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T eatralidade tátil: alterações no ato do espectador

F lávio Desgranges

O que advém, com o desaparecimento para se efetivar, depende de uma disponibilida-


da ilusão e o declínio da aura nas obras de de distinta do espectador, inaugurando outro
arte, é um crescimento considerável de modo participativo. Além de alterar significati-
possibilidades com as quais podemos jogar vamente a noção de obra de arte, que deixa de
(Walter Benjamin). ser concebida com a aura que a envolvia tradi-
cionalmente. A produção teatral pode ser con-
siderada, desde então, não como obra, mas

O
modo de atuação proposto ao espectador como objeto artístico, passando a assumir fun-
vem sofrendo alterações significativas nos ção social bastante diversa daquela compreen-
últimos séculos, em diálogo estreito com dida até então.
as transformações observadas, tanto nas
propostas formais dos artistas, quanto no
contexto social dos diversos períodos, dando O mergulho no universo ficcional
conta do caráter histórico que condiciona a re-
cepção teatral. Pois a relação do espectador com Afinado com os ideais iluministas que propu-
o teatro está intimamente relacionada com a nham importantes reformas políticas e sociais,
maneira, própria a cada época, de ver-sentir- o drama burguês se afirma no decorrer do sécu-
pensar o mundo. As reflexões seguintes buscam lo XVIII em contraposição à tragédia neoclás-
elaborar algumas características e distinções que sica, que predominava nos palcos europeus de
marcam os movimentos teatrais que, desde o então – especialmente na França –, filiada aos
Iluminismo, vêm operando transformações sub- preceitos absolutistas da nobreza dominante.
seqüentes e que constituem traços marcantes Essa forma dramática, que acompanha o nasci-
para compreendermos o ato do espectador em mento e o estabelecimento da classe social que
nossos dias. Ressaltarei aqui, especialmente, as- lhe empresta o nome, vai, aos poucos, afastan-
pectos da teatralidade recente, em que, como do as antigas convenções e estilizações da cena,
tentarei descrever, a recepção passa a ser com- em conformidade com o refinamento de seus
preendida por seu caráter de experiência, que, propósitos estéticos.

Flávio Desgranges é professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em


Artes Cênicas da ECA-USP.

