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ADRIANA DORFMAN

CONTRABANDISTAS NA FRONTEIRA GAÚCHA:

ESCALAS GEOGRÁFICAS E REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS

Florianópolis

2009
2

Universidade Federal de Santa Catarina


Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Geografia

ADRIANA DORFMAN

CONTRABANDISTAS NA FRONTEIRA GAÚCHA:


ESCALAS GEOGRÁFICAS E REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS

Orientadora: Professora Dra. Leila Christina Dias


Co-orientadora: Professora Dra. Lia Osório Machado

TESE DE DOUTOURADO

Área de concentração: Desenvolvimento Regional e Urbano

Florianópolis/SC, abril de 2009.


3

Contrabandistas na fronteira gaúcha:


escalas geográficas e representações textuais

Adriana Dorfman

Coordenador da Pós-Graduação: Prof. Dr. Carlos Espíndola

Tese de doutoramento submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Geografia, área de concentração
Desenvolvimento Regional e Urbano, do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa
Catarina, em cumprimento aos requisitos necessários à
obtenção do grau acadêmico de Doutor em Geografia.

Presidente: ______________________________
Profª Drª Leila Christina Dias (UFSC)
Membro: ________________________________
Profª Drª Lia Osório Machado (UFRJ)
Membro: _________________________________
Prof. Dr. Álvaro Luiz Heidrich (UFRGS)
Membro: _________________________________
Prof. Dr. Bernardo Lewgoy (UFRGS)
Membro: _________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Schmidt Capela (UFSC)
Membro: _________________________________
Prof. Dr. Rogério Haesbaert da Costa (UFF)

Florianópolis-SC, 17 de abril de 2009.


4

AGRADECIMENTOS

Sendo trabalho de longos anos, em envolvimento integral, muitas pessoas


próximas a mim participaram da pesquisa e escrita desta tese. Meus estudos na
Geografia têm sido acompanhados da amizade dos colegas e da presença
inspiradora de professores, sendo realizados graças a bolsas da CAPES e do CNPq
e ao apoio da Universidade Pública no Brasil, da qual sou fruto.
Serei sempre grata à minha orientadora Profª Drª Leila Christina Dias, a quem
respeito em todos os âmbitos da vida profissional e afetiva. Outra mestra essencial
nessa jornada tem sido a genial Profª Drª Lia Osório Machado. Orgulho-me de ter
estudado com elas. Os professores Alain Musset, Álvaro Lopez Gallero, Álvaro Luiz
Heidrich, Arno Lehnen, Bernard Reitel, Carlos Eduardo Schmidt Capela, Gervásio
Neves, Hélène Velasco, Léa Masina, Lidia Schiavoni, Ligia Chiappini, Luis Fernando
Scheibe, Maria Luíza Berwanger da Silva, Marie-Vic Ozouf-Marignier, Michel Collot,
Neiva Schaeffer, Priscila Faulhaber, Raphael Copstein, Ruben Oliven e Susana Bleil
de Souza, em sua sabedoria e competência, ofereceram sugestões ao trabalho.
Agradeço também à Juíza Salise Sanchotene e ao advogado Madruga, às técnicas
Marli Borniatti e Sandra Ferreira, da SEDAI-RS, ao geógrafo Antonio Paulo Cargnin,
da SEPLAG-RS, à Janaína Zorzatto, na Polícia Federal em Uruguaiana, aos
Secretários de Cultura Carlos Righero, de Paso de los Libres (AR) e Alma Galup, de
Rivera (UY), aos escritores Sergio Faraco e Amilcar Bettega-Barbosa, a Gustavo
Laclau na ACIR e ao despachante Norberto Percuoco as informações e opiniões
especializadas que disponibilizaram. Um reconhecimento à confiabilidade do
trabalho de Demétrio e sua equipe, à Nola Gamalho, às professoras Ale, Fernanda e
Lígia, à Rita Schiavon e Marli Terezinha Costa e, particularmente, à Circe Dietz.
Entre meus colegas, agradeço especialmente à Erika Collischonn, junto aos
amigos da UFSC: Adilar Cigolini, André Vasconcelos, Clécio Azevedo e família,
Gislene dos Santos, Irani dos Santos, Jairo Marchezan, Magaly Mendonça,
Mariângela Pieruccini, Maristela Ferrari e Noeli Pertile. São tantos os geógrafos,
historiadores, literatos, antropólogos, professores do CAp-UFRGS que deram
sugestões, contaram causos, ajudaram com as figuras ou com as traduções, fizeram
críticas, compartilharam a angústia da escrita e assumiram responsabilidades
minhas que prefiro a ordem alfabética: Adalberto Breier, Amilcar Torrão F., Ana
5

Clara Fernandes e família, Ana Luíza de Moraes Vieira, Ana Regina Bastos, Ana
Stumpf Mitchell, Antonio Carlos Castrogiovanni, Bernardo Lewgoy, Carla Hirt, Carlos
Rizzon, Cláudia Mauch, Cláudio Búrigo, Cristiane Adiala, Cristiane Bahy, Cynthia
Linhares, Daniel Echeverry, Daniel Schweitz, Dariane Rossi, Flávio Heinz e família,
Gabino Moraes, Genylton, Gilmar Mascarenhas, Gisela Collischonn, Helen Osório,
Helion Povoa Neto, Henry Lorecena, Hires Heglan, Janine Mallmann, João Quadros,
Jussara Bledow e família, Lúcia Couto, Maria Adélia Pinhal, Maria Amélia Vilanova
N., Maria Goretti Tavares, Mariângela Grando, Maria Regina Bettiol, Maria Thereza,
Nelson Rego, Nilo Piana, Nina Fujimoto e família, Paulo Peiter, Paulo Rodrigues,
Pedro Brieger, Rafael Zílio, Regina Weber, Regina Xavier, Roberto Verdum, Rodrigo
Aguiar, Rodrigo Belinaso, Saint-Clair Trindade, Suzana Oliveira e família, Tadeu
Bisognin, Tânia Baumann, Temístocles César, Vanderlei Machado, Volmério Severo
e Zilá Mesquita. Lembro deles com carinho e honra.
Agradecimentos muito especiais à Gladys Bentancor-Rosés, que abriu portas
em Livramento-Rivera, inclusive as de sua casa, facilitando imensamente esta
pesquisa. Espero ter feito bom uso dos contatos, materiais e visões que ela e
Fernando Rosés têm constantemente oferecido. Mãe Chola de Ogum Male
emprestou-me um pouco de sua vasta credibilidade, possibilitando contatos com
informantes essenciais à realização deste trabalho. Aos informantes, cujos nomes
omito por segurança, agradeço a paciência, a sagacidade, a amizade. Espero que
gostem e se reconheçam nas árvores e flores que escolhi para camuflá-los.
In mente, Vanda Ueda e Laura Hecker. Rosemary Vieira tem sido uma amiga
de todas as horas. Um reconhecimento especial à ajuda de Ronaldo Machado,
professor, poeta e amigo desde os primeiros momentos desta investigação. A
generosidade de D. Teresinha, Nádya, Hubert e Cirillo Stassen fez com que nos
tornássemos uma família, juntando-se à Teresa Raimundo de Almeida e ao meu
querido, genial e prestativo irmão Mauro e às amadas Luciana, Alice e Cecília.
Minha mãe e meu pai não verão sua filha doutora, mas é por causa deles que esta
tese foi escrita. Daniel F. de Bem me acompanhou desde a pesquisa de campo à
última versão, criticando e sugerindo com paciência e tenacidade, apoiando nos
momentos mais desesperados e compartilhando idéias e trabalho, criando um
vínculo ricamente tecido de teoria, prática e amor que nos uniu e fortaleceu. Meu
filho querido Rodrigo, dos abraços solidários e da incrível intuição geográfica, esta
tese é dedicada a ti.
6

El que nunca endulzó con azúcar brasileña,


que tire la primera piedra.

Rubens Loetti, Paso de los Libres, Argentina


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RESUMO
O contrabando é uma prática eminentemente geográfica, podendo ser
descrito como o comércio ilícito baseado nas diferenças – de preço, qualidade e
disponibilidade de mercadorias – geradas pelas barreiras aduaneiras associadas à
delimitação dos Estados-Nação. Esse tipo de comércio internacional ilegal exige de
seus agentes o conhecimento da geografia aplicada da fronteira, aprendida na
experiência da condição fronteiriça. Esta tese coloca bases metodológicas para o
estudo da geografia dos contrabandistas na(s) cidade(s) de Santana do Livramento
(Brasil) - Rivera (Uruguai). Seu objetivo é explorar as práticas dos contrabandistas
naquele lugar, abordando a dimensão cotidiana da fronteira internacional e
estabelecendo bases para um estudo geográfico do contrabando. Nesta análise,
partimos da literatura de fronteira e dos contos de contrabando, representações
textuais em circulação na região, dentro da Comarca do Pampa, onde o
contrabandista figura como um personagem tradicional, depositário de verdades
locais. Passamos ao exame da história e das teorias sobre a fronteira, que
mostraram que a intensificação do povoamento e da urbanização do limite deveu-se
às iniciativas estatais de demarcação dos territórios nacionais. Ainda assim, os
contatos entre populações, línguas e costumes geraram uma cultura local
transnacional, como verificamos no trabalho de campo, atento à tradução cultural:
compreender o vocabulário específico à prática e ao lugar foi requisito para acessar
representações e sentidos locais. Articulamos representações textuais de origem
geográfica e social variada e de diferentes gêneros através de uma abordagem
atenta à geografia dos pensamentos colocados em relação. Produzimos uma
cartografia de base qualitativa, enfocando especialmente os contrabandistas de
pequenos volumes, os bagayeros. Identificamos diferentes escalas no contrabando
em Santana do Livramento-Rivera: o contrabando cotidiano; o bagayo; o
descaminho de produtos dos free shops; o abigeato; além de formas envolvendo
grandes volumes, valores e distâncias. Quanto ao contrabandista, podemos
classificá-lo pelo artigo e o volume negociado; conforme a origem e o destino da
mercadoria (rural ou urbano, do ou para o Brasil, Uruguai ou terceiros países);
segundo a tradição da prática (como no caso do bagayo e abigeato; o contrabando
de agrotóxicos, de CDs ou de equipamentos de informática como modalidades
emergentes); conforme as contravenções implicadas (elidir impostos; passar
mercadorias proibidas; subornar; coagir; atentar contra o ambiente; matar); conforme
a rede mobilizada etc. Verificamos que a relação com a aduana oscila entre
conivência e punições legais. Identificamos que os armazéns, depósitos de lã, couro,
madeira ou de produtos da exportação indireta, as paradas de ônibus e outras
materializações do comércio transfronteiriço na(s) cidade(s) se organizam em dois
eixos: 1.ao longo da fronteira e 2.nas proximidades das rodovias para Porto Alegre
ou para Montevidéu e o oeste do Uruguai. Concluímos que o contrabando organiza
lugares e é absolutamente estrutural nessa sociedade, no abastecimento e no
sustento das pessoas, sendo visto mais como trabalho do que como delito,
realizando-se através das redes de solidariedade indispensáveis à sua execução e
legitimação. Além disso, o ethos contrabandista cria uma identidade de lugar,
distinguindo outsiders e membros (cúmplices) do grupo, numa territorialidade com
extensão, passagens e polarizações em constante atualização, dada a variabilidade
dos conteúdos da fronteira.
8

SMUGGLERS AT THE GAUCHO BORDER:


GEOGRAPHIC SCALES AND TEXTUAL REPRESENTATIONS

ABSTRACT
Smuggling is eminently a geographic practice, which can be described as illicit
commerce based in differences - of price, quality and availability of merchandises -
generated by custom barriers associated to the delimitation of the Nation-State. This
type of illegal international trade demands from its agents the knowledge of the
applied geography of the border, learned in the experience of the bordering
condition. This thesis places methodological bases for the study of the geography of
the smugglers in the city(ies) of Santana do Livramento (Brazil) - Rivera (Uruguay).
Its objective is to explore the practices of smugglers in that place, examining the daily
dimensions of the international border and establishing bases for a geographic study
of smuggling. In this analysis, we examine border literature and smugglers´
narratives, textual representations that circulate in the region, within the Comark of
Pampas, where the smuggler appears as a traditional character, bearer of local
truths. Then, we look into local history and border theories, which point to the fact
that the encouragement of settling and urbanization in the area was part of a State
policy. However, as we maintained an eye on cultural translation, with the aim of
understanding local representations through the language forms specific to
smuggling and smugglers, fieldwork revealed a transnational local culture resulting
from contact among local populations, shared languages and habits. As amatter of
fact, we compared textual representations of varied geographic and social origins
and genres, which resulted in the creation of a Geography of Thinking. The actual
result was a cartography of qualitative base, which focuses on petty smugglers,
bagayeros. We identified different scales of smuggling in Santana do Livramento:
daily smuggling; bagayo; embezzlement of products of free shops; cattle theft;
besides other forms involving greater volumes, values and distances. The smugglers
can be classified according to goods and the amounts he/she trades; the origin and
the destination of the merchandise (rural or urban, to or from Brazil, Uruguay or third
countries); according to the tradition of the practice (bagayo and cattle theft are
traditional, pesticides or computer parts are emerging modalities); to associated
contraventions (tax evasion, trading of forbidden merchandises; bribing; coercing;
attempting against the environment; killing); to social networking etc. We verified that
the relation with the Custom oscillates between connivance and legal punishments.
We identified that the warehouses of wool, leather, wood or products of the indirect
exportation, bus stops and other materializations of transborder commerce in the
city(ies) are organized along two axles: 1. along the border itself and 2. near the
highways heading for Porto Alegre or Montevideo and the west region of Uruguay.
We conclude that smuggling is absolutely structural to this society, being important in
supplying for the needs of the population; rather than as an act of felony, smuggling
is regarded as a form of employment, a way of making a living. It is carried out
through solidarity networks, which also serve as its source of legitimization.
Furthermore, smuggler ethos creates a local identity, setting outsiders apart from
group members and developing a territoriality with extension, passages and
polarizations, engaged in a permanent updating, according to the variable contents of
the border.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1: Brasil e Uruguai: gráfico comparativo de área – 2003............................ 26


FIGURA 2: Brasil e Uruguai: gráfico comparativo de população – 2003.................. 26
FIGURA 3: Santana do Livramento e Rivera: gráfico com distâncias aproximadas
em linha reta das capitais – 2003............................................................... 26
FIGURA 4: Santana do Livramento e Rivera: gráfico mostrando a hierarquia
administrativa............................................................................................. 27
FIGURA 5: Região-Fronteira: Mapa dos lugares citados nesta tese – 2008............ 28
FIGURA 6: Departamento de Yapeyu: mapa – fim do século XVIII.......................... 32
FIGURA 7: Sul da América portuguesa: mapa das ligações terrestres no espaço de
atuação dos contrabandistas – 1780/1810................................................. 36
FIGURA 8: Lagoa Mirim: mapa da rota flúvio-lacustre do contrabando de
couros – 1780/1810.................................................................................... 37
FIGURA 9: Fronteira Brasil-Uruguai: esquema de relações geográficas, pessoais,
comerciais e técnicas constituídas nas charqueadas – início do séc. XX.. 52
FIGURA 10: Rivera: foto de “La France”, casa impressora e armazém tradicional,
Calle Sarandi, entre Ceballos e Paysandú – 1899..................................... 63
FIGURA 11: Rivera: efígie do agrimensor Martin Paes............................................. 64
FIGURA 12: Rivera: pintura “Martin Paes traçando o arruamento”.......................... 64
FIGURA 13: Santana do Livramento-Rivera: foto aérea de meados da década
de 1980....................................................................................................... 65
FIGURA 14: Rivera: foto da Calle Brasil, em Rivera Chico –1931........................... 70
FIGURA 15: Santana do Livramento-Rivera: edital público de casamento – 2008.. 74
FIGURA 16: Uruguaiana: folheto publicitário............................................................ 75
FIGURA 17: Brasil: mapa com tipologia das interações fronteiriças – 2005............. 94
FIGURA 18: América Latina: mapa das comarcas literárias................................... 118
FIGURA 19: Contando um causo: gravura de Nelson Boeira................................. 121
FIGURA 20: Fronteira gaúcha: mapa de localização dos contos de contrabando. 126
FIGURA 21: “Contrabandista”: gravura de Nelson Boeira...................................... 132
FIGURA 22: Paso del Centurión: esquema das pa(i/s)sagens em
“Contrabandistas”..................................................................................... 149
FIGURA 23: Foz do Ibicuí: mapa do percurso de López e do defunto Sarasua..... 156
FIGURA 24: Rivera: foto do comércio de ocasião sobre a línea – 2008................. 188
FIGURA 25: Santana do Livramento-Rivera: mapa das materializações do terciário
transfronteiriço – 2008.............................................................................. 190
FIGURA 26: Santana do Livramento: foto do espelhamento nos postos de
combustível – 2007.................................................................................. 195
FIGURA 27: Rivera: foto do espelhamento dos postos de combustível – 2007..... 195
FIGURA 28: Rivera: foto do Bagashopping na linha com estátua da Pérgula –
2006.......................................................................................................... 198
FIGURA 29: Santana do Livramento-Rivera: foto dos cambistas na Praça
Internacional – 2006................................................................................. 201
FIGURA 30: Rivera: foto da aduana com marco e desvio para mercadorias
vendidas via balcão – 2005...................................................................... 206
FIGURA 31: Rivera: foto das kombis e depósitos de venda via balcão sobre
a linha de fronteira – 2007........................................................................ 207
FIGURA 32: Rivera: foto em entrevista na ACIR/CEB – 2005................................ 213
10

FIGURA 33: Santana do Livramento: foto das bagayeras na linha – 2006............ 216
FIGURA 34: Santana do Livramento: foto do banco na Casa Globo – 2006.......... 217
FIGURA 35: Uruguai: mapa da hinterlândia do bagayo vindo de Santana do
Livramento – 2008.................................................................................... 218
FIGURA 36: Rivera: foto do pai aduaneiro – anos 1950......................................... 228
FIGURA 37: Rivera: foto do filho contrabandista (na Praça Internacional) –
anos 1950................................................................................................. 228
FIGURA 38: Reportagem “Fronteira: Queda do real dá sobrevida a chibeiros” –
1999.......................................................................................................... 236
FIGURA 39: Manoel Diaz: foto da aduana e da parada de ônibus – 2005............. 283
FIGURA 40: Rivera: foto do interior do free shop Siñeriz, Av. Sarandí – 2007....... 290
FIGURA 41: Santana do Livramento: foto do Supermercado 300,
Av. Tamandaré – 2005............................................................................. 291
FIGURA 42: Rivera: foto da barraca de couro I – 2005.......................................... 292
FIGURA 43: Rivera: foto da barraca de couro II – 2005......................................... 293
FIGURA 44: Rivera: foto da feira dominical em frente ao Club Social y Deportivo
Frontera Rivera Chico, na Av. 1825 – 2007............................................. 294
FIGURA 45: Rivera: foto da descarga numa barraca de couro – 2005.................. 295
FIGURA 46: Rivera: foto de galpão – 2005............................................................. 296
FIGURA 47: Rivera: foto do galpão de Olivo com vista do bairro Sacrifício de
Sônia – 2005............................................................................................ 297
FIGURA 48: Santana do Livramento: foto do galpão de Olivo com marco de
fronteira – 2005........................................................................................ 298
FIGURA 49: Rivera: foto do busto de Olyntho Maria Simões no Paseo de los
Poetas, no Cerro del Marco...................................................................... 322
FIGURA 50: Esquema mostrando a passagem como ato perpendicular à
fronteira………………………………………………………………………… 325
11

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: Comparação entre expressões em português, espanhol e portuñol.... 76


QUADRO 2: Cenários fronteiriços segundo A. Cuisinier-Raynal (2001)................... 93
QUADRO 3: Obras gaúchas da literatura de fronteira............................................ 115
12

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................... 14
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 18
1. RAÍZES HISTÓRICAS DO COTIDIANO FRONTEIRIÇO EM SANTANA DO
LIVRAMENTO-RIVERA........................................................................................ 31
1.1. Primórdios da fronteira e do contrabando gaúchos........................................... 31
1.2. Governador e contrabandista na fronteira do século XVIII................................ 34
1.3. Urbanização: controle e contato......................................................................... 38
1.4. A política econômica da República Velha para a fronteira gaúcha.................... 45
1.5. Nexos transfronteiriços no período das charqueadas........................................ 49
1.6. A nacionalização da fronteira na primeira metade do século XX....................... 53
1.7. Formação territorial da fronteira gaúcha: síntese dos processos....................... 56
1.8. A estatização do trigo e o contrabando de farinha............................................. 59
1.9. Uma geografia urbana das trocas legais e ilegais.............................................. 61
1.10. O cotidiano na condição fronteiriça.................................................................. 71
2. AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS E O CONTRABANDO.............................. 80
2.1. Textos legais sobre o contrabando.................................................................... 80
2.2. As representações textuais e a Geografia......................................................... 84
2.3. Uma geografia do pensamento sobre a fronteira............................................... 87
2.4. Uma tipologia das interações fronteiriças........................................................... 92
2.5. Um conceito gaúcho para a fronteira................................................................. 95
2.6. Literatura e ciência........................................................................................... 103
2.7. Traduções culturais.......................................................................................... 106
2.8. Regionalismo político e regionalismo literário.................................................. 110
2.9. Uma literatura de fronteira................................................................................ 114
2.10. Causo, conto e documento: traduzindo do oral ao escrito............................. 119
3. O CONTRABANDO SEGUNDO A LITERATURA DA FRONTEIRA................. 125
3.1. Situando o corpus............................................................................................. 125
3.2. “Contrabandista” de João Simões Lopes Neto................................................. 127
3.3. “Contrabando” de Darcy Azambuja.................................................................. 136
3.4. “Os contrabandistas” de Mario Arregui............................................................. 141
3.5. “Guapear com frangos” de Sergio Faraco........................................................ 151
3.6. “O sulque de rodas vermelhas” de Aldyr Garcia Schlee.................................. 158
3.7. “Arreglo” de Amílcar Bettega-Barbosa............................................................. 161
13

3.8. Interpretações geográficas dos contos de contrabando.................................. 167


3.9. Simbologia e metáforas da fronteira e do contrabando................................... 169
3.10. Os contos e o sentido local do contrabando e da fronteira............................ 171
4. A GEOGRAFIA DOS CONTRABANDISTAS EM SANTANA DO
LIVRAMENTO-RIVERA...................................................................................... 173
4.1. Descrevendo o contrabando na fronteira......................................................... 173
4.2. Um vocabulário do contrabando....................................................................... 176
4.3. Anedotas de contrabando................................................................................ 180
4.4. A espacialização dinâmica do terciário fronteiriço............................................ 186
4.5. O mercado fronteiriço e seus agentes.............................................................. 193
4.6. Extraterritorialidades e contrabando................................................................. 204
4.7. Escalas da territorialidade contrabandista........................................................ 210
4.8. O bagayo: territorialidades e agentes............................................................... 214
4.9. Os aduaneiros entre o Estado e o lugar........................................................... 227
4.10. Tradição, costumes e práticas........................................................................ 233
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 239
5.1. As lições dos fronteiriços.................................................................................. 239
5.2. A geografia do pensamento............................................................................. 240
5.3. Metodologias para uma geografia social do contrabando................................ 242
5.4. Os alcances dos símbolos fronteiriços............................................................. 244
5.5. A condição fronteiriça....................................................................................... 245
5.6. Territorialidades contrabandistas..................................................................... 246
5.7. Paisagem fronteiriça e urbanização contrabandista........................................ 248
5.8. Processos de espelhamento............................................................................ 249
5.9. Os dispositivos de transição............................................................................. 250
5.10. A geografia dos contrabandistas.................................................................... 252
6. REFERÊNCIAS................................................................................................... 253
6.1 Referências – jornais......................................................................................... 268
APÊNDICE A: Relação de entrevistados............................................................. 269
APÊNDICE B: Transcrição de entrevista: Julio Cairello.................................... 272
APÊNDICE C: Transcrição de entrevista, excursão fotográfica: Robles......... 281
APÊNDICE D: Transcrição de entrevista: Nogal................................................. 300
APÊNDICE E: CD Iconográfico............................................................................. 316
ANEXO A: Transcrição das obras de intelectuais municipais.......................... 317
APRESENTAÇÃO

Em 2005, realizando uma saída de campo, fui apresentada por Alma Galup,
secretária da cultura da Intendencia de Rivera, no Uruguai, ao livro recém-publicado
“Un Péon de Estancia”, de Reginaldo Quintana Morales. Ela valorizava muito a obra,
por conta da temática e do autor, visto como um tipo do povo, um escritor com a
“autenticidad de un arquetipo rural”, nas palavras da introdução escrita por Alma
Galup. O livro, encadernado em couro, continha poemas campeiros, entre os quais
muito me entusiasmou um, chamado “Pecado”, que dizia, lá pelo fim, que

a lei sobre o contrabando


não foi feita na campanha
é como teia de aranha
não sei se bem me explico
não prende o bicho grande
1
mas enreda ao nanico. (t.a) (QUINTANA MORALES, 2005, p. 48)

Tratando do contrabando popular, o poema aponta a inadequação das leis


nacionais ao lugar e afirma a conformação da regra ao indivíduo a quem se aplica.

Eu estava em campo à procura de entrevistas e fotografias para informar a


tese aqui apresentada. Já no início da coleta de dados eu verifiquei que farto
material foi produzido sobre o contrabando e os contrabandistas no Rio Grande do
Sul, incluindo levantamentos estatísticos (poucos), trabalhos de geografia ou história
regional e urbana (alguns) e obras literárias (muitas). Essa distribuição desigual da
informação revelou que o contrabando, apesar de difícil de enquadrar, quantificar ou
mapear, freqüenta o imaginário dos gaúchos, prestando-se à discussão da vida
cotidiana e dos valores dos contrabandistas e dos habitantes da fronteira. A
importância simbólica do contrabando tem um significado ainda maior quando
consideramos o papel emblemático da região da fronteira e de seus habitantes na
constituição da identidade gaúcha. Os contos de contrabando apareceram como a

1
“La ley sobre el contrabando/ no fue hecha en la campaña/ es como tela de araña/ no se si muy bien
me explico/ no sujeta al bicho grande/ pero enreda al bicho chico” (QUINTANA MORALES, 2005, p.
48). Tradução nossa, desta e das citações de originais em línguas estrangeiras, indicada pela
abreviatura t.n.. Uma coleção de obras literárias de circulação regional encontram-se reproduzidas no
anexo I.
fonte mais difundida de representações textuais detalhadas sobre a prática do
contrabando no cotidiano e no imaginário da fronteira e, por extensão, dos gaúchos.

Em 2006, procurando informação sobre o poeta Quintana Morales, descobri


que a metáfora da teia de aranha aparecia em “La vuelta de Martin Fierro”, segunda
parte do poema “Martín Fierro”, de José Hernández, canônico para os argentinos.
Trechos desse épico gaúcho foram redigidos por Hernández durante um período de
exílio em Santana do Livramento, “onde os gaúchos uruguaios e rio-grandenses lhe
trariam a lembrança dos gaúchos de Buenos Aires”. (BORGES, [1978] 1985, p.34).
Na região, ainda hoje é comum citar e recitar o “Martín Fierro” em conversas e
causos2. Lá aparece:

A lei é teia de aranha


Na minha inorância esplico
Não a tema o homem rico
Nunca a tema quem manda
Pois a rompe o bicho grande
3
E só enreda ao nanico. (t.a) (HERNÁNDEZ, [1879] 2001, p. 447-8)

A circularidade entre a cultura oral e a palavra escrita está aí representada. A


permeabilidade ou “contrabando” de figuras e valores na “comarca do Pampa”
(RAMA, 1986, vide capítulo 3) também, assim como a prática dos exílios sem
afastamento.

Nas notas que acompanham a edição crítica de 2001 do “Martín Fierro”,


descubro que E. Tiscornia, numa edição crítica de 1939, remetera a metáfora da teia
de aranha a Anacarsis, o escita (499 a.C.-428 a.C.). O filósofo clássico já formulara
a idéia de que a lei variaria conforme o cidadão a quem se aplicasse. Essa remota
referência contradizia minha tese inicial, baseada na percepção do particularismo ou
localismo dos fenômenos aqui estudados, de relações localmente específicas entre
o legal e o legítimo4. Onde ia parar a “comarca do Pampa”, se tal idéia já havia sido

2
O causo pertence à tradição oral do gaúcho. É uma história ou anedota, geralmente contada na
primeira pessoa, mais ou menos consolidada. Ver HARTMANN (2005) e o capítulo 2 desta tese.
3
“La ley es tela de araña-/ En mi inorancia lo esplico/ No la tema el hombre rico-/ Nunca la tema el
que mande-/ Pues la ruempe el bicho grande/ Y sólo enrieda a los chicos” (HERNÁNDEZ, [1879]
2001, p. 447-8). Das incontáveis edições do Martin Fierro, cito aqui HERNÁNDEZ, José. Martín
Fierro, edição crítica de Élida Lois e Angel Núñez. Madrid: ALLCA XX, [1872 e 1879] 2001 e, na
tradução, a edição de Martins Livreiro, [1872] 1985.
4
Existe ainda uma versão francesa, mais esperançosa: “As leis são apenas uma barreira vã, que
todos os homens cruzam. Por cima os grandes, sem pena, os pequenos por debaixo” (t.n.): “Les lois
ne sont qu’une barrière vaine/ que les hommes franchissent tous/ par dessus les grands passent sans
16

formulada há 25 séculos, na Grécia? E a esperança de alinhavar geografias do


pensamento e das representações textuais – mostrando que a formulação e
circulação de idéias e valores seriam influenciadas pelo espaço, identificadas com
províncias suficientemente autônomas na formulação de cultura – em que se
apoiaria?

Em julho de 2007, numa entrevista recheada de causos com um policía


aposentado, na periferia de Rivera, ouço que a lei em si não é nada maleável, o que
importa é o poder discricional, a decisão que cada policial tem, que varia com sua
ética e humor, com o compromisso com a tarefa ou com os envolvidos no crime,
com as relações entre o guarda e seus superiores, restituindo valor ao protagonismo
dos agentes e à especificidade da experiência no lugar5. Vale dizer que esse diálogo
deu-se durante um trabalho de campo especialmente frutífero, com longos encontros
e entrevistas abertas com bagayeras, com policiais, advogados, comerciantes,
sindicalistas, inspetores sanitários, tassimetristas e outros agentes do comércio
transfronteiriço, em português, espanhol e portuñol.

Nesse momento, perguntas sobre a representação textual da realidade


geográfica se colocaram com muita força. De que serviam todas as metáforas e
hipóteses levantadas na literatura ficcional e acadêmica diante da realidade mais
viva e mais dura dos contrabandistas? A utilização dos contos compensava certo ar
oficialesco e grandiloqüente dos discursos ligados à historiografia nacionalista, que
se apressavam na recriminação das atividades do contrabandista. Por outro lado, a
literatura apresentava, por vezes, um viés romantizante, que tendia a atribuir a tais
práticas uma nobreza que não se manifestava na trivialidade e no pragmatismo do
cotidiano. Entre heróis e anti-heróis, onde encontrar o habitante da fronteira?
Resolvendo um problema de fontes, eu me lançava noutro, interpretativo,
questionando as extrapolações necessárias à interpretação com propósitos
científicos dos estudos de caso e da literatura de ficção. Qual o vínculo entre
realidade e ficção, entre o particular e o geral, entre o local e o universal? Quando os

peine/ les petits par dessous! PANARD, Claude-François, s.XVIII (Musée national des Douanes,
Bordeaux, França).
5
Nas palavras do informante: “Como ela leva pouca coisa, geralmente deixam, quando é pouca
coisa. Agora, por exemplo, quando vai muito, muita gente no ônibus e vê muito pacote... aí de
repente vem a ordem do chefe... tascam tudo, não deixam nada. É a operação zero kilo” (Robles,
entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006). As principais entrevistas foram transcritas nos
apêndices; a de Robles encontra-se no apêndice C.
17

eventos num lugar adquirem sentido universal? Os casos específicos são


representativos de padrões gerais? Inversamente, o que nos ensinam as metáforas
universais sobre o lugar? Qual a utilidade de taxonomias que enquadram o objeto,
mas que não fazem mais que repousá-lo num quadro pré-delimitado?

Com essas interrogações amplas e sem respostas definitivas, partimos para


examinar as práticas dos contrabandistas em Santana do Livramento e Rivera,
cotejando suas representações literárias, científicas, vernáculas, produzindo mapas,
teoria, novas interpretações e novas questões.
18

INTRODUÇÃO

Esta tese trata do contrabando realizado na fronteira do Brasil com o Uruguai,


isto é, na fronteira meridional do Rio Grande do Sul e, mais especificamente, do
contrabando de pequenos volumes realizado através das cidades-gêmeas de
Santana do Livramento e Rivera. O contrabando tem historicamente feito parte da
vivência cotidiana da população que aí reside. Os contrabandistas aparecem
frequentemente nas representações da vida na fronteira, especialmente na literatura
(contos, poemas) e na oralidade (causos, canções).

Um dos tipos mais característicos de contrabando levados a cabo na região é


o contrabando-formiga, também conhecido como bagayo. Centenas de pessoas
atravessam a fronteira do Uruguai com o Brasil diariamente, trazendo e levando
produtos de ocasião (gás, pão, farinha, açúcar, carne...), negociando com sua
condição fronteiriça cotidianamente. O mercado consumidor desses artigos é amplo,
atinge Montevidéu e outras cidades distantes até 500 km de Santana do Livramento
e Rivera, onde a ação dos contrabandistas é facilitada por uma fronteira seca,
correndo dentro da mancha urbana. Os envolvidos não ignoram ser essa uma
atividade ilegal, naturalizada por existir desde que se esboçou uma fronteira entre o
Brasil e o Uruguai. Além dos fronteiriços, muitas outras pessoas são atraídas pelas
possibilidades da fronteira, e envolvem-se em atividades ligadas aos diferenciais aí
presentes.

Esta tese busca estudar o cotidiano nas fronteiras e as práticas dos


contrabandistas de pequenos volumes através da interpretação de textos de
natureza diversa, de extenso trabalho de campo e de depoimentos de pessoas com
conhecimento de causa sobre o contrabando, por habitarem a região ou por
inserção profissional (juízes, advogados, aduaneiros, historiadores, geógrafos). A
comparação de fontes muito díspares levou a um investimento metodológico para
aproximar os diferentes gêneros escritos e experiências de campo: para tal, o
conceito de representação textual foi escolhido, construindo a comensurabilidade e a
tradução cultural entre literatura, teoria, relatórios de campo, entrevistas e demais
19

materiais consultados. Da análise das práticas dos moradores desta fronteira,


emergiram o conceito de condição fronteiriça e algumas conclusões sobre a relação
entre espaço, política e cultura e, principalmente, uma geografia social dos
contrabandistas que praticam aquela fronteira.

Note-se que outras formas de contrabando são realizadas por agentes que
operam com grandes somas, traficando drogas, armas e dinheiro, agindo numa
escala geográfica mais ampla e implicando violência e lucros mais volumosos que
os tratados aqui. Estudar tais práticas provavelmente exigiria uma metodologia
diferente.

A atenção ao verbal marcou o texto apresentado a seguir, posto que as


palavras usadas pelos diferentes emissores e, em particular, pelos contrabandistas,
foram objeto de especial atenção. A complexidade do objeto dirigiu a busca de
instrumental analítico, de modo que diferentes abordagens teóricas e disciplinares
contribuíram para esta tese em Geografia. Da Literatura tomei emprestado o
respeito pelo texto e a precedência de sua análise sobre as explicações que são
sobre ele projetadas; na História busquei o entendimento da genealogia das
estruturas presentes no território fronteiriço; a Antropologia me esclareceu sobre os
procedimentos de campo e sobre a importância da dimensão simbólica. A
inexistência de uma geografia do contrabando foi compensada pela riqueza da
produção sobre fronteiras na Geografia e nas outras Ciências Humanas. De fato,
esta tese se alinha com a produção da Geografia gaúcha sobre fronteira, tradição
que espero honrar, assim como aos pesquisadores com quem tive oportunidade de
aprender.

Esta tese propõe-se a mapear as práticas e representações, não apenas pela


tradição cartográfica na análise do espaço, mas também pelo exercício de elencar
os objetos geográficos indispensáveis para a interpretação. Assim, busquei
representar em cartogramas os enredos, as materializações e os percursos dos
contrabandistas, como uma etapa na interpretação de sua dinâmica e significado.

Num livro intitulado “O fio e os rastros” (2007), Carlo Ginzburg discute a


intersecção entre a literatura científica, a ficcional e o material produzido no trabalho
de campo e textualizado pelo pesquisador. Ainda que questões ligadas ao
20

conhecimento do espaço geográfico não tenham sido explicitamente


problematizadas pelo autor, o historiador italiano mostra como são geradas suas
fontes e discute o método indiciário, as estratégias textuais, os testemunhos
oculares e o ceticismo dos pós-modernos que equiparam história e ficção. Entre as
reflexões propostas pelo historiador, gostaria de citar inicialmente sua sugestão de
que se deixe à mostra as dificuldades e as incoerências do processo de pesquisa,
não como queixa, mas como meditação metodológica:

Eu propusera a mim mesmo reconstruir o mundo intelectual, moral e


fantástico do moleiro Menocchio por meio da documentação produzida por
aqueles que o tinham mandado para a fogueira. Esse projeto, sob certos
aspectos paradoxal, podia traduzir-se num relato capaz de transformar as
lacunas da documentação numa superfície uniforme. Podia, mas
evidentemente não devia: por motivos que eram ao mesmo tempo de
ordem cognitiva, ética e estética. Os obstáculos postos à pesquisa eram
elementos constitutivos da documentação, logo deviam tornar-se parte do
relato; assim como as hesitações e os silêncios do protagonista diante das
perguntas dos seus perseguidores – ou das minhas. [...] Os obstáculos
postos à pesquisa, sob a forma de lacunas e distorções da documentação,
devem se tornar parte do relato [...] [pois se contrapõem aos] afrescos
historiográficos que procuram comunicar ao leitor, com expedientes muitas
vezes medíocres, a ilusão de uma realidade extinta, removem tacitamente
esse limite constitutivo do ofício do historiador. (GINZBURG, 2007, p. 265 -
271).

Aceitei a sugestão de expor as hesitações e silêncios dos informantes e das


fontes, bem como as lacunas que surgiam das explicações com que circunscrevi o
objeto aqui em discussão, o contrabando na fronteira gaúcha, ao longo dos anos em
que venho nele trabalhando. As metamorfoses metodológicas orientaram-se a
atender ao desejo de pesquisar a fronteira, através da geografia política,
acrescentando a esse objeto geográfico a dimensão do cotidiano, trazida pelo foco
nas práticas dos fronteiriços. Logo ficou claro que não se tratavam de ações
isoladas, mas, glosando as palavras de Zakarias Moutoukias (1988, p.18), de uma
prática estruturalmente ligada à vida econômica da região.

Esta tese enfoca as cidades-gêmeas de Santana do Livramento, no Brasil, e


Rivera, no Uruguai, em vista de sua importância como maior centro urbano da díade
Brasil-Uruguai, onde os contatos internacionais são facilitados pela inexistência de
21

barreiras físicas ou de controles aduaneiros sobre a linha de fronteira – ou


simplesmente linha/línea, no dizer êmico6 – gerando uma mancha urbana contínua.

Além disso, amizades bastante antigas com o casal Bentancor-Rosés, ela


geógrafa, ele fiscal sanitário, residentes na cidade, facilitaram o acesso a
informações e informantes, tornando-se um ponto de partida para uma rede de
pessoas e uma “base de operação” em inúmeras estadas. A realização simultânea
de trabalhos de campo para a pesquisa do antropólogo Daniel F. de Bem, sobre a
religião afro-brasileira na fronteira, estabeleceu, a partir de Mãe Chola de Ogum
Malé, outra rede de amigos e informantes.

