Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract: This paper discusses the work of Abdulai Sila [1958-], and, more especifically,
Dois tiros e uma gargalhada (2013), last publication by the author. We are going to
investigate how two cultural systems of representation – the african and the western –
aprehend history and how these systems interact in contemporary times. To this end, we
will discuss the identities’ figuration of the main characters, as well as verify networks
and alterity relations, spatiotemporal intersections and forms of identification with
tradition. We suspect, then, that there is in the work of this author an understanding
of history that recovers the african cultural magic in contrast to the inevitability of the
conception of history posed by the west.
Keywords: Literary theory, african literatures in Portuguese, postcolonial studies,
Abdulai Sila.
*
Professor Adjunto em Teoria da Literatura do Departamento de Letras Estrangeiras, pesquisador
permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras, mestrado e doutorado, da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN, Brasil).
232 VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 27, 231-249, Jun/2015
D
parece que ainda continuam a pairar entre nós
alguns fantasmas do passado.
Abdulai Sila - Dois tiros e uma gargalhada (2013).
do Angelus Novus – quadro de Paul Klee – o discurso literário de Sila faz apelo à
consciência do vivido, tentando “despertar os mortos e juntar os destroços” do
tempo para que haja um entendimento do processo histórico na mesma medida
em que ele acontece. Mas a História, implacável, segue o seu curso. Sila mostra,
então, um espectro da História, a sua contingência, a sua imprevisibilidade ou
esperança como forma de revide.
O romance A última tragédia (1995), de Abdulai Sila, embora trate do perío-
do da colonização, foi escrito pelo autor no tempo da pós-colonialidade. Nessa
obra, o autor expõe as contrariedades do período colonial na então Guiné Por-
tuguesa, sob a perspectiva dos próprios bissauguineenses. O mundo apresenta-
do no romance é o mundo marcado pela opressão dos colonizadores sobre os
colonizados, ou seja, dos brancos estrangeiros sobre os negros autóctones. No
romance não há um desfecho propriamente dito, mas há sinais de que a tensão
entre brancos e negros será cada vez mais aguda e culminará, mais adiante, num
confronto violento em larga escala, onde os locais, os bissauguineenses, exigem
a saída imediata dos colonizadores de seu território. Essa narrativa, implícita
no romance, se confirma com o desdobrar da História. Através da luta armada,
Guiné-Bissau conquista sua independência política em 1973.
Paralelamente ao decurso da História, que leva à luta armada e, em segui-
da, à libertação do país, há em A última tragédia uma outra história, “passada”
como denomina o narrador, que não foi contada. Para além da história de vidas
particulares que foram arruinadas pela colonização (vejam o caso de Ndani e do
Professor, por exemplo), Sila mostra, através do testamento de um importante
Régulo, que houve um plano anterior para expulsar os colonos sem necessitar,
entretanto, derramar sequer uma gota de sangue. É nesse ponto que acredita-
mos estar a mais singular contribuição de Sila. O autor africano deixa, com isso,
bastante claro que a violência nunca foi a primeira opção dos negros, mesmo na
situação colonial, e que, caso fossem obrigados a considerar essa opção, tinham
também consciência de que estavam agindo de maneira ambígua em relação à
cultura de seus ancestrais. A cultura tradicional, altamente mítica e espiritual,
não se identifica com a cultura da violência como revanche.
Com o plano do Régulo, Sila queria quem sabe impedir de chafurdar a cul-
tura africana na lama imperialista do ocidente, de modo a querer preservar o
equilíbrio entre o mundo material e espiritual próprios da diversidade cultural
africana. Mas, como vimos, o fluxo da História foi outro: além de o ocidente inva-
234 VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 27, 231-249, Jun/2015
dir e dominar territórios, ele sequestrou das culturas locais o equilíbrio secular
que as sustentava, obrigando-as a reagirem e a incorporarem a violência como
arma de contenção ao controle imperial absoluto. Daí por diante, vemos então
um processo de hibridismo compulsório sem precedentes, onde a medida ago-
ra é a desmedida, onde a identidade cultural do bissauguineense está cindida,
ocupando um entrelugar do imaginário, local de disputas acirradas no desejo de
se consolidar uma nova imagem de si mesmo ou da nação. Com o plano do Ré-
gulo, a consciência crítica de Sila chega à clarividência: esse revide, embora não
consumado, vai continuar a pairar na imaginação do escritor, assumindo, mais
adiante (nas suas obras posteriores) contornos utópicos e maravilhosos.