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A renovação artística que marca a transi- da comédia jocosa” (Diderot, 2005, p. 19).
ção da tragédia classicista e heróica para a for- George Lillo, para defender o ponto de vista dos
ma dramática nascente se faz, pois, em tensão dramaturgos burgueses, argumenta que o herói
com as lutas da burguesia em ascensão no perí- trágico não precisa necessariamente ser um no-
odo. O programa e a apologia do drama burgu- bre, mas um homem com espírito nobre (Szondi,
ês são realizados por dramaturgos – o inglês 2004). E ressalta que não se encontra em
Lillo, os franceses Diderot e Mercier, e o ale- Aristóteles uma definição taxativa sobre a con-
mão Lenz – que, além de escreverem as novas dição principesca do herói. A nobreza, sugere o
peças, articulam também os tratados teóricos autor inglês, precisa ser aferida pelo caráter de
que defendem e justificam as mudanças na arte um homem, por sua fala, por suas decisões, e
teatral. O drama surge como crítica ao existen- não por sua condição social. Assim, um cida-
te, valendo-se de argumentos e soluções formais dão comum – ou, mais especificamente, um
que mantêm em tensão as naturezas política e burguês – também pode ser tomado como he-
poética de seus princípios. Os embates da nova rói nas peças teatrais. Além do que, a ampliação
forma dramática se colocam em consonância da condição de nobreza do herói pode signifi-
com as reivindicações da classe social que ideali- car a própria ampliação do alcance do teatro,
zava as transformações político-sociais em curso. que não precisa mais se restringir a um peque-
São colocados em jogo, deste modo, aspectos no segmento da sociedade, mas pode interessar
fundamentais do Iluminismo: a constituição de e atingir um vasto contingente da população.
homens livres, capazes de traçar seus próprios Ou seja, segundo a astuta argumentação de
rumos, para além de qualquer submissão políti- Lillo, não é o burguês que depende do teatro,
ca; a defesa pelo direito de cada um à consciên- mas o teatro que depende do burguês.
cia religiosa; e o estabelecimento de bases morais Outra importante questão levantada no
que fundamentem o progresso da humanidade. período acerca da leitura da Poética se refere aos
Em defesa dos princípios dramáticos, os efeitos da tragédia em sua relação com o públi-
teóricos burgueses se relacionam de maneira crí- co. A noção, largamente difundida então, de
tica e revisionista com os escritos de Aristóteles, que a poesia dramática se caracterizaria pelo
que inspiravam a tragédia heróica em voga. Para ensinamento que pode proporcionar aos espec-
afirmarem seus postulados artísticos, relacio- tadores, que poderiam aprender com os erros
nados com a defesa de suas causas políticas, cometidos pelo herói, advém já de uma reinter-
precisam partir para o embate no âmbito con- pretação de Aristóteles realizada pelos teóricos
ceitual, questionando a leitura da Poética em- renascentistas. E que foi aproveitada pelos teó-
preendida pelos teóricos de então. As interpre- ricos burgueses no Iluminismo para a concep-
tações dos escritos aristotélicos se mostram, de ção dos princípios da nova arte dramática. O
ambos os lados, carregadas pela luta deflagrada drama burguês utiliza-se deste potencial de
no palco histórico do período pelas classes so- aprendizagem, já presente nos efeitos da tra-
ciais em conflito. gédia heróica, com o intuito de ampliá-lo (com
Uma das questões de fundamental impor- adaptações), estabelecendo uma tensão entre a
tância para que o drama burguês se afirme está nova forma e os propósitos da burguesia em as-
na possibilidade de que personagens pertencen- censão. A fábula deve servir como um exemplo
tes a essa classe social se tornem protagonistas para a conduta na vida; um exemplo negativo,
das novas peças. Pois, como anota Diderot, as do qual se podem tirar lições.
regras do teatro clássico indicam que, “se quiser Os efeitos do drama burguês estão, assim,
representar uma fábula trágica, o dramaturgo voltados para a correção de comportamentos
deve escolher personagens de condição princi- desregrados, que possam ser considerados como
pesca, reservando os burgueses ao estilo baixo prejudiciais ao bem-comum e que contrariem

