento engajado ação” (MITTER, 1992, p. 56).
e concreção física dos contatos. Estes
subsídios podem ser ocasionais, como Do ofício teatral à lida na escola
oferecer resistência a movimentos dos
educandos, propor o uso de um objeto O que, por fim, coloco em relevo nes-
ou realizar movimentos tocando ou di- tas considerações é que trabalhar com
rigindo-se a outro educando. A tônica é o contato seria operar, nas escolas, a
somática: dar algo para o atuante tra- via negativa de Grotowski. Isto se mos-
balhar fisicamente, modulando ou ge- tra como produtivo se pensarmos no
rando contatos qualificados para suas que talvez seja um dos maiores proble-
decisões corporais. mas da docência de teatro na educa-
ção básica formal: o desajuste entre as
Tarefas, regras, delimitações e contato propostas e inclinações pregressas do
(este sendo o grande elemento consti- professor de teatro (seu “chão” pedagó-
tutivo) também se prestam como uma gico) e os interesses e cultura prévios
mesclagem, um elemento intermediário dos educandos.
para que os atuantes se firmem em algo
e possam abandonar o instituído – so- Na acepção aqui exposta, uma vez que
maticamente dar algo ao atuante para seja instituído um acordo mínimo para
tirar algo dele12. Uma “saída de si”, um iniciar-se uma aula, as centelhas de po-
suporte para uma suspensão, por parte tência teatral é que são alimentadas.
do atuante, de seus modos usuais de Deste modo, não é pela negação que
operar, uma vez que aceita operar pelas o professor minimiza as influências da-
tarefas e regras propostas. Remover do quilo que não é desejado por sua pe-
trabalho comportamentos cênicos que dagogia, ou daquilo que não possa ser
venham preencher vazios, cuja susten- absorvido pelas aulas, mas sim pela
12 Procedimento extraído do método GDS de tera- afirmação do que é potente. Na ali-
pia corporal por cadeias musculares, cuja exposição mentação de centelhas de vida (princi-
devo a Núbia Barbosa, fisioterapeuta e professora da palmente os contatos construídos pelo
Faculdade de Dança Angel Vianna, no Rio de Janei-
ro. educando na aula), aquilo que atrapa-

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

34
Abordagem somática na educação teatral

lha e bloqueia acaba sendo deixado de Retomo que o que é aqui defendido
lado, e para trás. Porque vida gera vida. é que estas práticas atuem de manei-
Ao se alimentar algo vivo e aumentar ra metabólica, somática, no sentido de
sua potência, os processos vitais vão se que elas transbordem para a vida não
alimentando e se azeitando. como temas, mas como modos de ope-
rar cognitivamente – um corpo pensan-
De certo modo, quando Grotowski pre- do teatralmente na vida cotidiana. Que
coniza evitar interferir sobre o atuante, o elas operem nos âmbitos de um regime
que é exposto por exemplo em “A voz” estético (RANCIÈRE, 2012), que estão
(2007), ele nos expõe uma positividade no cerne de uma educação estética e
quanto aos processos já em curso no teatral:
corpo do educando e a necessidade de
observarmos o que podemos alimentar Quando o aluno vê as pessoas e as
para aproveitar a riqueza já existente maneiras como elas se comportam
quando juntas, quando vê a cor do
nele. A remoção do que bloqueia (a via céu, ouve os sons no ar, sente o chão
negativa) é justamente tirar o que está sob seus pés e o vento em sua face,
“a mais”, e não acrescentar algo que fal- ele adquire uma visão mais ampla de
ta. seu mundo pessoal e seu desenvolvi-
mento como ator é acelerado. O mun-
do fornece o material para o teatro, e
E não podemos desprezar que a via o crescimento artístico desenvolve-se
negativa é um operador de transforma- par e passo com o nosso reconheci-
ções pessoais (se lembramos da ativa- mento e percepção do mundo e de
ção do corpo-vida provocada por estas nós mesmos dentro dele. (SPOLIN,
propostas). Um processo educativo que 2001, p. 13)
amplia as potencialidades do educando:
E que estas operações só atingem re-
E mesmo quando Grotowski falava gimes estéticos, em aulas teatrais, se
em condições extracotidianas, ele processos somáticos ocorrem. Mas
não estava falando em um processo lembremo-nos de que para a constru-
de vida submetido às exigências da
ção somática das aulas é necessário
arte, mas de uma vida excessiva,
distinta porque mais visível, e porque que haja uma condução que dê condi-
menos submetida à domesticação ções (somáticas) ao atuante para que
seja do corpo, das relações, ou do algo aconteça e vá se construindo. A
pensamento cotidianos: uma vida do ligação entre os exercícios é um dos
teu Homem. (LIMA; 2012a: 413) modos mais importantes para que este
Como se o aprofundamento do ar-
metabolismo ocorra. O metabolismo da
tesanato teatral nos conduzisse ao
problema do desabrochar de possibi- aula visa o metabolismo dos atuantes:
lidades humanas atrofiadas pelo am- os educandos são o trabalho. A cons-
biente social. (QUILICI, 2015ª, p. 75) trução do processo metabólico em cada
aula se direciona a lugares intensivos de