Devo ainda esclarecer que esses esforços não se voltavam a um diagnóstico


da problemática do contrabando e que este trabalho busca fugir um pouco do
conjuntural, ainda que fale do presente. Da minha experiência com avaliações e
projeções sobre os efeitos do MERCOSUL, resultando no trabalho de graduação
realizado em 1987 e na dissertação de mestrado concluída em 1995, aprendi que as
relações cotidianas revestem-se de uma força de estabilidade e permanência que
não cede facilmente, e que as visões sobre mudanças nas estruturas binacionais
são muito influenciadas por corporativismos, regionalismo político ou nacionalismos
de ocasião (DORFMAN, 1987; 1995).

A fronteira hospeda alternadamente discursos de aproximação e de


afastamento, dependendo do momento histórico em que se encontram as nações,
as economias, os blocos econômicos etc. Aos picos de nacionalidade correspondem
versões que apresentam a fronteira como muralha intransponível e a população
como genuinamente nacional. Nos momentos de integração dá-se destaque aos
porta-vozes das raízes comuns, da semelhança no presente, do futuro
compartilhado.

No caso em análise, há vinte anos, aproximadamente, se anuncia a


supressão ou equalização das tarifas do comércio exterior entre os países-membros
do Mercado Comum do Sul: isso causaria grande impacto no “comércio baseado

6
Sigo aqui a distinção entre termos êmicos e éticos, proposta pelo lingüista americano K.L. Pike e
adotada por E. Gellner, Mary Douglas e outros antropólogos (GINZBURG, 2007, p. 43). A primeira
categoria refere-se à concepção corrente entre os nativos ou presente no texto em análise, a
segunda refere-se aos conceitos privilegiados pelo pesquisador para enquadrar as práticas dos
nativos ou as fontes documentais.
22

nas diferenças” que caracteriza a fronteira, nas palavras de Gladys Bentancor-Rosés


(2002, p.86). No entanto, na escala local, não há evidência do apagamento das
características econômicas nacionais ou de uma convergência mais ampla de
preços ou tarifas.

Observa-se que, durante a colonização européia, estabeleceram-se


atividades econômicas semelhantes – pecuária e comércio – na área que
posteriormente seria cortada pelo limite internacional. Tais atividades até hoje
influem nas práticas alimentares, na posse da terra e em outros indicadores
materiais; alianças políticas, famílias internacionais e vocabulário comum
mantiveram-se como descritores imateriais. Na etapa de nacionalismo florescente,
as distinções foram reforçadas e materializadas, a fim de representar o Estado, de
“inscrevê-lo monumentalmente na fronteira política” (DONNAN; WILSON, 2001).

Entre 1964 e meados da década de 1980, os governos militares brasileiros


adotaram o nacionalismo isolacionista como política para a região: toda ação era
interpretada como ameaça expansionista ou projeto de hegemonia continental.
Construir uma estrada era visto como tentativa de invasão, os portos visariam
desviar comércio, as barragens tencionariam criar "países prisioneiros geopolíticos”.
A ameaça externa, além de reforçar sentimentos nacionalistas de coesão nacional,
criou para os municípios fronteiriços um status de “territórios de segurança nacional”,
coibindo a ação política na escala local e entravando a prática da cidadania. Além
disso, o contingente de servidores civis e militares, agentes da nacionalização,
cresceu significativamente.

A partir da década de 1980, o fim das ditaduras brasileira e uruguaia e a


pressão por fazer-se atraente à corrente de capitais internacionais levam à criação
do Mercosul. Esse acordo possibilitou negociações também no nível regional, com a
assinatura de protocolos sobre questões do cotidiano fronteiriço, reconhecendo as
particularidades dessa escala. Com a instituição do Mercosul, o discurso busca
mostrar a fronteira como precursora da integração, como exemplo pragmático ex
ante. Pode-se relacionar essa nova interpretação da fronteira a uma centralidade
emergente, onde esta deixa de ser a periferia do Estado e transforma-se numa área
interna ao bloco regional, com funções de comutação. Tratam-se, em todos os
23

casos, de tentativas de sincronizar os processos que se desenrolam na fronteira aos


projetos que se desenrolam em escalas mais amplas (DORFMAN, 1995).7

Presentemente, convivem discursos que apontam a fronteira como lócus de


ameaças à segurança e economia mundiais, covil de terroristas e “piratas”,
demandando um recrudescimento no controle por agentes internacionais; programas
nacionais para a faixa de fronteira que prometem investimentos na produção e infra-
estrutura; e propostas de agentes locais para uma “desnacionalização” da fronteira,
abrindo-se a investimentos de terceiros países, sob a alegação de compensação da
situação periférica e de isolamento. O argumento da segurança nacional é reeditado
nas fronteiras do Brasil pelos agentes interessados em sensibilizar a opinião pública
para a proteção do mercado interno e da indústria nacional. Por fim, em Santana do
Livramento e Rivera, valorizam-se cultural e turisticamente as características locais
de contato e explora-se a imagem de “Fronteira da Paz”.

O contrabando é uma prática que aciona a dualidade entre as escalas local e


internacional da fronteira, pois só pode ser realizado com certo grau de
conhecimento do lugar, das passagens possíveis, dos momentos e das mercadorias
a comerciar entre os dois Estados, em suma, com base no savoir-passer ligado à
condição fronteiriça (idem, 2008a). Essa formulação busca evidenciar o caráter de
saber local, tradicional, artesanal e em constante atualização, intrínseco à freqüência
dos lugares e ao recurso a redes de relações e de confiança entre os diversos
agentes.

Entendo a escala geográfica como um instrumento para analisar o lugar em


sua posição relativa, ou situação, diante de um espaço mais amplo, um conjunto
maior, permitindo compreender polarizações e trocas. Parto da afirmativa de Louis
Dumont (1992, p.370), de que

a hierarquia não [é] essencialmente uma cadeia de ordens superpostas, ou


mesmo de seres de dignidade decrescente, nem uma árvore taxonômica,
mas uma relação que se pode chamar sucintamente de englobamento do
contrário. [...] O elemento faz parte do conjunto, é-lhe nesse sentido

7
Um raciocínio semelhante é apresentado por Hélène Velasco-Graciet (2006, p. 77), quando afirma
que os espaços fronteiriços adquirem destaque simbólico, uma vez incluídos no seio da Comunidade
Européia, pois lhes é atribuído um papel emblemático: de luta das populações até então separadas e
a partir dali unidas no seio do território europeu.
24

consubstancial ou idêntico, e ao mesmo tempo dele se distingue ou se


opõe a ele (DUMONT, 1992, p.370).

Dessa forma, os eventos na escala local não podem ser entendidos como
auto-determinados, sem relações inter-escalares. Quanto à suíte escalar acionada
nesta pesquisa, é preciso esclarecer que a distinção entre lugar e região não é
estanque. O lugar é entendido como uma unidade geográfica com continuidade
histórica; a região também apresenta tais características. O primeiro conceito
sublinha a dimensão cotidiana e horizontal, o segundo enfatiza a condição de
subespaço de um conjunto mais amplo, com reverberações políticas e culturais
melhor definidas (SANTOS, M., [1996] 2002, p. 166).

Para privilegiar ainda mais essa dimensão horizontal do contrabando, acabei


concentrando-me no estudo de certo tipo de comércio transfronteiriço, localmente
conhecido como bagayo e na literatura acadêmica como contrabando-formiga, que
pode ser caracterizado como uma atividade do circuito inferior da economia (idem,
[1979] 2004). O termo designa a ocupação – principal ou complementando a renda –
dos indivíduos ou pequenos grupos que atravessam a fronteira com produtos
bastante triviais e baratos, em pequenas quantidades, transportando-os
repetidamente, geralmente em transporte coletivo. Caracteristicamente artesanal,
esse comércio é tradicional na região fronteiriça, aparece nos primeiros relatos de
viajantes, nos textos canônicos, nas canções populares, nos causos, marca a
evolução urbana e demográfica da fronteira, o imaginário e as práticas dos
fronteiriços.

A hipótese central deste trabalho é de que o contrabando é absolutamente


estrutural nessa sociedade, sendo importante no abastecimento e no sustento das
pessoas, sendo visto mais como trabalho do que como delito, realizando-se através
da constituição das redes de solidariedade indispensáveis à sua execução.
Amplamente praticado, o contrabando acaba por envolver toda a sociedade local,
daí advindo sua necessária legitimação. Além disso, o ethos contrabandista cria uma
identidade de lugar, distinguindo outsiders e membros (cúmplices) do grupo e uma
25

territorialidade com extensão, passagens e polarizações em constante atualização,


dada a variabilidade dos conteúdos da fronteira.8

O contrabando pode ser interpretado, portanto, como uma sinédoque da vida


na fronteira, já que os contrabandistas lançam mão da coesão sócio-espacial e do
conhecimento do lugar para aproveitar-lhes as oportunidades, acionando sua
condição fronteiriça. Sem ignorar o caráter ilegal da atividade, nem desconsiderar a
territorialidade dos dois Estados-Nação em contato, o contrabandista negocia com
as dificuldades que valorizam seu trabalho e com a oscilação econômica e cambial
que mobiliza as vidas fronteiriças.

A estrutura do texto é a seguinte: a primeira parte é dedicada a uma


apreciação do (1) cotidiano da fronteira e de suas raízes históricas, conforme tenho
observado e documentado, recorrendo ainda a fontes secundárias. A seguir, uma (2)
discussão do método empregado nessa tese, de interpretação das práticas dos
contrabandistas por meio de suas representações textuais, na forma de documentos
variados e da transcrição de trabalhos de campo de caráter etnográfico. Passo então
à (3) discussão das representações textuais que recolhi e consultei, iniciando com
uma (3a) análise da literatura de fronteira e dos contos de contrabando e seguindo
com uma (3b) abordagem teórica dos conceitos e noções de fronteira e de sua
validade no lugar em questão. Finalmente, (4) integro esses elementos aos
resultados dos trabalhos de campo, descrevendo a geografia dos contrabandistas
em Santana do Livramento-Rivera e propondo, nas conclusões, (5) uma
nterpretação geográfica para as formas de comércio transfronteiriço ora em curso.
No Apêndice A listo os contatos realizados, nos apêndices B, C e D transcrevo as
principais entrevistas; no apêndice E, em meio digital, encontra-se uma iconografia
da fronteira e do contrabando na(s) cidade(s) de Santana do Livramento e Rivera.
No anexo I reúno e comento uma série de textos recolhidos nas cidades-gêmeas,
aqui reproduzidos em função de suas características de circulação apenas regional.

Apresento, a seguir, alguns gráficos em que se comparam as áreas e as


populações do Brasil e do Uruguai (Figs. 1 e 2), as distâncias em linha reta entre

8
Ethos pode ser entendido como o conjunto de costumes que compõem o modo de vida de um
grupo, dando-lhe identidade. Segundo Clifford Geertz “o ethos de um povo é o tom, o caráter e a
qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação
a ele mesmo e a seu mundo que a vida reflete” (1989, p.143).
26

Santana do Livramento, Rivera e as principais cidades dos respectivos países (Fig.


3), a hierarquia administrativa em que se inserem as cidades em que centro este
estudo (Fig. 4). Note-se que Rivera pertence a um conjunto nacional muito menor,
mas ocupa uma posição administrativa mais importante que Livramento. A Figura 5
é um mapa que localiza as principais cidades e redes referidas nesta tese.

2
BRASIL E URUGUAI: Área (km ) BRASIL E URUGUAI: População (2003)

176.215 3.386.575

8.511.996 176.029.560
BRASIL
URUGUAI

FIGURAS 1e 2: Brasil e Uruguai: gráficos comparativos de área e população -


2003.
Fonte: DORFMAN; BENTANCOR-ROSÉS, 2005, p.202.

BRASIL URUGUAI

2000 Km 500 Km 500 Km

Brasília Porto Alegre Livramento Montevideo

Rivera

distância aproximada em linha reta


fronteira internacional

capital federal

capital estadual (BR) ou departamental (UY)

sede municipal

FIGURA 3: Santana do Livramento e Rivera: gráfico com distâncias


aproximadas em linha reta das capitais.
Fonte: DORFMAN; BENTANCOR-ROSÉS, 2005, p.202.
27

Brasil Uruguai
Limites políticos
entre estados da federação
(BR) ou departamentos
(UY)

entre municípios (BR)

FIGURA 4: Santana do Livramento e Rivera: gráfico mostrando a hierarquia


administrativa.
Fonte: DORFMAN; BENTANCOR-ROSÉS, 2005, p.202.

Santana do Livramento fica no extremo sul do Brasil. Rivera fica bem ao norte
do Uruguai. Essas duas cidades são tão próximas que é corrente chamá-las de
cidades-gêmeas, por ambiente e por condição. A expressão demanda um
esclarecimento.

Idealmente, cidade e limite opõem-se: a cidade seria o lugar das trocas,


enquanto o limite representaria um corte nos fluxos (PIERMAY, 2005, p. 214).
Portanto, as cidades fronteiriças são especialmente importantes para as zonas ou
regiões de fronteira, pondo às claras os processos e contradições aí vividos: as
cidades “apresentam grande potencial de integração econômica e cultural assim
como manifestações ‘condensadas’ dos problemas característicos da fronteira”
(MACHADO L., 2004).

Pela mesma razão, as cidades-gêmeas têm chamado a atenção de


pesquisadores que se interessam pela fronteira. As cidades integradas que
pontilham a “raia” foram descritas por Raymond Pébayle, já em 1978, como pontos
de soldadura da fronteira, sendo chamadas villes-doublets, expressão traduzida
como cidades-gêmeas, “bicéfalas no plano administrativo mas perfeitamente
complementares do ponto de vista econômico (t.n.)”9 Essa idéia já estava em franco
uso na década de 1980, nos textos motivados pelo Mercosul.

9
“Bicéphales au plan administratif, mais parfaitement complémentaires du point de vue économique”
(PÉBAYLE, 1978, p.40).
28

FIGURA 5: Região-Fronteira: mapa dos lugares citados nesta tese – 2008.


Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman, bases cartográficas do INPE/ Departamento de Defesa
Americano/Grupo Retis, cartografia de Circe Dietz e Nola Gamalho.
29

Mesmo antes, segundo Lia Osório Machado, nos Estados Unidos já se falava
em twin cities, cidades gêmeas, referindo a cidades conurbadas (Lício Monteiro,
comunicação pessoal, julho de 2008). Noutro contexto, cidades-gêmeas são aquelas
unidas pela diplomacia e o intercâmbio, estabelecendo laços de cooperação.

Nos confins dos Estados-Nação, no entanto, a expressão é reservada para


pares ou trios de cidades que mantenham trocas intensas. O processo de formação
de tais aglomerados urbanos nas fronteiras do Brasil é interessante: por vezes, as
cidades se originam na própria linha, frente a frente; noutras vezes, elas crescem em
direção a essa, se conurbando; não necessariamente têm a mesma data de
fundação. Como aponta Fernando Rabossi, falar em cidades-gêmeas permite
analisar as interações sem subsumi-las em uma unidade (2004, p.11). Em geral, a
razão para o crescimento das cidades-gêmeas seria sua função comercial e de
articulação de transportes e comunicações, diante das descontinuidades instauradas
pela territorialização do Estado-Nação, a ponto de Karine Bennafla falar de uma
renda de situação ou, mais diretamente, de uma renda fronteiriça (2002, p. 148).

No entanto, para essa autora, cidades-gêmeas e cidades-fronteira não são


homólogas. Em primeiro lugar, ela refuta a definição de Joël Kotek (1996), que
apresenta a cidade-fronteira como uma cidade disputada, polarizada em termos
étnicos e ideológicos. Propondo a idéia de uma nova função urbana, a autora define:

Por cidade-fronteira preferimos designar as cidades (fronteiriças ou não)


que não somente podem operar as descontinuidades fronteiriças, mas que
prosperam graças ao diferencial existente entre dois Estados; em suma,
que vivem da fronteira ou de uma economia fronteiriça (mesmo que parcial)
10
(t.n.) (BENNAFLA, 2002, p. 138)

Em outras palavras, trata-se dos pontos onde se opera a acumulação dos


dividendos das trocas interestatais, muitas vezes no interior do território. Cabe
apontar que o foco da geógrafa camaronesa são as redes comerciais e sua inscrição
urbana, onde as fronteiras estatais aparecem como um limite de ordem política.
Nessa linha de raciocínio, os lugares dotados de conexões internacionais, na forma

10
“Par ‘ville-frontière’, on prefere désigner les villes (frontalières ou non) qui non seulement ont la
possibilité de jouer sur les discontinuités frontalières, mais qui prospèrent grâce au différentiel existant
entre deux États, en bref qui vivent de la frontière ou d’une économie frontalière (même partielle)”
(BENNAFLA, 2002, p. 138). A autora esclarece que a definição foi elaborada no âmbito de um grupo
de trabalho formado por B. Reitel, C. Arbaret-Schulz, J.-L. Piermay, P. Zander e F. Moullé em
Strasbourg, 1997-1998.
30

de um ponto, uma linha ou uma zona, como portos ou aeroportos, também


constituem cidades-fronteira, o que não ocorre com mercados situados sobre o
limite.11 Privilegiar a rede em detrimento do lugar pode levar à valorização do que
Marcio Cataia denomina “comando dissociado da fronteira” (comunicação oral, São
Paulo, julho de 2008). No entanto, rede e lugar não se opõem se concebermos a
primeira, como sugere Leila Christina Dias, como a conexão – seletiva e conjuntural,
instável no tempo e no espaço – através da qual se articulam as ações sociais
levadas a cabo em diferentes lugares (2005, p. 23-4). As interações são tão intensas
em Santana do Livramento-Rivera que a geógrafa gaúcha Gisela Copstein afirma
tratar-se de uma única cidade, sujeita a duas soberanias (1989). No caso em estudo
aqui, e dado nosso propósito de aprofundar a compreensão das lógicas locais – as
mais evidentes, as silenciosas – valorizando as trocas nesse conjunto urbano, a
notação “a(s) cidade(s) de Santana do Livramento-Rivera” será adotada,
representando a profunda relação entre população, redes e práticas presente no
lugar.

Desta forma, é a observação das tradições, costumes e, principalmente, das


práticas localizadas dos contrabandistas, o foco desta tese. A abordagem alinha-se
a estudos do cotidiano fronteiriço e de suas representações, especialmente por
geógrafos e antropólogos, entre os quais cito Gladys Bentancor-Rosés (2002),
Hélène Velasco-Graciet (2006), Perla Zusman, Cristina Hevilla e Matias Molina
(2006), Lidia Schiavoni (1993, 2005), Alejandro Grimson (2000, 2003), Grimson e
Pablo Vila (2002), Fernando Rabossi (2004) e Peter Sahlins (1989) que se destaca
pela originalidade.

A perspectiva analítica adotada propõe debruçar-se sobre o lugar, permitindo


a observação da trama social, entendida como diversa, mas contextualizada pelas
outras escalas. Ao optar por uma geografia da escala local e regional, tratando de
processos sociais não estatais, na periferia da formação estatal, corro o risco de ter
o trabalho enquadrado como não-generalizável, microescalar ou regionalista. Por
outro lado, posso me aprofundar na compreensão de processos distintos da média
nacional, evitando essencializações e posturas prescritivas.
11
Os casos concretos, na África Central, que informam os raciocínios dessa autora são, além das
metrópoles comerciais, mercados fronteiriços, aos quais ela recusa o estatuto urbano, uma vez que,
entre outros fatores, carecem de estruturas políticas endógenas, desenvolvem-se em torno da mono-
atividade, caracterizam-se pela periodicidade e efemeridade.
31

1. O COTIDIANO FRONTEIRIÇO E SUAS RAÍZES HISTÓRICAS

Neste capítulo trazemos elementos históricos e contemporâneos que


descrevem o cotidiano da(s) cidade(s) de Santana do Livramento-Rivera, a fim de
contextualizar as práticas contrabandistas que são objeto deste estudo. Recorremos
à bibliografia histórica para circunscrever a formação e a urbanização da fronteira
entre o Brasil e o Uruguai12. Buscamos explicar como a criação de gado, de
características transumantes, e seu emprego como matéria-prima em charqueadas e
frigoríficos de gestão estrangeira, mas voltados principalmente para o mercado
brasileiro, ativaram a passagem legal ou não dos limites nacionais. Conhecemos
ainda os nexos entre contrabando e política territorial, nas disputas pelo controle
militar e fiscal da fronteira e no uso das redes de transporte e comunicações
existentes. Por fim, examinamos como tais processos consolidam uma geografia das
trocas legais e ilegais experimentada em Santana do Livramento-Rivera na estrutura
interna da(s) cidades, nas práticas de consumo, na linguagem e na constituição de
redes sociais.

1.1. PRIMÓRDIOS DA FRONTEIRA E DO CONTRABANDO GAÚCHOS

Durante séculos, na grande área por vezes chamada Tape (bacias dos rios
Uruguai, Ibicuí, Jacuí e Negro) ou Yapeyú (vide Fig. 6), a presença política européia
limitava-se a iniciativas esporádicas, e só no fim do século XVIII a demarcação
política e fundiária da margem ocidental do rio Uruguai foi iniciada.

No século XVI, os territórios que hoje são conhecidos como Rio Grande do
Sul, no Brasil, e República Oriental do Uruguai faziam parte de uma região

12
Durante algumas décadas, a bibliografia restringia-se à obra Contrabando no sul do Brasil (CESAR,
1978) e aos textos de Suzana Bleil de Souza (1994a, 1994b, 1995a, 1995b). Nos anos 2000, há um
crescimento na produção historiográfica gaúcha sobre o contrabando (ALBORNOZ, 2000; AXT, 2002;
COLVERO, 2004; FLORES, 2007; GIL, 2002, 2005, 2007; PANIÁGUA, 2003; ROCHA; BRAND, 2001;
VOLKMER, 2007), provavelmente devido à centralidade emergente da fronteira e à valorização da
história regional e da micro-história.
32

dominada por índios kaingang, guarani e guaicuru, cujos territórios foram sendo
paulatinamente apagados.

A partir de 1609, missões jesuíticas instalam-se no centro da bacia do Prata


(hoje territórios do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina) e fundam mais de trinta
“povos” ou povoados. Dezenas de milhares de índios aí se aldeiam, plantando,
criando gado eqüino, muar e bovino, sendo catequizados. As riquezas da Província
Jesuítica do Paraguai, autônomas em relação às coroas ibéricas, atraíram
bandeirantes do litoral atlântico por mais de um século, propiciando a abertura de
caminhos que conectariam a costa ao interior.

FIGURA 6: Departamento de Yapeyú: mapa – fim do século XVIII.


Fonte: GARAVAGLIA, 1975, p. 466, apud PANIÁGUA, 2003, p. 55.

Em 1680 funda-se, na margem oriental do rio da Prata, a Colônia do


Sacramento. Trata-se de um enclave português construído para apoiar o avanço da
33

empresa colonial até o rio da Prata, indo além do território definido pelo Tratado de
Tordesilhas, para garantir o escoamento flúvio-marítimo de mercadorias como
alternativa a Buenos Aires. A essa ação, corresponde imediata reação castelhana,
numa série de confrontos pela definição da fronteira colonial. O avanço desde o
norte provocara constantes demandas quanto à ocupação de território espanhol
pelos portugueses e a organização das califórnias, incursões para captura de gado
crioulo. É partir de Sacramento que se constrói, em 1752, o forte Jesus, Maria e
José, origem de Rio Grande, e se inicia a construção da fronteira gaúcha. O século
XVIII é marcado por lutas e tratados em torno de sua posse.

O Tratado de Madri (1750) redefiniu as fronteiras entre as Américas


Portuguesa e Espanhola, anulando o estabelecido no Tratado de Tordesilhas:
Portugal garantia o controle da maior parte da Bacia Amazônica, enquanto a
Espanha controlava quase toda a bacia do rio da Prata. Esse tratado pautou-se pelo
princípio do usucapião (uti possidetis), ou seja considerou que a terra pertence a
quem a ocupa. O Tratado de Santo Ildefonso (1777) confirmou o Tratado de Madri e
devolveu à Portugal a ilha de Santa Catarina, ficando com a Espanha a Colônia de
Sacramento e a região dos Sete Povos. O Tratado de Badajós (1801) incorporou os
Sete Povos das Missões ao Brasil, configurando, de modo geral, os atuais limites
meridionais do Brasil.

No último quarto do século XVIII, a fronteira começou a ser demarcada no


campo. Equipes de geógrafos, astrônomos e matemáticos espanhóis e portugueses
percorriam a área, partindo do litoral. Permanecendo no terreno por longos períodos,
tais agentes relataram em seus diários uma grande intimidade, e mesmo
coincidência, entre contrabandistas e autoridades locais (GIL, 2007). Cabe lembrar a
questão colocada pelo historiador, especializado no período colonial buenairense,
Zacarias Moutoukias: “Se tratava o contrabando de ações isoladas ou estava ele
estruturalmente ligado à vida econômica da região?” (t.n.) (1988, p.18)13.

13
“Se trataba de una suma de acciones aisladas o estaba estructuralmente ligado a la vida
económica de la región?” (MOUTOUKIAS, 1988, p.18).
34

1.2. GOVERNADOR E CONTRABANDISTA NA FRONTEIRA DO SÉCULO XVIII

Por conta da situação territorial em definição, destacavam-se os homens


fortes, capazes de dispor de recursos materiais e humanos. Tiago Gil (2002, 2003)
apresenta as atividades de Rafael Pinto Bandeira entre 1770 e 1790
aproximadamente, na fronteira do Rio Grande, no leste da atual fronteira. Figura
poderosa, foi governador interino e coronel, teve vários postos no governo, sempre
por ser considerado necessário devido a suas posses e capacidade de forjar
alianças.

Chefe de bando, Pinto Bandeira transitava entre o legal e o ilegal facilmente,


contrabandeando mulas, gado e couros, via terrestre ou fluvial. Implicado em
“assassinatos, extorsões e roubos” (idem, 2003, p. 2), mobilizava espiões,
mensageiros, condutores de gado etc. através de carisma, favores ou coerção. A
análise das atividades do bando mostra uma diversidade de ocupações, nos estratos
“superiores” bem como nos “inferiores” da sociedade. Eles não eram
contrabandistas em tempo integral, “eram, simultaneamente, militares, criadores,
administradores e negociantes”, o que

se explica por uma certa insegurança frente aos negócios de cunho


econômico, o que faz com que fossem preferidos vários investimentos,
garantindo possibilidades maiores de manutenção de ganhos. Todavia,
também é o reflexo da variedade de interesses que tais homens possuíam,
[e da capacidade] de criar vínculos nos mais diversos setores sociais. Eram
formas de negociar bens imateriais como favores, apoios e alianças. [...] Era
mais uma forma de garantir a sobrevivência além da produção material. Um
sujeito como Romão Vareiro, provavelmente indígena e, até onde sabemos,
com parcos recursos, participou de arreadas, conduziu gados
contrabandeados e, pelo que parece, possuía uma pequena propriedade às
margens do rio Camaquã, onde criava cavalos.[...] Miguel Martins Serra [...]
acumulava as funções de mensageiro, soldado, lavrador e condutor de gado
contrabandeado. (id., ibidem, p.7)

Conforme Zacarias Moutoukias, também na Buenos Aires do século XVII, era


difícil definir onde terminava o funcionário e onde começava o comerciante, de modo
que a própria idéia de aliança burocrático-mercantil – que implica a existência de
dois setores separados – não se aplicaria (1988, p. 114 e 202).

Na fronteira, além dos membros ligados aos setores “superiores” da


sociedade, havia peões de contrabando, cuja atividade era eventual, dependendo
das encomendas contratadas por compradores ou produtores. Cotidianamente,
35

esses homens estavam envolvidos com atividades como a plantação, a criação de


gado ou as eventuais guerras. Estes eram “homens que percebiam o comércio ilícito
como uma fonte de renda sazonal, possível para eles, na medida em que estavam
diretamente vinculados a um negociante maior que lhes garantia a circulação e a
segurança da passagem.” (GIL, 2003, p.15).

Pinto Bandeira valia-se de inúmeras estratégias para garantir o sucesso de


sua atividade. Tiago Gil destaca a “acumulação troglodita”:

Além de provocarem o temor público, se valiam de seu nome e prestígio


para obter bens em geral, sem necessidade de depender de dinheiro [...]. O
investimento maior estava em certos atributos da família, como poder e
controle social. Certamente este também não era um fundo inesgotável, e
necessitava de uma administração cotidiana. (id., ibid., p.16)

A principal característica organizacional identificada no contrabando era


justamente o bando, denominado “pedra filosofal” pelo autor, e caracterizado como
uma estrutura com dimensões horizontais – garantidas por relações de parentesco
nos estratos mais elevados da sociedade – e verticais – ligando membros das
camadas subalternas por reciprocidade gerada nos combates e nas contrapartidas
de guerra, como obtenção de patentes, de terras etc., proteção a infratores ou ainda
por coerção através de violência física. O bando tem um nível de relações “diádicas,
homem a homem”, entre cunhados e sócios; e outro de relações bem verticalizadas,
“escalonadas”, estabelecendo subalternos e níveis de intermediação.14

Por exemplo, com os índios minuano “que eram pródigos fornecedores de


gado, Rafael se valia da ação de seu sogro, Dom Miguel Carai, que era um dos
caciques daquele grupo” (id., ibid., p.5). A aproximação com os Guarani era feita
pelo sócio Antonio Carneiro.

Espacialmente, o contrabando capitaneado por Pinto Bandeira criava


alianças, tendo tecido uma rede que ligava Rio Grande a financiadores do Rio de
Janeiro e Montevidéu e enviava tropas para Curitiba. No âmbito regional, a figura 7
indica a rota terrestre levantada por Gil, caminhos comuns e notórios identificados
pela leitura dos processos (id., ibid., p.13).

14
Tiago Gil remete a valorização do bando como estrutura social a João Fragoso (2001), em suas
pesquisas sobre a elite colonial no Rio de Janeiro dos séculos XVI e XVII (comunicação oral,
26/09/2006).
36

FIGURA 7: Sul da América portuguesa: mapa das ligações terrestres no


espaço de atuação dos contrabandistas – 1780/1810.
Fonte: GIL, 2007, p. 175, sobre a base cartográfica integrada do Brasil ao milionésimo digital, 2003,
IBGE/DGC/CCAR, alterado para fins de ilustração; diversas fontes da época levantadas na pesquisa.

A rota fluvial do contrabando, na mesma época, está representada na figura


8. Por ela entram na América portuguesa couros e saem fumo e escravos. O texto
menciona a cobrança de propina para passagem de outros bandos ou a apreensão
de cargas e canoas, em nome da lei, para uso posterior pelos confiscadores. A
proximidade com a lei servia também para legalizar o contrabando.

O artigo em discussão aborda ainda outras estratégias. O uso da força,


baseado na impunidade garantida pelo tráfico de influências, favorecia uma loja que
existia na casa de Pinto Bandeira, já que a autoridade do dono lhe permitia expulsar
os comerciantes concorrentes e confiscar mercadorias de terceiros. Além disso, ele
tinha um espião estacionado na lagoa Mirim, que controlava a fronteira. Oficiais na
Guarda do Passo do Beca, próxima à estância do Pavão, de Pinto Bandeira,
cobravam propinas para não confiscar contrabando. Pinto Bandeira foi acusado
ainda de confiscar canoas de outros contrabandistas e utilizar material da Coroa
37

para construí-las – pregos e madeira da Fazenda Real (id., ibid., p.16) – além de
empregar índios e escravos como marinheiros sem nunca pagá-los (id., ibid., p.21).
Todas essas atitudes mostram uma sobreposição entre a apropriação privada da
terra e do território nacional, dada pelos privilégios garantidos pela capacidade de
organizar uma rede de relações, tanto diante de concorrentes nas práticas ilegítimas
quanto em ganho de autoridade legítima.

FIGURA 8: Lagoa Mirim: mapa da rota flúvio-lacustre do contrabando de


couros – 1780/1810.
Fonte: GIL, 2007, p. 180 sobre base cartográfica integrada do Brasil ao milionésimo digital, 2003,
IBGE/DGC/CCAR, alterado para fins de ilustração; diversas fontes da época levantadas na pesquisa.

Seguindo o mesmo raciocínio, conclui-se haver uma “privatização da


fronteira”, isto é, o uso em proveito próprio da autoridade outorgada pela Coroa para
o controle da fronteira, cobrando propinas ao invés de impostos, facilitando a
passagem dos membros do bando e reprimindo o movimento dos rivais. A
proximidade ao poder possibilitava ainda legalizar mercadorias ilegais. Essa
38

“privatização” não era feita apenas por esse grupo, nem acontecia apenas neste
lugar, conforme mostra o trabalho de Zacarias Moutoukias (1988).15

Ao mesmo tempo em que era investigado por causa de denúncias de alguns


comerciantes que coagira, Rafael Pinto Bandeira recebia, em Lisboa, o posto de
brigadeiro, assumindo posteriormente o posto de governador interino do Rio Grande
de São Pedro com freqüência. Tais graças demonstram que ele era um súdito de
valor reconhecido pelos governantes, com ótimas relações nas esferas políticas
mais elevadas, e que não havia contradição tão forte entre servir à Coroa
Portuguesa, defendendo a fronteira, e promover interesses particulares,
contrabandeando. De fato, seria impossível contrabandear se não houvesse
fronteira, e controlá-la politicamente facilitava as atividades de um bando em
prejuízo de outros.

1.3. URBANIZAÇÃO: CONTROLE E CONTATO

Em meados do século XIX, há menos de dois séculos, portanto, os Estados


nacionais ainda estavam a traçar a fronteira que hoje divide Brasil e Uruguai.16 Em
vários momentos daquele século, o governo brasileiro não era capaz de assegurar

15
Segundo Gil, “Rocha dizia ainda que Rafael se valia de seus postos militares, como comandante
da fronteira, para privilegiar seus partidários e embaraçar outros arreadores [...] para eliminar seus
concorrentes”. (GIL, 2003, p.11) O Capitão de Dragões Carlos José da Costa e Silva (cunhado de
Rafael Pinto Bandeira) foi nomeado como participante, e como comandante oficial da fronteira
”garantiria a passagem de determinados indivíduos, confiscando outros ou cobrando pesadas
‘multas’, isto é, propinas”. (idem, ibidem, p.15). Outro cunhado de Pinto Bandeira era contrabandista e
comandante do distrito do Caí, encarregado de coibir aí o contrabando: “Testemunhas acusaram
Custódio [Ferreira] de se valer de seu posto para confiscar para si alguns animais e cobrar de outros
tropeiros para não efetuar o confisco. Alguns desses tropeiros que andavam com contrabandos
acabaram sendo pegos em outros lugares. Custódio não deveria estar interessado em proteger esses
tropeiros, até porque poderiam tornar-se concorrentes. Mas o embolso da quantia lhe interessava [...]
Alguns contam inclusive que obrigava a alguns tropeiros a comprar seus animais ou, em algum caso
mais específico, casar com alguma de suas filhas bastardas” (id., ibid., p.22-3).
16
A fronteira Brasil-Uruguai foi definida por tratado internacional em 1851, demarcada entre 1852 e
1862, sendo caracterizada a partir de 1920. Ainda hoje existe controvérsia sobre alguns trechos da
fronteira e, ainda no começo de 2006, novos marcos foram colocados no centro das cidades-gêmeas
de Santana do Livramento-Rivera. Os principais documentos bilaterais que trataram da definição dos
limites entre o Brasil e o Uruguai são: o Tratado de Limites (12/10/1851); Tratado da Lagoa Mirim
(30/10/1909); Convenção do Arroio São Miguel (07/05/1913); Estatuto Jurídico da Fronteira
(20/12/1933) e Notas Reversas sobre a Fixação da Desembocadura do Arroio Chuí (21/07/1972)
(FRONTEIRA..., 2006).
39

para si a área fronteiriça em questão, em geral apropriada por partidos locais. A


Revolução Farroupilha (1835-1845) é o momento mais frequentemente lembrado,
mas houve vários outros embates entre lideranças locais, contando com a ajuda de
aliados orientais, pelo controle de terras, opondo a causa republicana à federalista,
em conflitos que interrompiam comunicações e ameaçavam o controle efetivo do
território e de suas fronteiras. Assim se deu em 1891, entre 1893 e 1895, em 1897 e
1923, em conflitos que usualmente tinham como estopim protestos contra medidas
fiscais que prejudicavam as elites fronteiriças17.

A integração nos confins das colônias ibéricas – e das nações sul-americanas


do XIX – em lugares esparsamente povoados, como nessa fronteira ainda em
esboço, favoreceu, por séculos, ao comércio e às trocas. Num espaço de trânsito,
onde a principal atividade era pastoril e transumante, os caminhos se destacavam.
Os espanhóis partiam do porto de Montevidéu, enquanto o povoamento pelos
portugueses se fazia a partir do litoral, saindo de Rio Grande em direção noroeste,
em demanda de uma fronteira.

Nas palavras de Suzana Bleil de Souza:

ao contrário de outras fronteiras, a do sul do continente “era uma região


freqüentada, um mundo de relações contínuas e prolongadas”. A própria
transumância do gado, espontânea ou dirigida pelo “changador” levava à
interação de territórios e de povos, contrariamente ao desejo das
18
chancelarias das metrópoles coloniais (t.n.) (1994a, p.339) .

As cidades originavam-se de entrepostos de abastecimento ou de


acampamentos militares, o que mostra a tensão entre a busca e a interdição dos

17
Afinal, como controlar áreas conflagradas que nem mesmo se encontravam na mão do governo
constituído, sendo tensionadas por grupos com alianças uruguaias? Márcia Volkmer (2007, p.65)
afirma que, durante os embates de 1893-5, “quase um terço das estações fiscais do Rio Grande do
Sul permaneceria em um estado de total incomunicabilidade em decorrência do movimento
revolucionário. À desorganização dos postos somava-se o abastecimento pela via uruguaia, sem
nenhum registro ou taxação. As repartições estavam desorganizadas e eram fechadas de acordo
com o movimento das tropas. Além disso, havia freqüentes assaltos e um sem número de
irregularidades praticadas pelos próprios funcionários do Estado”. A situação dos fiscais complicava-
se porque “o interesse que mostrassem no exato cumprimento de seus deveres era muitas vezes
origem de inimizades e malquerenças que, em momento de perturbação da ordem, como o que
atravessávamos, dava lugar a vindictas e atentados” (AHRS, Relatório da Fazenda, 1895, p. 13, apud
VOLKMER, 2007, p.65).
18
“A l’inverse d’autres frontières, celle du sud du continent “fut une région frequentée, um monde de
relation continue et prolongée”. La transhumance du bétail elle-même, spontanée ou activée par le
“changador” (colporteur), mena à l’interaction de territoires et de peuples, contrairement à ce qui était
souhaité par les chancelleries des métropoles coloniales” (SOUZA, 1994a, p.339).
40

contatos transfronteiriços. Seu desenvolvimento ligava-se a intenções de aproveitar


a proximidade da fronteira, a renda fronteiriça para comerciar. Segundo a
informação do geógrafo gaúcho Raphael Copstein, corroborada por outras fontes,

[a cidade de] Rio Grande aparece com função militar, que é o forte que tem
aí [Forte Jesus, Maria e José], mas seguido depois da fundação existem 30
e tantos comerciantes num lugar que só tem tropa, e tropa inclusive que não
recebe em dia, e porque, o que eles vieram fazer aí? [...] Num lugar que só
tem soldado e meia dúzia de negros? E que não tem dinheiro? Olhar para a
bonita cara do exército e do patriotismo? Evidente que não, não é?!
(entrevista, Porto Alegre, 11/10/2005).

Uruguaiana é outro exemplo: surge em 1840, de um posto fiscal erguido num


passo de fronteira. Junto ao posto havia um acampamento militar e vários ranchos,
formando um povoado chamado inicialmente Santana do Uruguai (PONT, 1982, p.
69), que teria uma função estratégica para os farrapos.

Eu não posso provar, porque eu não tenho elementos ainda, que


Uruguaiana, durante a Revolução Farroupilha, o governo procura fazer lá
um [núcleo]. É para o comércio entre o Rio Grande do Sul, que se fazia por
outros lados, e o Uruguai, a Argentina, a busca de armas e outras coisas,
porque, não tendo os farrapos dominado a Lagoa [Mirim] nem Rio Grande
ou São José do Norte, eles só podiam negociar através do Prata, e
escolhem inclusive mal o sítio de Uruguaiana, tanto que o sítio muda duas
ou três vezes (Raphael Copstein, entrevista, Porto Alegre 11/10/2005).