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os interesses da sociedade. A catarse aristotélica, esteja revelada. Dessa maneira, os coros, o ver-
por sua vez, passa a ser compreendida como va- so, os maneirismos e exageros dos atores, a des-
zão à sentimentalidade, a purgação entendida continuidade das cenas, os apartes, ou qualquer
como correção pelas lágrimas. modo de relação direta com o público vão pou-
O drama burguês, surgido em tempos de co a pouco sendo abolidos.
afirmação do núcleo familiar, faz das reprimen- A caracterização psicológica de cada per-
das de conduta seu efeito primordial. Como sonagem torna-se, a partir de então, fundamen-
destaca Lillo, “convém ao palco” alertar a juven- tal na definição do encadeamento da ação e na
tude “dos vícios destrutivos” (Szondi, 2004, sustentação da coerência da trama. O drama
p. 38). As tramas se voltam prioritariamente burguês se compõe a partir da “psico-lógica”, em
para a apresentação e a recriminação de falhas que a constituição dos aspectos individuais tor-
individuais, como a incapacidade de organizar na-se eixo para a composição da lógica das
seus apetites irracionais, seus desejos mundanos, ações. Se na antiguidade o destino geria as peri-
e a valorização do amor familial e do compor- pécias dos heróis, em tempos iluministas, de
tamento respeitoso entre os membros do lar, constituição de sujeitos livres e de rompimento
base da sociedade burguesa. Tudo em nome dos com a inexorabilidade das determinações divi-
ideais iluministas de constituição de sujeitos nas, a trajetória de cada ser humano precisa ser
livres, capazes de gerir por si mesmos as suas composta por seus próprios atos. A constitui-
opções de vida, mas sem perder de vista o com- ção da trama se dá a partir da caracterização in-
promisso moral em sua relação com as institui- dividual, são os “personagens que criam suas
ções sociais, especialmente aquelas que ganham próprias ações, que movem por si mesmos a
terreno nesse momento de transição para a éti- grande máquina, de forma autônoma e inelutá-
ca burguesa. vel, sem precisar das divindades e das nuvens”
A força dramática de convicção e de per- (Lenz, 2006, p. 38).
suasão se estabelece em cena como uma cortina A comoção vivida pelo personagem pre-
de lágrimas, que será rasgada e revelada em seus cisa ser cuidadosamente construída, de modo
meandros, mais tarde, pelos dramaturgos e que o público possa acompanhar o herói. So-
encenadores modernos. A relação do espectador mente dessa maneira se pode provocar o alme-
com a cena teatral se vê caracterizada por forte jado impacto emocional capaz de “transtornar”
envolvimento emocional, marcada por identi- o espectador. Pois, “o poeta ludibria a razão do
ficação irrestrita com o protagonista. Colado à homem instruído, como a governanta ludibria
pele do herói, cada indivíduo da platéia vivencia a fraqueza de espírito da criança” (Diderot,
os acontecimentos que constituem a sua trajetó- 2005, p. 65).
ria: suas dores, sofrimentos, agruras, e também O palco dramático se apresenta como
suas alegrias, descobertas, resoluções. As peri- uma representação sintética da vida social, como
pécias do protagonista são cuidadosamente con- um universo fechado concebido diante do es-
cebidas de maneira a produzirem importantes pectador, que observa esse pequeno mundo de
lições para o público. O espectador se vê convi- esguelha, como se não estivesse ali. Impelido a
dado a vivenciar com o herói, não apenas as suas se lançar na corrente da ação dramática, a mer-
falhas, mas, e principalmente, as reprimendas gulhar por inteiro no ambiente ilusório cuida-
que lhe são impostas no decorrer da trama. dosamente criado pelo autor (que se faz ausen-
Para se adequar aos princípios do drama, te), o leitor da cena observa esse mundo fictício
em sua busca por caracterizar o palco como fra- sob o ponto de vista do protagonista. Em con-
ção da própria vida, e propor ao espectador formidade com os ideais burgueses de valoriza-
envolvimento e comoção, a cena precisa aban- ção dos interesses privados e da livre iniciativa,
donar qualquer recurso em que a teatralidade o ensinamento moral, advindo da empatia com

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o protagonista, se constitui como principal caracterizam pela assunção da teatralidade, e vi-