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

35
André Luiz Lopes Magela

experiência para os atuantes (e a uma


intensidade quantitativa também, no Referências
sentido mais comum da palavra). Este
mesmo processo se desdobra para um AVILDSEN, John (direção). Karatê Kid
metabolismo entre os dias de aula. En- – A hora da verdade. Estados Unidos
tão o esquema de trabalho é de articu- da América: Columbia Pictures Corpo-
lação entre, por exemplo, os exercícios ration, 1984.
e a improvisação - dos canais simples
para os complexos; indo e vindo em re- BOAL, Augusto. Jogos para atores e
troalimentação. Cada aula como uma não-atores. Rio de Janeiro: Civilização
miniobra operativa, um acontecimento Brasileira, 2000.
em termos de dimensão teatral, e o pro-
cesso maior entre as sessões atuando DAMÁSIO, António. The feeling of what
de maneira análoga e decorrente. happens : body and emotion in the
making of consciouness. New York  :
Por isso a necessidade de “aulas acon- Mariner Books, 2000.
tecimento”, aulas obra, experimenta-
ções efetivas, condições para a aula ser DELEUZE, Gilles. Espinosa – filosofia
rigorosamente conduzida numa atitude prática. São Paulo : Escuta, 2002.
de atenção ferina. O que precisa ficar
claro, seguindo Grotowski, Deleuze e DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil
Guattari, é que não há receitas para Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vo-
isto. Porque o professor precisa habitar lume 4. São Paulo: Editora 34, 1997.
os territórios no momento de compô-los,
caçar os afetos e agenciamentos para DEPRAZ, N.; VARELA, F.; VERMERS-
inventar os territórios pedagógicos. E CH, P. (Ed.). On becoming aware: a
eles não duram: se ficamos neles dese- pragmatic of experiencing. Amsterdam;
jando segurança, estamos mortos. Philadelphia: J. Benjamins, 2003.
A intenção destas propostas é cola-
borar para que o trabalho do condutor DEWEY, John. Arte como experiência.
de processos pedagógicos teatrais se São Paulo: Martins Fontes, 2010.
mantenha vivo e promova a vida. Mas
a vida em termos de intensividade, de FERNANDES, Ciane. Quando o todo é
impulsos, de relações. Para a docência, mais que a soma das partes: somática
o trabalho é de percepção destas vidas como campo epistemológico contem-
e de sua ampliação. Vidas teatrais. porâneo. Revista Brasileira de Estudos
da Presença. V.5 N.1, p. 9-38, jan/abr
Recebido em: 02/08/2016 2015. Porto Alegre: UFRGS, 2015. Dis-
Aceito em: 15/10/2016 ponível em http://seer.ufrgs.br/index.
php/presenca/article/view/47585