Em Eterna paixão (1994), a esperança como revide encontra a sua expressão
concreta. Num país africano governado por uma elite pós-colonial, que abando-
na o compromisso antes assumido no tempo das lutas independentistas, substi-
tuindo o poder colonial por um poder local, mas igualmente opressor, desigual
e ditatorial, a possibilidade de um reencontro da comunidade com a ordem po-
lítica estabelecida é novamente posta em questão. Se antes eram os brancos
os opressores, agora são os próprios negros saídos desumanizados pela guerra
colonial, desencadeando disputas fratricidas pelo poder. Este poder, que passa
tanto pela esfera militar quanto pelo Estado civil, será marcado pela instabili-
dade, por traições e séries de golpes. Nesse período, veremos uma elite pós-
-colonial ambígua culturalmente, pois, na mesma medida em que ela retoma o
discurso independentista a seu favor, ela também se vê como uma classe social
dividida, que sabota politicamente a continuidade do processo de descoloniza-
ção em face de seus próprios interesses, e ainda se identifica, mimeticamente,
com padrões elevados de vida da cultura ocidental.
Nesse contexto, a esperança renasce na trama ficcional de Abdulai Sila. Atra-
vés de Daniel, um personagem emblemático do romance, Sila propõe uma volta
ao “equilíbrio”, onde a seiva das tradições africanas e a oportunidade oferecida
pelo momento pós-colonial favorecem todos os cidadãos da nação. Daniel, an-
tes banido do governo central, recupera, agora, a esperança numa comunidade
tradicional, ao executar uma série de projetos sociais para, depois, retornar ao
governo. No governo, Daniel obtém apoio para estender todo o projeto à nação.
Nesse romance, um projeto de nação é possível, a esperança se realiza, e passa
então a correr em paralelo com o tempo da História presente, ou seja, ao tempo
histórico que Sila tanto critica e combate.
VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 27, 231-249, Jun/2015 235
teiras étnicas do país. De forma mais enfática e categórica, podemos dizer que,
ao cabo da luta independentista, Guiné-Bissau surge como uma só civilização, e
não mais um mosaico de etnias agrupadas e administradas por uma civilização
de fora. Mas, como toda civilização, surge simbolicamente a partir de um ato
de agressão e, posteriormente, de um profundo sentimento de culpa. Essa foi,
simbolicamente, a condição de Amambarka. Esse personagem, imagem da nova
nação, foi aquele que matou seus próprios pais para instituir um novo poder,
uma nova ordem social. E ele, apesar de condenado pelo autor, é, entretanto,
o real pivô da história da pós-colonização africana, o divisor de águas entre o
passado e o recente presente histórico.
Não por acaso, Amambarka aparece novamente em “As orações de Mansata”
(2007). Com isso, Sila parece desejar genericamente fixar a imagem do político
e administrador das nações africanas como um representante do “mal” na so-
ciedade pós-colonial em África. Amambarka não é aquele personagem ruim por
sua natureza, mas pelo processo histórico que o fez. A sua busca pelo poder,
bem como a maneira como ele próprio traduz o medo em ser traído, mostra
para nós sua condição compósita ou mestiça por imposição. Ele entende que a
garantia de poder pode ser dada pela aura protetora da tradição/ancestralidade,
mas, por outro lado, sabe que a sua condição não permite mais acessibilidade
a essa mesma tradição. A violência que o fez e reproduz não o permite mais
tal vínculo. E o ocidente, que antes prometera proteção a ele, agora hesita ou
mesmo começa a deixar claro para o personagem que a sua presença como líder
africano já não é mais conveniente aos seus interesses.