vetor de leitura – e de efeito estético – proposto sam a ruptura com a ilusão do palco dramático.
ao espectador. O princípio dramático se mostra interrompido,
A atividade estética no drama burguês é problematizado, cada vez que um elemento
compreendida – já nas propostas dos drama- cênico se revela, cada vez que o teatro se apre-
turgos do século XVIII, e com notável refi- senta enquanto tal, quebrando com a lógica do
namento nas soluções técnicas e artísticas de drama fechado. As brechas no mecanismo
épocas posteriores – como assimilada a um ato dramático rompem com a ficcionalidade
de empatia. irrestrita e expulsam o espectador da vivência
interior da obra, lançando-o de volta à própria
“A idéia é a seguinte: o objeto estético – os consciência, convidando-o a desempenhar um
produtos da arte, os fenômenos da natureza e ato propriamente estético, reflexivo.
da vida – expressa certo estado interior cujo
conhecimento estético consiste em vivenciar “Devo identificar-me com o outro e ver o
esse estado interior” (Bakhtin, 1992, p. 78). mundo através de seu sistema de valores, tal
como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar,
O ato do espectador tem como eixo prin- e depois, de volta ao meu lugar, completar
cipal a própria imersão no mundo ficcional. O seu horizonte com tudo o que se descobre do
modo de concepção das obras de arte, em con- lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-
sonância com o modo de compreensão do ato lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, medi-
de leitura, indica a busca por intensificar a ati- ante o excedente da minha visão, de meu sa-
vidade do espectador, partindo dos próprios ber, de meu desejo, de meu sentimento. [...]
parâmetros de recepção estética em voga no pe- A atividade estética propriamente dita come-
ríodo. ça justamente quando estamos de volta a nós
mesmos, quando estamos no nosso próprio
lugar, fora da pessoa que sofre, quando da-
A explicitação do ato estético mos forma e acabamento ao material reco-
lhido mediante a nossa identificação com o
O drama moderno surge como oposição a essa outro” (Bakhtin, 1992, p. 45-6).
empatia por abandono (Brecht, 1978) estabe-
lecida pelo drama burguês. O convite crítico- Esses movimentos de ir e vir do especta-
reflexivo feito ao espectador, nesse caso, pode dor – que, por empatia com o protagonista,
ser compreendido como um retorno freqüente adentra no interior da obra ficcional, e, ante as
à própria consciência, descolando-se da pele do interrupções da lógica dramática operadas pe-
herói e reassumindo seu lugar de observador, los recursos cênicos narrativos (épicos), se dis-
seu ponto de vista, fora do mundo fictício, para, tancia da ação dramática, e retorna à própria
desse lugar que lhe é próprio, elaborar um juízo consciência para empreender um ato propria-
de valor acerca dos acontecimentos levados à mente autoral e analítico – caracterizam o efei-
cena. Ou seja, a identificação com o persona- to estético proposto pelo drama moderno.
gem não está inviabilizada, mas a empatia não Ao contrário daquela teatralidade surgida
se efetiva de modo irrefletido. O mergulho no em consonância com os princípios burgueses,
interior do universo ficcional se dá ainda via na cena moderna o autor se faz presente, revela
identificação com o protagonista; colado ao he- as soluções artísticas, expõe os recursos cênicos
rói, o espectador imerge na trama. que utiliza em sua montagem, mostra a sua con-
O drama moderno, por sua vez, se vale cepção de teatro, assume posicionamentos crí-
de variados recursos cênicos narrativos, que se ticos, e estimula o espectador a fazer o mesmo.

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Efetiva-se, assim, a noção de obra aberta, em A rrecepção