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

36
Abordagem somática na educação teatral

da UNIRIO – Universidade Federal do


GROTOWSKI, Jerzy; FLASZEN, Lu- Estado do Rio de Janeiro. 2004.
dwik. O Teatro Laboratório de Jerzy
Grotowski 1959-1969. São Paulo: Pers- LIMA, Tatiana Motta. Les Mots Prati-
pectiva, 2007. qués: relação entre terminologia e prá-
tica no percurso artístico de Jerzy Gro-
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um towski entre os anos 1959 e 1974. Tese.
teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Rio de Janeiro: PPGAC - UNIRIO, 2008.
Brasileira, 1987.
LIMA, Tatiana Motta. Atenção, porosida-
ICLE, Gilberto. Pedagogia teatral como de e vetorização: Por onde anda o ator
cuidado de si. São Paulo: HUCITEC, contemporâneo?. Belo Horizonte: SUB-
2010. TEXTO – Revista de Teatro do Galpão
Cine Horto. Ano VI. Número 6. 2009.
JOHNSON, Mark. The body in the mind
– The bodily basis of meaning, imagina- MAGELA, André L. L. Produção de sub-
tion and reason. Chicago: The Universi- jetividade em dimensões teatrais – com-
ty of Chicago Press, 1987. posições, propostas e apostas para uma
educação teatral. Tese. Rio de Janeiro:
KASTRUP, Virginia. Políticas cognitivas PPGAC-UNIRIO, 2015.
na formação do professor e o problema
do devir-mestre. In: Educação e Socie- MITTER, Shomit. Systems of Rehearsal
dade, Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1273- – Stanislavsky, Brecht, Grotowski and
1288, Set./Dez. 2005. Brook. London: Routledge, 1992.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Tea- QUILICI, Cassiano Sydow. O ator per-
trais. São Paulo: Perspectiva, 2009. former e as poéticas da transformação
de si. São Paulo: Annablume, 2015
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark.
Philosophy in the flesh – the embodied QUILICI, Cassiano Sydow. Educação
mind and its chalenge to western thou- estética (verbete). In: KOUDELA, Ingrid
ght. New York: Basic Books, 1999. Dormien & ALMEIDA JUNIOR, José Si-
mões de Almeida. Léxico de pedago-
LIMA, Tatiana Motta. Palavras Pratica- gia do teatro. São Paulo: Perspectiva,
das - O Percurso Artístico de Jerzy Gro- 2015b.
towski, 1959-1974. São Paulo: Perspec-
tiva, 2012a. RANCIÈRE, Jacques. O espectador
emancipado. São Paulo: Martins Fon-
LIMA, Tatiana Motta. Programa de disci- tes, 2012.
plina – Interpretação II. Curso de Teatro

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

37
André Luiz Lopes Magela

SPOLIN, Viola. Improvisação para o


Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1982
(2010).

SUZUKI, Tadashi. Culture is the body.


In: ZARRILLI, Phillip. Acting (Re)Con-
sidered: a theoretical and practical gui-
de (worlds of performance). New York:
Routledge, 2002.

VÁSSINA, Elena. O “novo método” de


Stanislavski segundo seu último texto:
“Abordagem à criação do papel, des-
coberta de si mesmo no papel e o pa-
pel em si mesmo”. In: Moringa – Artes
do Espetáculo. V. 6 N. 2 jul-dez/2015.
João Pessoa: Universidade Federal da
Paraíba, 2015. Disponível em http://pe-
riodicos.ufpb.br/ojs/index.php/moringa/
article/view/27185 .

ZARRILLI, Phillip B. Psychophysical


Acting – an intercultural approach af-
ter Stanislavski. New York: Routledge:
2009.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jun 2017, p. 23 a 38

38

Você também pode gostar