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Abstract: This article analyzes some pedagogical procedures for theater acting, focu-
sed here to theater education. These procedures, gathered under the term “somatic
approach”, intend, in such perspective, an increase in the theatrical perception in the
lives of those who practice these classes. Supported implicitly by the philosophy of
Gilles Deleuze and Félix Guattari and works of Jerzy Grotowski, the article also sta-
blish a dialogue with Viola Spolin precepts.
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pelo menos essa sensibilidade física - mesmo que sejam apenas pequenas
básica. (SUZUKI; 2002: 163) centelhas de vida.
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quanto a:
Mas a teatralidade imbricada à vida é
... novas formas de questionamen- também a percepção mais complexa do
to das relações entre a experiência espaço, do tempo e de relações huma-
estética e sua inserção no cotidiano,
suas potencialidades de modificar nas ou a capacidade de invenção cola-
formas de percepção, criar novas borativa de outros mundos de experiên-
relações sociais e outros modos de cia e novas formas de viver. Ela seria
subjetivação. Nesse sentido, a edu- um dos grandes campos que estas au-
cação estética não é pensada como las abordariam: um estrato teatral que
meio exclusivo de formar artistas do
palco, mas como uma via para uma forma a vida cotidiana e que a prática
transformação mais ampla do sujeito, qualificada da cena exercita e amplia.
que pode se desdobrar numa multipli-
cidade de estratégias pedagógicas e Trata-se de um fomento a que o edu-
ações artísticas. (QUILICI, 2015b, p. cando se atente melhor ao teatro, pro-
62) blematize, invente teatro. Mas um
“teatro expandido”, o teatro em seus
Neste contexto, podemos conceber en- aspectos intensivos, qualitativos, ope-
sinar teatro em escolas como preparar, rativos, e não tanto em suas configura-
propor e conduzir experiências que am- ções formais. A atenção teatral, ou ao
pliem a disposição do educando de es- teatral, seria o cerne de uma cognição
tar ativo em dimensões teatrais (sejam ou pensamento que pode ser abordado
estas do cotidiano, das aulas ou dos somaticamente por improvisações, jo-
espetáculos), para que sua percepção gos, exercícios teatrais e processos de
possa se conectar com, e produzir, o construção e exibição de cenas.
teatral. Um “teatral” que pode ser des-
crito resumidamente como modulações Indução pedagógica
imbricadas do tempo, do espaço e do
comportamento. “Dimensões teatrais” O teor somático desta educação teatral
da vida, cujo exemplo mais visível é o consiste no entranhar-se em experiên-
planejamento e compreensão de acon- cias que são conduzidas para tocarem
tecimentos: algo qualitativamente teatral: a percep-
ção4 do que ocorre teatralmente. Deste
A imaginação dramática, a faculdade
de nos colocarmos no lugar do outro modo, os corpos constituídos nas aulas
ou em circunstâncias que não estão podem se expandir ou transbordar para
presentes fisicamente para os nossos fora dela, em aulas baseadas na epis-
sentidos, continua por toda a vida e temologia da atuação e em sua artesa-
caracteriza grande parte de nosso nia. A somatização é que possibilita um
pensamento quando estabelecemos
hipóteses sobre o futuro, reconstruí- salto das operações ocorridas em aula
mos o passado ou planejamos o pre- 4 Note-se que perceber é agir, numa concepção onde
sente. (KOUDELA, 2009, p. 37) a percepção é sempre ativa.