ecepção tátil
que a ambigüidade das opções de linguagem, a
multiplicidade de significados que convivem em Peço licença para fazer aqui uma breve digres-
um mesmo significante, constitui-se em uma são, de maneira que possamos nos aproximar da
das finalidades explícitas da obra, um valor de idéia de recepção tátil, tal como definida por
importância destacada na proposta feita ao es- Walter Benjamin (1993), e, em seguida, retor-
pectador. O artista se propõe a: narmos ao fio analítico acerca das alterações his-
tóricas na compreensão do ato proposto ao es-
“Definir os limites dentro dos quais uma obra pectador teatral. Os vislumbres benjaminianos
pode lograr o máximo de ambigüidade e de- acerca das mudanças na perceptividade, que se
pender da intervenção ativa do consumidor, operam em diálogo com a ampliação no campo
sem, contudo, deixar de ser “obra”. Entende- de atuação da arte, podem abrir possibilidades
se por “obra” um objeto dotado de proprie- de análise das transições efetivadas pelo teatro
dades estruturais definidas, que permitam, pós-dramático (Lehmann, 2007). E possibili-
mas coordenem, o revezamento das interpre- tam ressaltar, especialmente, como a teatralida-
tações, o deslocar-se das perspectivas” (Eco, de recente se estabelece em tensão com (e por
2005, p. 23). recusa a) os princípios estéticos do drama.
Diante de uma pintura de Cézanne, em
As alterações no modo de compreender a relato de visita a uma exposição de arte, em
vida social – que não podia mais ficar restrita às 1926, Benjamin, em seu “Diário de Moscou”,
questões de âmbito privado, como era caracte- descreve o modo distinto com que se relacio-
rística do drama burguês, mas queria ampliar- na com a obra desse artista francês. O que se
se para a dimensão pública dos acontecimentos constitui em rastro importante para pensarmos
– se efetivam em tensão com as alterações for- as mudanças na recepção artística desde os pri-
mais propostas pelo drama moderno. A abor- meiros lances da modernidade, e, em segui-
dagem social das temáticas quebra necessaria- da, nos aproximarmos de suas reverberações
mente com a linearidade própria ao princípio na contemporaneidade.
dramático, pois a trama não está mais circuns-
crita a uma abordagem fechada, psicológica, “Olhando para um quadro extraordinaria-
intersubjetiva dos fatos. O que desmonta com mente belo de Cézanne, ocorreu-me como é
o mecanismo de causa e conseqüência que faz errado, até linguisticamente, falar-se de
avançar “com naturalidade” as situações, pro- “empatia”. Pareceu-me que compreender um
vocando interrupções na corrente dramática, quadro – até onde isso se dá – não se trata, de
gerando brechas, espaços de análise. A teatra- maneira alguma, de penetrar em seu espaço,
lidade assumida rompe com a ilusão do mun- mas, muito mais, do avanço deste espaço –
do-palco, propondo que o espectador se distan- ou de pontos bem determinados e diferenci-
cie da ficcionalidade, se descole da pele do herói ados dele – sobre nós. Ele se abre para nós
e retorne à própria consciência. A cena moder- em seus cantos e ângulos nos quais acredita-
na não inviabiliza, pois, a identificação do es- mos localizar experiências cruciais do passa-
pectador com o protagonista, mas quer impe- do; há algo de inexplicavelmente familiar nes-
dir que a empatia e o mergulho no universo ses pontos” (Benjamin, 1989, p. 53).
ficcional se dêem de maneira abandonada, sem
retorno reflexivo. A descrição da experiência diante do qua-
dro de Cézanne, e a forma particular com que
Benjamin se relacionou com essa pintura, po-
dem ser melhor compreendidas se recorrermos