Já o povoamento da região de Dom Pedrito (iniciado em 1800 e consolidado


com a elevação à município em 1872) tem relação estreita com o contrabando na
fronteira. O município recebeu seu nome de um espanhol conhecido como Don
Pedrito, que organizava esta atividade ilegal, atraindo os interessados em comerciar
e criando um povoado. Pedro Ansnategui foi “citado como um dos maiores
changadores da Banda Oriental, em 1790” (GIL, 2007, p. 11). A atividade de Don
Pedrito levou ainda à abertura de picadas, que posteriormente deram origem a
estradas.

Segundo o historiador gaúcho Gunter Axt, a diferença de preços e tarifas


motivou os “contrabandistas uruguaios a fundar a Vila de Artigas (antigo nome de
Río Branco), contígua à cidade de Jaguarão, que se desenvolveu em prejuízo da
segunda” (2002, p. 1). Outras interpretações talvez considerassem que a relação
entre as duas cidades era sinergética e não parasitária, casos distintos de relações
entre cidades-gêmeas.
41

Ao longo da extensão limítrofe, estabeleceram-se outras povoações que


conformaram, com suas contrapartes, pares de centros urbanos. O simples exame
da toponímia na fronteira Brasil-Uruguai revela os fortes vínculos entre as
comunidades: repete-se dos dois lados da linha de fronteira, remetendo a passos,
lugares de observação etc., simbolizando a experiência de contato, a
correspondência, o duplo. Esses nomes dão ainda pistas das relações – nem
sempre legais – que levaram ao surgimento de formas espaciais como caminhos e
núcleos urbanos. Chuí-Chuy, Cerrilhada-Serrillada, Aceguá-Acegua, são exemplos.
Existe ainda Barra do Quaraí-Bella Unión; Quaraí-Artigas; Vila Tomás de Albornoz-
Masoller. Jaguarão tem, à sua frente, a cidade de Río Branco, batizada em
português em homenagem à generosidade do Barão na negociação dos limites
dentro da Lagoa Mirim. Outra vila fronteiriça chama-se Vichadero, palavra que se
traduz como atalaia, lugar de vigilância. Diz-se que o povoado originou-se nas
vantagens do sítio, que permitia a observação de vastos campos e caminhos,
facilitando a detecção da chegada de companhias militares e grupos de guardas de
fronteira.

Entre tantas cidades da fronteira, Santana do Livramento, nosso foco,


originou-se num acampamento militar estabelecido em 1811, por ordem de D. João
VI, com o propósito de auxiliar ao vice-rei das províncias do rio da Prata nas
dificuldades que experimentava para conter a insubordinação e os movimentos de
independência. Tal acampamento foi levado em consideração pelo uti possidetis nos
debates demarcatórios em 1851. Em torno dessa praça militar, sesmarias foram
outorgadas aos soldados e aliados da coroa portuguesa, combinando a posse da
terra à garantia armada do território. Em 1823, autoriza-se a construção de uma
capela; em 1857, desmembra-se uma área do município de Alegrete; e, finalmente,
em 1876, surge a cidade de Santana do Livramento (ALBORNOZ, 2000, p. 29-32).

No lado “uruguaio”, no fim do século XIX, receava-se a ameaça expansionista


portuguesa19. José Gervásio Artigas, protagonista da história oriental, havia

19
“Na hora presente, o Brasil, depois de continuados e pacientes esforços, domina com seus súditos,
que são proprietários do solo, quase todo o norte da República: em toda essa zona, até o idioma
oficial quase se perdeu, já que se fala mais freqüentemente o português. Por isso temos visto que em
nossas lutas cívicas os partidos orientais têm apelado a chefes brasileiros que, mesmo quando
nascidos em nosso território, conservam o idioma, os costumes e o amor à pátria de seu pai, que
também é a sua, mesmo que não tenham nascido nela, já que para conservar sua nacionalidade, vão
batizá-los nas paróquias brasileiras da fronteira” (t.n.). "En la hora actual, el Brasil, después de
42

percorrido, na primeira década do século XIX, o “deserto verde”20, situado distante


de Montevidéu, ao norte do Rio Negro. Tomando conhecimento da situação local,
identifica o projeto colonizador lusitano como o principal problema, contrariando a
crença corrente que acusava aos índios e aos contrabandistas de gado de
obstaculizarem a exploração da área. Ele afirmava ter “clara consciência do avanço
visível e patente das fronteiras lusitanas bem adentradas no território espanhol”
(PALERMO, 2001).

Combinando o controle territorial ao papel simbólico na defesa da


nacionalidade, a fronteira parece demandar iniciativas por parte dos líderes
“uruguaios”, que optam pela fundação de vilas, num projeto de demarcação da
fronteira norte. Em 1795 funda-se Melo (atualmente a 60 km ao sul da fronteira) e
distribuem-se guardias e vilas ao longo da fronteira leste (idem, ibidem, p. 158).

Outras medidas são tomadas, objetivando "orientalizar” a fronteira norte do


país. Uma nova divisão departamental é estabelecida em 1879, facilitando a
organização do território e trazendo autoridades para junto da linha de fronteira. A
extensão de redes ferroviárias e de telégrafo reforçou as ligações com Montevidéu.
Estimulou-se a imigração européia a fim de diminuir o peso demográfico dos
descendentes de brasileiros. A agricultura levada a cabo por nacionais foi
incentivada e providenciou-se a instalação de escolas a fim de combater a língua
portuguesa e seus falantes.

Essas medidas resultaram na criação de uma série de cidades21. Rivera


nasce de Villa Ceballos no último quarto do século XIX, apesar dos marcos da
fronteira estarem plantados desde 1853. Fundada como contenção ao avanço

continuados y pacientes esfuerzos, domina con sus súbditos, que son propietarios del suelo, casi
todo el norte de la República: en toda esa zona, hasta el idioma oficial casi se ha perdido ya, puesto
que es el portugués el que se habla con mas generalidad. De ahí que en nuestras luchas cívicas
hayamos visto a los partidos orientales necesitados del curso de jefes brasileños que, aún cuando
hayan nacido en nuestro territorio, conservan el idioma, las costumbres, y el amor a la patria de su
padre, que es la suya también, aunque no hayan nacido en ella, ya que para conservarles hasta la
nacionalidad, han ido bautizarlos en las parroquias brasileñas de la frontera [...]” (VARELA, J. P.;
RAMIREZ, C. M. El destino nacional y la universidad. Montevidéu: Polémica, Biblioteca Artigas, [1876]
1965, t.1, p. 132-3, apud SOUZA, 1995b, p. 164).
20
A imagem do deserto verde, hoje associada à arenização e ao florestamento, já pode ser
encontrada no diário, iniciado em 1781, do demarcador espanhol D. Felix de Azara.
21
Na lista que segue, o nome dado na fundação é seguido pelo nome atual, entre parênteses: San
Fructuoso (Tacuarembó) em 1832; Santa Rosa del Cuareín (Bella Unión), San Eugenio (Artigas),
Treinta y Tres, Villa Artigas (Rio Branco) e Villa de Ceballos (Rivera) entre 1853 e 1862 (SOUZA,
1994b).
43

brasileiro, os primeiros censos demográficos (1867, 1895) apontavam, entretanto, a


existência de maior número de habitantes brasileiros que uruguaios. Os brasileiros
tinham também maior relevância na produção pecuária (censo de 1900). Comércio,
pecuária e agricultura eram as ocupações dos imigrantes que se instalavam na vila.

A lei de sete de maio de 1862, considerada como o ato fundacional de Rivera,


determina, em seu artigo 1º, “o delineamento de uma vila na Coxilha de Santana,
sobre nossa linha de fronteira, frente à vila brasileira de Santa Ana de Livramento”, e
já no artigo 7º lê-se que: “quando o Poder Executivo considere conveniente poderá
estabelecer nesse ponto uma Aduana Terrestre”22.

Tratam-se, portanto, de cidades que surgem graças aos projetos de


demarcação das fronteiras, e não de núcleos urbanos ligados a uma territorialidade
anterior e que passassem a conviver com um limite originado pela colonização por
europeus ou mesmo pela formação dos Estados nacionais americanos. Em outras
palavras, o povoamento mais significativo dessa região foi promovido pelos Estados
nacionais em seu esforço de delimitação do território. Observe-se ainda que o
traçado dos limites visava também o estabelecimento dos equipamentos de controle
aduaneiro, com funcionários para administrar e legislação específica, associando a
construção do território estatal ao seu controle fiscal.

Criadas com a mesma função, ainda que a serviço de diferentes Estados,


Livramento e Rivera se relacionavam também em razão das necessidades locais de
abastecimento dos povoadores. Essa fronteira, de ocupação tardia e sem grandes
acidentes físicos em que se apoiar – nesse trecho ela segue o divisor de águas da
coxilha de Santana –, motivou medidas de segurança nas coroas e nos governos
independentes que as sucederam, mas desde os primórdios da ocupação podem-se
encontrar, mesmo no âmbito nacional, aqueles que visavam combinar a demarcação
territorial com trocas econômicas. Já naquele momento, tratava-se de aproveitar a
renda de situação ou renda fronteiriça, citada por Karine Bennafla (2002, p. 140).

22
“Art. 1° - El poder ejecutivo ordenará la delineació n de pueblo en la Cuchilla de Sant’Ana, sobre
nuestra línea de frontera, frente al pueblo brasilero, Santa Ana Livramento. […] Art. 7° - Cuando el
Poder Ejecutivo lo estime conveniente podrá establecer en este punto una Aduana Terrestre”.
(BOERO; BOERO RUIZ, 2004, p. 14).
44

Pode-se citar como exemplo um extrato das observações do deputado


uruguaio Tomas Diago, publicadas em 1863:

Pode-se assegurar de forma rotunda que, caso se proceda à delineação e


doação de solares em Ceballos, a maioria do comércio estrangeiro de Santa
Ana do Livramento virá engrossar a população, estimulada pelo atrativo dos
bons negócios que se fazem ali, do qual é bom testemunho a casa de
comércio do Sr. Queirolo que, em quatro meses, despachou para o Brasil
vinte mil pesos de mercadorias levadas de Montevidéu (t.a) (apud.
23
BENTANCOR-ROSÉS, 2002, anexo 3)

Nos primeiros anos, os dois núcleos tangentes à linha de fronteira eram


habitados por soldados e comerciantes recém-chegados, além de moradores da
região, que se agruparam e se integraram no dia-a-dia, em busca das conveniências
urbanas, do alimento, da igreja, da segurança, escassos no século XIX, nessas
áreas periféricas aos centros políticos. Segundo Vera Albornoz, na primeira metade
do século XIX, Livramento estava tão isolada que o General Osório afirmou que as
tropas estavam “em sítio em seu próprio país”. Ela acrescenta que, de carreta, uma
viagem à Pelotas (aproximadamente 350 km) demorava 18 dias no verão e até 80
no inverno, devido às péssimas estradas (ALBORNOZ, 2000, p.32-3).

As relações eram de troca intensa, as frutas e quase toda a mercadoria vindo


de Rivera e de lugares mais interiores no território uruguaio para Santana do
Livramento, que não possuía hortas ou indústrias (RESENDE SILVA, 1922).
Segundo Bentancor-Rosés (2002, p.93), os habitantes de Livramento se
beneficiaram com a fundação de Rivera também por acederem a mercadorias
importadas via Uruguai, com taxas até 50% menores do que as praticadas no Brasil.
Moradores de outras localidades no interior do Rio Grande do Sul também
aproveitavam a diferença de preços, outorgando destaque econômico ao par de
cidades.

23
"Puede asegurarse de manera rotunda; q.e si se procede a la delineación y donación de solares en
Ceballos, la mayoría del comercio extranjero de Santa Ana do Livramento vendrá a aumentar la
población, estimulados por el atractivo del buen negocio q.e por allí se hace; del cual es buen
testimonio, la casa de comercio del Sr. Queirolo, q.e en cuatro meses ha despachado pa el Brasil,
veinte mil pesos de mercaderías llebadas de Montevideo” (apud BENTANCOR-ROSÉS, 2002, a. 3).
45

1.4. A POLÍTICA ECONÔMICA DA REPÚBLICA VELHA PARA A FRONTEIRA


GAÚCHA

A centralidade econômica da região da fronteira levou à criação, em 1888, na


vigência da República Velha brasileira, de uma tarifa especial, isentando de tarifas
de importação as mercadorias nacionais que passavam pelo porto de Montevidéu.
Tratava-se de uma tentativa de acomodar os divergentes interesses de grupos
econômicos territorializados: de um lado estava a elite comercial e latifundiária da
região da Fronteira, com poder e responsabilidade advindos da tarefa de defender o
território; e do outro, o “alto comércio urbano” e os “trabalhadores e manufaturadores
independentes” do Litoral, mais dinâmicos e próximos aos governos da província.
Estavam em disputa dois desenhos da rede de abastecimento e escoamento da
economia da província. Segundo Gunter Axt (2002, p.2):

Em torno do contrabando, graças à polêmica vazada pela tarifa especial no


dealbar do regime republicano, surgiu a primeira chance para formatação da
política econômica castilhista, logo após a tomada do poder estadual pelo
Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). A tarifa especial era um
mecanismo de equilíbrio entre interesses conflitantes na antiga Província de
São Pedro, consubstanciados na divisão entre alto comércio urbano
litorâneo, convergente para as cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio
Grande, e comércio fronteiriço, este, significativamente determinado pela
presença do contrabando de mercadorias com o Uruguai e Argentina.

Do outro lado da fronteira, o governo uruguaio tomava várias medidas para


incentivar o chamado comércio de trânsito. Em 1860, instituiu depósitos livres no
caminho para a divisa, que isentavam de custos de armazenagem, por um ano, as
mercadorias em trânsito. Além disso, os produtos vindos de Montevidéu para a
fronteira não pagavam impostos.

Essa política liberal favorecia às casas comerciais de Montevidéu, cujos


associados do interior eram beneficiados, e às estradas de ferro, aumentando seu
movimento e lucro, graças às garantias dadas pelo governo uruguaio. Isso
compensava a pequena arrecadação na fronteira e a evasão fiscal das mercadorias
admitidas no país por estarem supostamente em trânsito, mas desviadas para o
interior. O governo brasileiro, por sua vez, controlava o mercado interno com
estratégias diferentes: “enquanto o império privilegiava as tarifas reduzidas, na
46

República enfatizou-se preferencialmente o controle policial e burocrático” (AXT,


2002, p.4).

Aí, e em quase toda atividade produtiva e comercial na região, observam-se


práticas que podem ser classificadas como comércio legal ou como contrabando, e
que, no geral valem-se de uma associação entre essas duas estratégias. O combate
aos contrabandistas era pouco efetivo, uma vez que estes eram conhecedores do
lugar e dispunham de boa inserção social, que lhes garantia trânsito eficaz.

Além do que, questões de ordem legal e territorial colocavam-se


constantemente. Por exemplo, em 1899, as autoridades gaúchas decidem pela
“amarra”. Segundo Márcia Volkmer, trata-se de norma “que obrigava todas as
embarcações que percorriam o passo do Baptista [maior ponto de trânsito entre San
Eugenio e Quaraí] a permanecerem amarradas na margem direita do rio [Quaraí], ou
seja, na margem brasileira durante a noite” (VOLKMER, 2007, p.67), porque assim o
contrabando fluvial seria mais bem controlado. Tal medida contava com apoio de
Borges de Medeiros, então presidente da província. Sendo o Quaraí um rio
internacional, as autoridades quaraíenses, gaúchas ou brasileiras não podiam
legislar sozinhas sobre suas águas, margens ou freqüentadores. Negociações foram
encetadas e um acordo foi feito “reservadamente, no nível regional, com a
participação do chefe político de Rivera, homem de estreitos vínculos com as
autoridades republicanas rio-grandenses” (idem, ibidem, p.68).

Assim, “o “espaço do contrabando” não era unicamente gaúcho” e o rio é


mais do que internacional, é um espaço em si fronteiriço; o contrabando se
territorializa sobre dois territórios nacionais e “o fato de o limite geopolítico delimitar e
legitimar as ações de um Estado soberano e, neste caso, de ambos os países terem
direito sobre o rio, tornava as ações neste espaço complexas e estratégicas” (Id.,
ibid., p.68).

Segundo Gunter Axt (2002, p.9), muitas vezes uma emboscada era apenas
um despiste, uma encenação planejada pelos contrabandistas, desviando a atenção
de carregamentos mais volumosos, que passavam por outros pontos da fronteira.
Carretas eram silenciadas com panos nas rodas, entrando à noite nas cidades,
tendo seu trânsito facilitado por batedores encarregados de fechar as ruas. Em
47

Uruguaiana, em 1907, as cargas contrabandeadas eram, às vezes, acompanhadas


de convenientes quedas de luz – que se restabelecia assim que a operação
terminava. Não era coincidência, já que a maior casa comercial da cidade pertencia
ao dono da usina elétrica.

Havia também o contrabando de armas, parte importante da política de


fronteira. O exemplo mais conhecido é o do Coronel João Francisco Pereira de
Souza, a Hiena do Cati. Ele invadiu violentamente Rivera em 1903, durante a
revolução nacionalista uruguaia. Castilhista, ele contrabandeava armas para apoiar
os blancos de Aparício Saraiva, aliados de Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos;
opositores dos maragatos, dos colorados e do exército brasileiro. Esse esquema ruiu
com a morte de Aparício Saraiva:

Em 1906, João Francisco negociou, com o apoio de Borges, um acordo com


Batlle, presidente uruguaio, no qual se comprometia com a neutralidade nos
conflitos vizinhos, ganhando em troca sentença favorável da justiça oriental
em diversos processos, muitos dos quais relativos a práticas de
contrabando e sonegação fiscal, movidos contra correligionários
republicanos com interesses estabelecidos naquele país, entre os quais o
irmão de João Francisco, Bernardino Pereira de Souza (AXT, 2002, p. 11).

Assim, nas primeiras décadas do século XX, o combate ou a tolerância ao


contrabando na fronteira estavam ligados ao favorecimento de alguns aliados
fronteiriços em detrimento de outros.24

Por outro lado, a repressão ao comércio fronteiriço atendia aos interesses das
elites litorâneas. Pode-se afirmar tratar-se de uma gestão fiscal que refletia uma
política regional, já que havia uma estratégia para a organização espacial dos postos
aduaneiros, sob controle da Secretaria Estadual da Fazenda, no que diz respeito ao
número de postos, à hierarquia entre eles, à escolha dos lugares onde instalá-los e
em relação à nomeação dos fiscais, os agentes que corporificam o fisco,
contemplando facções e fidelidades específicas: concentravam-se na fronteira para

24
Gunter Axt cita vários exemplos que corroboram a idéia de que havia uma aliança ou coincidência
entre contrabandistas e elite local: “Em Cachoeira do Sul, por exemplo, onde era de domínio comum
que o trânsito noturno de carretas desovava mercadorias contrabandeadas nas lojas, o ritmo das
apreensões intensificava-se quando a cisão entre as facções se aprofundava e as autoridades
articuladas a uma pretendiam constranger os comerciantes de outra. Em Uruguaiana, da mesma
forma, os combates entre a força fiscal e os contrabandistas, que resultava em vultosas apreensões,
tinham estreita relação com as brigas políticas locais, pois, em geral, a eficácia da repressão
dependia de informações privilegiadas, que vazavam conforme se acomodava o jogo de interesses”
(2002, p. 13).
48

arrecadar impostos e coibir o contrabando; localizavam-se no norte do Rio Grande


do Sul porque era aí que se vislumbrava o crescimento da economia.

Extrapolando a escala regional, o combate ao contrabando era também uma


batalha contra os nexos transfronteiriços daquela parte do Brasil. Assim, o governo
federal apoiava as medidas que diminuíssem a autonomia da região fronteiriça,
polarizando-a pelo litoral e integrando-a ao território nacional. Ainda que a revolução
de 1930 fosse encabeçada por Getúlio Vargas, um gaúcho, foi um movimento de
centralização no governo federal, onde o município foi integrado à estrutura do
Estado e os partidos regionais foram esvaziados em nome da construção do Estado-
Nação.

Esse movimento em direção ao nacional gerava conflitos na fronteira, não só


pela configuração da economia, como também pela significativa presença de
estrangeiros. Estabeleceu-se uma nova legislação que coibia a participação dos
estrangeiros no mercado de trabalho brasileiro, o que causou grande impacto na
fronteira.

Gunter Axt (ibidem, p. 18) resume assim os cálculos implicados numa questão
aparentemente restrita às páginas policiais:

o alcance da repressão ao contrabando e à sonegação fiscal era


determinado por uma equação complicada, que envolvia a capacidade de
mobilização de efetivos policiais e burocráticos da repressão – federais e
estaduais –, a vontade de incremento da arrecadação do tesouro estadual,
o poder de pressão do governo federal, o grau de autonomia do presidente
do estado e chefe do partido em relação aos interesses políticos e
econômicos dos correligionários em nível local, o índice de articulação dos
comerciantes locais às instâncias partidárias e, finalmente, os limites da
unidade ou a extensão da cisão entre as facções do partido republicano nos
municípios. Integram ainda essa conta as injunções de ordem estrutural da
economia, como sistema de transportes, regime cambial e tarifário, crises
características da zona fronteiriça, onde de um lado vigia um arcabouço
constitucional e de outro um diferente. (grifo no original).

A esses fatores de caráter econômico e político, agregam-se elementos


sociais, ligados aos processos de naturalização e aceitação da prática do
contrabando nos diferentes segmentos da sociedade fronteiriça e, simetricamente à
sua condenação por outros grupos e regiões.
49

1.5. NEXOS TRANSFRONTEIRIÇOS NO PERÍODO DAS CHARQUEADAS

As oscilações cambiais e fiscais são determinantes na vida econômica dessa


região de fronteira. Um bom exemplo encontra-se no importante ciclo das
charqueadas instaladas em território brasileiro por capitalistas uruguaios.

Segundo Raúl Jacob, as charqueadas uruguaias se espalharam pelo Mato


Grosso e pelo “território que no passado era vertebrado pelas missões”, atraídas
pelo gado abundante. As melhorias genéticas iam sendo introduzidas pelo sul como
“uma mancha que se estendia sem pressa e sem pausa” (t.n.) (2005, p.3-5). O ciclo
das charqueadas começou aproximadamente 50 anos depois da demarcação da
fronteira sobre o Quaraí em 1851, durando, no Rio Grande do Sul, cerca de 30 anos.
O mesmo autor atribui a localização das charqueadas junto à fronteira a vantagens
aduaneiras:

Os impostos à importação de charque, a discriminação dos fretes, as


barreiras alfandegárias e não alfandegárias do governo brasileiro, foram as
causas esgrimidas para explicar a existência de charqueadas uruguaias em
território brasileiro e, em parte, também para justificar sua decadência no
25
final da década de 1920 (t.n.) (idem, ibidem, p. 3-4).

A busca de mercado era outra razão para a escolha desse lugar: “em 1918,
ao fim da I Guerra Mundial, o Uruguai já tinha perdido a batalha demográfica [...] e
quem prometia um grande mercado de consumo e se projetava rumo ao futuro eram
Argentina e Brasil” (t.n.) (id., ibid.)26.

Na década de 1910, Rivera apresentava grande desenvolvimento, em função


da ligação férrea com Montevidéu, estabelecida em 1892. Com a construção, em
1913, de uma ferrovia entre Livramento e outras cidades gaúchas e brasileiras, a
população riverense dobrou em poucos anos. Ainda segundo o historiador uruguaio,
em 1913, os produtos embarcados em Rivera pelo ferrocarril Central e que

25
“Los impuestos a la importación del tasajo, la discriminación en los fletes, las barreras arancelarias
y no arancelarias del gobierno brasileño, han sido las causas esgrimidas para explicar la existencia
de saladeros uruguayos en territorio de Brasil y, en parte, también, para justificar su decadencia hacia
fines de la década de 1920” (JACOB, 2005, p. 3-4).
26
“En 1918, a finalizar la primera guerra mundial, Uruguay había perdido la batalla demográfica […]
quienes prometían un gran mercado de consumo y se proyectaban hacia el futuro eran Argentina y
Brasil” (id., ibid., p. 4).
50

provinham das charqueadas de Santana do Livramento atingiram 15 milhões de


pesos-ouro (id., ibid.,p.8).

Nesse contexto, Márcia Volkmer foca sua análise na figura de Emilio Calo,
uruguaio radicado em Quaraí na virada do século XIX para o XX, a fim de
compreender suas estratégias de inserção social. Ela relata que esse industrial,
encarregado da destacada charqueada Quaraí, prodigalizava em doações e
dedicava-se à organização do Clube Comercial, aumentando sua inserção no
ambiente de negócios: como “empresário dependente de crédito, forçosa e
intencionalmente ligado ao outro lado da fronteira, não teria sido totalmente viável
levar adiante seu empreendimento sem a aceitação e cooperação dos negociantes e
políticos locais” (VOLKMER, 2007, p.85-86). Uma vez que teria dificuldades, como
estrangeiro, em atuar na política local, e como homem casado, em estabelecer laços
de parentesco na sociedade local, restou-lhe construir uma imagem de indivíduo que
luta pelo progresso do Quaraí. A partir de então, constituídos vínculos pessoais com
a elite política e econômica da cidade, novas ações foram projetadas, ampliando-se
seu “espaço de atuação” e viabilizando seu empreendimento econômico. Trata-se
da face legal da interação transfronteiriça.

A elite local também se envolvia com contrabando e tinha claras ligações com
os aduaneiros, a ponto de coibir sua atuação, conforme transparece na queixa de
um fiscal recém empossado, encaminhada ao presidente da província em 1907:

Quem, na fronteira, coadjuva com lealdade e interesse a repressão?


Ninguém.
Quem ali ampara, protege, estimula e [ilegível] o contrabando, e os
contrabandistas? Todo o mundo, desde as mais elevadas autoridades nos
municípios até aos simples particulares [...]
Devo fazer ver a Va. Exa.que o auxílio que eu desejo que as autoridades
locais me prestem consiste unicamente em não me criarem dificuldades. É
um auxílio inerte, indireto. Que os que se julgarem prejudicados com o meu
serviço não encontrem apoio, ou incitamento, da parte daquelas
autoridades, é o quanto me basta. (itálico no original) (Arquivo do Instituto
Histórico Geográfico do Rio Grande do Sul, Acervo Borges de Medeiros,
doc. 10107, apud VOLKMER, 2007, p. 70).

Juan Pedro Irigoyen Pérez, um dos fundadores da Charqueada Livramento –


quando se denominava Anaya e Irigoyen –, nasceu em Montevidéu e foi enterrado
em Livramento, era blanco, o que pode ter levado a sua radicação no Rio Grande do
Sul. Hoje há um busto seu sobre a linha, é considerado um hombre de frontera, um
51

ciudadano de dos Patrias.27 Essa charqueada ficava a 5km da cidade, quase sobre a
fronteira, ocupando 500ha sobre o arroio Carolina. A população do saladero era de
aproximadamente 900 pessoas, vivendo em 150 casas. Em 1907, a fábrica possuía
410 operários e máquinas com potência de 110HP, ocupando o 2º lugar entre as
indústrias do RS e o 16º entre as brasileiras. Elaborava charque, conservas, sabão e
velas. Contava com luz elétrica, auto-suficiência em madeira e lenha e uma estrada
macadamizada até Livramento. Quando essa charqueada foi adquirida pela firma
norte-americana Armour, tornou-se um frigorífico, mas manteve Pedro Irigoyen na
diretoria até 1919, por suas conexões como relações públicas, junto às autoridades
e aos fornecedores de gado (JACOB, 2005, p. 8).

Empresários registraram aquele momento em livros de memórias. É o caso


de Agustín Minelli, que admite que se comprava gado de contrabando, justificando-o
como modus vivendi fronteiriço (MINELLI, Agustín, “Sucedió así”. Montevidéu:
Arpoador. 1996, p. 13-4, apud JACOB, 2005, p. 10). A figura 9 resume as interações
transfronteiriças típicas da organização das atividades nas charqueadas, no início do
século passado.

As causas da decadência do charque são de diversas ordens: do ponto de


vista tecnológico, destaca-se a difusão dos frigoríficos, que competiam por matéria-
prima e mercado consumidor. Na escala mundial, a I Guerra Mundial leva à crise
que se prolonga até a década de 1930. Na escala nacional, ocorre uma mudança
nos hábitos de consumo, uma diminuição em função da abolição da escravatura;
aumenta a competição com outras zonas produtoras do Brasil, especialmente Mato
Grosso; o nacionalismo econômico de Getúlio Vargas coíbe o trânsito pelo território
uruguaio e o emprego de estrangeiros.

27
Jacob remete ao Diccionario Riverense para as seguintes informações sobre Pedro Irigoyen,
caracterizando-o como um empresário “fordista”: “Imbuído de um espírito paternalista, cultuando um
assistencialismo empresarial de inspiração cristã, se preocupou em melhorar as condições de vida de
seus assalariados, construiu uma escola em que se ensinava espanhol e ministrava o catecismo de
acordo com os princípios da religião católica. Também se encarregou de outras necessidades
básicas, como a qualidade da habitação, a rede sanitária, o lazer na forma de sessões gratuitas de
cinema” (t.a) (“Imbuido de un espíritu paternalista, cultor de un asistencialismo empresarial de
inspiración cristiana, se preocupó de mejorar las condiciones de vida de sus asalariados, levanto una
escuela en la que se enseñaba el español y se impartía el catecismo de acuerdo a los principios de la
religión católica. También se encargó de otras necesidades básicas, como la calidad de la vivienda, la
cobertura sanitaria, el esparcimiento mediante exhibiciones cinematográficas gratuitas” (Diccionario
Riverense, 1996, nº 9, apud JACOB, 2005, p. 9).
52

URUGUAI

blancos portos ferrovias bancos

f r o n t e i r a

sócios uruguaios
capitalizados e
com vínculos no saladeros e
Uruguai charqueadas
internamente:
pessoas
competentes
e próximas
Clube Comercial

elite municipal
políticos com interesse vinculada ao comércio
na fronteira e no charque fronteiriço e à
pecuária

Prefeitura Municipal

republicanos

Governo Estadual

BRASIL

FIGURA 9: Fronteira Brasil-Uruguai: esquema das relações geográficas


pessoais, comerciais e técnicas constituídas nas charqueadas – início do
século XX.
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman, a partir de VOLKMER, 2007, p. 104; JACOB, 2005.
53

A determinação de combater o emprego de estrangeiros ecoa a pressão


política regional que visava impor à região fronteiriça a preeminência do porto de Rio
Grande e de outras estruturas localizadas no litoral. Carlos Rangel (2005, p. 6)
apresenta um dado bastante representativo: o frigorífico Armour empregava, em
1918, 1380 pessoas, 50% brasileiros, 40% uruguaios, 10% norte-americanos,
ingleses e italianos. A restrição ao emprego de estrangeiros incentivou a procura
pela dupla nacionalidade: do esforço de nacionalizar o trabalhador, nasce o que
ficou conhecido mais tarde como doble-chapa, isso é, o fronteiriço com dupla
nacionalidade. Em 1938, a lei era dura e longos eram os trâmites burocráticos para
naturalização, levando a uma campanha para legalizar a situação dos obreros
uruguaios de Livramento.

No plano econômico, as tarifas alfandegárias aumentaram e proibiu-se o


comércio de trânsito ou qualquer sucedâneo. O contrabando beneficia-se desse
aumento e da fronteira “desguarnecida ou apenas custodiada”, que facilitava a
entrada de gado, dependendo da variação cambial (JACOB, 2005, p. 14).

1.6. A NACIONALIZAÇÃO DA FRONTEIRA NA PRIMEIRA METADE DO SÉC. XX

Foi somente por volta de 1930 que Porto Alegre e outras cidades do litoral do
Rio Grande do Sul consolidaram a polarização econômica e cultural sobre a região-
fronteira, que até então privilegiava a estrutura do porto de Montevidéu, as barracas
e os bancos uruguaios, para o escoamento de sua produção e o abastecimento em
bens e capitais. Segundo Volkmer (2007, p. 144), até então

os jornais e todo o correio postal chegavam à cidade [de Quaraí] [...] Na


correspondência trocada entre as autoridades municipais e Borges de
Medeiros, por exemplo, lê-se: Via Uruguay. Uma carta, fazendo esse
percurso chegava ao Rio de Janeiro em 6 ou 7 dias, no máximo. Se pelas
vias nacionais – tardaria 45 dias.

Essa polarização tardia está na raiz do disseminado intercâmbio


transfronteiriço contemporâneo, lícito ou não. Até então, as cidades fronteiriças eram
“verdadeiros entrepostos do porto de Montevidéu” (SOUZA, 1994a, p. 340),
54

cumprindo o destino antevisto por Tomás Diago em 1863. Por exemplo, Borges de
Medeiros, então presidente do Rio Grande do Sul, escreveu, na mensagem anual à
Assembléia de Representantes da província:

Eis porque nosso comércio, excetuando-se o do litoral, fez de Montevidéu o


seu entreposto, tornando-nos tributários da vizinha república, cujas linhas
férreas se dirigem para nossa fronteira como outros tantos tentáculos,
destinados a sugar a seiva econômica do Rio Grande do Sul. Demais como
fator atrofiante do comércio lícito, o contrabando encontra ali toda sorte de
estímulos e facilidades, como as que provém do livre trânsito, além das
diferenças de fretes e de seguros. (“Mensagem...”, em 20 de setembro de
1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Federação, 1905, p. 20 apud
SOUZA, 1995a, p.130).

Julio Cairello, geógrafo riverense nascido em 1928, recorda:

Quando eu era um guri, como dizem aqui na fronteira (lá [no Brasil] dizem
garoto, no Rio Grande do Sul também dizem guri, guri e guria) [...] e o
contrabando se fazia daqui para lá. Já existiam lojas aqui na linha divisória,
traziam-se coisas, da Europa principalmente. Por exemplo, aqui não havia
ferragens, não havia onde comprar ferramentas, não havia onde comprar
arame, por exemplo, muitas coisas de máquinas e maquinário não eram
produzidas no Brasil. [...] E as pessoas do Rio Grande do Sul, Bagé,
inclusive Porto Alegre, Dom Pedrito, e toda essa gente vinha comprar aqui,
no comércio de Livramento, e a mercadoria vinha de Montevidéu, era
trazida até Salto, departamento de Salto, e de Salto, em carretas e em
carros vinha para cá, para a fronteira, onde ficavam as lojas, os negócios
28
eram feitos aqui, o comércio, o contrabando do Uruguai para o Brasil.
(Julio Cairello, entrevista, Rivera 21/07/2005)

A nacionalização de Livramento foi concomitante com seu crescimento como


centro frigorífico: em 1941 contava com 40 mil habitantes, três mil operários,
colocava-se como 4ª renda municipal e 3º parque industrial do Rio Grande do Sul
(RANGEL, 2005). Num processo de espelhamento típico da fronteira, o sucesso de
uma das cidades é entendido com crise na outra, crise essa que foi combatida com
medidas extraterritoriais. O decreto 9936, de 1936, eleva Rivera à Cidade de
Turismo, que permite a instalação de um cassino. Essa é uma medida “possível”

28
Note-se, no comentário à linguagem, a oscilação semelhança-diferença entre o português e o
espanhol, ou entre o lá e o aqui (que acaba por incluir também o Rio Grande do Sul), pelo uso de um
vocábulo de origem guarani: “Cuando yo era un guri, como dicen acá en la frontera (allá dicen garoto,
en Rio Grande do Sul también dicen guri, guri e guria) [...] lo contrabando se hacia de acá para allá.
Ya habían comercios acá en la línea divisoria, se traía las cosas, de Europa principalmente, por
ejemplo, acá no había ferreterías, no había donde comprar herramientas, no había donde comprar
alambres, por ejemplo, y muchas cosas de maquinas y maquinarias, no había producción en el Brasil.
[...], a la gente de Rio Grande do Sul, Bagé, incluso Porto Alegre, Don Pedrito y toda esa gente venia
comprar acá, en el comercio de Livramento, y la mercadería venía por Montevideo y la traía a Salto,
departamento de Salto, y de Salto, en carretas y en carros venia acá a la frontera, donde era, el
negocio se hacia acá, el comercio, el contrabando del Uruguay para el Brasil” (Julio Cairello,
entrevista, 21/07/2005).
55

para o governo uruguaio, que não podia oferecer vantagens fiscais (ao comércio de
trânsito ou às indústrias) por conta dos pactos políticos entre os governos nacionais.
E, em 1937, no Brasil, os cassinos passam a ser permitidos exclusivamente em
praias e balneários. Assim, Rivera polariza a vida noturna no interior uruguaio e nas
cidades-gêmeas:

Efetivamente, Rivera tornou-se um grande centro de turismo no interior


uruguaio, enquanto Livramento amargava a decadência de sua tradicional
vida noturna. Os encontros no Café Ponto Chique, os passeios e flertes na
praça matriz e o burburinho em torno das roletas dos cabarés cederam
lugar ao glamour da Av. Sarandi que, por suas luzes, ganhou a designação
especial de vía blanca. Suas calçadas foram tomadas pelas cadeiras dos
cafés e bares enquanto o recém inaugurado Hotel Cassino criava e desfazia
fortunas nas mesas de bacará e na excitante roleta.
A partir desse período, Rivera deixou para trás os piores efeitos da crise dos
anos 1930 e passou a monopolizar a vida noturna daquele espaço
fronteiriço. Essa evolução pode ser observada a partir de 1938, quando se
iniciaram as excursões fonoelétricas, organizadas pela empresa Ferrocarril
Central (PINTOS, 1990, p. 248-249). No ano seguinte, inaugurou-se o
Parque Grã-Bretanha, a 6 km da cidade, junto à Coxilha Negra; em janeiro
de 1941 foi implementada a Comisión de Fiestas y Turismo, em janeiro de
1942 inaugurou-se a nova sede do Club Uruguay, um dos melhores do país;
neste mesmo ano, iniciaram-se as atividades do Hotel Cassino; em
fevereiro de 1943, foi inaugurada a Praça Internacional e, em agosto,
iniciou-se a pavimentação da Av. Sarandi com cimento, o que logo foi
estendido às principais ruas da cidade, transformando significativamente a
sua fisionomia urbana (RANGEL, 2005, p.12-13).

Também a antropóloga Rita Segato destaca o papel de Livramento-Rivera


nos primórdios da transnacionalização das religiões afro-brasileiras para a Argentina
e o Uruguai entre as décadas de 1950 e 1960. Ela atribui a importância desse centro
urbano à fronteira seca, passagem terrestre de um mercado internacional, e o
descreve como lugar dotado de bordéis famosos e de uma vida noturna exuberante,
que manteria o seu destaque até a década de 1960 quando da construção das
pontes internacionais que desconcentrariam o tráfego (SEGATO, 1998).

Ainda segundo Carlos Rangel, Livramento assume uma imagem progressista


e Rivera incorpora a dimensão da cultura, da civilidade e da diversão: “uma e outra
assumiam parte da ideologia propagada pelos Estados nacionais: o Brasil
industrializado, o Uruguai civilizado; Livramento, uma cidade brasileira; Rivera, uma
cidade uruguaia.” (ibidem, p. 14). Espelhando-se, as cidades se complementavam e
se distinguiam.
56

1.7. PROCESSOS NA FORMAÇÃO TERRITORIAL DA FRONTEIRA GAÚCHA

Podem-se sintetizar as especificidades da atividade econômica, da dinâmica


política e das práticas culturais que resultaram da formação territorial da fronteira e
dos projetos para a região, dando ênfase às intervenções para a nacionalização do
espaço a partir da República Velha. Ainda que as vantagens e desvantagens
locacionais, os aspectos econômicos políticos, sociais e culturais possam ser
estruturais ou conjunturais, reforçando-se, alternando-se ou compensando-se, pode-
se resumi-los nos itens que seguem.

1. A atividade econômica estava condicionada pelo controle efetivo do território,


ligado às lutas no Rio Grande do Sul, até o fim da década de 1920.