Diante desse quadro, Amambarka reconhece sua diferença em relação ao oci-
dente, desejando, como político e administrador, mais autonomia política para
fazer uma série de reformas no país. Essas reformas, além de beneficiar a popu-
lação, reduziriam a dependência política de Amambarka frente ao ocidente. Se
ele conseguir, pela astúcia e violência, recuperar os poderes da tradição, poderá
então ser um líder reconhecido pela nação:
mundo ocidental como sujeito desumano e bestial. Isso reforça a imagem cons-
truída sobre o negro no período da colonização e serve, no presente, como ar-
gumento legitimador da condição subalterna dos negros africanos no mundo e
de intervenções estrangeiras de ordem político-militares compulsórias. Toda a
África, a partir dessa perspectiva, será vista como habitada por “não-pessoas” –
pessoas de existências negadas pelo Direito Internacional (Chomsky, 2012) – , e
que, por isso, necessita do “apoio” civilizatório do ocidente.
A figuração de Amambarka, contraditória e potencialmente destrutiva, irá
marcar presença em Dois tiros e uma gargalhada (2013), a mais recente publi-
cação de Sila. Nessa peça, Amambarka reforça as características do personagem
por nós já percebidas nos livros anteriores do autor. Mesmo guardando inde-
pendência em relação às obras anteriores – Mistida e As orações de Mansata –,
a peça traz novamente toda a problemática anterior do personagem, fazendo,
ainda, outras conexões com outros mundos da ficção do autor. Amambarka, nes-
sa peça, quer agora eliminar todos os vetores que obstaculizam a sua ascensão
e permanência no poder. Uma dessas forças é, sobretudo, a própria sabedoria
local, representada por chefes comunitários conhecidos como Homens-grandes.
A peça termina, surpreendentemente, com o fracasso de Amambarka.
Diante do exposto, ou seja, da breve recensão que fizemos da literatura de
Sila, arriscamos afirmar que, pelo menos, três grandes questões se apresentam
no conjunto da obra ficcional do autor africano. A saber: (1) a tradição cultural
africana, (2) a angústia da ruptura com essa tradição e (3) a reinvenção da cul-
tura da tradição africana como um modo híbrido de se relacionar com os novos
desafios que a paisagem do(no) mundo contemporâneo impõe. Com os olhos
postos no último trabalho literário de Sila, iremos abordar, adiante, os tópicos
acima, ainda que ligeiramente.
havia certa “alegria” em matar, pois identificavam suas vítimas como “traido-
res”, “reacionários” ou “lacaios do colonialismo”. Agora, no tempo pós-colonial
mais tardio, esse grupo está deslocado, sem apoio popular e também sem os
apoios externos que recebia. Contudo, a conduta moral do grupo continua a
mesma, e isso faz com que haja um desencantamento com a realidade e uma
incompreensão acerca dos movimentos políticos e sociais, vindos de setores
que, desde o tempo da colonização, eram vistos com desconfiança e motivo de
atritos constantes com os colonizadores. Trata-se de líderes comunitários, an-
tes designados Régulos pelos portugueses, hoje mais conhecidos no país como
Homens-grandes.
Se o grupo de Amambarka, com seus matadores e seguidores, obteve êxitos
em suas conquistas no passado, foi (nós confiamos nessa hipótese) porque o
projeto político africano nacional foi negado aos próprios africanos. Os colonos
mostraram sua desumanidade para salvar o direito de ter domínio político so-
bre a terra, sobre a sua nação. Mas, passado esse período, chega-se a hora de
se desarmar, de banir os próprios fantasmas e buscar uma reconciliação com a
História. De outro modo, a peça de Sila aponta para um tempo de mudança, um
tempo de reconciliação da História com a tradição, de fazer chegar ao topo da
organização política da nação a sabedoria e a experiência comunitárias, ou seja,
todo o aparato cultural, espiritual, político, técnico e ético que a tradição pode
oferecer. Com efeito, esse conjunto de saberes poderá remodelar ou reequili-
brar a ordem política em favor de uma imagem favorável de uma nação africana
de fato livre, onde a sua humanidade está presente e visível.
A hesitação dos comparsas de Amambarka para matar um chefe comunitário
suscita questionamentos relevantes sobre o entrecruzamento da política com a
tradição/ancestralidade. Mesmo conscientes do papel a exercer, como justicei-
ros a mando de Amambarka, eles temem a ancestralidade, pois sabem estar a
cometer uma falta grave com o mundo espiritual que ainda os identifica.
Em outros termos, não importando muito o motivo, matar um “mestiço”
(“destribalizado”) ou mesmo um “branco” não traria para suas próprias vidas
nenhum tipo de maldição, nenhum agoiro ou outro mal que pudessem temer.