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a sua definição, estabelecida posteriormente, de ovos da experiência, fazendo nascer deles o pen-
recepção tátil. No ensaio “A obra de arte na era samento crítico.
de sua reprodutibilidade técnica” (Benjamin,
1993), escrito dez anos depois, em 1936, o fi- “Benjamin acredita numa oposição entre a
lósofo estabelece que a recepção tátil se efetiva memória e a consciência que é similar à dis-
de modo inverso ao da recepção contemplativa, tinção entre memória voluntária e memória
pois, ao invés de convidar o espectador a mer- involuntária na obra Em busca do tempo per-
gulhar na estrutura interna da obra, faz imergir dido, de Marcel Proust. Para ambos, a expe-
o objeto artístico no espectador, atingindo-o riência ocorre quando traços mnemônicos
organicamente – daí a noção de tátil. O objeto inconscientes na memória são despertados,
como que avança sobre o indivíduo, toca-lhe o casualmente ou não, por algum acontecimen-
íntimo e, de maneira inesperada, faz surgir con- to ou objeto exterior, realizando num instan-
teúdos esquecidos, relacionados com a memó- te uma feliz conjunção de significados capaz
ria involuntária. O retorno do esquecido, ou do de modificar o rumo de uma vida, de uma
recalcado – em uma acepção psicanalítica que história” (Palhares, 2008, p. 78).
marca também os estudos de Benjamin –, pos-
sibilita que restos da história pessoal, associados As alterações na percepção solicitariam
à história coletiva, venham à tona, prontos para procedimentos artísticos modificados para pro-
serem elaborados pelo espectador. vocar a irrupção da memória involuntária.
A percepção sensível do indivíduo mo- Somente uma recepção distraída, em que o
derno, destaca Benjamin, está premida por uma consciente seja surpreendido, pego desatento,
vivência urbana marcada pelos riscos e choques poderia se deixar atingir pelo instante significa-
do cotidiano, pela padronização gestual, pelo tivo em que, na relação com o objeto artístico,
consciente assoberbado, e pelo desestímulo à o olhar nos é retribuído, nos toca o íntimo, e
atuação de regiões profundas e sensíveis da faz surgir o inadvertido, trazendo à tona expe-
psique. Resta-lhe o empobrecimento da experi- riências cruciais do passado. O encontro com a
ência e da linguagem. Ameaçado, vigilante, arte se coloca, desde então, para Benjamin, fun-
fugidio, voltado para seus interesses privados, o damentalmente vinculado com a proposição e
indivíduo se mostra inapto, seja para perceber a produção de experiências.
o olhar que lhe é dirigido, seja para retornar o O que indica a necessidade de efetivação
olhar que lhe é lançado pelos objetos e pelos de outra forma narrativa, outra abordagem dos
outros. A razão operacional passa a tomar sem- fatos e ficcionalidades, que, especialmente, es-
pre a frente, calculando e catalogando os acon- tabeleça contato com os conteúdos inauditos da
tecimentos, protegendo-lhe de embates físicos memória involuntária.
e emocionais desagradáveis.
A mudança na percepção inibe a pro- “Essas mutações culturais e históricas são len-
dução de memória (traços mnemônicos in- tas e não seguem mecanismos deterministas,
conscientes) e dificulta o acesso freqüente aos mas elas não podem ser eliminadas por boa
conteúdos esquecidos, fundamentais para a ela- vontade ou decisão pessoal. Assim, mesmo
boração da experiência. A memória, para o filó- que se lamente o desaparecimento das for-
sofo alemão, constitui-se justamente pelos fatos mas tradicionais de contar, o desaparecimen-
significativos que não foram filtrados pelo cons- to das lembranças compartilhadas e de uma
ciente e são lançados nas profundezas da psique. memória coletiva (...), o desaparecimento da
Esses conteúdos, ao virem à tona, trazendo ima- escuta paciente e respeitosa dos anciãos, o
gens do passado, provocam o indivíduo a se de- desenvolvimento capitalista e técnico contem-
bruçar sobre as situações vividas e a chocar os porâneo torna ilusória qualquer volta a essas

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formas comunitárias de vida, de lembrança e uma produção radicalmente autoral do espec-