2. Há uma significativa presença do aparato fiscal e militar do Estado para o


controle fronteiriço na forma de mesas de rendas, de quartéis, do regimento
provisório etc.

3. A situação de interface entre duas economias nacionais oferecia vantagens


locacionais pela disponibilidade de matéria-prima uruguaia (melhor e mais barata),
nos portos uruguaios (mais baratos e confiáveis), pelo status de produto nacional no
Brasil, facilitando às charqueadas o acesso ao mercado brasileiro, até a afirmação
das redes técnicas polarizadas pelo litoral riograndense.

4. A presença de estrangeiros é marcante, dando ao lugar certo grau de


cosmopolitismo: uruguaios especialmente, mas não só, também ingleses, italianos,
árabes são portadores de capitais, vetores de saberes técnicos, de experiência e de
alianças políticas. Tais pessoas buscam sua inserção na sociedade local entrando
em redes de parentesco, em clubes sociais, em sociedades de socorro mútuo.

5. Constrói-se um mercado consumidor fronteiriço que reivindica o acesso aos bens


disponíveis no outro lado da fronteira, seja pela liberação das compras para
consumo doméstico, seja através da reivindicação de taxas reduzidas para a
importação. As lojas são concebidas para esse mercado consumidor expandido.

6. O contrabando é pervasivo, e por vezes é autorizado em função de fidelidade de


classe.
57

7. Observa-se um recorrente espelhamento entre as sociedades locais: a


proximidade possibilita comparações entre os dois países ou as duas cidades,
redefinindo ambos os pólos, de modo que influências modernizadoras difundem-se
(o melhoramento genético do gado, por exemplo), momentos de maior fôlego
econômico causam inveja etc. no país ou cidade vizinhos, tomados como parâmetro.

8. Mantém-se a situação periférica aos centros nacionais, o que implica


desvantagens locacionais na forma de distância física, política e cultural: os agentes
econômicos estão afastados dos centros políticos de cada país e dos mercados
consumidores; a distância é agravada pelas dificuldades de transporte e
comunicação com o centro do Brasil e há dificuldades em negociar investimentos em
infra-estrutura capazes de abrandá-la.

9. A conexão entre pontos do território pode fazer-se através de redes técnicas


alternativas às redes técnicas nacionais, como exemplifica a possibilidade de
exportar via porto de Montevidéu ou, ainda, a passagem do correio brasileiro por
aquela cidade.

10. Experimenta-se uma incerteza econômica ampliada em relação à conjuntura


nacional: as variações cambiais têm conseqüências diretas sobre as atividades
econômicas.

11. Por outro lado, a fronteira oferece possibilidades econômicas que amenizam o
impacto das crises nacionais.

12. Um regionalismo ou nacionalismo de ocasião justificam-se historicamente pela


tensão geopolítica, sendo recuperados em momentos de disputas entre grupos
econômicos e políticos, opondo aqueles que dispõem de redes internacionais aos
grupos que não as têm. Tais posturas e discursos apelando à coesão nacional
podem ser descritos como um uso instrumental do nacionalismo.

13. Pode-se apontar um uso político da economia, ligado às articulações regionais.


Como as medidas econômicas extraterritoriais dependem do poder de barganha da
elite local e são dificultadas pela situação periférica, faz-se necessária uma intensa
negociação, com resultados desastrosos em caso de insucesso nas transações. Por
exemplo, a mudança no quadro político na década de 1920 no RS, com a diminuição
58

da influência dos chefes da fronteira oeste, levou à lei de desnacionalização, em


1928, dos produtos que saíssem do território brasileiro, bem como à inviabilização
das charqueadas.

14. Também no nível municipal a política é internacional. Naquele momento, o


controle da prefeitura levava a alianças políticas que permitiam a nomeação dos
agentes encarregados da fronteira, responsáveis por seu controle cotidiano.
Consequentemente, a escala política municipal influía nos trânsitos possíveis, sejam
eles comércio legal ou ilegal, trânsito de pessoas, de armamento etc.

15. Alianças políticas transfronteiriças são frequentemente operadas, com interações


na atividade econômica, mais relevantes no período anterior ao esforço
nacionalizante de Getúlio Vargas.

16. A cultura local é objeto de discriminação por parte dos centros nacionais.
Acusações de contrabando, de dissolução da nacionalidade, de empobrecimento da
língua, de amoralidade, de estranhamento em relação ao padrão nacional podem
ser proferidas por agentes distantes do lugar fronteiriço. A fronteira, enquanto limite
altamente permeável, estaria na origem da decadência, tanto pelo afastamento ao
centro nacional, como pela proximidade à terra estrangeira e pela presença de
forasteiros.

17. A cada nova regulação estatal-nacional corresponde uma adaptação local. Por
exemplo, no Uruguai, o empenho em coibir a fala do português é frustrado pelo
recurso ao portuñol; no Brasil, a proibição de emprego de estrangeiros leva ao
surgimento dos doble-chapas.

18. Historicamente têm-se recorrido a estratégias extraterritoriais ou políticas de


exceção fiscal estabelecidas por legislação federal como/alegando compensações à
situação periférica, como exemplifica o estatuto de produto nacional outorgado aos
produtos em trânsito pelo Uruguai nos primeiros anos do século XX.

19. Existem espaços fronteiriços ou “interterritoriais”, em que há necessidade de


negociações diplomáticas para resolução de problemas internos, como a entrada de
contrabando pelo rio Quaraí.
59

20. Por outro lado, há um desejo de limite, uma necessidade de demarcar o território
para manter a boa convivência entre as cidades e nações vizinhas.

1.8. A ESTATIZAÇÃO DO TRIGO E O CONTRABANDO DE FARINHA

É só com a combinação entre o processo de substituição de importações no


Brasil – suficientemente forte para criar também um fluxo de produtos
industrializados deste para o outro lado da fronteira – aliado ao rodoviarismo que, na
década de 1950, se completa a inclusão das cidades da região-fronteira na rede
urbana brasileira. (SCHAEFFER, 1993, p. 47). De toda forma, a adaptação da
economia local aos esforços de nacionalização pode ser identificada no contrabando
de pneus:

Houve um tempo durante a [II Grande] Guerra que teve muito contrabando
de pneus daqui pra lá. Durante a Guerra o Brasil continuava produzindo
pneus, e o Uruguai obviamente não tinha indústria de pneus, mas tinha
ônibus, e eles fizeram uma linha de ônibus Montevidéu-Rio Grande, fizeram
inclusive inauguração, grandes festas etc. [...] A Onda, se chamava a
companhia, [...] lá pelas tantas eles traziam um ônibus com pneus carecas,
lá eles compravam outros, trocavam, na volta aquele ônibus voltava outra
vez com pneus carecas. E tinham todo apoio do cônsul lá no Rio, que se
chamava Bella. Isso se fez durante a guerra, contrabando de pneus
(Raphael Copstein, entrevista, Porto Alegre 11/10/2005).

Assim, as conexões transfronteiriças se mantêm fortes, o mesmo valendo


para o contrabando, como mostra o ciclo da farinha, iniciado no fim da década de
1940 e prolongando-se pela década de 195029. O trigo vinha sendo protegido pelo
governo do Rio Grande do Sul desde a década de 1920. Depois da II Guerra
Mundial revestiu-se de um caráter estratégico, motivando políticas de parte do
governo brasileiro, então nas mãos de Getúlio Vargas. Em 05 de janeiro de 1944,
criou-se o SET (Serviço de Expansão do Trigo, do Ministério da Agricultura) com a
função de "centralizar e coordenar a política do trigo, bem como distribuir sementes,
promover a criação de cooperativas, e fiscalizar o comércio e a industrialização do
cereal" (DORFMAN, 1995). Tal decreto centralizou no Banco do Brasil a importação

29
A primeira pista para a existência de um ciclo de farinha foi encontrada na novela Perseguição e
cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas (1997).
60

e distribuição do trigo estrangeiro, dando início à estatização da comercialização do


cereal. Em 1949 proibiu-se a importação de farinha.

A partir de 1951, o Banco do Brasil estabelecia cotas de compra de trigo


nacional pela indústria moageira, forçando o consumo de trigo nacional, de pior
qualidade de panificação, e fixando ainda um preço mínimo para o produto (BRUM,
1988, p. 74). Os moinhos, que eram obrigados a comprar trigo nacional, numa
proporção de 1:4 relativa ao trigo importado, contornavam a escassez de produto
nacional e as diferenças de qualidade e preço entre os grãos das duas procedências
através do que ficou conhecido como "trigo-papel", isto é, "um acordo entre moinho
e produtor, com a emissão de falsas notas de compra do produto nacional,
adquirindo-se, assim, o direito de compra do trigo importado" (SILVA, E., 1992, p.
33). Muitas vezes, porém, a farinha de trigo ingressava ilegalmente no Brasil, sendo
depois nacionalizada. E a Argentina era a principal fonte desse produto, devido à
proximidade, à qualidade e ao preço favoráveis.

As notícias que se tem do período são lacônicas. Humberto Rocha e Paulo


Brand (2001, p. 72-3) relatam que

no final da década de 1940 iniciou-se o ciclo da farinha de trigo. Esse ciclo


teve como marco a apreensão de dois caminhões de farinha de trigo
argentino na rodovia Uruguaiana-Alegrete, em agosto de 1947.
Essa prática de contrabandear a farinha de trigo, juntamente com outros
produtos, difundiu-se de tal maneira em Uruguaiana que se formou um novo
tipo de atividade, um novo grupo: os farinheiros.
As maneiras de transportar farinha iam desde a travessia com grandes
quantidades pelo rio Uruguai, até pequenas quantias compradas
paulatinamente e que acabavam se acumulando em enormes quantidades.

Segundo Raphael Copstein, data desta época o início do uso da expressão


“contrabando-formiga”, empregada para o movimento contínuo de travessia de
pequenas quantidades de farinha pela ponte internacional Augustín Justo/Getúlio
Vargas, recém-inaugurada ou em barcos.

É um problema ligado à farinha de trigo. Houve um tempo por essa época aí


[depois da II Guerra, fim da década de cinqüenta], de incentivo ao trigo no
Rio Grande do Sul, como é que era a história? Eu sei que cada moinho que
moia um tanto de farinha de trigo gaúcho podia adquirir fora certa
quantidade. E inclusive então eles compravam [?] cem sacos de trigo, mas
com uma nota de duzentos. (idem, entrevista, Porto Alegre 11/10/2005)
61

Note-se que a proibição de importação de um produto aumenta o interesse


em contrabandeá-lo. A oportunidade de ganho estrutura uma rede de vendedores,
transportadores, armazéns e compradores, além da suposta conivência de agentes
alfandegários, numa complexidade crescente a ponto de transformar-se num “ciclo”
de contrabando. Observe-se também que esse episódio se encerra com a mudança
na legislação protecionista ao trigo, e não com a repressão ao comércio ilegal. É
interessante ver ainda como uma medida de caráter interno e nacionalista incentiva,
ainda que involuntariamente, o contrabando, mesmo num segmento de fronteira de
características sinápticas como Uruguaiana-Paso de los Libres (ao menos desde a
inauguração da ponte em 1947, construída com o propósito de concentrar, controlar
e facilitar o transporte rodoviário entre o Brasil e os países a oeste do rio Uruguai).
Novamente, a uma inovação proposta pelo aparelho estatal corresponde adaptação
nas estratégias de contrabandear.

1.9. UMA GEOGRAFIA URBANA DAS TROCAS LEGAIS E ILEGAIS

Ainda hoje, a paisagem de campos não reconhece a fronteira. De tanto em


tanto, se destaca uma mesa de arenito e basalto, formando uma coxilha de bordas
abruptas e topo plano encimado por um marco de fronteira30. Os cerros contribuem
para o imaginário local, associados às tocas de animais selvagens, antigas moradas
indígenas, de escravos fugidos ou de indivíduos fora-da-lei, enterros de tesouros
ocultos nas furnas e defendidos por entes sobrenaturais. De resto, o relevo é
ondulado, gramado, horizontes distantes que são conhecidos como pampa e que
são tematizados como um céu ao contrário, como um mar verde. O pampa é
representado como embasamento da pertinência e compartilhamento do universo
campeiro por gaúchos brasileiros e gauchos uruguaios e argentinos, também como
o espaço de lutas pela definição das fronteiras nacionais.

A relação da cidade com o entorno é forte, é grande a convergência entre o


núcleo urbano e as atividades rurais que o penetram. Aldyr Schlee, escritor nascido

30
Vide Apêndice E – Iconografia da fronteira e do contrabando.
62

em Jaguarão, diz que as cidades da fronteira seriam pueblos: “não chegam a ser
campeiros ou criollos, enquanto gaúchos; mas também não são propriamente
urbanos” (1988, p. VII). Às grandes estâncias no lado brasileiro correspondem áreas
no Uruguai, freqüentemente sob mesma administração, e não é raro que apenas
alguns metros e duas porteiras – e um limite internacional – as separe.

Por outro lado, é marcante o cosmopolitismo da(s) cidade(s) de Santana do


Livramento-Rivera. Além de materializar o contato entre as duas nações, as cidades
têm uma história pontuada pela permanência de funcionários estatais originários de
pontos distantes nos países lindeiros, pela prática dos exílios sem afastamento, ao
hospedar políticos perseguidos no país vizinho, interessados na manutenção dos
contatos com seus correligionários, pelo influxo de migrantes de várias origens,
como se observa na figura 10.

Os fluxos também se ligam à industrialização da carne nos frigoríficos


multinacionais, dominantes na primeira metade do século XX, pelos aposentados
uruguaios vindos em busca das vantagens oferecidas pelo menor custo de vida a
partir da década de setenta do mesmo século, pelos assentamentos da reforma
agrária nos últimos quinze anos, pelo constante movimento de comerciantes e
compradores vindos de fora. Atenção à legenda, que testemunha a diversidade
étnica dos fronteiriços:

Na sacada: M.D. Gil, proprietário-diretor. À direita: adm. sr. de Sandoval. À


esquerda: redator sr. de Carlos e colaborador francês, Mr. Puydarrieux. Na
entrada: mecânico sr. Seoane. Zaguán, “o negrinho da La France”, Sr.
Suares. Operários e repartidores, menos o que está de bombachas e
gabán, que é um turco. (t.n.) (BOERO; BOERO RUIZ, 2004, p. 17).
63

FIGURA 10: Rivera: foto de “La France”, casa impressora e armazém


tradicional, Calle Sarandi, entre Ceballos e Paysandú – 1899.
Fonte: BOERO; BOERO RUIZ, 2004, p. 17.

O traçado urbano das duas cidades ficou a cargo do agrimensor Martín Paes
e do engenheiro Jose Lupi, criadores de um arruamento que toma a linha fronteiriça,
sobre o divisor de águas, como espinha dorsal, e dali estende ruas para ambos os
lados, fazendo do limite um grande cruzamento e ponto de passagem, que bem
representam o paradoxo do lugar. As figuras 11 e 12 mostram o agrimensor e uma
figuração de sua atividade em campo, em imagens de acervos locais, atestando a
importância do processo demarcatório nas representações e na memória do lugar.
64

Figura 11: Efígie do agrimensor Martin Paes.


Fonte: Museu Criollo – Tacuarembó, UY. Foto de Daniel F. de Bem, 2007.

FIGURA 12: Rivera: pintura “Martin Paes traçando o arruamento”.


Fonte: Museo Municipal de Rivera, foto de Adriana Dorfman, 2005.

A figura 13 é uma foto aérea de meados da década de 1980, na qual se pode


observar a mancha urbana contínua que caracteriza Santana do Livramento-Rivera.
65

N
N

FIGURA 13: Santana do Livramento-Rivera: foto aérea de meados da década


de 1980.
Fonte: Acervo de Gladys Bentancor-Rosés.

Ao sul, Rivera é delimitada pelo arroio Cuñapiru, de cheias recorrentes, o que


contribuiu para direcionar seu crescimento em paralelo à linha fronteiriça.

As cidades já desempenharam diversas funções. Se a principal riqueza tem


sido gerada pela pecuária ovina e bovina, a função comercial anima os núcleos
urbanos. No século XX, Livramento teve também importância industrial, no
beneficiamento da matéria-prima mais abundante: na década de cinqüenta, a cidade
possuía o terceiro maior parque industrial do Rio Grande do Sul, destacando-se as
charqueadas, os frigoríficos (como Armour e Wilson), lanifícios, tecelagens, uma
processadora de café, uma cervejaria etc. Ingleses e americanos eram numerosos e
66

influentes. Os grandes capitais locais e estrangeiros se integravam. O mesmo


ocorria com os trabalhadores, gerando um movimento sindical respeitável, que
promoveu, em 1919, a primeira greve numa multinacional no Brasil, com mais de mil
manifestantes, e a primeira organização comunista no Rio Grande do Sul (FRANCO,
1983; SCHAEFFER, 1993; ALBORNOZ, 2000; HEIDRICH, 2000; BENTANCOR-
ROSÉS, 2002). A comparação com as condições de trabalho no Uruguai – jornadas
de oito ao invés das dez horas exigidas em Livramento – e a presença de italianos e
espanhóis com experiências anarquistas e comunistas contribuía com a atmosfera
internacionalista.

A importância das charqueadas e dos frigoríficos para o espaço urbano


materializou-se em bairros que receberam o nome das duas maiores empresas,
tendo sido por elas construídos seguindo padrões ingleses de moradia operária:
conserva-se, em Livramento, no bairro Armour, a urbanização nos moldes da divisão
do trabalho industrial, com casas diferentes para gerentes, empregados etc. Entre as
charqueadas que se converteram em frigoríficos, destaca-se a Sociedad Anónima
Industrial y Pastoril, fundada em 1907, que em 1918 é vendida à Cia. Wilson, norte-
americana. Em torno dessa unidade também se formou um bairro, até hoje
conhecido como Wilson.

Tais bairros encontram-se um pouco afastados do centro de Livramento,


numa localização que tirava proveito da ferrovia para Montevidéu permitindo
transporte mais barato para a produção, fosse para o mercado brasileiro – numa
operação de exportação para o Uruguai e reexportação para o centro do país, via
marítima – ou para outros mercados.

Nesse conjunto urbano desenvolveu-se uma relação social simétrica, em que


o contingente demográfico de ambas as cidades se assemelha – cerca de 80 mil
pessoas em cada lado – e não há uma ascendência econômica contínua no tempo,
já que o grande peso do comércio faz com que as freqüentes oscilações cambiais
determinem alternância na direção dos fluxos de consumo. É esse papel de conexão
em uma rede econômica, política e social que justifica as rotas de trem e de ônibus
bem estabelecidas, ligando tais cidades a outros pontos dos respectivos territórios
nacionais, as muitas instalações militares, os edifícios de vários andares, a mesquita
67

sobre a linha fronteiriça, as inúmeras marcas dos intensos vínculos desse lugar com
outros pontos e escalas mundo a fora.

Dotada de rodovias e ferrovias, a(s) cidade(s) de Livramento-Rivera não


foram impactadas pela decadência da ferrovia no século XX.31 Por outro lado,
inexistem atualmente rotas de ônibus urbanos que cruzem o limite, porque os donos
das empresas transportadoras locais não chegam a um acordo quanto ao
compartilhamento dos percursos. A circulação de táxis também é coibida, uma vez
que a gasolina é mais barata em Rivera, tornando as tarifas mais baixas e a
concorrência desigual.32 A vida em Livramento-Rivera é construída dessas
articulações locais e escalares, sujeitas aos interesses dos mais diversos grupos,
que por vezes impulsionam uma maior integração, enquanto em outros casos
buscam cercear as trocas e contatos.

O Parque Internacional, de aspecto afrancesado, foi instalado sobre a linha


em 1943, sobre espaços remanescentes da zona-tampão com largura de 100m em
ambos os lados da fronteira, estabelecida em 1853. O campo neutro objetivara isolar
as manchas urbanas, para que as construções não fossem erigidas, naquela época
de recursos técnicos precários, por engano, no país vizinho (BENTANCOR-ROSÉS,
2002, p. 46), e para organizar algumas das práticas dos fronteiriços, conforme a
citação da carta de autoridades municipais de Rivera de 30/04/1909, que reivindicam
“fixar de uma maneira materialmente precisa a linha de divisão territorial”, para
“conjurar com eficácia, extirpando a fonte de sua origem” aos incidentes que
poderiam minar “a boa amizade que deve reinar entre povos vizinhos e amigos que,
como Rivera e Santa Ana, estão em contato por sua respectiva posição geográfica,

31
Tal não foi a sorte de Quaraí, que passou mais de 30 anos isolada, sem poder recorrer à ferrovia
uruguaia e não dispondo de opção de transporte eficiente pelo território brasileiro, no início do século.
Também Jaguarão sofreu com a decadência das ligações ferroviárias, sendo eclipsada pela
passagem rodoviária pelo Chuí. Nessa cidade, até 1944, ano da abertura da ruta 19 uruguaia, só
havia areais e banhados. Em 1971 constrói-se a BR-471, cortando o Banhado do Taim, e o impulso
dado pela nova infra-estrutura possibilita a emergência econômica dessas cidades de fronteira. A
adequação da rede aos tempos do rodoviarismo leva também à migração. (Conta a anedota que
Getulio Vargas havia oferecido à Santa Vitória do Palmar, município do qual se desmembrou o Chuí
brasileiro, a opção entre rodovia, ferrovia e aeroporto. A opção recaiu sobre o último, símbolo de
modernidade. Se enganaram de rede!)
32
Mas isso não se dá por pruridos nacionalistas, já que, conforme um informante “o dono da
companhia de ônibus é muito forte, e ele tem uma ‘F-1000’ que é puro tanque de gasolina, então
durante todo dia ele passa a fronteira, abastece em Livramento, enche o tanque, volta...” (Higuerón,
entrevista, Santana do Livramento, 20/07/2005). Segundo outro informante, os ônibus dessa empresa
uruguaia também foram equipados com tanques de combustível avantajados (Álamo, entrevista,
Rivera, 22/07/2005).
68

suas benévolas relações, seus comércio próprio e o de trânsito” (t.a) (Arch. Gal. de
la Rep. de Uruguay - cx 114 e 116 – pasta 1110 apud VOLKMER, 2007, p. 150).33

Tendo sido refuncionalizado como um lugar de encontro binacional, onde se


ergue o obelisco de fronteira ladeado pelas bandeiras do Brasil e do Uruguai, esse é
o cenário da clássica foto do indivíduo testando a descontinuidade espacial
associada à territorialidade estatal (vide Apêndice E). O Parque Internacional é uma
metonímia dessa dinâmica urbana: o limite internacional é absorvido e torna-se um
espaço de produção, circulação e comunicação para a população, cercando as
bandeiras nacionais e marcos divisórios com prostitutas e carrinhos de cachorro-
quente, namorados e artesãos, crianças e bicicletas, cambistas e viaturas policiais,
desocupados profissionais e amadores.

Nos centros urbanos, localizados junto à linha de fronteira, inúmeros camelôs


oferecem suas mercadorias. Cambistas ocupam o cruzamento central entre as duas
cidades. Os free shops estão presentes na rua principal de Rivera, nas quadras
adjacentes à linha, onde se concentram ainda restaurantes, trailers e bares servindo
turistas e população local. Queijarias, lojas de vinho e lã são mais ou menos
numerosas, dependendo da conjuntura econômica, assim como filiais de grandes
magazines uruguaios.

No lado brasileiro, as imediações da linha, na área central, hospedam


atualmente lojas de lingeries (ditas “lojas de turcos”), farmácias, postos de gasolina e
entrepostos de gás, armazéns e supermercados, onde os bagayeros se abastecem,
materializando o momento presente de relações interurbanas, inter-regionais e
internacionais. Bens de consumo não-duráveis podem ser comprados em ambos os
lados da fronteira, e freqüentemente o são, tendo por base critérios econômicos ou
julgamentos qualitativos, influenciados pelos costumes e pela propaganda, que não
respeita fronteira, uma vez que os veículos de comunicação locais visam o conjunto
dos fronteiriços, circulando em ambas as línguas. As praças cívicas das respectivas
cidades localizam-se a algumas quadras da fronteira.

33
“La buena amistad que debe reinar entre pueblos vecinos y amigos que, como Rivera y Santa Ana
están en diario contacto por su respectiva posición geográfica, sus benévolas relaciones, su comercio
propio y el de transito, está expuesto a sufrir sacudimientos desagradables que conviene conjurar con
eficacia, extirpando la fuente de su origen”. (Archivo General de la Republica de Uruguay - Fondo
Ministerio de Relaciones Exteriores, caixas 114 e 116 - pasta 1110 apud VOLKMER, 2007, p. 150).
69

As atividades econômicas nesse trecho das cidades são intensas e voláteis,


dependem das estações do ano, do câmbio, do dinamismo da economia em cada
um dos países do Cone Sul, de legislações de extraterritorialidade, aspectos que
serão aprofundados no capítulo 4. Agora basta afirmar que, no período de realização
desta pesquisa, o dólar foi-se desvalorizando em relação ao real e a economia
brasileira aqueceu-se, motivando grande afluxo de compradores brasileiros, a
multiplicação de free shops em Rivera e o fechamento de supermercados em
Livramento. Nos últimos meses de redação desta tese, o dólar voltou a valorizar-se,
diminuindo o movimento do turismo de compras.

O free shop marca a paisagem local, ainda que remeta às lógicas nacional –
na forma da legislação de extraterritorialidade que as legaliza – e internacional – em
função dos consumidores a que se volta e das marcas que oferece. Esse ramo
dedicado à venda de produtos de luxo importados sem taxas é muito suscetível a
mudanças conjunturais, tendo vivido, entre 2007 e meados de 2008, um dos seus
momentos mais favoráveis, causado pela queda no valor do dólar, em relação ao
real. Segundo o jornal “A Platéia” existiam, em dezembro de 2007, 43 lojas que
empregam cerca de 2000 funcionários. O crescimento dos free shops ocupou a Av.
Sarandí, a principal de Rivera, com painéis e vitrines, ora luminosos, ora
empoeirados, mostrando as oscilações desse setor da economia e determinando a
valorização imobiliária do eixo (BENTANCOR-ROSÉS et al, 1989). O assunto será
retomado no capítulo 4.

Agentes muito menos conspícuos desse movimento transfronteiriço,


materialidades bem mais discretas são geradas pelos contrabandistas. O transporte
de mercadorias através da fronteira marca a paisagem: as sacolas, os fardos, os
cestos, os reboques são onipresentes. No espaço urbano, além da concentração de
lojas e entrepostos junto à linha, bairros desenvolveram-se em torno de rotas
alternativas de comércio transfronteriço ilegal. Um exemplo conhecido é o do
tradicional bairro de Rivera Chico, cuja rua principal cresceu como opção para
contornar a aduana instalada na rua central (Fig. 14).
70

FIGURA 14: RIVERA: foto da Calle Brasil, em Rivera Chico – 1931.


Fonte: BOERO; BOERO RUIZ, 2004, p. 4

Segundo Eduardo Palermo (2006):

Veja que Villa Ceballos era, na prática, formada por duas ruas, ou pelo
encontro de dois eixos, digamos: havia o que se chamava Caminho das
Tropas, que era como chamavam a Sarandi, e a linha, que a cortava, na
forma de um T. E isso era essencialmente o centro, digamos, de Villa
Ceballos. (...) as autoridades vêm e se instalam ali, em pleno centro,
digamos, no coração da cidade, e o que acontece? Os contrabandistas não
podiam passar pelo Caminho das Tropas, pelo que é hoje Calle Sarandi,
porque a polícia estava ali, estava praticamente ao lado. Então, o que
fizeram? Contam os mais antigos do bairro que resolveram procurar um
caminho, o mais longe possível do posto policial. Então transferiram o
caminho de penetração ao sul uns dois quilômetros para noroeste. Ali se
criou o que hoje conhecemos por Av. 1825, que eles chamavam Caminho
Cuaró. Então, o que ocorreu foi que para evitar a polícia traçaram esse
caminho todo, Cuaró, Brasil, até a Praça Flores, aí descansavam,
desencilhavam e depois seguiam até San Eugenio, Tacuarembó, Salto. (t.a)
34
(PALERMO, E. 2006).

34
“Viste que Villa Ceballos estaba formada en la práctica por dos calles, o por el encuentro de dos
ejes, digamos. Estaba lo que se llamaba el Camino de las Tropas, como le llamaban, que es hoy
Sarandi, viste, y la línea, que lo cortaba, en la forma de T. Eso era esencialmente el centro, digamos,
de Villa Ceballos. Entonces que pasó? Cuando se instala el pueblo, y las autoridades vienen y se
instalan ahí en pleno centro, en el corazón, digamos de la ciudad, que pasa? Los contrabandistas no
podían pasar por el Camino de las Tropas, por el que es hoy calle Sarandi, porque la policía estaba
allí, estaba prácticamente al costado. Entonces que hicieron? Contan los más antiguos del barrio que
decidieron buscar un camino, lo más lejos posible del puesto policial. Entonces trasladaron el camino
71

1.10. O COTIDIANO NA CONDIÇÃO FRONTEIRIÇA

Muitas das práticas dos habitantes dessas cidades lançam mão de cálculos
que consideram a condição fronteiriça. Desde o nascimento, passando pelo
casamento e até a morte; na saúde e na educação; na produção e no consumo de
bens materiais e imateriais (religião, língua, arte, folclore), em muitos tipos de ação
política, as estratégias são pensadas e executadas levando em consideração as
possibilidades presentes em ambos os lados da fronteira. Deve-se ressaltar:
“praticando” a fronteira, agindo como fronteiriço, como o habitante de um lugar em
que as possibilidades se multiplicam pelo agenciamento da diferenciação originada
na construção dos territórios nacionais.

O nascimento de uma criança nesse conjunto urbano coloca decisões de


nacionalidade. A mãe pode optar, não sem empecilhos, pelo hospital brasileiro ou
pela maternidade uruguaia. Ela pode escolher em qual lado da fronteira registrará
seu filho, pois daí advirá o acesso a esse ou aquele sistema de saúde e educação.
Ela pode mesmo registrar o bebê em ambos os lados da fronteira, criando o doble-
chapa, cidadão em ambas as pátrias (DORFMAN; BENTANCOR-ROSÉS, 2005).
Existem doble-chapas legais “independentemente do lugar de nascimento, por
direitos a partir da nacionalidade dos pais, e dobles ilegais, por nascimento num lado
e pelo registro com testemunhas no outro” (BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p.146).

Na fronteira, cidadania e nacionalidade são elementos negociáveis, indo além


do critério de status outorgado pelos Estados-Nação.35 Brasil e Uruguai adotam, em
linhas gerais, condições diferentes para a atribuição de cidadania/nacionalidade: no
Brasil conta ter nascido em território brasileiro, jus soli, o direito pelo solo; no
Uruguai, respeita-se a filiação – jus sanguini, o direito pelo sangue. Estimativas de
Andréa Quadrelli-Sánchez (2002) indicam que entre 60 e 70% da população de

de penetración hacia el sur unos dos quilómetros hacia el noreste. Ahí se creó lo que hoy conocemos
con el nombre de Avenida 1825, que ellos le llamaban Camino Cuaró. Entonces que pasó, para evitar
la policía, trazaron ese camino todo, Cuaró, Brasil, hasta la Plaza Flores, y ahí descansaban,
desensillaban y después seguían hasta San Eugenio, Tacuarembó, Salto. (PALERMO, E., 2006).
35
Normalmente as leis de cada Estado estabelecem as condições em que se reconhece a cidadania
aos nacionais e aos estrangeiros que a solicitem (naturalização). Dá-se “a qualidade de cidadão ao
conjunto de pessoas de um povoado ou país que reúnem os requisitos para serem considerados
como tais e que, portanto, possuem direitos políticos, fundamentalmente o de eleger e de ser eleito"
(DI TELLA, 1989, p. 95). Nesse caso trata-se do reconhecimento da cidadania como outorga
institucional de nacionalidade.
72

Santana do Livramento-Rivera possui parentes de ambas as nacionalidades,


possibilitando a opção por uma ou ambas as cidadanias para cônjuges e prole.

Esse precedente legal proporciona mais que uma dupla cidadania pragmática,
voltada para a obtenção de direitos reservados aos nacionais – como a
aposentadoria ou o acesso gratuito à saúde e educação – mas uma cidadania
oscilante, que pende para um ou outro pertencimento, ou mesmo para sua
combinação, já que muitos fronteiriços consideram-se simultaneamente brasileiros e
uruguaios (QUADRELLI-SÁNCHEZ, 2002, p. 61).

Cidadania também pode ser entendida como participação política cotidiana, e


a ação política na escala local nem sempre aceita os limites da nacionalidade legal:
muitos movimentos reivindicatórios envolvem a ambos lados da fronteira. A
possibilidade de votar, entretanto, está restrita aos que são legalmente doble-chapa.
A própria aquisição da dupla cidadania pode tornar-se objeto de negociação política,
uma vez que há casos em que despachantes facilitam o registro civil, trocando
aposentadoria ou outras vantagens por votos (BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p. 146).

Os sentidos da fronteira em Santana do Livramento-Rivera apresentam-se já


no gentílico doble-chapa, com que se denominam os habitantes da(s) cidade(s).
Evocativo da duplicidade e da relação com o Estado-Nação institucionalizado, é
assim registrado no Diccionario Riverense:

Doble-chapa: / Legislação: Em 05/11/1976 foi promulgada (regulamentada


em 02/02/1977) a lei extraordinária pela qual se aprovou a importação
definitiva de automóveis e camionetes que apresentavam duas placas de
identificação, a brasileira e a uruguaia, ingressados em nossa República
antes de 02/03/1973, para usuários residentes nos departamentos de
Artigas, Cerro Largo, Paysandú, Rivera, Rocha, Salto e Treinta y Tres. No
nosso caso, os fundos arrecadados foram utilizados para dar início à
construção do Palácio Municipal. / Linguística: denominação popular para
os fronteiriços com dupla nacionalidade, comuns na região, dada a mistura
de muitas famílias, e o costume, hoje não tão generalizado, pelo qual muitos
recém-nascidos eram registrados nos dois países vizinhos. (t.n.) (LEON,
36
1988, p. 280).

36
“Doble chapa – / Legislación: El 5.11.1976 fue promulgada (reglamentada el 2.2.1977) la ley
extraordinaria por la cual se aprobó la importación definitiva de automóviles y camionetas que tenían
doble chapa de circulación, brasileña y oriental, que hubieran ingresado a nuestra República con
antelación al 2.1.1973, para usuarios residentes en los departamentos de Artigas, Cerro Largo,
Paysandú, Rivera, Rocha, Salto y Treinta y Tres. En nuestro caso los fondos recaudados fueron
empleados en la iniciación del Palacio Municipal. / Lingüística: Denominación popular para los
fronterizos con doble nacionalidad, comunes en la región dado el entremezclamiento de muchas
familias y la costumbre, hoy no tan generalizada, por la cual muchos recién nacidos eran registrados
en los dos países vecinos.” (LEON, 1988, p. 280). Merece nota a existência de um dicionário,
73

Se a interação tem-se dado sem o recurso a acordos formais na escala do


Estado-Nação, em 2004, firmou-se o “Acordo para Permissão de Trabalho e Estudo
para os Cidadãos das Localidades de Fronteira da República Oriental do Uruguai e
da República Federativa do Brasil”, que propõe o compartilhamento da cidadania na
escala local (DORFMAN; BENTANCOR-ROSÉS, 2005). O impacto do acordo foi
menor do que o esperado, talvez por propor uma saída institucional e limitada ao
que vinha sendo resolvido de maneira cotidiana e informal, com recurso aos
“jeitinhos” e “trampitas” bastante pragmáticos, e certamente pelas crescentes
exigências documentais colocadas pela Migraciones uruguaia.

Segundo dados de Andréa Quadrelli-Sánchez (2002, p. 66) a percentagem


total dos casamentos mistos em ambas as cidades seria, no início dos anos 2000,
de 12,4%, bem abaixo do dado apresentado por Gladys Bentancor-Rosés, de 58%
(64% dos quais unindo brasileiras a uruguaios) (2002, p.144-6). A importância do
fenômeno se mantém, apesar da divergência entre os números. Cabe ressaltar que
o parentesco binacional pode repetir-se em várias gerações. Segundo Bentancor-
Rosés, a maioria dos casamentos mistos é celebrada em Rivera, em função de
vantagens econômicas (como o pagamento de auxílio-matrimônio ao trabalhador
uruguaio e o menor custo da tramitação dos papéis). A bigamia é reprimida em
ambos os países, mas certas exigências legais ligadas à nacionalidade podem ser
mais facilmente resolvidas com a repetição do casamento no outro lado da fronteira.
É comum encontrar nas páginas dos jornais locais editais de casamento, em função
das complexas estratégias ligadas ao registro civil (Fig. 15).

inconcluso em seus 15 volumes e quase 2000 páginas, sobre temas locais, atestando a força cultural
do lugar.
74

FIGURA 15: Santana do Livramento-Rivera: edital público de


Casamento – 2008.
Fonte: A Platéia, 05 de outubro de 2008, p. 39.

Outro “jeitinho” diz respeito ao consumo de produtos brasileiros em ambos os


mercados, o que leva a uma série de adaptações na escala local: bens de consumo
duráveis, como carros e eletrônicos, são muito mais baratos no Brasil, o que atrai os
uruguaios. Como é mais fácil para um cidadão brasileiro ou um residente adquirir um
carro nacional, cria-se uma prática de “revender” ou repassar carros brasileiros a
riverenses, dentro de redes de confiança amistosas ou remuneradas.

As possibilidades oferecidas pela condição fronteiriça são tão importantes na


região que motivam movimentos populacionais. O departamento de Rivera
apresenta o segundo maior crescimento demográfico do Uruguai, logo atrás de
Montevidéu. A razão apontada para o fenômeno é o “contato” com o Brasil.

Rivera se povoou ultimamente, nos últimos quarenta anos, com muita gente
que veio do resto do país para cá. Rivera tem quase cem mil habitantes,
são poucos os departamentos do Uruguai que têm essa quantidade de
gente e por que? Por que a vida aqui era muito mais barata, graças ao
37
contato com o Brasil. (t.n.) (Julio Cairello, entrevista, Rivera 21/07/2005).

As oportunidades oferecidas pela fronteira fizeram com que surgisse um fluxo


migratório interno no Uruguai, no último quarto do século XX, mencionado acima.
Desse primeiro movimento, surge outro, em que os jovens, com escassas
oportunidades em outras partes do território uruguaio, acionam a rede de parentesco

37
“Rivera se pobló últimamente, en los últimos 40 años, por mucha gente que vino del resto del país
para acá, Rivera tiene casi 100 mil habitantes, son pocos los departamentos del Uruguay que tienen
esa cantidad de gente y, por que la vida acá era mucho más barata, por el contacto con el Brasil”
(Julio Cairello, entrevista, 21/07/2005).
75

e se reúnem aos aposentados interessados em desfrutar o menor custo de vida na


fronteira. Morar no lado brasileiro significa pagar um aluguel mais baixo, e traz a
vantagem de permitir o acesso à documentação de residente e, por conseguinte, a
crédito para consumo de bens. Entre as camadas mais privilegiadas das cidades,
morar em Livramento pode estar ligado à segregação urbana, uma vez que os
bairros de luxo são mais expressivos em Livramento, levando a uma concentração
da elite de ambas as cidades no bairro Atenas (BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p.
147).

Nas cidades de fronteira fala-se o português, o espanhol e dialetos locais que


misturam ambos os idiomas, somando a eles uma profusão de termos “campeiros”,
em geral remanescentes das línguas indígenas. A figura 16 traz um exemplo.

Os dialetos são genericamente chamados de portuñol, termo em uso em toda


a fronteira lingüística nos limites do Brasil. Os exemplos a seguir ilustram as
variações lingüísticas (QUADRO 1).

FIGURA 16: Uruguaiana: folheto publicitário.


Fonte: STURZA, 2007, p. 43.
76

QUADRO 1: Comparação entre expressões em português, espanhol e portuñol.