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Este setting de trabalho, com suas deli- ocorrendo em cena (o contato, relacio-
mitações, visa tanto “manter viva a aten- nar-se). Outro ponto de nota é que o
ção ao plano de forças e dos devires” contato se irmana com o que podemos
(KASTRUP, 2005, p. 1285) onde algo chamar de “escuta”:
de novo é experimentado, quanto evitar
a dispersão. Talvez uma das ambições A noção de ‘escuta’ pressupõe que o
deste tipo de trabalho paradoxalmente ator trabalha todo o tempo em ‘rela-
ção’ ou em ‘contato’ com os inúmeros
seja este treino de atenção despreten- parceiros materiais (textos, sequên-
ciosa, que não almeja algo excepcional, cias, companheiros, espaço físico,
que se contenta em estar em contato etc.) e imateriais (imagens, senti-
com algo imediato, concreto, específico, mentos, sensações). Ele não se vê
local. como ‘separado’ da relação com es-
ses parceiros (como se houvesse um
lado ‘de fora’, ou lugar objetivante)
Contato e, muito menos, como ‘manipulador’
desses elementos (como se houves-
O contato, interpretado a partir de lei- se um lugar de trabalho separado do
turas de obras escritas de Jerzy Gro- lugar de ‘afetação’). Estar em conta-
to significa, ao contrário, perceber-se
towski, seria a ação de um atuante de como parte da anima mundi e, perma-
se relacionar com outro “alguém”, seja nentemente, reagir e ajustar-se ao di-
este ente o que for, a conexão concre- namismo desses parceiros sem sub-
ta que o atuante estabelece com este metê-los a uma ‘objetivação’ ou, em
parceiro. A relação se dá através deste outras palavras, a um controle estrito
da ‘expressão’. Essa é, portanto, uma
contato, e colocaria o atuante num lugar subjetividade (de ator? de homem?)
de potência, uma vez que ele se afeta mais ‘aberta’ aos atravessamentos do
pelo parceiro – a potência de afetar-se10 fluxo da vida no corpo (ou melhor, que
(DELEUZE, 2002). E responder ao par- compreende o corpo enquanto partí-
ceiro em contato com ele é uma ação, cipe do fluxo da vida). (LIMA, 2009,
já que o atuante se transforma ao afe- p. 29)
tar-se.
A prevalência destes elementos no tra-
A utilização da noção de contato para a balho é um modo procedimental de to-
prática de atuação tem um caráter mi- car diretamente as questões vitais dos
mético ou “metonímico”. Porque se a atuantes, de mesclar somaticamente
vida são relações, afecções, o que ocor- sua atuação com o que vive e viverá.
re em cena “é vida”, na medida em que A transformação pessoal é, assim, con-
operações da vida (as afecções) estão dição necessária neste processo de
atuação. Redirecionando o olhar para
10 A referência aqui é o estudo de Deleuze sobre Es-
pinosa (DELEUZE, 2002). O corpo é constituído por
a educação teatral, perceber se o atu-
afecções, composições infinitas de elementos. A po- ante-educando está em contato e a
tência aqui é vista como a capacidade de afetar-se qualidade destas relações seria um in-
mais e melhor.
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dicador de que algumas operações cog- entonação, e sim apenas escutar e res-
nitivas teatrais estão se dando ou não, e ponder” (GROTOWSKI, 1987, p. 187)
como elas estão se dando: “A pergunta - perguntar, mas perguntar ao parceiro.
principal a ser feita a qualquer exercício A entonação, a qualidade da atuação é
quando se estava em busca da organici- constituída pelo que ocorre no diálogo,
dade era, segundo Grotowski, a seguin- na relação.
te: esse tipo de trabalho desenvolve os
impulsos vivos do corpo?” (LIMA, 2008, E, pedagogicamente, instruir o educan-
p. 226). do em termos de contato é claro, con-
creto e produtivo: pedir-lhe que entre
A avaliação contínua dos processos dos em contato com algo é mais pedagógico
atuantes, se centelhas de potência te- do que instruir que ele se relacione com
atral é que estão sendo percebidas e algo, porque de certo modo a relação é
fomentadas, teria no contato não ape- um resultado. O trabalho educativo se
nas um grande gerador, mas um critério direciona ao desimpendimento de en-
condutor desta educação. Ao ser guiado trar e transformar-se ao contato. Dentro
por este modo de perceber, o condutor desta perspectiva, Grotowski frisa por
lida melhor com as especificidades dos diversas vezes a importância do contato
educandos, respeitando-as e não as no treinamento e atuação:
reduzindo a suas compreensões e ca-
tegorias estéticas prévias. Por muitas Algo os estimula e vocês reagem:
vezes o condutor nem sabe o que está aí está todo o segredo. Estímulos,
impulsos, reações. (...) Falando dos
ocorrendo em termos de significados, problemas de impulsos e reações,
mas sim em termos de intensidades que frisei, durante as aulas, que não há
estão colocando o educando em potên- impulsos ou reações sem contato.