de narração (formas que são idealizadas com tador, que passa a produzir variados elementos
facilidade retrospectivamente). Trata-se muito de significação, justapondo-os àqueles propos-
mais de inventar outras formas de memória e tos pelo autor. Um conjunto de imagens, tex-
de narração (...)” (Gagnebin, 2008, p. 61). tos, texturas, sensações, emoções, afetos, mais
ou menos definidos, suscitados a partir da es-
Benjamin não clama por uma volta nos- crita do artista, e que, ainda que não façam par-
tálgica ao passado, mas saúda outra narrativi- te do texto organizado pelo autor, se fazem pre-
dade, tomada como uma trama de espaço e sentes na leitura do espectador. Cabe a este,
tempo que se abre como precipício, convidan- ainda, tecer relações e estabelecer sentidos pos-
do o espectador a um mergulho em si mesmo e síveis entre os diversos conteúdos significativos
produzindo uma experiência aurática a partir de suscitados durante o ato de leitura. Trata-se cada
uma arte não-aurática. Se a experiência aurática vez menos, nesse caso, de entender o que o au-
da arte tradicional estava calcada no mergulho tor quer dizer, de uma recepção contemplativa
no interior da obra, a experiência da arte não- – que, como é característico do princípio dra-
aurática implica o espectador no ato artístico, mático, vai, com maior ou menor envolvimento
em que a leitura só pode efetivar-se na própria emocional, acompanhando a escrita, compreen-
produção do participante, impingido-o a uma dendo e estabelecendo associações lógicas –, e,
atuação efetiva, já que passa necessariamente mais, de uma postura atenta e distraída, dispo-
por suas entranhas. nível a criar textos inauditos e sentidos impro-
A imagem mnêmica se constitui de lem- váveis a partir da proposta do autor.
branças que surgem espontaneamente, sem a
vontade e o controle do sujeito. Trata-se, por-
tanto, de imagens que o indivíduo não escolhe, A inversão rreceptiva
eceptiva
que não se relacionam com a memória voluntá-
ria, o contrário de um processo consciente de Se o drama moderno se estrutura como ques-
rememoração. O que configura outra noção de tionamento ao drama burguês, o mesmo se
memória e de sujeito, pois “este não é mais de- pode compreender com a irrupção da teatrali-
finido antes de tudo por sua atividade conscien- dade recente, que pauta suas invenções na recu-
te, voluntária, mas também por um tipo de ati- sa ao princípio dramático, que ainda se man-
vidade passiva, receptiva”, e esta receptividade é tém nas cenas da vanguarda da primeira metade
“interpretada agora não em termos de inércia, do século passado. Como vimos, o drama mo-
mas em termos positivos de disponibilidade derno, para efetivar as idas e vindas do espec-
atenta” (Gagnebin, 2008, p. 65). Uma compre- tador – o mergulho no mundo ficcional via
ensão oposta à concepção clássica de um sujeito identificação com o personagem e o retorno à
racional, consciente, soberano, que se vale da própria consciência para a efetivação do ato es-
memória de maneira voluntária, obediente, tético – mantém a ação dramática como eixo
pronta para cumprir a única função de registrar, da cena, calcada na trama que avança a partir
classificar e inventariar o passado. de diálogos e da constituição psicológica de
A falta de lógica a priori estabelecida se personagens. Ainda que essa constituição dra-
relaciona com a noção de uma recepção com- mática se efetive no drama moderno com que-
preendida como experiência, que se constitui na bras e rupturas freqüentes, evitando o abandono
própria junção/criação dos cacos de narrativa, do espectador na corrente da ação, o vetor de
ou em quaisquer jogos propostos pelo artista e leitura mantém-se marcado pela identificação,
realizados pelo espectador em sua relação com por colar-se a pele do herói, mesmo que para
o objeto artístico. O que cria condições para tecer uma análise crítica em face dos gestos do

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protagonista e do contexto histórico-social que e organiza uma compreensão própria da obra.