Português Espanhol Portuñol
Não tem No queda Não fica nada
Vou descer Voy a bajar Vou baixar
Eu não sei bem Que sé yo Que sei eu
Oi, como vai? ¿Hola, que tal? Oh, qué tal?
Fonte: STURZA, 2007, p. 43.

Na literatura acadêmica uruguaia, os dialetos são conhecidos como “dialetos


portugueses do Uruguai”, ou DPUs, enfatizando a pluralidade de combinações entre
a estrutura do português e o vocabulário espanhol. Tais estudos afirmam que as
cidades-gêmeas constituem uma região “bilíngüe e diglósica”, onde os falantes
operam um código em que se alternam as línguas standard do respectivo cada país
e o DPU, de acordo com o interlocutor e o grau de formalidade da situação
(ELIZAICÍN, 1979; BEHARES, 1985). A influência do espanhol no português falado
na fronteira aparece no sotaque, em certas estruturas gramaticais absorvidas e
através do uso corrente de espanholismos. Tal situação estaria ligada tanto à
fronteira lingüística contemporânea quanto e a uma história de contatos que teria se
iniciado ainda na Península Ibérica, mostrando que as condições estruturais e
conjunturais se interpenetram.

A relação entre lugares é explicativa, na distinção entre língua e dialeto: há


uma correspondência entre a subordinação de espaços e línguas. Paul Alliès afirma
que a pesquisa lingüística do abade Gregório, em 1790, conferindo status
diferenciado às expressões lingüísticas, na França, já revelava que “a distância têm,
em toda parte, valor classificatório. Ela faz o papel de um eixo semântico” (ALLIÈS,
1980, p.67).

Desde a primeira metade do século XX, pelo menos, o portuñol é utilizado em


produções escritas (vide Anexo A). O exemplo abaixo é contemporâneo, de autoria
do poeta popular Chito de Mello:

“A Fronteira da Paz”
é o apelido dessa zona
Será porque las ‘persona’
Aqui não lutam jamais.
Tá ‘tudo bon’, dizem muitos
e ficam bem ‘cayado’
Uns fumam ‘importado’
77

E outros nem sequer a bagana.


Rivera
Linda fronteira
Para viver
Sou uruguaio
que não me ‘cayo’
E com o ‘bagayo’
Hei de subsistir.
Que somos todos iguais
e ‘irmãos’, dizem os padres
Mas até nas sepulturas
Há diferenças sociais.
E ainda que não pareça
‘Me mamo’ como um estancieiro
Eu com um ‘Véio Barrero’
38
e ele com ‘guisque’ do ‘frishó’. (t.n.) (MELLO, 2005, p.5)

Nesses versos, o portuñol soma-se aos temas “baixos” como a conivência, o


cigarro, o contrabando, a morte e a bebida, que podem ser entendidos como
mostras do senso comum fronteiriço, mas também servem para associar o uso do
dialeto a assuntos cotidianos. Ecoa a fórmula de Néstor Perlongher (1992, p.9): “la
una el error dela outra”. Encontramos também o comentário sobre a segmentação
social, onde a diferença de classe aparece como mais relevante que a nacional,
como mostram as bebidas e o cigarro citados.

O portuñol é interpretado segundo óticas sociolingüísticas diferentes, por


vezes relacionadas à escala geográfica que informa a análise. Se, do ponto de vista
da região, ele pode ser entendido como expressão de uma cultura popular e
peculiar, observado à distância, em outros pontos do Uruguai ou do Brasil, é visto
como um problema a ser resolvido através de políticas centralistas39.

Segundo relatos, o uruguaio da fronteira, por estar exposto à cultura do Brasil,


é freqüentemente tratado como diferente. A coincidência de interpretação entre
fenômenos observados no País Basco e na fronteira gaúcha leva a pensar em uma
38
“La frontera de la paz”/ Han apodáo a esta zona/ Será porque las “persona”/ Aquí no luchan
jamás.// Ta “tudo bon” dicen muchos/ Y se quedan bien “cayado”/ Unos fuman, “importado”/ Y otros ni
siquiera puchos.// Rivera/ Linda frontera/ Para vivir/ Soy uruguayo/ que no me “cayo”/ Y con “el
bagayo”/ He de subsistir.// Que somos todos iguales/ y “hermanos’, dicen los curas/ Pero hasta en las
sepulturas/ Hay diferencias sociales.// Y aunque parezca que nó/ “Me mamo” como un estanciero/ Yo
con un “Véio Barrero”/ Y él con ”guisque” de’l “frishó” (MELLO, 2005, p.5).
39
Além do histórico temor uruguaio em diluir-se no imenso Brasil (exemplificado na nota 13) pode-se
trazer a manifestação do embaixador brasileiro, louvando o ensino bilíngüe na fronteira: “para as
crianças expostas diariamente ao “portunhol”, aprender de forma sistemática os dois idiomas facilita o
aprendizado da própria língua materna. [...] É importante perceber que ao aprender espanhol e
português não se está pondo em risco o sentimento de Pátria. Ao contrário, dificulta-se o
desenvolvimento de um dialeto local, que mais do que um sotaque ou um maneirismo regional, aí
sim, diluiria o que cada população tem de brasileira ou uruguaia.” (SANTOS, E., 2004, p. 15).
78

característica estrutural das áreas de fronteira, onde a adesão à nação é


questionada. Segundo Helénè Velasco-Graciet (2006, p.75),

[As zonas fronteiriças] tornam-se rapidamente, aos olhos dos poderes


políticos, zonas de perigo potencial, por conta do contato efetivo com
espaços exteriores ao território nacional. Em oposição ao centro do território
nacional, destacado e iluminado por uma série de normas prescritas, os
40
confins aparecem como zonas de incerteza identitária potencial. (t.n.)
(idem, ibidem, p.75)

A variação lingüística fronteiriça é interpretada, ao sul do rio Negro e em


outros pontos do Uruguai, como marca de ignorância, seus falantes estariam
sujeitos a perdas lingüísticas, “deformações da linguagem” ou “misturas inferiores”,
identificados em geral com os estratos mais pobres da sociedade. O uso do dialeto,
segundo determinadas interpretações vindas dos puristas, causaria também
problemas de expressão, como dislexia, deficiências na expressão oral e escrita etc.
(BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p.166). Observe-se que, na prática, o falante é
bilíngüe, dispondo de maiores recursos lingüísticos.

Os bayanos, como também são conhecidos os nativos da fronteira norte do


Uruguai, distinguir-se-iam dos seus patrícios por uma perda de nacionalidade,
assimilando comportamentos de novos ricos, espalhafatosos e de moral laxa.
Freqüentar a fronteira implica, assim, aos olhos de alguns dos moradores da capital,
conseqüências patológicas e perdas morais. Assim, associa-se à fronteira o tropo da
degeneração (descaimiento, nas palavras de mais de um informante): junto à
fronteira, os comportamentos se transformam pela hibridação e pela contaminação
com outras culturas, o que leva à ampliação da tolerância em relação à
comportamentos desviantes, pouco aceitáveis em contextos mais puros e estáveis.

40
A explicação avançada pela autora, no entanto, não se estende ao caso aqui em análise, onde o
povoamento foi posterior ao desenho da fronteira: “As razões são, em parte, históricas, já que bem
antes do surgimento da fronteira e da forma rígida e linear de sua existência definitiva, as populações
tornadas fronteiriças praticavam um sistema de alianças e trocas indiferenciadas com o conjunto das
comunidades vizinhas.” (t.n.) “Ces zones sont rapidement apparues, aux yeux des pouvoirs politiques,
comme des zones de dangers potentiels du fait de leur contact effectif avec des espaces extérieurs
au territoire national. Á l’opposé du centre du territoire national éclairé et mis en lumière par toute une
série de normes prescrites, les confins apparaissent comme des zones d’incertitude identitaire
potentielle. Les raisons en sont en partie historiques, car bien avant la naissance de la frontière et de
la forme rigide et linéaire de son existence définitive, les populations devenues frontalières
pratiquaient um systéme d’alliances et d’échanges indifférenciés avec l’ensemble des communautés
voisines” (VELASCO-GRACIET, 2006, p.75).
79

Mesmo quando positivada, marca-se a diferença em relação ao centro


uruguaio: Alma Gallup, defendendo os riverenses, também os distingue do conjunto
nacional, ao afirmar que os fronteiriços são “mais desenvoltos, mais divertidos e
mais coloridos” e, portanto, mais brasileiros (entrevista, Rivera 20/07/2005).

O histórico empenho das autoridades uruguaias para “erradicar a influência


luso-brasileira” tem sido pouco frutífero, na medida em que os meios de
comunicação contemporâneos amplificam a influência do português. Experiências
de ensino bilíngüe na educação primária trabalham com as línguas standart, sem
levar em consideração a língua-mãe da fronteira. Recoloca-se a tensão entre a
lógica do lugar e as estratégias nacionais41.

No cotidiano das cidades da fronteira, essa tensão combina-se ao


espelhamento entre situações brasileiras e uruguaias, seja para copiar os exemplos,
seja para rejeitar comportamentos. Também é recorrente encontrar fronteiriços que
afirmam que suas características e problemas não são reconhecidos pelos não-
nativos, moradores do centro e gestores políticos que, incapazes de ver o que
dificulta a vida cotidiana, não podem propor soluções apropriadas.

Contemporaneamente, é possível positivar a hibridação ensejada pela


fronteira, mas as suspeitas de terrorismo freqüentemente lançadas sobre esse lugar
estão baseadas numa concepção da fronteira como um espaço propenso a práticas
ilegais ou mutantes. As representações da fronteira e de seus habitantes originam-
se e expressam diferentes posições no espaço e na sociedade, que serão
abordadas no capítulo que segue.

41
Comenta Raphael Copstein (entrevista, Porto Alegre 11/10/2005) “está se procurando, não sei por
que, ensinar português do lado de lá e espanhol do lado de cá, quando eles têm a língua deles, eles
se entendem sem problemas, sem os gramáticos nem os políticos”. Respondo: “é uma vingança do
Estado-Nação sobre os caras, querer ensinar não uma, mas duas regras, ainda mais que o português
e o espanhol são línguas pátrias dos colonizadores, e não plenamente do Brasil e do Uruguai”. Ele
completa: “e outra coisa, a senhora pega um dicionário de termos gaúchos, tudo é espanhol”; finalizo:
“e guarani”. Essa discussão aproxima-se à travada no capítulo 3, sobre o conteúdo da marginalia, a
linguagem da margem, na produção literária regionalista.
80

2. AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS E O CONTRABANDO

Este capítulo traz uma discussão metodológica voltada à construção da


comensurabilidade entre textos de gêneros e procedências variadas. Existem fontes
incontornáveis na discussão do contrabando, como os códigos penais que o definem
e as teorias sobre as fronteiras internacionais. Certos textos consultados voltam-se à
apresentação de fatos e evidências sobre a vida na fronteira, outros propõem-se a
estabelecer tipologias e conceitos para uso em múltiplos casos, enquanto outros
ainda, como os contos de contrabando, privilegiam sentidos e impressões mais ou
menos específicos ao lugar. Há representações cuja relevância advém do fato de se
originarem no lugar em estudo, como se dá com as entrevistas realizadas em
trabalhos de campo. O conjunto de documentos consultados apresenta linguagem,
pontos de vista e propósitos essenciais para uma compreensão do contrabando
como prática cotidiana, mas é bastante heterogêneo, de modo que sua aproximação
requereu atenção à tradução cultural e acabou por levar à proposta de uma
geografia do pensamento, explorando as relações entre os lugares e política das
representações textuais.

2.1. TEXTOS LEGAIS SOBRE O CONTRABANDO

Os fronteiriços falam portuñol em situações informais e familiares, nos


primeiros anos de vida e de escola. Em situações sociais sujeitas à formalidade
estatal-nacional, onde regras de outras escalas geográficas são prevalentes, as
línguas standard, nacionais, são preferidas pelos fronteiriços. Da mesma forma, as
várias representações textuais da fronteira e do contrabando alinham-se em
posições coerentes com a situação geográfica e social de quem as produz. Tanto o
portuñol quanto os textos – orais ou escritos – sobre o contrabando informam sobre
os contatos e os usos locais da fronteira.
81

Localmente, contrabandear é representado como um trabalho que implica no


desrespeito a algumas regras vigentes nos limites estatais, a partir de um
conhecimento do lugar, das práticas possíveis e legítimas nele. Quando enunciado a
partir do Estado-Nação, o contrabando define-se como o transporte ilegal de
mercadorias entre Estados-Nação, elidindo os tributos por estes estabelecidos, o
que mostra uma fronteira de regulação, de permeabilidade seletiva e controlada
pelos agentes políticos hegemônicos. Segundo a legislação vigente no Brasil
(artigos 334 e 318 do Código Penal da República Federativa do Brasil), contrabando
ou descaminho é “importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em
parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou
consumo de mercadoria”. Ao contrabando, associa-se a “facilitação do contrabando
ou descaminho”, o crime praticado pelos aduaneiros que se envolvem ao “facilitar,
com infração de dever funcional, a prática do contrabando ou descaminho”. A pena
para essas contravenções é a reclusão por um período de 1 a 4 anos. Além disso,
pune-se a participação de servidores públicos com afastamento do cargo

O texto da lei afirma que a entrada no país de artigos como cigarros para fins
de revenda, ou armas para quaisquer fins, constitui sempre contrabando, pois sua
importação é absolutamente proibida. O desrespeito a barreiras sanitárias é uma
forma emergente de contrabando, que infringe a lei 7802/1989, sobre a utilização de
agrotóxicos e a legislação ambiental (lei 9605/1998). Há ainda significativo comércio
de sementes transgênicas, especialmente de soja vinda da China via Paraguai, sem
a atestação do Ministério da Agricultura do Brasil.

O descaminho é a fraude aduaneira (“frustrar, burlar no todo ou em parte o


pagamento de tributos”). Acima de US$300 mensais, tudo o se compra em um país,
e é levado para outro sem o recolhimento de impostos de importação, mesmo para
consumo próprio, constitui descaminho.

No Código Penal da República Oriental do Uruguai, o artigo 245 da lei 13.318


define como infrações aduaneiras a diferença, a defraudação e o contrabando. A
diferença consiste em declarar um valor menor do que o devido ao fisco, fraudando
qualidade, quantidade, natureza ou valor. A defraudação é especificada no artigo
251 como uma operação em que o fisco é lesado, com ou sem a participação do
funcionário público. O artigo 253 reza:
82

Se considera que existe contrabando em toda a entrada ou saída,


importação, exportação ou trânsito de mercadorias ou artigos que for
realizada com a cumplicidade de servidores ou sem ela, de forma
clandestina ou violenta, ou sem a documentação correspondente, destine-
se a traduzir-se em perda de renda fiscal ou na violação dos requisitos
essenciais para a importação ou exportação de determinados artigos
sujeitos a leis e regulamentos especiais, ainda que não aduaneiros (t.n.)
42
(Codigo Penal de la Republica Oriental del Uruguay, 1965, p. 130-133).

Tais textos sobre o contrabando ancoram-se nas capitais, pontos dos


territórios que concentram o poder político e cultural, o que faz com que seu
conteúdo seja conhecido, reconhecido e aplicado em todo o conjunto do território
nacional, como explicita o título dessas obras (Código Penal da República
Federativa do Brasil e da República Oriental do Uruguai). A representação do
contrabando no local, por outro lado, dá voz aos contrabandistas, permitindo acessar
alguns dos sentidos de suas práticas. Vêem-se, assim, duas posições textuais
distintas entre si, mas com coerência geográfica interna. A fronteira e seu controle
são atributos do Estado-Nação. A situação periférica das cidades de fronteira
justifica a dissonância entre a representação nacional e a local do contrabando.

A diferença entre pensar a questão do contrabando a partir de Santana do


Livramento-Rivera, Porto Alegre, Florianópolis, Rio de Janeiro, Brasília ou
Montevidéu, da periferia ou do centro de cada província do pensamento – ou do
senso comum – tem que ser explorada: ainda que determinados pontos do território
emitam enunciados mais amplamente aceitos, a adoção, compulsória ou volitiva, de
seu ponto de vista na periferia pode ocultar sentidos locais. Ainda assim, afirmar que
as representações textuais são situadas não deve levar a reificar o espaço como
fonte de interpretações. Portanto, o ponto de vista é de agentes, de teóricos, de
grupos de habitantes, e não do lugar. Nesse “exercício de aproximações
sucessivas”, como aconselhava Milton Santos (2002, p. 61), o foco da pesquisa
pousa sobre os contrabandistas, esses agentes que se movem através da fronteira,
por causa e apesar dela, graças à destreza no manejo das escalas geográficas que
precipitam-se no lugar. As representações textuais dos contrabandistas possuem

42
“Artículo 253. Se considera que existe contrabando en toda entrada o salida, importación,
exportación o tránsito de mercaderías o efectos que realizada con la complicidad de empleados o sin
ella, en forma clandestina o violenta, o sin la documentación correspondiente, esté destinada a
traducirse en una perdida de renta fiscal o en violación de los requisitos esenciales para la
importación o exportación de determinados artículos que establezcan leyes y reglamentos especiales,
aun no aduaneros” (Codigo Penal de la Republica Oriental del Uruguay, 1965, p. 130-133).
83

usualmente caráter oral e circulam por redes locais e periféricas. A interpretação dos
sentidos locais dos causos contrabandistas para a presente representação textual se
faz tanto por sua tradução para o meio escrito, quanto pelo reconhecimento da
verdade expressas nessas enunciações.

O esforço metodológico apresentado a seguir se justifica como uma reflexão a


respeito das etapas da pesquisa sobre os contrabandistas que trabalham na
fronteira gaúcha. Diante da letra da lei e da inicial escassez de teoria, de etnografias
ou de historiografia do contrabando – e frente à abundância de textos literários
dotados de perspicácia geográfica circulando, senão pelo conjunto da população
local, ao menos entre parte significativa desta – o uso da ficção como fonte de
interpretações se apresentou incontornável. Os temas constitutivos na literatura da
fronteira, escrita no lugar ou na região – o espaço fronteiriço; as práticas dos
bagayeros que freqüentam a fronteira Brasil-Uruguai; suas relações com diferentes
segmentos da população fronteiriça, sejam conterrâneos ou pessoas envolvidas com
a lei (aduaneiros, policiais e advogados); as tensões e acomodações entre o
cotidiano local legitimado e o legal nacional institucionalizado etc. – coincidem com
os temas explorados nesta tese.

Com o avanço da pesquisa, textos originários na Geografia, na História, na


Literatura Comparada, no Direito, na Sociologia e na Antropologia foram sendo
garimpados, criando um acervo que ora privilegia a análise do lugar, Santana do
Livramento-Rivera, ora a interpretação das práticas do contrabando de pequenos
volumes realizado em outras fronteiras. Assim, o conjunto de documentos ampliou-
se significativamente, incorporando representações não-ficcionais. A estes se
somaram notícias e reportagens de diferentes fontes.

Durante a realização dos trabalhos de campo, aos textos impressos


somaram-se entrevistas, conversas e observações sobre as formas narrativas e o
vocabulário específico à atividade dos contrabandistas na fronteira em estudo. A
transcrição de tais textos orais reposicionou as questões levantadas pela análise da
ficção e da bibliografia acadêmica: em certos momentos, aqueles primeiros textos
pareceram dispensáveis. Um segundo olhar revelou que sua contribuição já estava
incorporada à interpretação das práticas observadas no lugar.
84

Os resultados apresentados a seguir balizaram a organização dos dados


obtidos nesse percurso, que serão apresentados nos capítulos 3 e 4, onde examino
a literatura acadêmica à luz, respectivamente, da representação do contrabando na
literatura da fronteira e das práticas dos contrabandistas de pequenos volumes.
Trata-se de uma exploração metodológica para viabilizar o uso concomitante de
fontes escritas – produzidas por geógrafos, historiadores, antropólogos, contistas,
poetas e outros escritores da fronteira – e de fontes orais, originadas nas
experiências de campo. Em todos os casos, tratam-se de representações textuais
ligadas ao espaço e que têm com ele uma relação circular, em que a sociedade se
territorializa gerando formas verbais que, por sua vez, entram na construção cultural
e política dos territórios. Como busco demonstrar, a própria conceituação de
fronteira é situada, recebendo influxos do lugar, do momento histórico em que se
origina e da escala geográfica que contempla.

2.2. AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS E A GEOGRAFIA

As representações têm sido discutidas na Geografia a partir de diferentes


teorias e conceitos sem chegar a constituir um campo de pesquisa unificado ou uma
escola de pensamento bem circunscrita. Bernard Debarbieux afirma ser mais
razoável falar de uma “curiosidade compartilhada” (1998, p.209) pelas geografias
comportamental, humanista, cultural, política e social em torno da representação,
que é por ele conceituada como

o processo pelo qual se produzem formas, concretas ou ideais, dotadas de


existência própria, mas que se referem sempre a objetos ou fenômenos
pertencentes a outras ordens da realidade [...] um fenômeno de outra
43
natureza: o espaço, a paisagem, o lugar (t.n.) (idem, ibidem,p. 199) .

43
“La répresentation est le processus par lequel sont produits des formes, concrètes ou idéelles,
dotées d’une existence propre, mais qui réfèrent toujours à un autre objet ou à un autre phénomène
relevant d’un autre ordre de realité [...] un phénomène d’une autre nature: l’espace, le paysage, le
lieu” (DEBARBIEUX, 1998, p. 199-200).
85

No Brasil, destacam-se os trabalhos reunidos em torno do NEER – Núcleo de


Estudos em Espaço e Representações, que se liga estreitamente à geografia
cultural. Por exemplo, Salete Kozel afirma que

as representações em geografia constituem-se em criações individuais ou


sociais de esquemas mentais estabelecidos a partir da realidade espacial
inerente a uma situação ideológica, abrangendo um campo que vai além da
leitura aparente do espaço realizada pela observação, descrição e
localização das paisagens e fluxos, classificados e hierarquizados (2004,
p.216).

Sua argumentação lança mão de polarizações entre senso comum e


conhecimento científico, entre individual e coletivo, ressaltando a distância entre o
real e o imaginário, para então colocar tais pares em relação dialógica. De maneira
mais ampla, nas Ciências Humanas, desde meados dos anos 1980, “representação”
tem sido uma palavra amplamente empregada, especialmente pela História Cultural
proposta por Roger Chartier (1990).

É preciso esclarecer que os processos de produção das representações


textuais são analisados aqui através de sua situação espacial, do contexto histórico
de sua produção e leitura, de seus emissores, de seu compartilhamento com os
receptores e, finalmente, de sua materialidade e seu suporte. Esse texto é um
objeto: isso precisa ser enfatizado em função do processo histórico desencadeado
pela invenção da escrita e da imprensa, conforme descreve Carlo Ginzburg:

Inicialmente, foram considerados não pertinentes ao texto os elementos


ligados à oralidade e à gestualidade; depois também os elementos ligados
ao caráter físico da escrita. O resultado dessa dupla operação foi a
progressiva desmaterialização do texto, continuamente depurado de todas
as referências sensíveis: mesmo que seja necessária uma relação sensível
para que o texto sobreviva, o texto não se identifica com o seu suporte.
Tudo isso nos parece óbvio, hoje, mas não o é em termos absolutos. Basta
pensar na função da entonação nas literaturas orais, ou na caligrafia na
poesia chinesa, para perceber que a noção de texto que acabamos de
invocar está ligada a uma escolha cultural. (GINZBURG, 1989, p.157).

A oralidade, o gesto e, principalmente, o propósito e o contexto espacial em


que o texto surge e em que se apóia são referências na presente pesquisa. Explicito
abaixo a formulação desse referencial.

1. Existem diferentes modos para representar o espaço e as práticas que o


ativam socialmente. A representação textual assume diferentes gêneros (segundo
86

Josefina Ludmer (2002, p.28), “uma matéria e uma lógica”, ao que acrescento: um
suporte) para verbalizar o espaço, com diferentes propósitos. Dentre as múltiplas
formas textuais, trabalho com a matéria escrita (descrição científica, obra ficcional,
texto legal e jornalístico etc.); com entrevistas, conversas, causos, anedotas e outras
formas da expressão oral transcrita44. É preciso enfatizar que as palavras e seus
usos são de domínio geral, em mutação e atualização permanente. O texto científico
prima pelo diálogo com os precursores; a escrita geográfica vale-se ainda de
representações cartográficas, imagens de circulação mais restrita. Para acompanhar
este texto geográfico, busco desenvolver cartogramas ao longo deste trabalho,
enfrentando o desafio de mapear alguns cenários ficcionais e as práticas dos
contrabandistas, de materialização inconspícua porque cercadas de sigilo 45. A
representação oral recorre a gestos e entonações, perdidos na passagem para o
registro escrito.

2. As representações textuais expressam a cultura espacialmente situada. O


lugar da enunciação influi na representação do espaço formulada por cada agente: o
agente é situado e a cultura em circulação no lugar condiciona-o e às
representações que ele é capaz de gerar. Ducrot e Todorov ([1971] 2001, p.289)
conceituam enunciação como “os elementos pertencentes ao código da língua e
cujos sentidos, no entanto, variam de uma enunciação para outra; por exemplo, eu,
tu, aqui, agora etc.” Partindo desse ponto, enfatizo a mudança no significado do
contrabando conforme a escala geográfica e o lugar – em suas relações endógenas
– que informa a representação textual formulada por cada agente considerado.

3. As diferentes representações podem ser organizadas segundo uma geografia.


A geografia das representações textuais expressa uma “geografia do pensamento”,
considerando, principalmente, o lugar do emissor, que marca o ponto de partida da
representação, isto é, o lugar de enunciação, o aqui e agora subjacente a cada
texto. Esse lugar de enunciação situa-se numa entidade geográfica em relação com
outros lugares. Dentro da geografia do pensamento são importantes também o lugar
do objeto representado e aquele do interlocutor. Esse tipo de análise sublinha ainda
44
Muitas vezes me foi sugerido também o trabalho com o cancioneiro gauchesco e com a poesia.
Aprofundar as questões ligadas à circulação das línguas e dialetos conhecidos como portuñol seria
outra possibilidade. Tais sugestões ficam reservadas para pesquisas futuras.
45
Segundo Marie-Vic Ozouf-Marignier, a Geografia tende a valorizar a iconografia em vista de sua
presença no ensino fundamental, onde a ilustração é uma necessidade (notas de aula, Paris,
14/12/2006).
87

a suíte escalar em que circula o objeto representado pelo emissor, por exemplo, o
contrabando, e os conflitos gerados na relação entre representações oriundas no
lugar, na região e no Estado. Há, evidentemente, um forte teor político nessa
formulação.46 As várias representações textuais da fronteira e do contrabando
alinham-se em posições geograficamente coerentes com a situação geográfica e
social de quem as produz.

4. Nesse sentido, a idéia de tradução cultural surge como estratégia para (a)
reconhecer a natureza desigual de cada um desses gêneros textuais, ao mesmo
tempo em que (b) procura aproximá-los, construindo comensurabilidades entre
textos de origem, suporte e propósitos distintos, (c) organizando-os segundo uma
geografia das representações textuais, a partir do lugar e das práticas a que o
corpus (o conjunto dos textos) se refere, (d) gerando a presente representação
textual.

O trabalho dos geógrafos geralmente deságua num texto final, que pode ser
um relatório de campo ou uma tese como esta, mas que é apenas parte de um
percurso que inclui contatos prolongados com o grupo em estudo na construção – e
nas sucessivas erosões – do objeto geográfico. O texto científico é uma tentativa de
sedimentação dessa experiência sobre um substrato de teorias já constituídas.

2.3. UMA GEOGRAFIA DO PENSAMENTO SOBRE A FRONTEIRA

A Geografia, descrevendo, sistematizando e construindo conceitos, tem


contribuído com várias representações textuais para a fronteira, todas em relação
com a situação de seu emissor. Lembremos que não se conhece uma essência da
fronteira concreta. O conceito universal e definitivo de fronteira é inatingível, na
medida em que todos os conceitos se referem a um tempo e espaço específico,
além de responderem a um desenvolvimento interno à disciplina. A importância
estratégica das fronteiras torna a discussão ainda menos ingênua. O debate a seguir

46
Como escreveu Machado de Assis, “tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que
o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão” (ASSIS, [1891] 1994 p. 23).
88

visa aprofundar a compreensão desse objeto multiforme, exercitando a geografia


das representações textuais e tentando evitar possíveis reificações ou
naturalizações47.

Nas formulações científicas mais amplamente difundidas, o conceito de


fronteira liga-se ao campo da política, ou da geografia política, estabelecendo-a
como o limite da soberania e da competência de um Estado: em princípio, os
Estados modernos soberanos estendem-se até tocarem, na fronteira, noutros
territórios e noutros Estados. Os dois objetos extensos e de igual natureza, mas de
diferentes conteúdos, delineiam-se, delimitando-se. Entendida em todas as escalas
geográficas, a fronteira é um objeto cuja emergência liga-se aos processos de
territorialização, sendo o limite político significante de um território, um objeto criado
por um poder cujo projeto político é afirmar-se e diferenciar-se de outras entidades
territoriais, criando descontinuidades espaciais e sociais (GROUPE FRONTIÈRE,
2004, p.1). A questão se torna ainda mais complexa quando observamos que
mesmo a fronteira geográfica internacional, originada na lógica do Estado-Nação,
apresenta agenciamentos extra-estatais, originados na escala local, regional ou
supra-estatal.

Friedrich Ratzel, na Alemanha de fins do século XIX, apresentava a fronteira


como o lugar onde deixam de existir as condições vitais necessárias à expansão do
território do Estado, ou como o encontro com um movimento de mesma natureza,
em sentido contrário (RATZEL, 1882/1990, p.148). De forma semelhante, na década
de 1930, o francês Jacques Ancel definia a fronteira como “isóbara de poder”, isto é,
uma linha que demarca igualdade de poderes – capacidade de controle – entre duas
formações estatais (ANCEL, 1938, p.195). Contemporaneamente, tais afirmativas
mantêm sua vigência no sistema inter-Estados que recobre o globo, atribuindo a
todo espaço um caráter de território estatal, ou seja, de espaço submetido a um
poder estatal e recortado por fronteiras internacionais48 (WALLERSTEIN, 1979).

47
Atenho-me aos conteúdos espaciais do conceito/noção de fronteira, não examinando seus usos
metafóricos ou simbólicos.
48
Seria mais apropriado denominá-la fronteira interestatal, na medida em que o aparato
territorializado do Estado é limitado por essa linha, enquanto há nações cuja espacialidade não
corresponde a um território unificado e autodeterminado. Nações são grupos humanos e não objetos
delimitáveis no espaço.
89

A fronteira é usualmente teorizada pela construção de pares opostos, mas


complementares. Estatal e multidimensional? Geográfica e metafórica? Ou ainda,
limites ou fronteiras? Fronteiras naturais ou artificiais? Zonas ou linhas?

Passando por termos como marches, bornes, termes e confins, Daniel


Nordman invoca o texto de Lucien Febvre (Frontière: le mot et la notion, 1928), para
afirmar que a ascensão do termo fronteira está ligada à “total militarização da nação”
e que, na origem, tratava-se da linha de front de uma tropa diante do inimigo, ou da
fachada de um prédio.

A fronteira, na verdade, continua marcada por suas origens militares. Por tal
razão, ela não deixa de pertencer ao registro do front, do enfrentamento, em
uma palavra, da guerra, seja ela ruidosa e mortífera ou somente
embrionária e dissimulada. Supondo uma concepção egocêntrica do
Estado, em virtude da qual as políticas se baseiam em relações de força e
nos atos do príncipe perpetrados segundo o direito do mais forte (t.a). (grifo
49
da autora) (NORDMAN, 1998, p. 40) .

Segundo Nordman (ibidem) limites e fronteiras são distintos na origem, mas


tendem à convergência, tornando-se quase intercambiáveis a partir da segunda
metade do século XIX. O limite apresenta, além de uma acepção geográfica ou
topográfica, uma ressonância diplomática, sendo o termo clássico da negociação
entre Estados:

Bem diferentes aparecem os limites. Geográficos, políticos (ou ainda


metafóricos, figurados), eles são, antes de mais nada, lineares, na medida
em que são objeto de uma fixação sobre o terreno. Mas, acima de tudo,
através deles, é o registro da negociação, da discussão, que prevalece: na
origem ou em perspectiva, a paz está em pauta. Ainda que, segundo uma
concepção exclusiva, belicosa e ofensiva do Estado, a força tenda a
deslocar as fronteiras às expensas dos vizinhos mais fracos, o fim acordado
das hostilidades conduz à paz dos limites, a uma negociação encetada, em
princípio, em pé de igualdade, por adversários que deixaram de sê-lo. É
outra a definição de Estado que se impõe ou, mais exatamente, dos
Estados inseridos numa rede policêntrica de relações jurídicas e
50
políticas. (t.n.; g.n.) (idem, ibid., p. 40).

49
“La frontière, en effet, demeure marquée par ses origines militaires. Pour cette raison elle ne
cessera d’appartenir au registre du front, de l’affrontement, en un mot de la guerre, que celle-ci soit
bruyante et meurtrière, ou seulement larvée et dissimulée. Elle suppose une conception égocentrique
de l’État, en vertu de laquelle les politiques sont fondées sur les rapports de forces, et les actes du
prince perpetrées selon le droit du plus fort”. (p. 40)
50
“Très differents apparaissent les limites. Géographiques, politiques (ou encore métaphoriques,
figurées), elles sont tout d’abord linéaires, dans la mesure où elles sont l’objet d’un fixation sur le
terrain. Mais surtout, à travers elles, c’est le registre de la négotiation, de la discussion, qui prévaut: à
la origine ou en perspective, la paix est en cause. Alors que selon une conception exclusive,
belliqueuse et offensive de l’État, la force tend à déplacer les frontiéres aux dépens des voisins les
plus faibles, la fin, acceptée, des hostilités conduit à la paix des limites, à la négociation engagée, en
principe sur un pied d’égalité, par les adversaires qui ont cessé de l’être. C’est une autre définition de
90

Observa-se aqui uma divergência em relação às formulações de Lia Osório


Machado que, no mesmo ano, ao distinguir limites e fronteiras, estabelece que estas
não seriam o fim do Estado e sim seu começo, “o lugar para onde ele tendia a se
expandir”, enquanto a “palavra limite, de origem latina, foi criada para designar o fim
daquilo que mantém coesa uma unidade político-territorial, ou seja, sua ligação
interna”. Assim, “a fronteira está orientada para fora (forças centrífugas), enquanto
os limites do Estado estão orientados para dentro (forças centrípetas)” (MACHADO,
L. 1998, p. 41-2).51

A fronteira corresponde a uma “concepção egocêntrica do Estado”, conforme


afirmava Daniel Nordman, ou às “forças centrífugas que criam uma orientação para
fora”, como diz Lia Osório Machado? O limite apresentado pelo historiador francês
provém de um Estado inserido numa “rede policêntrica de relações jurídicas e
políticas”, diferindo da demarcação do “término da influência da forças centrípetas
de coesão interna” apresentada por Lia Osório Machado.

As afirmativas de Nordman originam-se na história francesa e européia, onde


a repetida reorganização dos territórios dos Estados coloca constantemente a
questão de pensar-se nacionalmente ou como parte de blocos ou alianças. E não
seria o presente, momento de desativação seletiva de fronteiras intra-européias, a
hora em que essa reflexão se faz mais necessária na Europa?

A conceituação de Lia Osório Machado tem como base a geografia política


brasileira e responde, de certa forma, à clássica oposição entre as visões da
fronteira como zona ou como linha, como lugar de contatos ou de rupturas. Ao
atribuir ao limite as características que acredita não pertencerem à fronteira
(linearidade e ruptura) a autora preserva a institucionalidade estatal da fronteira (em

l’État qui s’impose, ou plus exactement des États insérés dans une réseau polycentrique de relations
juridiques et politiques”. (idem, ibid., p. 40).
51
A idéia de forças centrífugas e centrípetas já tinha sido aplicada à fronteira na abordagem
funcionalista proposta por Richard Hartshorne em 1950: “O fato de um país ter um nome e um
governo, de que um tratado internacional reconheça a sua existencia como Estado e defina seus
limites territoriais não é suficiente para produzir um Estado. Para realizar esse objetivo é necesario
estabelecer forças centrípetas que unam as regiões daquele Estado contrariando as forças
centrífugas que sempre estão presentes.” (t.n.) “The fact that a country has a name and a
government, that an international treaty recognizes its existence as a state and defines its territorial
limits – all that does not produce a state. To accomplish that, it is necessary to establish centripetal
forces that will bind together the regions of that state, in spite of centrifugal forces that are always
present’ (HARTSHORNE, 1950). Nessa visão, a fronteira é analisada em relação ao Estado a que
pertence, e não em relação aos Estados vizinhos ou na escala local.
91

sua manifestação como limite), sem negar seu caráter dinâmico e de constante
recriação.

Os conceitos utilizados pela uruguaia Gladys Bentancor-Rosés coincidem


amplamente com a visão de Machado:

Em síntese, se destaca que, enquanto o limite fecha, a fronteira abre, se


abre a inter-relações, a intercâmbios [...]. Mesmo nos casos em que não
estão disponíveis todos os elementos para torná-lo possível, as ferramentas
articuladoras existem, e seu funcionamento sistêmico está latente, são
verdadeiras dobradiças sempre potencialmente aptas a se abrirem. (t.n.)
52
(2002, p. 18)

O termo dobradiça, bisagra no original, é uma metáfora para oscilação entre


fechamento e abertura, liberdade alternada ao cerceamento de contatos,
conjunturalmente enfatizando-se as diferenças ou as semelhanças entre os
territórios cortados pela fronteira. A autora, experiente em uma fronteira de fortes
contatos, enfatiza o caráter integrador da mesma.

Nas teorias latino-americanas ecoa ainda a idéia norte-americana de frontier,


associada aos espaços vazios, ao futuro, às terras virgens e férteis (THOREAU,
[1862] 1965, p. 24).

Seja na fronteira de recursos da Amazônia “brasileira”, na marcha para o


oeste das frentes agrícolas impulsionadas pelos paulistas, na fronteira dos
argentinos contra a “barbárie” patagônica ou no oeste norte-americano, o frontier

é o limite externo da onda – o ponto de encontro entre a selvageria e a


civilização (…). A fronteira americana distingue-se claramente da fronteira
européia – uma linha fortificada que corre através de populações densas. O
fato mais importante é que ela se encontra no extremo mais distante da
53
terra livre (TURNER, [1893] 1965, p. 31) .

Do frontier americano – um movimento significando avanço sobre o


desconhecido, espaço de liberdade e criação, que tem em seu reverso a violência
monológica – e da frontière francesa ou européia – uma linha com sentido militar,

52
“Se destaca que en síntesis, mientras el límite cierra, la frontera abre, se abre a interrelaciones, a
intercambios [...]. Aún en los casos donde no se han dado todos los elementos para hacerlo posible,
las herramientas articuladoras existen y su funcionamiento sistémico está latente, son verdaderas
bisagras siempre potencialmente aptas a abrirse”. (BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p. 18)
53
“Is the outer edge of the wave – the meeting point between savagery and civilization [...]. The
American frontier is sharply distinguished from the European frontier – a fortified boundary line running
through dense populations. The most significant thing about the American frontier is that it lies at the
hither edge of free land”. (TURNER, [1893] 1965, p. 31).
92

onde se está face a face com o inimigo, num diálogo de forças –, pode-se guardar o
sentido espacial e o apelo à liberdade e à iniciativa.

2.4. UMA TIPOLOGIA DAS INTERAÇÕES FRONTEIRIÇAS

O geógrafo francês Armand Cuisinier-Raynal parte de sua experiência na


fronteira entre Peru e Equador e das formulações dos compatriotas Michel Foucher,
sobre a fronteira, e Roger Brunet, a respeito da organização e modelização do
espaço, para propor uma tipologia com cinco cenários fronteiriços (resumida no
QUADRO 2) 54.

Partindo da oposição passivo/ativo, que se aproxima da diferenciação entre


fronteiras habitadas ou desertas, os cenários fronteiriços consideram a população, o
Estado e a infra-estrutura, variando o grau de defesa ou articulação.