cia, uma vez que ele está em contato, (...) Mas este companheiro imagi-
vivo. nário deve ser fixado no espaço
desta sala real11. Se não se fixar o
companheiro num lugar exato, as rea-
Priorizar o contato também mina a in- ções permanecerão dentro da gente.
fluência, sobre o educando, de preo- (GROTOWSKI, 1987, p. 187)
cupações prejudiciais para a atuação e
seus processos pedagógicos, como a E o engajamento físico nestas relações
fidelidade a um significado arbitrário e é bem importante - conectar-se a algo
a um suposto personagem com carac- bem concreto no espaço, uma questão
terísticas preexistentes, viver ou mos- de impulsos e movimentos concretos di-
trar emoções, ser interessante ao públi- rigidos a parceiros:
co (LIMA, 2004). Porque o trabalho do
educando é em seus parceiros, aquilo Do mesmo modo, o contato com um
com que ele se relaciona: “O problema companheiro real (um outro ator) tam-
bém se dava em uma dimensão es-
não é ouvir e perguntar qual é o tipo de 11 Grifo meu.
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pacial facilitada, é claro, pela presen- tação causa angústia – promover sus-
ça física desse companheiro. Estar tentar os vazios, sustentar a angústia.
em contato significava direcionar, in-
clusive espacialmente, pensamentos,
E este vazio é uma pobreza rica, que
ações, intenções e voz para um com- atuantes tentam preencher, dentre ou-
panheiro, imaginário ou não. (LIMA, tros motivos, pela tentativa de ser inte-
2012a, p. 193) ressantes para a plateia. Estes recursos
vêm para dar a eles a experiência de
Neste aspecto, é importante a cons- ficar tranquilos ao fazer, simplesmen-
trução de “subsídios somáticos” para o te fazer: “a fim de agir sem inibição, o
trabalho dos atuantes, para aumentar ator (...) deve tornar-se fascinado com a
a experiência do movimento engajado ação” (MITTER, 1992, p. 56).
e concreção física dos contatos. Estes
subsídios podem ser ocasionais, como Do ofício teatral à lida na escola
oferecer resistência a movimentos dos
educandos, propor o uso de um objeto O que, por fim, coloco em relevo nes-
ou realizar movimentos tocando ou di- tas considerações é que trabalhar com
rigindo-se a outro educando. A tônica é o contato seria operar, nas escolas, a
somática: dar algo para o atuante tra- via negativa de Grotowski. Isto se mos-
balhar fisicamente, modulando ou ge- tra como produtivo se pensarmos no
rando contatos qualificados para suas que talvez seja um dos maiores proble-
decisões corporais. mas da docência de teatro na educa-
ção básica formal: o desajuste entre as
Tarefas, regras, delimitações e contato propostas e inclinações pregressas do
(este sendo o grande elemento consti- professor de teatro (seu “chão” pedagó-
tutivo) também se prestam como uma gico) e os interesses e cultura prévios
mesclagem, um elemento intermediário dos educandos.
para que os atuantes se firmem em algo
e possam abandonar o instituído – so- Na acepção aqui exposta, uma vez que
maticamente dar algo ao atuante para seja instituído um acordo mínimo para
tirar algo dele12. Uma “saída de si”, um iniciar-se uma aula, as centelhas de po-
suporte para uma suspensão, por parte tência teatral é que são alimentadas.