determina as atitudes dos personagens. O que Nessa operação, o entendimento do que o au-
não acontece na teatralidade pós-dramática, tor quer dizer, a maneira como vê o mundo e
que, como sugere a própria denominação, refu- estabelece uma síntese deste, está em primeiro
ta o princípio dramático, abandona a “psico-ló- plano. Ante a teatralidade pós-dramática, o es-
gica”, e não opera mais prioritariamente por pectador opera não sobre, mas a partir da pro-
empatia e imersão no universo ficcional criado posta do autor – ou mesmo para além dessa pro-
pelo autor. posta –, e o que concebe, ainda que se dê em
No teatro pós-dramático, o que se obser- relação com o texto cênico, se constitui em face
va – e são justamente as formulações teóricas de da impossibilidade de executar a tarefa de en-
Benjamin acerca da recepção tátil que nos pos- tender o que o autor quer dizer, pois não há
sibilitam essa análise – é uma inversão da rela- uma síntese a ser desvendada, mas lances senso-
ção travada entre espectador e proposta cênica. riais, imaginativos e analíticos a serem desem-
Se, no princípio estético do drama, que man- penhados. A ludicidade está fortemente presen-
tém a noção tradicional da obra de arte como te no movimento proposto ao espectador. O
síntese representativa do mundo, a constituição que advém, portanto, com o desaparecimento
do mundo fictício convida o espectador ao mer- da ilusão dramática, como aponta Benjamin na
gulho, na teatralidade pós-dramática – que se epígrafe que abre este texto, é um crescimento
estrutura não como obra, mas como objeto ar- considerável de possibilidades com as quais po-
tístico, que trabalha com a idéia de algo que não demos jogar.
está pronto, e que para efetivar-se solicita am-
pla atuação do espectador – a recepção opera “Uma poética da compreensão é substituída
de modo contrário: o objeto artístico é que in- por uma poética da atenção que armazena o
vade o espectador, atingindo-o em seu íntimo, estímulo e o mantém na pré-consciência; que
fazendo surgir sensações, percepções, imagens, lhe possibilita uma inscrição efêmera no apa-
entre outras produções, advindas da experiên- relho perceptivo sem permitir que ele se dis-
cia pessoal do participante. O espectador de- sipe num ato de compreensão: um rastro de
sempenha o ato de leitura valendo-se, tanto da memória ao invés de consciência, a compre-
análise de elementos de significação oriundos ensão fica adiada” (Lehmann, 2007b, p. 146).
do texto cênico proposto pelo autor, quanto de
conteúdos outros, percebidos, lembrados e cria- Em sua relação com a cena pós-dramáti-
dos durante seu percurso de leitura. ca, o espectador não encontra orientação de lei-
tura a seguir, que lhe indique pistas para o en-
“Experimentar um texto significa que algo tendimento da obra e do mundo. De modo
está acontecendo com nossa experiência. (...) que, acompanhando o direcionamento do au-
Quanto mais freqüentes esses momentos du- tor, possa tecer relações racionais, associações
rante a leitura, tanto mais se evidencia a lógicas e fechar interpretações. A frustração
interação entre a presença do texto e nossa marca esse movimento de leitura na proposta
experiência relegada ao passado” (Iser, 1999, não dramática, e, ao mesmo tempo, o estímulo
p. 34). à concepção de percursos próprios, em sua rela-
ção com o texto cênico e na relação deste com
O movimento do espectador no drama se a vida social. Além do que, conteúdos signifi-
volta para a interpretação da cena apresentada, cativos postos em jogo surgem de maneira
em que se debruça sobre a mesma, e tece asso- surpreendente, inadvertida, pois advindos e
ciações entre fatos históricos, obras artísticas inventados pelo próprio leitor durante o ato.
anteriores, acepções teóricas, momentos vividos, O espectador não se pergunta “o que isto quer

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T eatralidade tátil: alterações no ato do espectador

dizer?”, mas sim “o que está acontecendo comi- constituir, a partir de então, solicita uma atitu-
go?”, o que lhe solicita disponibilidade para par- de francamente artística do espectador – toma-
ticipar de um jogo que se apresenta de modo do como atuante –, que define o próprio per-
inesperado e sem uma seqüência preestabe- curso de sua leitura, em função da seleção e
lecida, porque se propõe como experiência, e, elaboração dos variados elementos de signifi-
enquanto tal, só se efetiva plenamente se o pró- cação com os quais se relaciona. Tanto os pro-
prio espectador se dispuser a constituí-lo en- postos pelo autor, quanto os que lhe surgem
quanto joga. inadvertidamente ou que inventa durante o
A atitude autoral proposta ao espectador percurso. A concepção de leitura se aproxima
pelo drama moderno se vê radicalizada na cena amplamente da própria operação de escrita.
pós-dramática, já que o ato de leitura, para se

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