Observa-se que, apesar da tipologia levar em conta a população e as redes


técnicas, não consegue dar conta da variedade de manifestações fronteiriças.
Santana do Livramento-Rivera pode(m) ser classificada(s) no cenário fronteiriço
capilar, mas o extrapola(m), já que polariza(m) uma região mais ampla que a área de
fronteira. Além do que, há um caráter “osmótico” nas trocas, não previsto pelo autor.
Pode-se ainda contestar um suposto caráter espontâneo atribuído às interações
entre a população, já que as práticas cotidianas são orientadas por fins, tanto quanto
aquelas dos agentes que atuam nas escalas estatal ou internacional55.

As principais contribuições dessa proposta são reconhecer a multi-


escalaridade da fronteira e a importância da rede na compreensão do espaço
aparentemente contido pelo território nacional. A classificação resumida no quadro 2
cresce em importância por ter sido modificada por Lia Osório Machado e equipe na
formulação da “Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da

54
Cuisinier-Raynal toma como base o trabalho de Foucher (Tipología de las fronteras
contemporáneas. In BOVIN, Ph. (coord.), “Las fronteras del istmo. Fronteras y sociedades en el sur
de México y América Central”, CIESAS/CEMCA, 1997. p. 19-24), no qual a geometria da fronteira é
descrita partindo das idéias de envelope, díade e segmentos (respectivamente o perímetro fronteiriço
total de um Estado, o limite entre dois Estados contíguos e suas subdivisões regionais). A
interpretação de Roger Brunet para a dinâmica espacial inclui conceitos emprestados da biologia,
como sinapses, trocas osmóticas etc. incorporados por Cuisinier-Raynal (BRUNET; DOLLFUSS,
1990).
55
Crítica apontada pelo Prof. Dr. Carlos Capela, Florianópolis, 26/11/2004.
93

Faixa de Fronteira” (BRASIL, 2005)56. As cidades-gêmeas passam a ser também


consideradas, avaliadas como “lugares onde as simetrias entre sistemas territoriais
nacionais são mais visíveis e que podem se tornar um dos alicerces da cooperação
com os outros países da América do Sul e consolidação da cidadania” (p.144). O
mapa “Tipologia das Interações Fronteiriças” (Fig. 17) resume a proposta para o
território brasileiro.

QUADRO 2 – Cenários fronteiriços segundo A. Cuisinier-Raynal (2001)


MARGEM MARCA FRONT SINAPSE* CAPILAR
Ausência de Dificuldade nos As populações Fortes trocas Trocas
contato contatos locais não se entre as difusas entre
POPULAÇÃO

espontâneo esporádicos e comunicam populações populações


entre as espontâneos através da fronteiriças, fronteiriças
populações (familiares ou de fronteira. Reforço formação de em redes de
fronteiriças complementaridade aos sentimentos sociedades comunicação
(particulares, comercial) na escala nacionais comerciantes capilares
familiares ou local através do
comerciais) contrabando
Infraestrutura Estradas marginais Desenvolvimento Nós e eixos de Feiras
e projetos ou picadas + da fronteira com infraestrutura periódicas,
ESTRUTURA

fronteiriços parques naturais, racionalidade de apoio e regimes


INFRA-

inexistentes zonas protegidas; tática. Trincheiras, regulação de 1ª especiais para


territórios federais pistas de pouso, ordem a fronteira
bases militares. (barreiras
alfandegárias,
sanitárias etc.)
Presença Espaço-tampão Zona militarizada, Zona de Zona de
pontual do periférico com status enfrentamentos integração integração
Estado; especial e tutela potenciais ou promovida espontânea,
ESTADO

ângulos direta do Estado, do agressão real. pelos Estados Estado não


mortos centro intervém
relacionais, (tolerante ou
zona-tampão ignorante)
“espontânea”
Dinâmica Dicotomia: Front militar: as Caráter Primazia de
local e, em fechamento pelo relações bilaterais principalmente dinâmicas
ESPACIAL
DINÂMICA

menor escala, Estado de zonas ou internacionais internacional locais em


nacional estratégicas / prevalecem sobre sobrepõe-se às detrimento da
(centro passagens as locais trocas locais; lógica
nacional - espontâneas na atraso sináptico nacional ou
periferia) escala local binacional
*Sinapse é “todo lugar de comunicação geográfica, de troca, transbordo ou
transferência”. (BRUNET et al, 1998, p. 471).
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman com base em CUISINIER-RAYNAL (2001).

56
A proposta volta-se para o estabelecimento das “bases de uma política integrada de
desenvolvimento regional para a faixa de fronteira”, tendo sido elaborada pelo Grupo Retis, da UFRJ,
sob coordenação de Lia Osório Machado, em resposta à demanda do Ministério da Integração
Nacional. A adoção da proposta pelo Governo Federal tem levado à implementação de infra-estrutura
e de arranjos produtivos locais, com diferentes resultados.
94

FIGURA 17: Brasil: mapa com tipologia das interações fronteiriças - 2005
Fonte: BRASIL, 2005, p.148.

Nesse documento, a faixa de fronteira do Rio Grande do Sul é dividida em um


segmento oriental, que inclui Santana do Livramento-Rivera, e que é identificado
como capilar, e um segmento ocidental, classificado como sináptico. O que explica
95

as diferentes características, fracionando a faixa de fronteira em dois setores? A


resposta mais óbvia ancora-se em características fisiográficas: a existência da
fronteira seca no sudeste justificaria maior contato, quando comparado com o
obstáculo gerado pelos rios presentes no segmento sudoeste da fronteira.
Recupera-se a diferenciação entre fronteira natural e fronteira artificial? Mas o que
querem dizer essas classificações? Uma consulta aos textos sobre fronteira escritos
no Rio Grande do Sul pode dar pistas.

2.5. UM CONCEITO GAÚCHO PARA A FRONTEIRA

Para avaliar a produção de teorias e conceitos gaúchos sobre a fronteira e o


contrabando, examinarei a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Sul57. A presença de diversos artigos tratando das questões relativas a fronteira e
limites na RIHGRGS pode ser relacionada à própria localização do estado do Rio
Grande do Sul, recorte espacial privilegiado nos escritos desse instituto. Assim, o
fato de o estado encontrar-se numa área em que ocorreram numerosos de conflitos
vinculados à delimitação territorial do Brasil estimulou o tratamento de tais questões
por parte dos pesquisadores58.

A missão central do Instituto nunca foi a formulação de teorias. Por conta


disso, dificilmente encontram-se nos artigos da RIHGRGS conceitos claramente
desenhados de território e fronteira. Muito mais comum é a descrição pragmática de
áreas, a fim de subsidiar a delimitação dos estados da federação, o que era
coerente com o âmbito estadual da entidade. Também era pertinente para o projeto
gaúcho de apresentar-se ao Brasil como parte integrante da nação, do lado de
dentro do limite.

57
Um detalhamento da análise que segue encontra-se em DORFMAN; DIETZ, 2006.
58
Foram examinados, em ordem cronológica, os artigos que abordam explicitamente o tema das
fronteiras e limites publicados na RIHGRS, quais sejam: PAUWELS, P. G. J. “Contribuição para o
estudo dos conceitos de ‘limite’ e ‘fronteira’”. RIHGRGS, no. 17/18, 1925, p. 61-90; ____ “O conceito
de região natural e uma tentativa de estabelecer as regiões naturais do Brasil”. RIHGRGS, no. 21/22,
1926, p.9-58; ____. “Trecho duvidoso dos limites entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina” RIHGRGS, no. 33/34, 1929; DOCCA, E. F. de S. “O Brasil no Prata 1815-1828”. RIHGRGS,
no. 41, 1931; GOYCOCHEA, L. F. C. “A formação territorial do Brasil”. RIHGRGS, no.87/88, 1942;
FRANCO, S. da C. “Panorama sócio-cultural da fronteira Brasil-Uruguai”. RIHGRGS, no. 129, 1993, p.
139-150; FLORES, M. “As fronteiras na região platina”. RIHGRGS, no. 133, 1998, p.115-122;
PÉBAYLE, R. “Fronteiras e espaços fronteiriços do Brasil Meridional” RIHGRGS, no. 138, 2003, p.
143-152.
96

Podem-se identificar duas fases na publicação da RIHGRGS. A primeira


etapa inicia-se em 1920 e segue até 1951. A publicação da Revista é, então,
interrompida por 24 anos, sendo retomada em 1975 e seguindo até os dias atuais. O
longo intervalo é atribuído aos esforços que o Instituto concentrava na construção de
sua sede. Entre os artigos da primeira fase da RIHGRGS (1920-1951) que abordam
a questão de fronteira e limites, destaca-se o texto “Contribuição para o estudo dos
conceitos de ‘limite’ e ‘fronteira’”, do P. Geraldo José Pauwels (1925)59, por ser o
único que se dedica fundamentalmente à discussão destes dois conceitos, sendo
possivelmente um dos primeiros artigos publicados no Rio Grande do Sul a refletir
teoricamente sobre conteúdo tão carregado de significados políticos e históricos
para a região.

Segundo ele, os dois conceitos “não designam a mesma coisa”: enquanto o


“limite” seria um significante abstrato, prescritivo e ideal, constituindo uma “linha
imaginária”, a “fronteira” seria o significado, remeter-se-ia ao existente, à “coisa real
e palpável, a saber, uma zona ou faixa de terras mais ou menos larga” que defende
o território estatal (idem, ibidem, p.61). Lia Osório Machado conta que:

Na década de 20, e mesmo antes, os geógrafos alemães (é daí a


genealogia das idéias do Pauwels) já distinguiam [fronteira e limite] um do
outro. A Geografia Politica de Ratzel e depois a revista de Haushoffer
editada por aqueles anos provavelmente foram importantes para essa
distinção. Agora, os romanos já faziam a distinção, claro que no contexto
daquela época. (comunicação pessoal, 19/07/2006).

Pauwels afirma que o limite é a negação dos corpos ou o fim do movimento


do centro para a periferia. Originando-se no “corpo” e na “observação primitiva”, o
limite ingressa no “reino ideal da propriedade e do direito”, materializado em marcos
que separam terrenos e, posteriormente, territórios estatais soberanos – ainda que
freqüentemente mal demarcados, por falta de técnicas e conhecimentos.

59
Pauwels, Geraldo José (Pe). Nasceu em Goch, Alemanha em 03/02/1983. Morreu no Rio de
Janeiro em 25/10/1960. Ingressou na Companhia de Jesus em 1904. Veio para o Brasil em 1910. Foi
sacerdote entre 1917 e 1925. Foi professor nos colégios Nossa Senhora da Conceição (São
Leopoldo), Ginásio Catarinense (Florianópolis) e Ginásio Anchieta (Porto Alegre). Padre secular na
Arquidiocese do Rio de Janeiro em 1925. Inspetor de Ginásio, historiador e geógrafo. Publicou um
grande número de obras, entre as quais se destacam o Atlas Geográfico Melhoramentos, de amplo
uso escolar; Apontamentos de Geografia Física e Política e vários artigos na Revista do IHGRGS
(MARTINS, A. 1978, p. 423-424).
97

Jean Brunhes e Carlos Delgado de Carvalho são citados por Pauwels para
distinguir entre limites “mortos” (estáveis) e “vivos” (propensos a contínua mudança)
dependendo de estarem ou não sujeitos à tendência de expansão. Como exemplo
de limite morto, Pauwels cita os limites entre Brasil e Uruguai. Esse uso é diferente
do mais corrente hoje, quando os adjetivos morto e vivo ligam-se à ausência ou
presença de habitantes em ambos os lados do limite. Os limites territoriais podem
ainda serem “históricos” (resultado de um processo histórico onde o princípio do uti
possidetis é aplicável) ou “arbitrários” (gerados a partir de traçados e tratados,
“reflexivos, apriorísticos, convencionais”) (id., ibid., p. 67).

A discussão do autor sobre limites naturais é extremamente esclarecedora.


Em primeiro lugar, note-se que esses não são opostos aos limites artificiais,
originados na política ou na história, como no uso contemporâneo. Os limites
naturais constituem uma opção às linhas retas descoladas do compromisso com o
espaço físico e, principalmente, com a ocupação humana.

Diz ele que os limites naturais são de dois tipos: limites territoriais naturais e
topográficos. Estes são preferíveis “(1º) porque [...] os estabelecimentos humanos se
moldam a elles; (2º) por tornarem claro e fácil o reconhecimento do limite e
independente da erecção de padrões” (idem, ibidem, p.67).

Os limites territoriais naturais diferem dos limites de unidades naturais, os


quais surgem de “um certo paiz ter sido o único occupador naquellas partes [...] e
por formar com elle um todo, quer topographico, quer geológico, quer ainda
economico” (id., ibid., p. 68). Não se pode, no entanto, ir longe demais “pretendendo
derivar da existencia de tais unidades naturaes direitos positivos á acquisição de
todo o territorio pertencente a ela, e isso até no caso de haver mais de um paiz
occupador”, e conclui, afastando-se da idéia subjacente ao Lebensraum, que

Um povo não pode pretender annexar outro sómente para ter limites
naturaes [...] Em summa: o phraseado dos limites naturaes nesta accepção
politica não passa duma illusão, para encobrir ladroeiras de ponto maior, e é
por cima summamente perigoso aos interesses da paz e da amizade das
nações sulamericanas. (id., ibid., p. 71).

Quanto à fronteira, diz ele simplesmente que esta é a faixa de terra que
acompanha o limite para defendê-lo, possibilitando também a cobrança de impostos.
98

A fronteira natural surgiria apenas quando um acidente natural propício à fortificação


coincidisse com o limite de um Estado. Seria uma feição necessária à integridade
territorial. Por isso o autor recomenda, em nome da integridade pátria:

Prever e prover é boa politica. A perfeita proximidade entre cidades


fronteiras traz vantagens commerciaes, mas tambem pode acarretar
consideraveis difficuldades administrativas. Por isso não é de desejar a
multiplicação daquella nimia intimidade entre povoações fronteiriças, como
a temos entre Sant’Anna e Rivera, Jaguarão e Artigas, pois não é nenhum
bem, nem siquer para a amizade dos dois povos. (id., ibid., 1925, p. 81).

Vê-se que se trata de evitar que no futuro se venha fazer necessária, segundo
os critérios “mais nobres e principais” supracitados, isto é, “do elemento humano”,
uma mudança do limite. Enfim, todo o argumento desse artigo gira em torno das
vantagens de dar concretude ao limite territorial.

A análise do texto revela que, na teorização sobre fronteira, pode acontecer


dos conceitos perderem seu sentido original, mesmo quando o termo é adjetivado. É
o caso do limite natural, idéia simplificada pela crítica, a ponto de ser descartada.
Mais interessante é observar a mudança no significado das fronteiras ditas vivas ou
mortas: originalmente, reificava-se a fronteira, atribuindo-lhe movimento, vida.
Contemporaneamente, a ênfase recai sobre os habitantes que animam a fronteira,
acionando-a. Sem dúvida, esse é mais um argumento para a leitura dos clássicos.

Sérgio da Costa Franco60 publica na RIHGRGS, em 1993, o artigo “Panorama


sócio-cultural da fronteira Brasil-Uruguai”. Neste texto, “O Espaço” constitui a seção
introdutória, elencando os municípios e lugares que se alinham ao longo do limite, e
afirmando que:

Salvo no espaço da Lagoa Mirim, que é obstáculo expressivo a separar


populações da margem leste e da margem oeste, toda a linha fronteiriça
tende a estabelecer laços muito íntimos entre os cidadãos de uma e de
outra banda. [...] A feição geográfica é virtualmente a mesma, seja do lado
brasileiro, seja do lado uruguaio (FRANCO, 1993, p. 139)

60
FRANCO, Sérgio da Costa. Nascido em Jaguarão em 12/06/1928. Bacharel em direto em 1954.
Licenciado em História e Geografia. Juiz em várias comarcas, ensaísta e cronista. Escreveu Porto
Alegre e seu comércio, em 1983, entre outras obras. Contribui para o Correio do Povo e Zero Hora.
(MARTINS, 1978, p. 230). Ganhou o Prêmio Açorianos de Melhor Livro com Os Viajantes Olham
Porto Alegre (1754 - 1890 e 1890), escrito com Valter Antônio Noal F.
99

Isso resulta numa “área de interação intensa [...] ‘uma terra só’” (idem, Ibidem,
p. 140). Tais afirmações mostram que permanece a expectativa de uma definição da
fronteira por elementos do quadro físico. É à inexistência dessa fronteira – ou limite,
na concepção de Pauwels – natural que se atribui a interação entre as populações e
mesmo entre territórios precariamente isolados. Essa forma de ver coincide com a
subdivisão da faixa de fronteira proposta no PDFF para o Rio Grande do Sul. Cabe
notar ainda o uso do vocábulo “linha”, típico da fronteira Uruguai-Brasil.

Posteriormente, a temática é tratada por Raymond Pébayle61, membro


correspondente da França, através do artigo “Fronteiras e espaços fronteiriços do
Brasil Meridional” baseado em observações realizadas na década de 1970 e
publicadas na Revista do IHGRGS em 2003. As formulações de Pébayle foram
bastante influentes na Geografia acadêmica gaúcha, possivelmente por ele ter sido
um dos primeiros geógrafos estrangeiros a visitar a região fronteiriça no quadro da
cooperação acadêmica. Seu destaque também se vincula à proposição de uma
teoria de fronteira que adaptava o marco teórico vigente naquele momento – qual
seja, a teoria dos pólos de crescimento de François Perroux – ao caso do Brasil
Meridional, como indica o uso, já na primeira frase, da expressão “regiões banais”62
e, mais adiante “pólos”.

Na interpretação do autor, os métodos geográficos tradicionais não


conseguem explicar as características das fronteiras do sul do Brasil. Conforme
Pébayle (2003, p. 149) o Brasil meridional seria um “espaço fronteiriço inacabado”,
uma vez que não se enquadra nos modelos clássicos da Geografia, sendo rara a
região bem delimitada por uma lógica interna ou uma paisagem distinta. O autor
afirma que o modelo das localidades centrais de Christaller é impróprio para explicar
os espaços inadequados e não-conformes desta área que, na verdade, seriam
recorrentes no espaço nacional.

61
Raymond Pébayle nasceu na França em 27 de dezembro de 1932. Professor e pesquisador,
estagiou no Brasil em 1961. Entre as obras do autor estão: La vie rurale dans Campanha Rio-
Grandense (Toulouse, França), Geographie rurale des nouvelles colonies de Haut Uruguay, RS –
Brésil (Bulletin de L’Association de Geographes Françaises, Paris) (MARTINS, A.,1978, p. 365).
62
A expressão foi reinterpretada por Milton Santos (2002, p. 322-3) como o espaço comum, capaz de
agregar todos os vetores e interesses, enquanto o uso dado por Pébayle parece apontar para um
espaço amorfo, indiferenciado ou não-polarizado (sem fluxos de pessoas e economia)
100

A principal constatação de Pébayle (2003) refere-se ao fato de que há uma


organização infinitamente mais flexível caracterizando a fronteira, que seria
assinalada por maior mutabilidade, mantendo, entretanto, alguma lógica regional.

O autor destaca os fluxos que compõem este cenário, caracterizados tanto por
fluxos oficiais (os quais são contabilizados por fontes estatísticas), como também por
fluxos fraudulentos (provenientes do contrabando).

O espaço fronteiriço do Brasil meridional pode ser dividido, segundo este


autor, em “três formas mais ou menos estáveis”63:

(a) O noroeste rio-grandense caracterizado pela descontinuidade espacial e


contrabando constante, que se compõe como uma fronteira amorfa, isto é, onde o
espaço imediatamente contíguo à fronteira política recebe pouca influência do fato
de localizar-se junto à Argentina.

(b) O centro-oeste do Paraná, no qual estava ocorrendo um processo de aceleração


do fluxo pioneiro, chegando ao Paraguai Oriental, sendo, no entanto, “muito
dependente de decisões exógenas” (PÉBAYLE, 2003, p.147). É importante destacar
que esta é a primeira vez que emprega-se o termo fronteira no sentido de frente
pioneira nos artigos da RIHGRGS.

(c) A Fronteira gaúcha, considerada a verdadeira fronteira, onde as trocas e os


contatos internacionais conformam uma anti-região ou região anômala. Trata-se de
uma região por apresentar originalidade incontestável, mas “nenhum critério clássico
de divisão regional permite individualizar essa região dita Fronteira, pois ela não
possui nenhuma uniformidade nas paisagens [...], [estende-se] sobre múltiplos e
diversos embasamentos geológicos [...] não possui qualquer unidade orgânica ou
pólo” (idem, ibidem, p. 147).

Conforme Pébayle (ibid., p. 148) a verdadeira fronteira cria “um espaço


isolado fronteiriço quase permanente”. Nesse sentido, a verdadeira fronteira marca,
limita e separa diferentes estruturas espaciais, garantindo os fluxos entre dois
domínios distintos segundo critérios econômicos, políticos e naturais.

63
Destaca-se ainda que Pébayle não menciona o segmento de fronteira do oeste catarinense.
101

Dois sentidos de fronteira se confundem nesse argumento: (1) um ligado à


linha que demarca a cessação de uma característica definindo, portanto, o fim de
uma região, seu limite; (2) outro que, implicando uma região coerente, fala dos
possíveis contatos e influências de um território sobre outro, constituindo o espaço
fronteiriço. Destaque-se que a verdadeira fronteira (combinação dos tipos 1 e 2)
pode deslocar-se dentro de um espaço de pulsação ou avanço, sempre regido por
fluxos econômicos. Devido à complexidade – em termos quantitativos e qualitativos
– da terminologia francesa aplicada à fronteira, o artigo em pauta mereceria ser
examinado na versão original.

A abordagem de Pébayle é diferente daquela dos artigos da primeira fase da


Revista. Enquanto, por um longo período, o aspecto de disputa política de territórios
havia concentrado as atenções, o autor inova ao trabalhar com conteúdos de ordem
econômica.

O principal limitante da análise do autor é o fato de que ele pressupõe que a


hierarquia regional tenha que estar enquadrada e organizada em um único Estado-
Nação, razão pela qual as regiões fronteiriças brasileiras aparecem como anti-
regiões ou regiões anômalas. Entretanto, Pébayle conclui que o geógrafo “deve
adaptar seus métodos a esta lógica”, reorientando os raciocínios clássicos.

Inserimos a dissertação do geógrafo rio-grandense Gervásio R. Neves,


orientando e seguidor de Raymond Pébayle, membro do IHGRGS, na análise das
“teorias gaúchas”. Ao examinar a fronteira, Neves propõe o conceito de região-
fronteira ou espaço-fronteira:

área única que possui individualidade geográfica distinta, determinada não


pelas condições intrínsecas ao espaço, mas por sua localização em relação
a outras áreas. É concreta na medida em que é definida pela localização
dos diferentes modos de produção que foram capazes de estruturar todo
um comportamento regional específico, desde o uso e a posse da terra, até
as condições jurídicas e sociais. A localização conduziu a um proceder
reflexo ou homólogo, perturbado pelo fator nacionalidade. É esse fator que,
num processo dialético, individualiza o espaço-fronteira, não como uma
área homogênea sob o ponto de vista das condições naturais, mas como
palco de um processo de transformações tecnológicas agindo sobre um
mesmo recurso disponível: o gado bovino.
[...] Assim, além de um processo histórico global, há um fluxo permanente
de pessoas e esse fluxo pode ser determinado pelas vantagens oferecidas
e/ou pela diferença de potencial entre densidade demográfica e custo da
terra num determinado momento conjuntural ou estrutural. (NEVES, 1976,
p. 136)
102

Note-se a iniciativa de uma análise dialética da região. Note-se também a


ousadia do título da obra: “A fronteira gaúcha”, em plena vigência do patriotismo
apregoado pela ditadura militar. Depois de elaborar e aplicar vários índices
estatísticos, numa metodologia apropriada ao período de redação de sua
dissertação, Neves (ibidem, p. 64) estabelece que a região-fronteira (dada cultural,
econômica e demograficamente) estende-se por 100 km perpendicularmente ao
limite internacional. Afirma ainda existir uma original “condição periférica de contato”,
onde a distância real e metafórica aos centros políticos e econômicos nacionais
enseja o contato transfronteiriço (p.159). Ao mesmo tempo, Neves não verifica a
existência de uma rede urbana articulando as várias cidades fronteiriças entre si, e a
hierarquia se completa com a capital regional (Porto Alegre, no lado brasileiro) ou
nacional (Montevidéu, no caso uruguaio) (p.152). Assim, ele conclui tratar-se de
várias regiões polarizadas, e não de uma única região. 64

Há, nos artigos da RIHGRGS analisados, uma utilização do conceito de


fronteira com conteúdo intimamente ligado aos processos de formação territorial. A
idéia de frente de expansão, descolada do termo fronteira, é mais comumente
encontrada nos textos que tratam da imigração européia para o estado do Rio
Grande do Sul. Conclui-se que os conceitos de fronteira internacional e frente de
expansão foram aplicados para contextos e espaços diferentes dentro do Rio
Grande do Sul, reservando-se o primeiro para o Pampa e o segundo para tratar da
área colonial. Acredita-se que tal fato deve-se a associação, no imaginário gaúcho,
da noção de fronteira ao território nacional.

Assim, ainda que não se possa falar de um “conceito gaúcho” de fronteira, há


uma adaptação da discussão teórica (abstrata e supostamente não espacializada)
ao experimentado localmente. Chama a atenção que no material analisado
encontre-se o reconhecimento de uma região-fronteira, mas pouco se avança na
discussão das práticas contrabandistas. Em função disso, o recurso a fontes não-
científicas tornou-se imperativo, demandando a construção de metodologia
apropriada.

64
O título desta tese remete à proposição de G. Neves. Hoje, não há especial ousadia no emprego da
expressão “fronteira gaúcha”. Também o conceito de “condição fronteiriça” ecoa a “condição
periférica de contato”, mas volta-se aos habitantes/agentes mais que aos espaços.
103

2.6. LITERATURA E CIÊNCIA

O uso de obras literárias pelas ciências humanas – mais especificamente pela


geografia contemporânea – coloca questões de método. Ficção e ciência convertem-
se em textos e podem compartilhar temas e projetos; entretanto, os textos literários
e os científicos circulam por redes de intenção diferentes, os primeiros buscando sua
legitimação segundo critérios de beleza e verossimilhança, os últimos curvando-se
sob o peso da coerência e da verdade.65

A literatura de ficção tem na linguagem sua matéria e no texto escrito seu


objeto. Como quase tudo, em se tratando da experiência humana, seus enredos se
encenam no espaço66. A geografia presente na narrativa literária é necessariamente
ficcional, mas dificilmente será completamente descolada das experiências espaciais
reais. Língua, identidade e tradições geralmente ligam-se a determinados recortes
espaciais. É esse o sentido da expressão “cultura espacialmente situada”: o lugar –
onde nascemos e somos ensignados, onde habita a comunidade para a qual
produzimos nossas obras – influi em nossa visão de mundo, constituindo, a um só
tempo, locus e tropo67. O espaço geográfico se inscreve nas obras literárias como
cenário e como ancoragem da cultura: é a paisagem e abriga um conjunto de
práticas culturais estruturadoras do nosso horizonte de possibilidades, entre as quais
se destacam a língua e os códigos para compreensão do espaço. Aos lugares e
paisagens são atribuídas cargas sêmicas, que se mesclam com suas características
mais puramente físicas, constituindo uma geografia simbólica.68

Na escala da nação, a discussão da importância da literatura para a


construção territorial passa, dentre outros, pelas obras contemporâneas de Álvaro
Fernandez Bravo (1999), Franco Moretti (2003; 2005) e Pascale Casanova (2002).

65
As páginas que seguem aprofundam o discutido em DORFMAN, 2008a.
66
Gerard Génette vai além e afirma que “nossa linguagem é toda tecida de espaço” (1969, p. 105).
67
Para os retóricos, gramáticos e teóricos da linguagem, os tropos equivalem à metáforas. São
desvios do uso literal, convencional ou próprio da linguagem, guinadas na locução que não são
sancionadas pelo costume ou pela lógica dominante. Os tropos geram figuras de linguagem ou de
pensamento mediante a variação do que “normalmente” se espera deles e por via das associações
que estabelecem entre conceitos (WHITE, 2001, p.14).
68
Na cabala de Paul Cézanne: “A paisagem se pensa em mim” (“La paysage se pense en moi”).
104

Benedict Anderson ([1983] 1998) se destaca, com uma obra de tal repercussão a
ponto de tornar a expressão “comunidade imaginada” num aposto de nação69.

Esse é um processo histórico: no presente, a maioria das obras literárias


surge arraigada num sistema lingüístico cujo rebatimento espacial foi estabilizado
pelo nacionalismo70. Tal afirmativa é especialmente válida para a teoria romântica,
onde se supõe que “cada língua cristaliza a história interna, a visão de mundo
específica do Volk ou nação” e do espaço em que essa se territorializa (STEINER,
[1968] 2002, p.15). Na concepção romântica, se supunha uma identidade nacional
coesa informando uma literatura delimitada pelas fronteiras nacionais. Autores com
dupla pertinência lingüística e/ou geográfica eram considerados anômalos – casos
de dualismo moderno – e, em situações extremas, como extraterritoriais (idem,
ibidem, p. 23 e ss.).

Contemporaneamente, emergem reivindicações de identidades híbridas e a


estabilidade lingüística local e nacional é eclipsada por outras territorializações; a
interpretação de produtos literários fornece pistas para o entendimento dos híbridos
na recepção pós-colonial, especialmente pós-Guerra Fria, que lê certas obras
literárias – em seu conteúdo ou circulação – como indícios de territorialidades
concretas pouco reconhecidas.

Acreditava-se, romanticamente, que o escritor exercia sua autoria, tendo


autonomia na eleição de temas e das formas de tratá-los, obedecendo apenas
parcialmente aos ditames do cânone ou da origem. O trabalho do escritor não exige
pesquisas ou trabalhos de campo sobre identidades ou territorializações, e mesmo
que conte com eles, não é por eles condicionado. Como já se disse acima, o
compromisso do escritor é, antes de tudo, com a palavra. É nesse sentido que é
usualmente valorizada a originalidade, como a marca pessoal do autor e não como
algum vínculo com origens.

69
Benedict Anderson [1983] (1998), examinando a coincidência entre a literatura romântica e a
emergência dos Estados-Nação, afirma que as nações são comunidades imaginadas, que
floresceram na convergência entre o capitalismo, a tecnologia de impressão e a diversidade da
expressão verbal humana e que o romance, como gênero literário, auxiliou na construção de
identidades nacionais.
70
Os processos de construção nacional passam pelo estabelecimento de uma lista de atributos ou
marcas da nação. Orvar Löfgren (1989) identifica como itens a serem constituídos e compartilhados
(e, no mesmo processo, a serem naturalizados): a língua; um passado e um destino – ou seja, uma
narração; um folclore; caráter e mentalidade nacionais; valores e gostos; símbolos, inclusive o hino e
a bandeira; paisagens típicas; heróis, vilões e mitos e, finalmente, textos e imagens sagrados.
105

A discussão sobre o grau de imitação da natureza adequado à criação


literária tem oscilado desde a investigação da expressão interna de sentimentos
poéticos, libertos da matéria real – “nem sentido nem significado, somente som”,
radicaliza Mallarmé –, até um apelo ao realismo, que busca registrar a natureza e a
sociedade com objetividade exaustiva.

No pólo realista situam-se certos movimentos literários, como o nativismo


argentino ou o regionalismo brasileiro e, especificamente, a gauchesca e a literatura
da fronteira no Rio Grande do Sul. Esses movimentos têm como compromisso
documentar paisagens, tipos, costumes, vocabulário, superstições, delineando os
modos de vida de uma região, especialmente aqueles de espaços rurais vistos como
ameaçados de descaracterização (CHIAPPINI, 1994).

Não por coincidência, muitos escritores regionalistas também têm se


dedicado à coleção e fixação do folclore, no trabalho das tradições situadas. A
literatura regionalista pode ser vista como uma construção dos intelectuais
periféricos em busca da legitimidade dada pela autenticidade popular, de literatos
que lapidam a cultura local para expô-la às autoridades culturais nas capitais
urbanas nacionais, reiterando a inserção da parte regional no todo nacional e a
submissão dessa fração do território ao poder político central, ou como uma
“tendência programática de artistas que, se sentindo marginalizados, têm-na como
um programa frente ao centro, numa postura relacional entre a rejeição e a saudade”
(Lígia Chiapinni, comunicação oral, Porto Alegre, 07/10/2005). Entretanto, nem todos
os autores regionalistas restringem-se a sua própria cultura: há aqueles que, a partir
do centro, se propõem a cartografar outras regiões, inventariando seus tipos e por
vezes caricaturando-os: a obra de José de Alencar vem à mente71.

Não raro o trânsito entre a oralidade e seu registro literário inverte seu
sentido, fazendo com que personagens, histórias e fórmulas literárias entrem em
circulação na cultura local, num movimento dialógico, em que a cultura popular e a
erudita influenciam-se e reinterpretam-se, em forma, conteúdo e função (BAKHTIN,
1996, p.49). Assim, se as peculiaridades locais transformam-se em matéria-prima

71
Os romances regionalistas de José de Alencar (O gaúcho, de 1870, e O sertanejo, de 1875)
alinham-se aos ditos romances nativistas (O guarani, 1857; Iracema, 1865; Ubirajara, 1874), num
esforço de mapear os tipos regionais que, conjuntamente, representam a população brasileira em sua
pátria (BOSI, 1987).
106

para a literatura, esta é reconhecida como uma fonte de diferenciação cultural e


geográfica. Modos de vida e tipos regionais cristalizam-se, são chamados a forjar
limites para povos e lugares, subsidiam e reforçam identidades e regionalizações,
são representados em mapas de tipos regionais. A situação da região em relação ao
centro opera na construção de políticas identitárias e, em alguns casos, as
representações culturais são instrumentalizadas pelas reivindicações de movimentos
políticos secessionistas.

Note-se que o esforço documental dos literatos não gera somente “obras
menores” e datadas, saturadas de passadismo eufórico ou melancólico. Ao
contrário, certos textos transcendem os limites da ideologia do momento, mantendo
ativos, em seu interior, “a tensão constitutiva da história, e dos sujeitos que a vivem,
divididos” (CHIAPPINI, 1988, p. 313). Além disso, as tradições não são apenas
inventadas, como sugere uma leitura simplista do construtivismo de Eric Hobsbawn
e Terence Ranger (2002), mas também recriadas e questionadas, em narrativas que
vão do épico ao cômico, passando pelo irônico.

2.7. TRADUÇÕES CULTURAIS

A literatura pode ser uma fonte para a investigação de culturas espacialmente


situadas? Tal interrogação dirige-se à veracidade da representação presente na
obra de ficção. A preocupação com a veracidade da obra literária tem sido
desqualificada e descartada com o argumento algo irônico de que também a ciência
oferece representações parciais (WHITE, 2001), cuja legitimidade encontra-se, em
geral, na posição institucional dos autores desse tipo particular de texto
(FOUCAULT, 2001), no “ter estado lá” dos antropólogos (GEERTZ, 2002a; 2002b)
ou no “ter feito” dos geógrafos (SMITH, 1996).

Tzvetan Todorov (1989), ao discutir a diferença entre a verdade do


romancista e aquela do cientista, estabelece uma distinção entre verdade-
adequação (estabelecimento de fatos, tudo ou nada) e verdade-desvelamento
(interpretativa, teórica, discursiva), sem definir uma precedência entre os elementos
107

do par. O autor lança mão também da idéia de verossimilhança – o efeito do real,


sugerido por Roland Barthes (1988) –, mas o ponto central de sua argumentação é
que a crítica relativizadora aplique-se à verdade-desvelamento, sem descartar a
existência de verdades (mais simples talvez) que se encontram além do relativismo.
Essa distinção é bastante útil, ainda mais se considerarmos que a verdade, a justiça,
a liberdade, continuam como horizonte do trabalho científico. As representações
produzidas pelas ciências humanas (de modo mais amplo, as relações entre os
textos e a realidade) podem ser concebidas como um processo em constante
reacomodação (AGAMBEM, 2006, p.39).

Afinal, o que o lugar deixa como concrescência, nesse discurso em que as


práticas culturais locais surgem à luz da subjetividade do autor (sua liberdade de
fabular) e de critérios culturais não-locais (e, geralmente, revestidos de maior
autoridade, como a gramática, as tradições literárias, a Arte)? O que, das
sensibilidades e dos sentidos locais da cultura, fica na expressão do literato e pode
ser revelado na leitura do pesquisador? São questões que não possibilitam uma
resposta genérica ou taxativa, pois não há realidade objetiva com a qual comparar,
contra qual validar cada representação literária.

Muitos veios da relação literatura-ciência têm sido explorados. Carlo Ginzburg


(2004), em “Tusitala e seu Leitor Polonês”, especula que a interpretação dada ao
kula72 pelo antropólogo Bronislaw Malinowski foi inspirada pela leitura do conto “The
bottle imp”, de Robert Louis Stevenson. Nesse caso, a literatura serviria como
modelo, sugerindo, talvez inconscientemente, motivos, metáforas e símbolos,
seguindo uma lógica não-cartesiana. Clifford Geertz (2002a; 2002b), por sua vez,
defende que a contribuição dos estudos literários à antropologia estaria no aumento
da “consciência do texto”, na percepção das estratégias argumentativas a que os
antropólogos recorrem. A proposta do autor alinha-se, como crítica textual com
implicações metodológicas, à maioria dos textos da coletânea organizada por James
Clifford e George Marcus (1986), discutindo a produção clássica e recente dessa
disciplina.

72
O sistema de comércio cerimonial praticado por alguns grupos na Polinésia, nas ilhas Trobriand,
estudado por Bronislaw Malinowski em “Os argonautas do Pacífico Ocidental”, em 1921.
108

No que tange a geografia, duas aproximações à literatura serão aqui


exploradas. Em primeiro lugar está o trabalho sobre o texto literário em si, o exame
da narrativa apresentada, dos personagens que a animam, da linguagem
empregada, das metáforas sugeridas, evidenciando sobreposições e afastamentos
existentes entre as figuras criadas pela literatura e pela ciência, a fim de revelar
diferentes ângulos sobre o fenômeno em questão. Essa estratégia aproxima-se do
efeito de estranhamento, presente nas teorias dos formalistas russos. Esse é um
“artifício graças ao qual o artista conduz o leitor a perceber a coisa descrita sob um
perfil e uma luz diferentes, de modo a compreendê-la melhor do que até então
compreendera”, segundo Umberto Eco (2007, p. 203). A ficção constrói
personagens, gira em torno deles como representativos de um coletivo. De forma
semelhante, os geógrafos debruçam-se sobre as práticas dos indivíduos, onde cada
agente é também a manifestação das possibilidades de um tempo e espaço social
compartilhados, considerando-os como elementos do grupo com o qual têm
identidade. Nas palavras de Carlo Ginzburg: “da cultura do próprio tempo e da
própria classe não se sai a não ser para entrar no delírio e na ausência de
comunicação” (1987, p.27).

Na segunda vertente das relações entre literatura de ficção e pesquisa


científica, podemos nos interrogar sobre o compromisso dos autores com os lugares
que retratam e sobre sua capacidade de reformular as práticas e sensibilidades
locais, apresentando-as na forma escrita. Trata-se de contextualizar os autores e as
concepções literárias que os informam. Em outras palavras, não teremos certezas
sobre a qualidade da tradução da cultura espacialmente situada presente num texto,
mas podemos investigar o projeto de cada autor ao fazê-lo, o que pode ser
chamado, de forma aproximada, de tradução cultural.

Mesmo a tradução literária superou o paradigma lingüístico, enfatizando que


cada texto traz dentro de si a cultura que o gerou (TRIVEDI, 2005). Roman
Jakobson propõe a diferenciação entre 1) tradução intralingüística (“uma
interpretação de signos verbais por meio de outros signos verbais da mesma língua”,
reformulação, rewording); 2) tradução interlingüística (“uma interpretação de signos
verbais por meio de signos verbais de outra língua”, de uma língua a outra; a
tradução mesma); 3) tradução intersemiótica (“uma interpretação de signos verbais
por meio de signos não-verbais”, do romance ao mapa, por exemplo; a
109

transmutação) (JAKOBSON, 1959 apud ECO, 2007, p. 265-270). Há muitas


modalidades de tradução (entre língua-fonte e língua-alvo; entre gêneros literários;
entre cultura oral e cultura escrita; entre culturas diferenciadas espacial ou
socialmente) e esse processo geralmente atinge mais de um dentre os âmbitos
supracitados.