Porém, “eliminar” um Homem-grande é, por certo, negar toda a aprendizagem
cultural acerca da vida e do mundo. É exatamente nesse momento em que no-
tamos haver nesses sujeitos africanos uma cisão clara entre a prática social e a
norma cultural. Com isso, a política da violência, algo temporal e objetivo, sofre
VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 27, 231-249, Jun/2015 241
do governo, teve infância sofrida. Órfão a partir dos sete anos, teve problemas
de autoestima e, na vida adulta, passou a ter um enorme apego ao dinheiro,
projetando toda sua imagem pessoal e pública como exemplo de sujeito bem-
-sucedido a ser reverenciado. Com essa ambição, Kilin orquestra, no governo,
um golpe político, recorrendo, inclusive, à violência. Além disso, ele assina secre-
tamente um contrato com uma empresa multinacional, a fim de obter propina.
Assim, essa atitude de Kilin, contestada por Sila, reforça a ideia de que figuras
da vida pública, desejando alcançar seus próprios interesses, põem em risco os
interesses da própria nação, o que faz, portanto, perpetuar a condição de subal-
ternidade do povo africano em relação ao ocidente.
L’errance, c’est cela même qui nous permet de nous fixer. De quitter ces leçons de
choses que nous sommes si enclins à semoncer, d’abdiquer ce ton de sentence
où nous compassons nos doutes [...] ou nos déclamations, et de dériver enfin. (A
errância é, ela própria, aquilo que nos permite fixar-nos. De deixar as lições das
coisas que nós estamos tão inclinados a corrigir, a abdicar desse tom de sentença
onde nós confortamos nossas dúvidas [...] ou nossas afirmações, e de derivar
enfim).
sas que necessitamos, para que as principais possam caber na mala, e nos desa-
pegarmos sofridamente de muitas outras, ainda que nos possam fazer falta em
algum momento. Então, na bagagem de Sila, temos a impressão que ele trans-
porta, de maneira resumida e condensada, toda a tradição cultural africana, na
figuração simbólica, talvez, de um único item: o “poder-saber” da tradição local
africana.
Com a colonização e, consequentemente com o pós-colonialismo, a vida
social africana, em seus múltiplos aspectos (político, religioso, econômico etc),
passou a se situar num “campo de forças de poder-saber”, aproveitando-nos da
citação de Stuart Hall (2011: 111). Todo o aparato da colonização, como institui-
ções de ensino, bancos, hospitais, tecnologias e outros meios criaram uma per-
cepção de que o único sistema de conhecimento e de representação válido era
o de matriz ocidental. Desse modo, todo o conhecimento cultural africano e suas
estratégias de apoderamento foram recusados na moldura da própria sociedade
local africana.
Entretanto, como uma espécie de revide, vemos que na peça de Sila
as posições do “saber-poder” do ocidente e da cultura africana se invertem: o
“saber-poder” do ocidente é, na primeira parte do livro, contestado, mostrando,
através da atitude dos principais personagens, como esse sistema de represen-
tação fracassou na sociedade africana. Em contraposição, vemos a afirmação,
a partir da segunda parte do livro, do “saber-poder” africano, como prática de
orientação ao exercício da política do poder num espaço africano de disputas
legítimas. Em outras palavras, Sila traduz a ascensão do “poder-saber” da tra-
dição africana através da articulação e sucesso da comunidade liderada pelos
Homens-grandes (Kamala Djonko e Kemeburema), que põem em prática o saber
africano (cultural, político, ético e místico) em contraposição aos insucessos da
prática da razão ocidental, orientada com exclusividade pela esfera econômica
do lucro e do consumo.
O “saber-poder” africano, representado por Sila, não faz, entretanto, tábula
rasa do legado (pós)colonial; pelo contrário, aproveita as instituições constituí-
das para reocupá-las com o seu saber. Nesse momento, temos então o desem-
balar da bagagem numa data imaginada, onde a força da tradição africana volta
a assumir sua posição central no cenário político, através da inserção das co-
munidades sociais de base negligenciadas, mas profundamente identificadas às
mais variadas formas de expressão da cultura africana. Nesse sentido, podemos
246 VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 27, 231-249, Jun/2015
Considerações finais
Referências