do atuante, de seus modos usuais de Deste modo, não é pela negação que
operar, uma vez que aceita operar pelas o professor minimiza as influências da-
tarefas e regras propostas. Remover do quilo que não é desejado por sua pe-
trabalho comportamentos cênicos que dagogia, ou daquilo que não possa ser
venham preencher vazios, cuja susten- absorvido pelas aulas, mas sim pela
12 Procedimento extraído do método GDS de tera- afirmação do que é potente. Na ali-
pia corporal por cadeias musculares, cuja exposição mentação de centelhas de vida (princi-
devo a Núbia Barbosa, fisioterapeuta e professora da palmente os contatos construídos pelo
Faculdade de Dança Angel Vianna, no Rio de Janei-
ro. educando na aula), aquilo que atrapa-
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lha e bloqueia acaba sendo deixado de Retomo que o que é aqui defendido
lado, e para trás. Porque vida gera vida. é que estas práticas atuem de manei-
Ao se alimentar algo vivo e aumentar ra metabólica, somática, no sentido de
sua potência, os processos vitais vão se que elas transbordem para a vida não
alimentando e se azeitando. como temas, mas como modos de ope-
rar cognitivamente – um corpo pensan-
De certo modo, quando Grotowski pre- do teatralmente na vida cotidiana. Que
coniza evitar interferir sobre o atuante, o elas operem nos âmbitos de um regime
que é exposto por exemplo em “A voz” estético (RANCIÈRE, 2012), que estão
(2007), ele nos expõe uma positividade no cerne de uma educação estética e
quanto aos processos já em curso no teatral:
corpo do educando e a necessidade de
observarmos o que podemos alimentar Quando o aluno vê as pessoas e as
para aproveitar a riqueza já existente maneiras como elas se comportam
quando juntas, quando vê a cor do
nele. A remoção do que bloqueia (a via céu, ouve os sons no ar, sente o chão
negativa) é justamente tirar o que está sob seus pés e o vento em sua face,
“a mais”, e não acrescentar algo que fal- ele adquire uma visão mais ampla de
ta. seu mundo pessoal e seu desenvolvi-
mento como ator é acelerado. O mun-
do fornece o material para o teatro, e
E não podemos desprezar que a via o crescimento artístico desenvolve-se
negativa é um operador de transforma- par e passo com o nosso reconheci-
ções pessoais (se lembramos da ativa- mento e percepção do mundo e de
ção do corpo-vida provocada por estas nós mesmos dentro dele. (SPOLIN,
propostas). Um processo educativo que 2001, p. 13)
amplia as potencialidades do educando:
E que estas operações só atingem re-
E mesmo quando Grotowski falava gimes estéticos, em aulas teatrais, se
em condições extracotidianas, ele processos somáticos ocorrem. Mas
não estava falando em um processo lembremo-nos de que para a constru-
de vida submetido às exigências da
ção somática das aulas é necessário
arte, mas de uma vida excessiva,
distinta porque mais visível, e porque que haja uma condução que dê condi-
menos submetida à domesticação ções (somáticas) ao atuante para que
seja do corpo, das relações, ou do algo aconteça e vá se construindo. A
pensamento cotidianos: uma vida do ligação entre os exercícios é um dos
teu Homem. (LIMA; 2012a: 413) modos mais importantes para que este
Como se o aprofundamento do ar-
metabolismo ocorra. O metabolismo da
tesanato teatral nos conduzisse ao
problema do desabrochar de possibi- aula visa o metabolismo dos atuantes:
lidades humanas atrofiadas pelo am- os educandos são o trabalho. A cons-
biente social. (QUILICI, 2015ª, p. 75) trução do processo metabólico em cada
aula se direciona a lugares intensivos de
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KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Tea- QUILICI, Cassiano Sydow. O ator per-
trais. São Paulo: Perspectiva, 2009. former e as poéticas da transformação
de si. São Paulo: Annablume, 2015
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark.
Philosophy in the flesh – the embodied QUILICI, Cassiano Sydow. Educação
mind and its chalenge to western thou- estética (verbete). In: KOUDELA, Ingrid
ght. New York: Basic Books, 1999. Dormien & ALMEIDA JUNIOR, José Si-
mões de Almeida. Léxico de pedago-
LIMA, Tatiana Motta. Palavras Pratica- gia do teatro. São Paulo: Perspectiva,
das - O Percurso Artístico de Jerzy Gro- 2015b.
towski, 1959-1974. São Paulo: Perspec-
tiva, 2012a. RANCIÈRE, Jacques. O espectador
emancipado. São Paulo: Martins Fon-
LIMA, Tatiana Motta. Programa de disci- tes, 2012.
plina – Interpretação II. Curso de Teatro
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