Uma tradução culturalmente atenta propõe-se uma ética de respeito às


diferentes formas de pensar o mundo, reconhecendo a incomensurabilidade de
certos conceitos, em sua passagem entre registros. Como metodologia de pesquisa
etnográfica, Talal Asad propõe a busca de contato e a tentativa de compreensão e
transmissão de sentido, sem perda de sutileza nos significados culturais, de forma
que a problemática relação de forças que há entre pesquisador e pesquisado seja
balizada pela vontade de um diálogo mais simétrico, que valorize os conhecimentos
do outro (ASAD, 1986).

O termo “tradução” perde riqueza e especificidade se for acionado apenas


como um equivalente de “interpretação”. Esse tipo específico de prática
interpretativa analisa as adequações lingüísticas que apontam para conteúdos
locais, constituindo um jargão, um dialeto ou código que expressa entendimentos
sobre as práticas localmente legítimas. Além disso, a tradução cultural foca no
contexto, privilegiando os significados localmente pertinentes na interpretação de
palavras de uso geral. Termos êmicos explicitam usos locais, novos e ignorados
pelo pesquisador; diferentes conteúdos atribuídos a palavras conhecidas também
oferecem vislumbres sobre o sentido local das práticas; a toponímia revela valores
locais presentes ou pretéritos.

Assim, podemos nos perguntar: o literato é um bom tradutor da vida das


pessoas que representa através de seus personagens? Como a literatura e a
pesquisa geográfica se relacionam? Podemos fundir os dois gêneros textuais sem
deturpar os propósitos de cada um deles? A que ponto o projeto de registro e
criação dos regionalistas (quando porta-vozes de sua própria cultura) pode ser
assimilado à prática geográfica, seja esta o resgate de culturas em
desaparecimento, como problematiza Renato Rosaldo (1986); a tradução da cultura
alheia e geralmente subalterna, como trabalha Talal Asad (1986); ou a criação de
alegorias morais, como constrói James Clifford (1986)? Invertendo e deslizando a
110

fórmula de Clifford Geertz (2002a; 2002b), devemos tratar o autor como antropólogo
[geógrafo]? Ou, quem sabe, devamos considerar as obras regionalistas –
especialmente aquelas escritas por autores identificados com seus personagens –
como textos de uma cultura letrada, como representações textuais da cultura local?

Possivelmente, a resposta esteja no intervalo entre essas posturas: nem


etno(geo)grafia, nem texto nativo. Alguns escritores regionalistas interpretam sua
cultura, aquela de sua região, tendo como propósito resgatá-la, documentá-la e
traduzi-la, como um etnógrafo nativo carente (ou livre?) do método científico. Vale
aqui a reflexão de Ieda Gutfreind (1999), ao comparar a interpretação da fronteira
gaúcha proposta pelos historiadores oficiais com aquela produzida por certos
historiadores locais. Os primeiros, apesar de legitimados pelo método, oferecem
uma história comprometida com a ideologia nacionalista, enquanto os últimos,
considerados amadores, têm a liberdade de abordar as trocas fronteiriças em vários
campos.

2.8. REGIONALISMO POLÍTICO E REGIONALISMO LITERÁRIO

O termo regionalismo demanda uma digressão, na medida em que se presta


a dois fins: o primeiro é nomear certo tipo de produto cultural, no qual as
características da região são enfatizadas, distinguindo certo espaço, sua população,
sua cultura – e a região quase sempre é conceituada em termos identificados com a
Geografia Moderna, na linha identificada com o geógrafo francês Paul Vidal de la
Blache, sendo uma entidade em que paisagem, economia e cultura se amalgamam
em um ente identificável, freqüentemente rural. Noutro sentido, regionalismo
identifica o movimento político que agrega as reivindicações regionais (ou do bloco
que hegemoniza a região) perante o Estado-Nação. O regionalismo, seja ele literário
ou político, é um movimento de pertencimento relutante a uma entidade mais
extensa (OLIVEN, 2006). A literatura reforça a identidade regional, o que possibilita
galvanizar a população em torno da região. Assim, o regionalismo literário enriquece
o regionalismo político.
111

A construção da identidade brasileira fez-se também através da literatura


nacional. O ideário romântico ou naturalista, expresso na fixação de tipos e práticas
locais, da natureza e da história brasileiros dominou a produção literária (FREYRE,
[1926] 1952; VERÍSSIMO, 1936; COUTINHO, 1975). Afirma Antônio Cândido que se
tratava de uma “busca do tipicamente brasileiro através das formas de encontro,
surgidas do contato entre o europeu e o meio americano. Ao mesmo tempo
documentário e idealizador, forneceu elementos para a auto-identificação do homem
brasileiro e também uma série de projeções ideais” (CÂNDIDO apud COSON, 1998).

A produção regionalista cunha efígies regionais para negociação no âmbito


nacional, sejam elas tipos ou paisagens. O regionalismo literário não se contrapõe à
construção da identidade nacional, dialoga com ela.

Esse recorte temático foi identificado por Machado de Assis, já em 1873,


como o “instinto de nacionalidade”, ao qual ele contrapunha o universalismo, não
compartilhando da opinião de que “só se reconhece espírito nacional nas obras que
tratam de assunto local” (ASSIS, [1873] 2008, p. 801). Da mesma forma, décadas
mais tarde, o gaúcho Cyro Martins busca distinguir regionalismo, “retrato de uma
‘realidade’ eufórica”, e localismo, que

apara os excessos particularistas e aspira à integração na literatura


nacional, através da corrente de comunicabilidade de que participam os
homens comuns. O localismo não experimenta nenhuma repugnância pelo
feio e vulgar, anseia por aproximar as distintas províncias do país sendo,
portanto, fator de unidade nacional. ([1944] 1977, p.26)

Segundo esses autores, a construção do nacional passaria pelo registro de


paisagens e tipos autênticos, ainda que urbanos ou conflituados, distintos do ideal
rural construído pelo romantismo ou incensado pelo regionalismo.

Ángel Rama (1982) situa a produção cultural latino-americana como uma


busca incansável de independência, originalidade e representatividade. O destacado
crítico e teórico uruguaio assim argumenta:

A data da emancipação política, que hoje consideramos malfadada, colocou


as literaturas (que então tiveram que ser fundadas com um escasso
respaldo recebido do iluminismo) no caudal do princípio burguês que
alimentou a triunfante arte romântica. Dentro dele, receberam a marca de
seus Dióscuros maiores: a originalidade e a representatividade, ambas
situadas sobre um dialético eixo histórico. Dado que essas literaturas
correspondiam a países que tinham rompido com seus progenitores,
rebelando-se contra o passado colonial (onde estavam gravadas as culpas),
deviam obrigatoriamente ser originais em relação a tais fontes. [...] Essa
112

originalidade só pode-se alcançar [...] mediante a representatividade da


região em que surgia, pois esta se percebia notoriamente diferente das
sociedades progenitoras, por conta da diferença de meio físico, da
composição étnica heterogênea e também pelo diferente grau de
desenvolvimento em relação ao que se visualizava como único modelo de
progresso, o europeu. [...] ‘Ou criamos ou erramos’. (t.n.) (idem, ibidem,
73
p.12-3).

A emancipação política da América coincidiu com o ápice do romantismo.


Segundo Álvaro Fernandez Bravo, muitos intelectuais latino-americanos do século
XIX viram na literatura um instrumento indispensável para a construção das
nacionalidades durante e após as independências, num projeto de colonização
literária, onde território, literatura e nacionalidade coincidiriam (1999, p.12).

O que se passa no âmbito brasileiro é valido também no quadro ampliado da


América Latina, onde as representações da literatura e da política se apóiam na
paisagem e na composição étnica americanas, para impulsionar as políticas de
nacionalidades.

Josefina Ludmer (2002, p.19-20) estabelece a cadeia de usos que articulará o


gaúcho à literatura patriótica argentina ainda no início do século XIX:

a passagem entre a ‘delinqüência’ e a ‘civilização’ situa o gênero


[gauchesco] como um dos produtores dessa passagem. Postula, além do
mais, no centro, um paralelismo entre o uso do corpo do gaúcho pelo
exército e o uso da voz pela cultura letrada, que define o gênero. Por esse
uso do corpo, que separa os gaúchos de um campo para levá-los a outro,
ao de batalha, surge a voz: o primeiro locutor fictício da literatura gauchesca
é o gaúcho enquanto cantor e patriota. A voz, o registro, aparece escrita,
hipercodificada e sujeita a uma série de convenções formais, métricas e
rítmicas; passa também por uma instituição disciplinar, a poesia escrita,
como o gaúcho pelo exército, e se transforma em signo literário. As duas
instituições, exército e poesia, se abraçam e se complementam. O gaúcho
pode ‘cantar’ ou ‘falar’ para todos, em verso, porque luta nos exércitos da
pátria: seu direito à voz assenta-se nas armas. Porque tem armas deve ter
voz ou porque tem armas toma outra voz. Surge então o que define de
saída o gênero gauchesco: a língua como arma. Voz lei e voz arma
enlaçam-se nas cadeias do gênero. (LUDMER, 2002, p.19-20)

73
“La fecha en que se llevó a cabo la que hoy vemos como azarosa emancipación política, colocó de
lleno a las literaturas independientes (que entonces debieron ser fundadas con el muy escaso
respaldo recibido del iluminismo) en el cauce del principio burgués que alimentó al triunfante arte
romántico. Dentro del, recibió la marca de sus Dioscuros mayores: la originalidad y la
representatividad, ambas situadas sobre un dialéctico eje histórico. Dado que esas literaturas
correspondían a países que habían roto con sus progenitoras, rebelándose contra el pasado colonial
(donde quedaban testimoniadas las culpas), debían ser forzosamente originales respecto a tales
fuentes. [...] Esa originalidad sólo podría alcanzarse [...] mediante la representatividad de la región en
la cual surgía, pues esta se percibía como notoriamente distinta de las sociedades progenitoras, por
diferencia de medio físico, por composición étnica heterogénea, y también por diferente grado de
desarrollo respecto a lo que se visualizaba como único modelo de progreso, el europeo.[...] ‘O
creamos o erramos’.” (RAMA, 1982, p.12-3).
113

O uso dos gaúchos no front civilizador do exército patriota na expansão da


fronteira ao sul, assim como o uso de seu registro oral pela cultura letrada resultou
na conversão do gênero, sua codificação em forma canônica patriótica. Martín Fierro
tem sua vida destruída ao ser engajado à força nos esforços expansionistas da
Argentina, lutando pela Civilização e contra a Barbárie, segundo o “Facundo” de
Sarmiento ([1845] 1996), mas acaba internalizando a barbárie, pela decadência e
marginalização a que é submetido.

O fato de o gaúcho ser alçado a tipo nacional na Argentina coloca um


problema: como um emblema identitário argentino é absorvido na construção
identitária brasileira? A resposta encontra-se na fronteira, no compartilhamento de
significados através das áreas platinas, uma intersecção que foi negligenciada por
décadas por grande parte da historiografia e da crítica literária nacionais, em nome
de uma brasilidade mais homogênea.

Entretanto, o mesmo não ocorre no Rio Grande do Sul, onde discutir o


significado da fronteira tem sido uma tarefa prioritária para os estudiosos, de modo
que tal objeto geográfico desempenha um papel central em praticamente todas as
formulações sobre o estado. Geógrafos, historiadores e intelectuais em geral, ao
debruçarem-se sobre as questões sul-rio-grandenses, partem da fronteira para
explicar a formação e as características do estado. Assim, a posição geográfica do
Rio Grande do Sul no Brasil é razão ora para a inclusão e coincidência dos
processos entre ambas as escalas geográficas, ora justifica, pela proximidade à
região platina, a exclusão e diferenciação histórica, social, ambiental entre o que se
passa no Brasil e no Rio Grande do Sul. Essa relação social ganha se for estudada
114

menos como oposição binária do que através da dialética entre tais objetos
geográficos.74

No caso do Rio Grande do Sul, a centralidade da fronteira na produção


literária opera através da ampliação do alcance cultural e identitário da fronteira, que
é simbolicamente extrapolada para uma região – a Campanha – e mesmo para todo
o estado do Rio Grande do Sul. Essa operação, que se ampara na história,
aumenta, no presente, o poder de fogo do regionalismo político, tanto pela assunção
e denúncia da posição periférica do estado em relação ao Estado-Nação, quanto
pelo compartilhamento de mitos e linguagem com populações além-fronteira.

2.9. UMA LITERATURA DE FRONTEIRA

No Rio Grande do Sul, o emblema literário mais recorrente é o gaúcho/peão.


Da mesma forma, a literatura do Rio Grande do Sul é pródiga em verso e prosa
ambientados na região da fronteira. João Pinto da Silva, ao escrever a primeira
História Literária do Rio Grande do Sul, ainda em 1922, diagnosticava que em:
“nossas florações literárias, [...] quando reflexos do ambiente rio-grandense, o tom é
um só. De facto, o nosso regionalismo é todo de accentuado cunho fronteiriço, ainda
quando a acção de contos e novelas se desenvolve longe da linha divisória” (p.129).
Críticos contemporâneos reiteram tal diagnóstico: “a palavra ‘fronteira’ vem [sendo]
[...] objeto de preocupação para todos aqueles que se voltam ao estudo da literatura

74
Além das obras invocadas ao longo deste trabalho, pode-se citar como bibliografia gaúcha ligada à
fronteira, sem exaurir a lista ou mesmo apontar todos os autores mais representativos: GOLIN, Tau.
Fronteira. 2 v. P. Alegre: L&PM, 2002 e 2004; HAESBAERT da COSTA, Rogério. RS: Latifúndio e
identidade regional. P. Alegre: Mercado Aberto, 1988. 104p.; HEINZ, Flávio M.; HERRLEIN, Ronaldo
(orgs.). Histórias Regionais do Cone Sul. S. Cruz do Sul: EDUNISC, 2003. 464p.; JACKS, Nilda.
Querência: cultura regional como mediação simbólica – um estudo de recepção. P. Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 1999. 286p.; JARDIM, Denise Fagundes. Palestinos no extremo sul do Brasil:
identidade étnica e os mecanismos sociais de produção da etnicidade – Chuí/RS. R. de Janeiro:
UFRJ/PPGAS – Museu Nacional, 2000. Tese em Antropologia. 376 p.; MARTINS, Maria Helena
(org.). Fronteiras Culturais: BR-UY-AR. Cotia: Ateliê Editorial/ PM P. Alegre/ CELP Cyro Martins,
2002. 261p.; OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da
estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói, RJ: UFF/PPGH,
1999, Tese em História, 315 p.; PRADO, Fabrício Pereira. A Colônia do Sacramento: o extremo sul da
América portuguesa no século XVIII. P. Alegre: F. P. Prado, 2002. 230p.; RÜCKERT, Aldomar. A
trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do RS 1827-1931. P. Fundo: EDIUPF,
1997, 201 p.,SANTI, Álvaro. Do Partenon à Califórnia. P. Alegre: Ed.UFRGS, 2004. 110p.; SANTOS,
José Vicente Tavares dos. Matuchos: exclusão e luta. Petrópolis: Vozes, 1993. 282p.
115

sul-rio-grandense – e destacam-se aqui, dentre tantos, os nomes de Guilhermino


César, Othelo Rosa, Rubens de Barcellos e Moysés Vellinho (MASINA, 1994, p. 55).

A expressão “literatura de fronteira” tem tido uso corrente em estudos


literários no Rio Grande do Sul – vejam-se os trabalhos de Lea Masina (1994, 1995),
Nara Rubert (2003) entre outros. O quadro 3 apresenta autores e obras que podem
ser descritas como literatura da fronteira gaúcha, sem exaurir a produção dos
escritores e certamente deixando de citar muitos nomes importantes.

QUADRO 3: Obras gaúchas da literatura de fronteira


• Luiz Antonio de ASSIS BRASIL (Um quarto de légua em quadro, 1978; Concerto
campestre, 1999).
• Darcy AZAMBUJA (No galpão (contos gauchescos), 1925).
• Amílcar BETTEGA-BARBOSA (Arreglo, 2000).
• Jaime Vaz BRASIL (Os olhos de Borges, 1962).
• Sérgio CAPARELLI (O dia em que o Alegrete atravessou a fronteira, 1983).
• Alcy CHEUICHE (Jabal Lubnàn: as aventuras de um mascate libanês, 2003).
• Brasil DUBAL (Fronteira inclemente, 1976).
• Sérgio FARACO (Guapear com frangos e outros contos produzidos desde 1970).
• Martim César Ramires GONÇALVES (Sob a luz de velas, 2003).
• Josué GUIMARÃES (A ferro e fogo, v.1, 1972).
• João Simões LOPES NETO (Contos gauchescos, 1912).
• Dyonélio MACHADO (O louco do Cati (aventura), 2003).
• Cyro MARTINS (Sem rumo, 1944; Campo fora, 1934; O príncipe da vila, 1982).
• Ivan Pedro de MARTINS (Fronteira agreste, 1976).
• Roberto Bittencourt MARTINS (Ibiamoré: o trem fantasma, 1995).
• Alcides MAYA (Alma bárbara: contos, 1922; Ruínas vivas: romance gaúcho, 1910;
Tapera: cenários gaúchos, 1911).
• João de MEDEIROS (O diabo na garupa, 1997).
• Luiz Sérgio METZ (Assim na terra, 1995).
• Vitor RAMIL (Pequod, 1995).
• Tabajara RUAS (Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, 1997; Netto perde sua alma,
2001); com Elmar BONES (A cabeça de Gumercindo Saraiva).
• Aldyr SCHLEE (Linha divisória, 1988; O dia que o Papa foi a Melo, 1999).
• Donaldo SCHÜLER (O tatu, 1983; Martim Fera, 1984; Chimarrita, 1985).
• Juremir Machado da SILVA (Cai a noite sobre Palomas, 1995; Fronteiras, 1999).
• Carlos URBIM (Dona Juana, 1993).
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman.

Ela pode ser reconhecida como um gênero, ao considerarem-se índices como


a origem geográfica dos autores, a tematização da fronteira e a interpolação do
português, do espanhol e de termos locais, gauchescos, em sua maioria oriundos
das línguas indígenas, por vezes assumindo-se como portuñol. Para a constituição
do gênero contribuem ainda as referências recíprocas entre os autores, sejam eles
116

contemporâneos ou precursores, e a existência de editoras e de público-leitor,


conformando um sistema literário (CÂNDIDO, [1950] 1981) 75.

Em diferentes lugares, a expressão literatura de fronteira assume conteúdo


diferenciado, o que se deve a interpretações independentes. Álvaro Fernandez
Bravo chama “literatura da fronteira” ao conjunto de obras resultantes do empenho
nacionalista de distinguir as nações latino-americanas. Seguindo os conceitos
apresentados em seção anterior deste texto, ele estaria se referindo a uma literatura
dos limites:

Até as profundezas da nação no espaço e no tempo, os textos assumem a


empresa de representar as culturas fronteiriças – a barbárie, os indígenas,
os costumes – a partir de uma perspectiva nacional e americana distinta da
visão européia com a qual continuamente debatem. (t.n.) (FERNANDEZ
76
BRAVO, 1999, p. 17)

A literatura de fronteira não aparece apenas no Cone Sul. Internacionalmente,


é a fronteira entre o México e os Estados Unidos aquela aceita como paradigmática,
e não apenas no campo da literatura (GRIMSON, 2000, p.22). Edward Soja, por
exemplo, incluiu em Thirdspace, uma análise da cultura e identidade chicana
valorizadas como “formas inovativas de interpretação do (terceiro) espaço” (t.a)
(“innovative new forms of (Third)spatial interpretation”, 1996, p. 129). Sonia Torres
(2001) organiza sua análise da “literatura, etnografia e geografias de resistência”
pelo questionamento da hispanização da cultura norte-americana, da busca de uma
voz pelos migrantes latinos que não abandonam suas origens, e das resistências
geradas no processo. Uma análise preliminar da literatura da fronteira México-EUA
revela que apenas os latinos e seus descendentes têm tomado a palavra, ou talvez
eles sejam mais valorizados por serem considerados pelos teóricos como os
portadores da nova representação. A comparação entre a literatura da fronteira
gaúcha e a produzida nas borderlands norte-americanas revela ainda que os

75
O conceito de sistema literário, no qual a relação entre autores, público e um conjunto de editoras
formam um sistema, também aplica-se à literatura sul-rio-grandense sem descartar a idéia de
literatura da fronteira. Sistema refere-se à organicidade da literatura, “do triângulo “autor-obra-
público”, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição” (CÂNDIDO, 1950, p.16).
76
“Hacia las profundidades de la Nación en el espacio y en el tiempo, los textos asumen la empresa
de representar las culturas fronterizas – la barbarie, los indígenas, las costumbres – desde una
perspectiva nacional y americana, distinta de la mirada europea con la que continuamente debaten.”
(FERNANDEZ BRAVO, 1999, p. 17).
117

conflitos são muito mais claramente expostos no segundo caso, refletindo as


distintas realidades que as geram (DORFMAN, 2004).77

Assim, a literatura do Rio Grande do Sul recebe influxos da fonte revelada


pelo uruguaio Bartolomé Hidalgo – que, em 1810, escreveu os “Dialogos Patrióticos”
– e valorizada por José Hernández (1834-1886), em “El Gaucho Martín Fierro”
(1872) e sua continuação “La vuelta de Martín Fierro” (1874).

Antes de Hernández, José de Alencar escrevera “O gaúcho” (1870), uma


entre várias obras regionalistas através das quais pretendia mapear a diversidade da
vida e da paisagem brasileiras. O romance de Alencar não foi bem recebido entre os
intelectuais do Rio Grande do Sul, por inverossimilhança na linguagem e na
representação do tipo regional. Como resposta, Apolinário Porto Alegre escreve “O
vaqueano” (1872), onde se glorifica a “democracia da estância” (congraçamento
entre fazendeiros e peões) (HEIDRICH, 2000, p.136). Note-se que a legitimidade da
representação do tipo regional é dada ao argentino Hernández e não ao brasileiro
Alencar.

A literatura da fronteira insere-se, portanto, na “comarca literária do Pampa”


(RAMA, 1982), compartilhada por sul-brasileiros, uruguaios e argentinos (Fig. 18).
Ao observar o mapa das comarcas literárias, a simultânea pertinência do Rio Grande
do Sul ao Brasil e ao Pampa pode ser entendida como uma negação da suposta
congruência entre cultura e nacionalismo, onde a fronteira nacional delimitaria língua
e práticas culturais. No caso gaúcho, a fronteira é o marcador, o símbolo de uma
cultura, de uma especificidade em relação ao Brasil.

A literatura da fronteira produzida no Rio Grande do Sul carrega a


ambigüidade de ser a um só tempo não-nacional, mas transnacional, identificada
com o regionalismo tradicionalista, conservador e nacionalista. É recorrente a
inclusão de glossários nas obras regionalistas editadas nos centros culturais da
nação, posicionando os termos ditos regionais nos marginalia da página e

77
Também na França encontrei obras que falam da fronteira e do contrabando, valorizando a
primeira como lugar de memória e o segundo como prática tradicional e marca do lugar. No entanto,
não vi menção à expressão “literatura de fronteira”. Entre as obras examinadas, encontram-se
BONIFAY, Philipe; LACAF, Fabien. L’histoire de Mandrin en BD. Grenoble: Glénat. 2005. 47 p.; LOTI,
Pierre. Ramuntcho. Paris: Gallimard. [1892] 2006. 275 p.; ROGER, Dominique. Les passeurs du clair
de lune: histoires de contrebande dans le nord de la France. Rennes: Éditions Ouest-France. 2005.
201 p.; OSPITAL, André. Sur les sentiers de la contrebande en Pays Basque: souvenirs
humoristiques. Donostia: Elkarlanean. [1982] 2006. 125 p.
118

FIGURA 18 – América Latina: mapa das comarcas literárias.


Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman com base em Rama (1982). Cartografia de Circe Dietz e Nola
Gamalho sobre imagem do INPE.
119

restabelecendo a posição periférica, a condição desviante, deste produto cultural.


Por outro lado, o conteúdo dos marginalia é compartilhado entre as obras publicadas
em outros países do Prata. Há, portanto, uma linguagem da margem,
incompreensível no centro, mas comunicando transfronteira, fortemente baseada na
oralidade, nas origens híbridas da cultura e dos habitantes desse espaço.

2.10. CAUSO, CONTO E DOCUMENTO: TRADUZINDO DO ORAL AO ESCRITO

Ainda que o valor estético ou artístico dos textos fronteiriços possa ser
questionado, a rentabilidade – conceito da literatura comparada que enfatiza a
capacidade de cada texto de provocar reações – das interpretações geográficas da
literatura de contrabando será ampliada pela busca de textos literários não-
canônicos, capazes de revelar ângulos inusitados e percursos menos trilhados. As
trocas induzidas pelas fronteiras, a confrontação de identidades, valores e normas
incita à invenção de práticas e representações originais, entre-lugares e híbridos que
valorizam as práticas locais específicas (GROUPE FRONTIÈRE, 2004, p. 9).

A tendência contemporânea de valorização da fronteira em suas várias


acepções reconhece nesse objeto geográfico um ponto de observação privilegiado
para o conhecimento dos processos identitários (BHABHA, 2001). Esse autor
defende que o presente caracteriza-se como pós-nacional. Note-se que o “pós” não
seria um novo horizonte ou a ruptura com o passado, mas uma passagem “além das
narrativas de subjetividades originárias e iniciais” proclamando “o direito de se
expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados” “no trabalho
fronteiriço da cultura” (idem, ibidem, p.21).

O interesse despertado pela literatura de fronteira mostra que a “comunidade


imaginada” de Benedict Anderson ([1983] 1998) parece estar sendo complementada
por novas representações. Nas palavras de Bhabha:
Cada vez mais as culturas “nacionais” são produzidas a partir da
perspectiva de minorias destituídas. O efeito mais significativo desse
processo não é a proliferação de ‘histórias alternativas dos excluídos’, que
produziriam, segundo alguns, uma anarquia pluralista. O que meus
exemplos mostram é o estabelecimento de uma base alterada para o
estabelecimento de conexões internacionais. A moeda corrente do
comparativismo crítico, ou do juízo estético não é mais a soberania da
cultura nacional concebida, como propõe Benedict Anderson, como uma
120

‘comunidade imaginada’ com raízes em um tempo vazio homogêneo de


modernidade e progresso. (BHABHA, 2000, p. 25).

Cabe apontar que esse tipo de análise preenche a lacuna produzida pelas
interpretações que tomam como unidade o território nacional, onde invariavelmente
a fronteira aparece como fenômeno marginal, estatisticamente irrelevante. Chegar a
conclusões qualitativas sobre a fronteira a partir de dados quantitativos nacionais é
perigoso. Da mesma forma, encontra-se grande dificuldade em trabalhar a fronteira
tomando como base o mapa político. A força do nacionalismo se manifesta na
representação cartográfica, registrando apenas uma linha cega, como uma máscara,
obliterando a visualização dos fluxos e dinâmicas na escala regional, coerentemente
esquecendo ser este espaço também um lugar de contatos, possuidor de lógicas
regionais e locais.

Para levantar hipóteses sobre o ambiente e as práticas dos contrabandistas


de pequenos volumes atuando contemporaneamente na fronteira de Santana do
Livramento-Rivera, seis obras literárias foram examinadas. Nelas é recorrente o
recurso à linguagem local. Segundo Lígia Chiappini, João Simões Lopes Neto, o
primeiro autor analisado, se destaca entre os regionalistas por realizar “um trabalho
profundo com a própria experiência para, através dela, atingir e compreender o outro
[...] um trabalho profundamente negativo com a própria linguagem e a cultura
letrada” (CHIAPPINI, 1988, p.345). Essa vontade de tradução resolve-se
formalmente pela criação de Blau Nunes, o narrador nativo: na primeira pessoa as
histórias surgem como contos-causos.

Ligia Chiappini (1999, p. 21) cita Dino Preti (1977, p. 42-3, 47) para enumerar
outras estratégias a que Simões Lopes Neto recorre em seu esforço para
transcrever a oralidade:

a redundância; a freqüência das expressões de situação (aqui, ali, agora...);


o truncamento básico; o ritmo e sonoridade típicos da fala; o papel da
pontuação ressaltando a afetividade; a imagem do interlocutor; as
interjeições e chamamentos, pelo vocativo; as questões, supostamente
dirigidas ao interlocutor e, por meio deste, ao leitor-ouvinte; as comparações
dentro do horizonte de Blau; os castelhanismos.

A figura 19 é uma gravura de Nelson Boeira para os Contos gauchescos de


Simões Lopes Neto.
121

FIGURA 19: Contando um causo: gravura de Nelson Boeira


Fonte: LOPES NETO (1983, p.76).
122

É verdade que entre o causo – um tipo de conto popular, portanto anônimo e


oral, “suspenso por um fio de vozes humanas” (BRICOUT, 1997, p. 196) – e o conto
– autoral – existe uma distância gerada pela consciência da forma, pela intenção
individual, pela ancoragem no tempo e no espaço, mais marcados no segundo caso.
Em direção ao outro extremo do espectro de autoria e contextualização, mitos
também podem ser vislumbrados nas obras de ficção aqui analisadas. Sob certo
ângulo, podemos alinhar mito, conto popular e conto autoral, que, num crescendo de
contextualização e individuação e que “no interior de certa sociedade, revolvem
incansavelmente o mesmo material, articulam os mesmos motivos, reempregam as
mesmas seqüências, mas em escala diferente” (BRICOUT, 1997, p. 194). Um
exemplo em que esse crescendo se revela é o eco da tragédia de Antígona em
vários contos analisados, como veremos no capítulo 3.78

As mediações entre um concreto em que o oral é instrumental (na experiência


cotidiana), a fabulação desse concreto em seqüências ordenadoras do mundo, no
exercício local da narratividade (os causos) e a criação literária (que busca uma
transcendência da linguagem) apontam para a representatividade das obras
literárias, na medida em que a progressão mito/causo/conto é feita pela
reinterpretação dos mesmos materiais. O contexto histórico reforça a função de
testemunhas dos autores que se perfilam aqui: a crença na importância do papel
social do escritor (corroborada pela escolha de protagonistas despossuídos, como é
o caso dos contrabandistas); um desejo de registro ou documento desencadeado
pelo lamento pelo mundo rural que se desarticula; e ainda a marca do cotidiano no
imaginário do artista.

O uso desse material na investigação geográfica é possibilitado pela


sobreposição autor/testemunha, que permite sopesar cada texto em busca das
ressonâncias do coletivo humano territorializado, sublinhando a relação entre a
literatura e a oralidade do lugar.

Existem técnicas para traduzir os textos orais para a forma escrita, dando
ênfase à performance do emissor e à sua relação com a audiência. Luciana

78
Segundo Raymond Williams, “sustentou-se que o mito é uma versão mais verdadeira (mais
profunda) da realidade do que a história secular, a descrição realista ou a explicação científica. [...]
[em] relatos mais sofisticados, nos quais se sustenta que os mitos são expressões fundamentais de
certas propriedades da mente humana e até mesmo da organização mental ou psicológica básica do
homem.” seja como estrutura universal ou manifestação de culturas específicas (WILLIAMS, 2007,
p.281).
123

Hartmann, tendo se dedicado ao estudo da “performance e experiência nas


narrativas orais da fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai” afirma que os
causos/cuentos inserem-se nos relatos das experiências dos informantes. Na
notação empregada pela autora, enfatizam-se as estratégias poéticas da oralidade,
em que se entrelaçam vozes, personagens, comportamentos e pontos de vista
(2005, p. 137). Entre os dispositivos por ela empregados, listam-se as seguintes
marcações:

Mudanças de linha indicam separação de sentenças e são relativas a


pequenas pausas de respiração feitas pelo contador; letras maiúsculas
indicam pronúncias enfatizadas em volume mais alto; repetição de vogais
indicam sílabas alongadas; grafia incorreta de algumas palavras busca
representar sua pronúncia na oralidade (idem, ibidem, p.136).

Há ainda indicações sobre “as diferentes estratégias utilizadas pelo contador,


como o recurso à linguagem poética (rimas, repetições), à função fática (apelo à
audiência), representação das falas dos personagens (reported speech), etc.” (id.,
ibid.).

Todos esses esforços voltam-se a conhecer, registrar e analisar o contexto da


narração e da narrativa, ampliando o significado, que é “buscado não mais na
própria história, mas no encadeamento particular das várias histórias, e é relativo a
um contexto específico de interação com a audiência” (id., ibid., p.149).

Em sua dissertação, a pesquisadora elenca diferentes categorias de


contadores de causos, acrescentando que, além desses, todos habitantes têm algo
a contar, ainda que não tenham especialmente desenvolvida a habilidade para fazê-
lo. Ela cita as mulheres, os borrachos (bêbados), os tradicionalistas, os historiadores
e os idosos como figuras reconhecidas, de quem se espera que mantenham viva a
memória do grupo (id., 2000, p. 68-81).

É evidente que a intersecção entre os dispositivos da pesquisadora


contemporânea, filiada à “antropologia da experiência”, em busca da tradução da
narratividade característica dessa região para suportes escritos, e das estratégias
identificadas na obra de Simões Lopes Neto, autor já centenário, em sua tarefa de
criação/registro do imaginário do gaúcho. Mais do que demonstrar a convergência
entre ciência e literatura – mesmo porque o século que separa as duas
representações textuais testemunhou uma profunda transformação nessa antinomia
124

–, interessa reconhecer as técnicas para interpretação dos contos/causos,


causos/cuentos e outros textos orais capazes de revelar o significado do
contrabando para a população fronteiriça.

As representações textuais têm sido utilizadas por diferentes disciplinas


voltadas ao estudo da cultura. Nesta tese reúno textos de origens diversas para
tratar das práticas dos contrabandistas na fronteira sob um viés geográfico. No
próximo capítulo apresento textos literários sobre o contrabando, analisando-os
como fonte de interpretação sobre o ethos da fronteira.
125

3. O CONTRABANDO SEGUNDO A LITERATURA DA FRONTEIRA

Os contos de contrabando que seguem foram lidos em busca de pistas sobre


as representações locais do comércio ilegal na fronteira gaúcha. Trata-se de
examinar os textos literários, ressaltando os temas e a linguagem, valorizando suas
dissonâncias e surpresas, em busca de chaves para a interpretação das práticas
contrabandistas. O uso de obras regionalistas como chave analítica para práticas
contemporâneas investiga se essas não são feitas do “oco do passado” (AGUIAR,
1992, p.20) mas de repercussões e ecos de estruturas atualizadas nas concretude
dos lugares.

3.1. SITUANDO O CORPUS

O corpus selecionado para análise é composto por seis contos escritos por
autores nascidos na fronteira do Brasil com o Uruguai ou com a Argentina. Os
escritores situam-se no limite entre texto culto e narração nativa. A escolha destes
textos se deu por uma série de razões, desde referências mútuas –
intertextualidades mais ou menos explícitas – até o reconhecimento, por parte da
crítica, de seu valor literário, aliadas à inevitável aleatoriedade.

As histórias contadas se distribuem entre 1912 e 1996, ainda que algumas se


desenvolvam num tempo anterior ao da escrita. Optei por inserir os contos na
íntegra, ao invés de recorrer a citações longas e fragmentadas, que não
conseguiriam preservar a força das histórias, nem respeitariam sua poética. Penso
ser legítimo apresentar tais representações textuais no corpo do texto, e não em
anexo, permitindo o acesso imediato ao material interpretado geograficamente.
Nessas transcrições, não inclui as notas referentes ao vocabulário inseridas pelos
diferentes editores, mas reproduzi aquelas que situam eventos históricos.

A figura 20 situa os contos, as cidades e a rede rodoviária, expondo certas


recorrências que serão analisadas ao longo do capítulo. Os primeiros quatro contos
se desenrolam no meio rural, os dois últimos em cidades fronteiriças.
FIGURA 20: Fronteira gaúcha: mapa de localização dos contos de contrabando.
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman, com base em LOPES NETO, [1912] 1998; AZAMBUJA, [1925] 1944; ARREGUI, [1960] 2003;
FARACO, [1986] 2000; SCHLEE, 1988 e BETTEGA-BARBOSA, [1996] 2000. Cartografia de Circe Inês Dietz e Nola Patrícia Gamalho
sobre imagens do INPE/ Departamento de Defesa Americano/Grupo Retis.
Optei por produzir cartogramas como instrumento de análise da literatura de
fronteira. O mapa traz à tona a espacialização dessas histórias, permitindo acessar
as metáforas empregadas para a fronteira e os significados atribuídos socialmente
ao contrabando. A representação cartográfica, baseada num recorte deliberado de
dados, em versões simplificadas da estrutura teórica, distingue-se e interroga a
interpretação aberta exercitada na literatura, contribuindo para a consolidação desta
análise.

As interpretações dos contos de contrabando cruzam-se com o que foi vivido


em campo. A leitura volta-se para cada peça em particular e, posteriormente, para
as recorrências entre as mesmas, em busca mais da verdade-desvelamento
(interpretação) que da verdade-adequação (fatos) (TODOROV, 1989), em relação às
experiências do campo e aos aportes bibliográficos.

Por fim, busco ressituar a produtividade das obras ficcionais no estudo dos
lugares concretos, avaliando alcances e limites dessa opção metodológica.

3.2. “CONTRABANDISTA” DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO

“Os contos gauchescos” foram publicados pelo pelotense João Simões Lopes
Neto (1865-1916) em 1912 e são ambientados na Campanha, onde o guasca Blau
Nunes narra, num português fortemente marcado por temos gauchescos, dezoito
histórias campeiras. Entre estas encontramos “Contrabandista”, a mais conhecida
entre as obras aqui analisadas79. É provável que João Simões Lopes Neto tenha
fundado os “contos de contrabando” no Rio Grande do Sul, sendo o pai desse
subgênero, na medida em que foi o primeiro ou um dos primeiros escritores gaúchos
a incluir os homens simples na narrativa literária (CHIAPPINI, 1988, p.307).

79
A fortuna crítica nos estudos literários é imensa, destacando-se: AGUIAR, 1992; ARMANDO, 1986;
CHIAPINNI, 1988, 1994, 1999. A edição aqui usada é LOPES NETO, João Simões. In:______.
“Contos gauchescos”. São Paulo, Ática, [1912] 1998. 120 p. p. 91-96. Da folha de rosto desta edição
consta: “Texto integral, cotejado com a edição crítica de Aurélio Buarque de Hollanda de 1949, da
Editora Globo, Porto Alegre". Da mesma forma, este conto é reiteradamente convocado como
epígrafe ou ornamento em escritos de historiadores, como em SOUZA, 1994a e NEUMANN, 2001,
procedimento criticado por FLORES (2007, p.10).
128

CONTRABANDISTA

João Simões Lopes Neto, 1912

– Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango
Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha
nos banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os
campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das
noites, na cerração das madrugadas...: ainda que chovesse reiúnos
acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau,
nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-
cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-
limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem
ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o
areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas
salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na
batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre
que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga,
como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito
longe.

Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser


muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas,
reunia a gurizada da casa, fazia – pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e
semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava,
catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de
apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o
tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um
pouco é que gritava, num - caim! caim! caim! – de desespero.
Outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do
festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da
toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e
garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do
80
bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán ...
Era um pagodista!

Aqui há poucos anos – coitado! – pousei no arranchamento dele.


Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito
tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e
mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma
mocinha – pro caso, uma moça –, que era o – santo-antoninho-onde-te-
porei! – daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha
andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do
casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.

80
Nota 129 do editor: “Le echaba cuentas de gran capitán…: indica as parcelas exorbitantes de uma
conta feita arbitrariamente e sem a devida justificação, é uma referência à conta que Gonzalo
Fernandez de Córdoba, apelidado de ‘el Gran Capitán’, apresentou ao rei Fernando, o Católico,
depois de haver conquistado Nápoles” (LOPES NETO [1912] 1998, p.92).
129

O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os


aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal
enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à
moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos
leitões e no tiramento dos assados com couro.

Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em


81
antes da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir
e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a
cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de
eguariços; abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e
largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era
com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam
desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa
Tecla, do Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar
sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas
campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e
agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o
seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes
pagos!

Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o


capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos
sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas,
se explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua
licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar,
que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim
senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou
botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e
prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis...

Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com


tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra
luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!...

Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro


lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de
jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e
ninguém pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo,
numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saía de

81
Nota 130 do editor: “A tomada das Missões: Atualmente no Rio Grande do Sul, a região de Sete
Povos das Missões, colonizada por jesuítas espanhóis, foi constante motivo de disputa entre Portugal
e Espanha, sendo conquistada definitivamente por tropas luso-brasileiras em 1801, em uma curta
guerra entre as duas metrópoles coloniais” (idem, ibidem, p.92).
130

atravessado e tomava conta de tudo, a couce d'arma: isto foi ensinando a


escaramuçar com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos; recebiam as
encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde,
levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e
algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre
se entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois
82
vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas .
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos
emigrados.
A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na
regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça
enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser
campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado;
podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum
devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os
volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria
por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a
estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas-de-cheiro,
armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!
Apareceram também os mascates de campanha, com baús
encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios,
desovar aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e
nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a
árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.

O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a


hora da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada vésp'ra do casamento o Jango Jorge
saiu para ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os
padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o
amargo e copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de
música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos
pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido,
estava sossegada, ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da
estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surdiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e
casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.

82
Nota 133 do editor: “A guerra do Rosas: O caudilho argentino Juan Manuel Rosas chegou ao poder
em 1829, interveio no Uruguai, apoiando Oribe, e enfrentou a Bolívia, o Paraguai e o Chile. Em 1853,
desafiado por problemas de fronteiras, o Império brasileiro interveio militarmente, derrotando o
caudilho com o apoio do general argentino Urquiza” (id., ibid. p.94).
131

Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu
vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas
flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma
algazarra e ela tão boazinha! – veio à porta do quarto, bem penteada, ainda
num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra
mostrar que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes,
que rolavam devagar dos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber porque... sem saber por que,
rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
– Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro
da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por que... pois o pai
estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de
noiva...
Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num
silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os
olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo
entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos
entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada.
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia
ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
– A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o
capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um
pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram
de bala... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!

A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e


desamarrou o embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as
flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda
a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de colorado, num
padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim
esmagadas a casco de bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda.

O título do conto acima refere-se a Jango Jorge, descrito como um homem de


muito valor e habilidade, fortemente arraigado no pago, que se notabilizava pelo
conhecimento da região, lançando mão de todos seus sentidos na apreensão da
geografia do lugar. A fábula – a história narrada – é simples: o protagonista Jango
Jorge ia casar sua filha, para tanto parte em busca do enxoval do outro lado do rio –
e da fronteira. Depois de tensa espera, um movimento no terreiro anuncia Jango
Jorge: deixando sua experiência de lado, insistira em enfrentar a guarda de fronteira
e fora morto (Fig. 21).
132

FIGURA 21: “Contrabandista”: gravura de Nelson Boeira.


Fonte: LOPES NETO, 1983, p. 125.
133

A parte mais extensa do conto, entretanto, é dedicada a comentar as origens


históricas do contrabando (“sempre” ou “desde bem antes da tomada das Missões”
em 1801), seu caráter inicialmente lúdico (“sem malícia e mais por divertir”), os
produtos (cavalos e gado, inicialmente), as mudanças advindas da apropriação de
terras pelos “pesados”, as limitações impostas pela coroa portuguesa e pelo império
do Brasil etc.

Além da rica informação factual deliberadamente incluída nessa obra – o


desejo de registro é tão explícito que pode-se afirmar tratar-se de um conto a serviço
do documento – depreende-se que o contrabando é uma prática tradicional na
região, e que desde sua origem, anterior a 1800, organizava-se em “malocas”83
atuando com qualquer tempo e a qualquer hora do dia. A estratégia da ação em
bando permanece até o presente, sendo uma dos propósitos deste trabalho atualizar
o conhecimento sobre como se desenham hoje as redes que articulam os
contrabandistas, especialmente os bagayeros.

É digno de nota o fato de Jango Jorge ter servido sob as ordens do general
José de Abreu (dito Anjo da Vitória, que lutou contra Artigas nas guerras entre 1816
e 1821, quando o território hoje uruguaio ainda estava em demarcação) e como
soldado na batalha de Ituizango (também conhecida como batalha de Passo do
Rosário, em 1827), evidenciando não haver contradição entre a fidelidade a certas
causas nacionais e a prática do contrabando. Mesmo sendo um habitante da
fronteira (a qual aciona em proveito próprio) mantém o sentimento nacional, mesmo
que mediado pela figura caudilhesca de José de Abreu. A atuação político-militar de
Jango Jorge se dá num período em que a fronteira ainda estava em formação, em
que os espaços de ação (bélica ou não) eram compartilhados. Distinguir ao líder do
bando com a patente de “capitão” também é indicativo de uma origem comum ao
contrabando e às campanhas militares. Chiappini (1988, p.306) afirma que

o contrabando só então se caracteriza como tal pois, na origem, era um


serviço prestado à Pátria. É o que nos explica Blau, fazendo um retrospecto
histórico para mostrar como as virtudes de um homem honrado se
transformam em crime, tornando o herói em vítima da lei violenta.

83
Segundo o “Popularium Sul-Rio-Grandense” de Apolinário Porto Alegre ([1872] 2004, p. 47): malta
de indivíduos mal-afamados; “B. Rohan, seguindo Z. Rodrigues, foi buscá-lo no araucano com
significação de excursões belicosas em terras inimigas”.
134

O narrador Blau Nunes afirma que o contrabando cresce porque o capitão-


general distribuía terras, mas não defendia sua integridade, e ainda proibia a
importação de pólvora para protegê-las. O monopólio na fabricação e venda de
baralhos e a proibição da ourivesaria no Rio Grande são citados como leis criadas
para favorecer apenas aos interesses da metrópole, o que não tinha legitimidade
para “a gauchada”, posicionada tão perifericamente em relação à capital da colônia,
tão distante da autoridade do rei: a expressão “lá de dentro”, do interior, enfatiza a
condição marginal, levando a uma autonomia compulsória diante do remoto poder
do rei. Há ainda um evidente estranhamento com os trâmites legais e institucionais.

No conto de Simões Lopes Neto, o contrabando teria nascido porque os


estancieiros iam ou mandavam buscar artigos necessários ou supérfluos para seu
abastecimento do outro lado da fronteira ainda mal-definida. Paulatinamente, os
gaúchos “aficcionaram-se”, passando a levar baeta (um tipo de feltro), fumo em
corda, cachaça, numa situação que durou até 1835. Depois de 1850, com a forte
imigração de espanhóis e gringos84, que constituiram-se tanto em novos
comerciantes como em clientes, muitos aproveitaram as oportunidades dadas pelo
comércio ilegal.

Com a Guerra do Paraguai (1864-70), valorizou-se o “dinheiro do Brasil” e


multiplicou-se o contrabando: tecidos, perfumes, quinquilharias, remédios, armas.
Também os mascates da campanha abasteciam-se contrabandeando. Desde então
“a semente grelou...” e o contrabando fez-se cada vez mais volumoso. Já naquele
momento observa-se a relação entre o câmbio e o contrabando, a busca do
necessário, bem como do mais barato. Nota-se também um incremento na
complexidade do tráfico, envolvendo mais gente, com bandos mais organizados,
liderados por um “capitão”, comercializando uma gama maior de produtos.

Lígia Chiappini (1988, p.308) afirma que o gaúcho de então “fazia da


transgressão um gesto heróico de rebeldia nacionalista, a demonstrar

84
Segundo ARMANDO (1986, p.96), a classe representada por Simões Lopes Neto sentia-se
ameaçada pela chegada dos gringos, e “o que estaria em questão [na produção literária] não seria
apenas (ou: na realidade) a perda da identidade cultural (motivo alegado), mas, também (ou:
principalmente) a perda de prioridade social”, levando-o esforçar-se por fazer sobreviver, através do
documento literário, a cultura da “sociedade rural tradicional”. Em recente conversa em Santana do
Livramento, vimos repetir-se esse sentimento de insegurança perante os recém-chegados,
personificados nos ex-sem-terra assentados em torno à cidade, cuja prosperidade aparece – em
certos discursos – como suspeita e incômoda aos “estabelecidos”.
135

precocemente o espírito independente dos gaúchos” (g.n.). O que então era


explicado por Chiappini como rebeldia nacionalista é hoje lido como uma postura
regionalista precursora ou um pragmatismo cotidiano transnacional, o que
demonstra a riqueza e plasticidade dos gestos conservados na literatura, abertos à
apropriação ideológica por quem quer que seja, conforme a tônica do momento. Ou
nas palavras de Sérgio Faraco, “o leitor se comove pela espécie de vida que pode
encontrar ali; o escritor quer só contar uma história que seja verdadeira; o
argumento é como uma massa entre o vivido e o imaginado; é o leitor quem coloca
as coisas na página” (entrevista, Porto Alegre, 07/04/2004).

O conto de Lopes Neto é o mais antigo entre os aqui examinados, e ainda


assim remete a um tempo passado. É evidente sua intenção em registrar a gênese e
a dinâmica do contrabando, justificando-o como estratégia de sobrevivência da
população diante da história e da geografia da região, e não como crime ou
contravenção. Apresenta o personagem-título com muita humanidade, como um pai
dedicado, generoso e conhecedor da terra, e a ele opõe os “ordinários” guardas da
fronteira. O contrabando que leva à morte de Jango Jorge não são armas nem
drogas, mas um enxoval, a proteção e a delicadeza legada por um pai a sua filha. O
casamento vira funeral, o dia vira noite, o branco vira vermelho, por causa do
combate entre o capitão-contrabandista-pai da noiva, próximo e familiar, e os
ordinários que defendem a lei do Estado. E é preciso lutar para reaver o corpo do
contrabandista morto.

A imagem da flor-do-cardo (nativa, espontânea, agreste) esmagada pela pata


do cavalo representaria a destruição da ligação entre o habitante e seu ambiente –
por forças de ocupação, integradoras do local à lógica nacional? A permanência
dessa obra mostra que o processo ainda não chegou a termo, posto que a
circulação da literatura é garantida pela atualidade daquilo que é tematizado.
136

3.3. “CONTRABANDO” DE DARCY AZAMBUJA

Darcy Azambuja (Encruzilhada do Sul, 1901 – Porto Alegre, 1970) pode ser
descrito como um “leitor-herdeiro, que lê e reescreve” Simões Lopes. Consta que
Darcy Azambuja “leu um conto de Simões Lopes no jornal, em 1912, quando tinha
11 anos, ou melhor, ouviu alguém ler alto. [...] Mais tarde, o livro, ainda na 1ª edição,
veio parar em suas mãos e ‘foi um deslumbramento’” (CHIAPPINI, 1988, p.66).
Azambuja foi também político, professor de direito e, na década de 1950, presidente
honorário do CTG Galpão Universitário.

A literatura de Darcy Azambuja está vinculada a um recrudescimento, em


Porto Alegre, do regionalismo literário no rastro do regionalismo político da revolução
de 1923 (HAASE, 2005, p.40). Em 1925, ainda jovem, Azambuja publica o livro “No
Galpão” ([1925] 1955), que se destaca com um prêmio da Academia Brasileira de
Letras.

Flávio Loureiro Chaves classifica o autor como o “narrador da transição”, que


propala a “democracia da estância”, “construída na defesa da sociedade agrária,
visando amenizar (e porventura mascarar) as relações de poder e mando, vigentes
no regime patrimonial e patriarcal” (2003, p.57) usando uma linguagem realista, mais
próxima do modernismo, criando uma obra conservadora na temática e inovadora no
estilo “contido e direto [...] que evita os ornamentos, a grandiloqüência [...] [e a]
tralha retórica que veio dos comícios municipais e, de exagero em exagero, acabou
por infartar a nossa literatura regionalista” (idem), assegurando a legibilidade do
regionalismo numa fase de transição. Por fim, o crítico afirma que a literatura
“percorre cumes”, mas também se “desenvolve na planície”, no nível médio, sendo
esse o caso de Darcy Azambuja (idem, ibidem, p.59-60).

O conto Contrabando relata a história de uma marcha por uma madrugada


nebulosa no campo, a meio caminho entre Jaguarão e Aceguá, pelo Paso del
Centurión.
137

CONTRABANDO

Darcy Azambuja, 1925

Marchavam em fila indiana. Na frente ia o Fidêncio Lopes, o maioral


do negócio. Dirigia do pescante a travessia arriscada, com tino e segurança
de velho boleeiro de diligência que fora, batendo, anos, a mesma estrada.
Logo atrás o Zeca e o Osório, em seguida os cargueiros sem arreata, pelas
dúvidas, que acolherados num aperto, atrasariam qualquer manobra.
Fechavam a marcha o Bento e o castelhano Negrito, que se lhes agregara,
de acaso, – "pa mirar de mas cercano a los guitas". E como quarteador,
para garantir nos repechos, a umas cinqüenta braças na frente, ia o Chiru –
novilho de aspa fina, como dizia o Fidêncio – para bombear o caminho.
A noite pendia para a madrugada, mas a névoa, adensada já nos
baixios, cerrava mais a escuridão. Mal se divisavam, diluídos na noite, os
vultos negros das coxilhas mais próximas, e as árvores e as moitas
fundiam-se na tinta escura, surgindo de chofre, a roçar os ombros e as
bombachas dos cavaleiros. De quando em quando, ao contornar-lhes as
faldas, os coxilhões elevavam-se numa grande mancha negra dentro da
cerração e pareciam crescer, barrando a estrada.
Silencioso dentro da noite perdia-se o campo enorme, imerso nos
vapores cada vez mais densos no ar frio e calmo.
Fidêncio Lopes fazia empenho em entregar o contrabando sem
desconto algum, não só pelo valor das mercadorias, mas por orgulho e
capricho de velho cruzador clandestino das fronteiras. Era para diversos
negociantes da vila e ia nos três cargueiros; sedas, jóias e armas, afora
alguma miudeza de pouca monta. Dezessete a dezoito contos. Mas o
comandante da guarda aduaneira, que há muito lhe seguia os passos
fugidiços, esperava desta vez seguramente apreender-lhe o negócio.
Fidêncio sabia disso e era, pois, uma questão de honra profissional o
enredar o rastro ao fisco e chegar a salvo. – Ultimamente para que serve o
quarenta e quatro? – arrematava disposto, antevendo escaramuça quente.
Pouca gente levava sempre consigo – que em tropa grande há mais
refugo que matambre gordo.
Do ponto em que estavam, pouco mais de três léguas havia para
entrar na porteira do Capão Grande, já em terras do Fidêncio. Depois de
alcançarem-na, estava concluída a empreitada, pois "nos campos dele, só
Deus". Tinham passado a linha divisória um pouco acima do Centurión.
Mais de uma semana de tempo ruim – as chuvas tinham levantado a água
aos galhos – ilhara-os do outro lado da fronteira, na pulperia do Aguirre, a
comer carne assada e jogar truco. Aberto o tempo, fizeram-se de viagem, à
boquinha da noite.
O rio campo fora. Não era para qualquer um achar o caminho certo
naquele mundo de água solta. As picadas do passo, borradas pela
enchente, perdiam-se por mais de duas quadras entre o mato baixo das
margens, torcendo em cotovelos, mergulhando mato adentro, contornando
sangas sumidas e atoleiros, na noite densa. Amarraram os cargueiros uns
aos outros para não se extraviarem e levantaram as canastras, se bem que
tudo viesse retovado com oleados e as bruacas fossem de couro inteiriço.
Mas, pelas dúvidas, que água não é brinquedo.
Fidêncio, com as botas atadas nos tentos, cutucou com o calcanhar
o colorado, que dava bufidos na beira d'água, e caiu na frente, certo que
nem capincho em porto velho.
– Rédea curta e venham vindo no mais, que eu aqui estou mesmo
que em casa.
A água marulhava, soturna, nas patas dos cavalos, subindo às
vezes até meia costela. Através da noite grande e negra vinha o rumor
abafado da cachoeira, quadras abaixo, afogada pelas águas grossas da
cheia.
138

O Negrito, que vinha na retaguarda, chasqueou para o Bento: "Pero,


chê, por acá ni los biguás". – E, livrando o corpo a um galho baixo: – "Palos,
antonces, adrede pa rachar las aspas a um cristiano. Por lo seguro no me
quedo aficionau".
O Bento, crioulo daqueles pagos e veterano em passagens
idênticas, respondeu no mesmo calão: – "Hace fuego en los ojos, castejano,
que te plantas en el charco".
Passado o fio da correnteza, embrenharam-se pela picada que
serpejava entre os caponetes ilhados, através dos sarandizais fechados,
nunca em linha reta, sempre quebrando à direita, à esquerda, procurando a
feição propícia da terra firme.
Afinal tinham saído para o campo limpo, e já traziam duas léguas de
marcha cautelosa e suspicaz, cada um com a Winchester atravessada no
lombilho, a mão no delgado, esperando pelo que desse e viesse.
Era a zona perigosa. De dentro da treva podia a cada momento
surgir, de abrupto, a guarda que velava. Desafeita e confundida na noite
opaca, a emboscada podia atalhar, estrupindo de chofre numa arrancada,
atacando à queima-roupa. Por isso, na frente, distanciado da coluna, ia o
Chiru, de bombeiro. Nele e na sua perspicácia e sangue-frio, estava a
segurança de todos. Era simples mas arriscadíssima a incumbência. Não
tinha mais que, ao pressentir a guarda, avisar os companheiros. Se, ao
perceber o perigo já não pudesse voltar, preveni-los-ia com um tiro, e
depois cuidasse da vida... Era posto que demandava coragem e dedicação.
Todos, porém, confiavam no Chiru, que, mesmo a custo da vida, não os
deixaria cair desapercebidos sob as carabinas da guarda.
Não a temiam, porém. Afeitos àqueles perigos e sobressaltos,
sempre em risco, na iminência da morte, cristalizara-se-lhes em hábito a
existência errante e insegura, noite e dia sobre as coxilhas da fronteira. Ora
cautos, resvalando em fugas contornantes, ora afoitos, rebatendo de frente,
à bala, o fisco vigilante, carregavam sempre as mercadorias que a tarifa
fazia preciosas. Entre a vida e a morte, aproximadas na expectativa dos
recontros, passavam calmos, quase indiferentes, derivando para aquele
comércio perigosíssimo a bravura e o estoicismo da raça, vindos de longe,
do passado guerreiro, aceso outrora nas lutas que haviam feito vibrar o
imenso arco da fronteira, distenso do Iguaçu ao Chuí, nos vaivéns incertos
das guerras e revoluções.
O Zeca, tentando divisar estrelas no céu encoberto pelo nevoeiro,
murmurou a meia-voz para o Osório, que vinha logo atrás: "Deve ir virando
para as quatro. Como quer, parece que escapamos".
Negrito, que não se sofria muito tempo calado, pôs o cavalo ao lado
do Bento – "Sabes, chê, que estoy c'una gana danada de pitar?" – O Bento
sacudiu os ombros. Que era ordem. Não se fumava. Acender farol aos
guitas, não é? Só se fumasse com a brasa para dentro.
De feito, naquelas ocasiões bania-se tudo que pudesse assinalar a
presença de passantes. Não se fumava e a conversa era pouca e em voz
baixa. E deslizavam assim, cortando o campo em silêncio, evitando os
pedregulhos da estrada, onde os cascos dos cavalos fariam ruído. O
Fidêncio ia sempre alerta, ouvido atento aos mínimos ruídos que
dissonassem do rangido abafado dos cargueiros e arreios.
Por sorte, nem quero-queros haviam encontrado, que os
denunciassem com o alarma estrídulo de eternas sentinelas dos campos. O
velho contrabandista prelibava já, no íntimo, mais aquele buçal passado aos
aduaneiros. Também, era que nem sorro velho naquelas coxilhas, onde
conhecia restinga a restinga, de há tanto que cruzava por ali. Mais algumas
quadras e estavam em casa. Depois era um brinquedo.
Na frente, meio indistinto, ouviu um estrépito surdo, como de cavalo
que tropeça. – Havia de ser o Chiru. Indiozinho de confiança, aquele! Ia
certo e vivo no rumo da querência.
Com efeito, o Chiru ia na frente, no tranco do picaço, furando com
os olhos a treva cinzento-negra da madrugada de névoa, orgulhoso daquele
139

posto de honra que lhe dera o patrão. Era, apesar de muito moço, a
confiança do velho Fidêncio. Morrera-lhe o pai o ano atrasado, e ele passou
a ser o capataz, o faz-tudo da fazendola da Limeira, onde o dono quase não
parava. Deixara o rancho com a mãe e instalara-se definitivamente na casa
do patrão, tomando a si todo serviço. Pouco mais que adolescente, a vida
do campo fizera-o homem depressa. Fidêncio estimava-o deveras,
passando ao filho a velha gratidão que tivera ao pai, de quando andavam na
revolução de 93, curtindo juntos as durezas da campanha, e onde fora por
ele salvo, num entrevero, baleado na perna e destinado a morrer sob as
patas dos cavalos, se o amigo o não tirasse na garupa. Morto o velho
companheiro, que jamais juntara pecúlio, a proteção e a amizade
reverteram ao filho, aquela amizade funda e concentrada, niveladora de
peões e de patrões, criados nas mesmas lides, onde gradua, não o
nascimento ou fortuna, mas o valor de cada um.
O Chiru ia pensando na sua vida. Tinha ainda que cangar duas
juntas antes do inverno e debulhar as carradas de milho que estavam no
girau do galpão pequeno.
Afora todo o trabalho do campo. Inda mais agora, com a compra
das duzentas reses do Ferico. Gado lindo... Tudo pampa. Cada novilha de
sobreano que dava gosto olhar-se. O patrão já dera ordem de ajustar mais
um peão, que os dois que havia não davam conta do serviço. E ia passando
em revista tudo o que havia a fazer, toda a sua vida simples e laboriosa,
sem desvios nem ânsias perturbantes, onde mal aflorava uma ambição.
Mais tarde, com certeza, assim que tivesse a sua juntinha de tambeiros,
podia então, mesmo sem deixar a estância da Limeira, dar uma arrumação
na vida. Essa "arrumação" era a Lavica... E ao pensar enchia-se-lhe o peito
de uma onda doce. Ah! a Lavica... Como um homem se deixa bolear... A
sua imaginação abria uma clareira na noite e, num retângulo do sol, via-a,
todo o rosto trigueiro da chinoquinha inundado da luz dos olhos. Mais que
os lábios úmidos, mais que o peitinho redondo de rola, mais que tudo nela,
prendiam-no aqueles misteriosos olhos de mulher, onde havia o infinito e a
suavidade das coxilhas, ora banhadas de sol, cantando de vida, ora imersas
na saudade e no langor das noites enluaradas. Neles moravam todos os
seus sonhos mal definidos e profundos. Queria-a e, pois, trabalharia para
possuí-la. E uma doce certeza confortava-o.
Era só mais....
Aqui, porém, interrompeu as cismas. Pareceu-lhe ouvir adiante um
ruído de metais, qualquer rumor abafado quebrando o silêncio, agora
pressago e inquietador. Puxou a pistola para frente e foi seguindo, de
ouvido atento, os olhos muito abertos para absorverem a luz escassa da
noite nas pupilas dilatadas. Nada percebeu, no entanto, e foi avançando. –
Raio de noite! Está que nem forno. – Cresceu-lhe à direita o vulto negro de
uma reboleira de arbustos, e não a passara ainda, quando uma voz grossa
e seca intimou:
– Faça alto, amigo!
E bem junto, como nascendo da treva, vultos de cavaleiros
cercaram-no. Percebeu os reflexos frouxos de botões de metal em dólmãs
escuros. Sentiu um nó na garganta, as fontes latejaram-lhe e nos ouvidos
rolava como um trovão de intermitências surdas.
– Não se mexa e diga quem é.
A hesitação foi rápida; aquela voz restituiu-lhe a calma. Num
segundo lembrou os companheiros que se aproximavam do perigo sem
suspeitar. Tinha que preveni-los. Viu o cano do revólver do guarda
apontando-o. Talvez morresse, mas tinha que preveni-los. Foi levantando a
mão direita, devagar, colada ao corpo; encontrou o cinto, apertou a coronha
da pistola, o indicador tateava o gatilho.
– Fale, amigo, senão...
Torceu o cano para o lado e premeu o dedo. Uma linguazinha de
chama relampejou, chamuscando-lhe os pelegos. O guarda, supondo-se
alvejado, atirou também.
140

Era o quanto bastava. Prevenidos pelo duplo sinal, os


contrabandistas executaram logo o preconcebido. O Zeca e o Osório, com
os cargueiros, penderam por uma encosta, sem ruído, furtando a volta.
Fidêncio e os outros infletiram à esquerda, coxilha acima, disparando as
armas. Era a manobra de sempre. Os guardas seguiram a direção dos tiros,
enquanto o contrabando mesmo, contornando, retomava longe o caminho,
já à retaguarda do perigo, reaviado e certo no destino.
Fidêncio com os companheiros continuavam retirando. Diferenciava-
se o estampido sonoro das Winchesters e a deflagração seca das Mausers
da guarda, em tiroteio frouxo, ao acaso dos alvos móveis e indistintos,
afastando-se dentro da noite.
Tênues, começaram a dealbar no oriente as primeiras claridades do
dia. Uma aura leve foi dispersando a névoa adormecida nas baixadas. Em
pouco tempo surgiu o sol, longe na imensidão do horizonte, dourando a
silhueta dos capões de mato que demoravam no campo como manchas
escuras.
Arrastado pelo cavalo, Chiru ficara estendido num alto, os braços
abertos e o rosto voltado para o céu. O primeiro raio de sol, tangenciando a
lombada das coxilhas adormecidas, veio incidir-lhe na face, onde coagulara
um fio de sangue.
Banhado daquela luz tépida, o gaúcho parecia apenas dormir, tão
sereno tinha o rosto e tanto, para aquela alma nobre, era simples a lealdade
e até mesmo a morte.

Os contrabandistas de Darcy Azambuja são fornecedores do comércio das vilas,


dotados de “honra profissional”. O próprio nome do capitão do bando, Fidêncio Lopes, ecoa
a idéia de fidelidade, de retidão, enquanto o sobrenome remete à Simões Lopes. Fidêncio é
conhecido do comissário que o persegue e uma vez mais distingüem-se e opõem-se
soldados e guarda, representando o embate entre uma prática honrada pelo pertencimento
ao lugar e o exercício de uma tarefa estranha à organicidade local, profissionalizada, talvez
revelando mesmo a origem do termo “guita”, que na gíria rio-platense contemporânea quer
dizer dinheiro.

Segundo o conto, os contrabandistas não se intimidam com a perspectiva de


enfrentamento, tinham se acostumado a lutar nas batalhas pelas fronteiras do Rio Grande.
Desta forma, a fronteira encontra-se na origem do contrabando menos por representar uma
alternativa de sobrevivência ou negócios “fáceis” do que por ter estimulado uma índole
corajosa em seus habitantes. Há um deslizamento entre os termos contrabandista,
fronteiriço, soldado e gaúcho.

O bando de Fidêncio Lopes representa a população campeira: Zeca, Osório, o negro


Bento e o castelhano Negrito têm por batedor Chirú. As mulheres, recorrentemente
ausentes. A “democracia da estância” é afirmada com todas as letras e a fidelidade ganha
contornos hereditários. É a honra do gaúcho, contrabandista ou não, na realidade, o ponto
central dessa história, como nos revela seu desenlace: surpreendido pela guarda em meio a
devaneios sobre seu futuro, Chirú não hesita em sacrificar-se, disparando para alertar aos
companheiros. Vale observar que, na democracia da estância, quem morre é o índio: jovem
141

e herói, mas também dispensável. Fica em aberto quanto da honra campeira exaltada é
registro, e quanto é proposta.

As muitas recorrências entre este conto e aquele escrito por Simões Lopes Neto
sugere que ambos sejam lidos como “encarnações” dos personagens contrabandistas.
Jango Jorge e Chirú vivem entre cavalos e homens, são mortos por desejarem o
sedentarismo, por priorizarem a família e o grupo, em detrimento da sagacidade necessária
a driblar as leis do Estado.

3.4. “OS CONTRABANDISTAS” DE MARIO ARREGUI

O uruguaio Mario Arregui (Trinidad, 1917-1985) relata, em Os contrabandistas


([1960] 2003), a tentativa frustrada de travessia do “fronteiriço Jaguarão” com
contrabando para o Brasil. O percurso é o mesmo de Fidêncio Lopes, trilhando o
Paso del Centurión.

Esse conto foi publicado no livro “Cavalos do amanhecer”. A edição aqui


usada é da L&PM, de 2003. Outra versão da obra já havia aparecido em 1982,
conforme relata enfaticamente seu tradutor, o escritor Sérgio Faraco:

tendo [em 1981] conhecido a ficção do uruguaio Mario Arregui, quis traduzir
e publicar seus contos. Localizei o escritor e começamos a nos
corresponder. Por insistência minha, ele lia os contos já vertidos. Dava
sugestões, dirimia dúvidas, esclarecia passagens que, para mim, eram
obscuras, um regime de colaboração que resultou em mais de cinqüenta
cartas entre Porto Alegre e Trinidad [...] [reunidas em ARREGUI; FARACO,
1990]. O livro foi publicado no Rio de Janeiro pela Editora Francisco Alves.
Seguindo uma orientação da casa, esmerou-se o revisor na destruição de
tudo aquilo que fora desveladamente construído. Para começar, você em
lugar do tu, a varrer, nos diálogos campeiros. Às vezes o revisor se distraía,
ou rendia-se ao hábito inculto do carioquismo: trocava o pronome e deixava
o resto. E era só? Não. Sumariamente eliminados todos os guris das
coxilhas sulinas para dar lugar ao garoto das areias copacabânicas. A
ordem era acariocar, imposição do linguajar ex-metropolitano e decadente,
atípico, a uma literatura cujo substrato é típico, provincial e muito mais cheio
de vida. E ainda não era só: nem um, nem dois, mas dezenas de erros de
má revisão ou de indigência vocabular, como pensar que percussor era
cochilo datilográfico e emendar para percurso. (FARACO, 2004).

O tradutor defende sua obra e arremete contra a padronização de sua


linguagem, em defesa do provincial e do típico, explicitando o conflito entre a
“língua” regional e o português.
142

OS CONTRABANDISTAS
Mario Arregui, 1960

Cinco homens a cavalo, uma trintena de cavalos soltos e uma mula


velha e cega estavam vadeando um rio. Era verão, meia tarde de um dia
sereno e redondo.
Homens e cavalos cruzavam o rio, dos arbustos e juncais da
margem esquerda para o matagal da margem oposta: era o fronteiriço
Jaguarão. O movimento do grupo se assemelhava a uma operação bélica e
se cumpria sob o comando de Rulfo Alves, homem corpulento e de grande
barba negra.
– Camba um pouco rio acima – gritou o chefe, com voz poderosa.
Montava um tostado alto e esguio e já se encontrava na metade da
travessia. O rapaz que recebera a ordem esporeou seu zaino negro e
avançou quase a galope, repartindo e levantando águas que o sol fez
rebrilhar.
O Jaguarão é muito largo naquele lugar solitário. Quem o conhece
sabe bem que, precisamente por ser largo, é raso no verão: as correntezas
invernais formam remansos e bancos de areia que parecem pequenas
pontes submersas.
– Não apura tanto, filho – gritou para o rapaz o velho da égua
tordilha que encabeçava a marcha.
Muitos (a maioria) dos cavalos que referimos como soltos, para
significar que não levavam ginetes, iam carregados com volumosas bolsas
de couro amarradas com cinchas e peiteiras de sisal. Eram animais de todo
tipo e pêlo, traziam buçais de tentos retorcidos e as colas bem compridas.
Os outros, os que não levavam nem ginetes nem bolsas – os cavalos de
muda dos contrabandistas –, eram, em geral, potros de boa estampa, não
traziam buçais e suas colas, aparadas com certa uniformidade, mal
roçavam na água.
Rulfo Alves olhou para Juan e Pedro Correa, os dois tapes que
vinham bem atrás. Os inseparáveis irmãos Correa pareciam gêmeos,
embora não o fossem, e montavam dois baios que pareciam irmãos, e
talvez o fossem. Com uma corrente, Pedro puxava a mula velha e cega, que
volta e meia empacava, medrosa de rio e arroio como qualquer mula.
– A vontade que eu tenho é de degolar essa mula – dissera ele,
com acento fortemente abrasileirado.
– Se degolas a mula – acabava de dizer Juan, com acento igual –,
Rulfo te degola.
– Não deixem que se espalhem – chegava-lhes a voz do chefe,
como ricocheteando na superfície mansa e móvel do rio.
As grandes bolsas de couro cru, com o pêlo para dentro,
periodicamente eram untadas por fora com graxa quente de rim, mas, ainda
assim, Rulfo e seus homens zelavam para que não se molhassem demais.
Naquele zelo colaboravam por instinto os cavalos, que caminhavam como
tateando os bancos de areia (é sabido que todo cavalo nasce com aptidão
para nadar, mas também com o desejo de não exercitá-la).
– Se esta puta não tivesse tanta serventia... – resmungou Pedro
Correa. – Prende um mangaço nela, Juan!
Dotada de uma memória infalível e conhecedora às escuras de
caminhos e sendas de uma vasta zona, inveteradamente receosa e dona de
sentidos misteriosos criados ou aguçados pela abolição dos olhos (que
Rulfo arrancara, anos antes, com uma faca em brasa), a mula, para os
contrabandistas – sobretudo para o chefe –, era um auxiliar valiosíssimo
nas noites mais tenebrosas. Parda, arratonada, jamais pelechava por
completo, talvez por velha, talvez pelo fato de que as mulas guardam como
soterrada ou dissimulada sua assombrosa vitalidade. Pouco se dava com os
cavalos. Prendiam-na sempre com uma corrente, pois uma de suas manhas
era mastigar as guascas até cortá-las.
143

Foi nulo o resultados dos muitos mangaços que lhe deu Juan
Correa.
O velho da égua tordilha e os cavalos que ponteavam a marcha já
se aproximavam da margem direita. O rapaz do zaino negro vinha
amadrinhando metros atrás, águas abaixo. Alves mandou o velho ir
atalhando ali mesmo e esperar um pouco. Queria que tornassem a juntar-se
os cargueiros, conforme o costume (a cola do cavalo da frente atada no
buçal do que vinha atrás), antes de atravessar o mato e tocá-los quase duas
léguas por diante, cortando banhados e pajonais. Planejava chegar à
noitinha numa região de cerros pedregosos, onde conhecia paradouros
seguros, não longe de certo casario que possuía mulheres e onde talvez
pudesse vender parte do profuso contrabando que trazia. Estava satisfeito.
Acreditava que enganaria mais uma vez as patrulhas fronteiriças e seu
grande e perigoso inimigo, Comissário Silveira. Conferiu a altura do sol, deu
um giro com seu tostado e gritou aos irmãos Correa que se apressassem.
Vendo que não venciam os medos e a teimosia da mula, ergueu-se nos
estribos e soltou seu vozeirão:
– Um de vocês monte na mula!
Como um eco desse grito, o matagal da margem direita devolveu o
matraquear seco e furioso das carabinas policiais que atiravam para matar.
O velho e o rapaz tombaram, feridos de morte, na primeira
descarga. Alves precipitou seu cavalo para os lugares fundos e o obrigou a
nadar de viés para os disparos, agarrando-se nas crinas e oculto atrás das
paletas. Os irmãos saltaram de seus baios iguais e, agachados, maneados
pela água e às vezes enterrando os pés na areia e no barro, correram para
os juncais da margem esquerda. Os cavalos se detiveram, alguns
caracolearam, murchando as orelhas, outros ameaçaram retroceder, mas
sem demora a tropilha inteira e solidária reiniciou a marcha como se nada
tivesse acontecido (provavelmente, todos ou quase todos já haviam
escutado, mais de uma vez, detonações de armas de fogo). Ainda se faziam
ouvir, menos unânimes, mais espaçados, os estrondos das invisíveis
carabinas.
Várias balas mosquearam de branco o tostado do chefe, que pouco
a pouco foi deixando de bracear e ficou boiando, afundando lentamente.
Rulfo o abandonou e pôs-se a nadar na direção de uma ilhota próxima. Era
bom nadador, escondia-se em compridos mergulhos.
Quase de bruços, escondidos entre juncos e espessos camalotes,
Juan e Pedro viram na água o pipoquear das balas que buscavam Rulfo e
observaram como todos os cavalos, inclusive os quatro encilhados,
desapareciam um atrás do outro, no matagal da margem oposta. Divisavam
também, um tanto vagamente, e sem avistar os policiais, a fumaça dos
disparos, pequeninas nuvens brancas que se elevavam indecisas na tarde
sem vento. As carabinas, por fim, emudeceram, e fez-se então um grande
silêncio.
– Nos salvamos – disse Juan, com a voz desnecessariamente
baixa.
– Será que vão cruzar o rio? – perguntou e perguntou-se Pedro.
– Eu digo que não. Aqui eles não mandam nada.
– Mas é melhor a gente dar o fora.
– E sem fazer barulho.
Ergueram-se um pouco para ver melhor. Nada de anormal puderam
notar no matagal fronteiro. Viram os corpos meio submersos do velho e seu
filho, decerto encalhados na areia, viram afastar-se águas abaixo,
vagarosamente, a parte que flutuava do cavalo de Rulfo, viram um bando de
pássaros atravessar o rio com uma curva ampla, em grande parte inútil.
Depois da violência, a paisagem agora com mortos exibia uma
calma falsa, como hipócrita e ardilosa, que de algum modo eles perceberam
e lhes provocou uma espécie de temor animal.
– Vamos embora – propôs de novo Pedro. – Os policianos foram
pegar os cavalos... e quem garante que não vão voltar?
144

– Vamos – disse Juan.


Abandonaram o juncal e escorregaram por um barranco lateral,
internando-se no mato, que ali era bem mais ralo. Caminhavam sem rumo
certo, simplesmente distanciando-se daquele lugar. Intimamente se
lamentavam por ter perdido, na precipitação, seus baios tão necessários.
– Eu digo que também mataram Rulfo – Disse Juan.
– Não pode ter escapado – concordou Pedro.
Tinham esquecido a mula ou não haviam pensado nela, mas
sabiam que não podia estar longe. Pouca ou nenhuma surpresa lhes
causou encontrá-la.
– Olha só a mula velha – disse Juan, parando.
– É mesmo, a mula – disse Pedro, e também parou.
A mula, de cabeça torcida para não pisar na corrente que arrastava,
dava passinhos curtos e pastava com a tranqüilidade de um ser solitário
sobre a terra, possuidor de um tempo ilimitado. Comia farejando uma e
outra vez o pasto, a palha, os trevos doentes de sol, antes de arriscar a
dentada. Juan e Pedro, sem saber por quê, pois só de estorvo lhes servia,
alegraram-se ao vê-la.
– Ela sempre se sai com uma das suas – comentou Juan.
No mesmo instante a mula ergueu a cabeça e alertou as orelhas na
direção de uma ponta de mato à esquerda dos irmãos. Eles olharam e viram
aparecer Rulfo Alves.
– Rulfo! – exclamaram.
O corpulento chefe vinha cambaleando, havia sangue nas roupas
encharcadas e rasgadas, sangue também na escorrida barba negra.
Ofegava roucamente e borbulhas sanguinolentas cresciam e estalavam em
sua boca. Deteve-se, pernas abertas, fitou primeiro a mula, depois os
Correa. Uma intensidade arisca e com algo de vítreo dilatava os olhos dele.
Por um momento deu a impressão de meditar, em seguida fez um gesto de
mando, apontando a mula. E falou. Voz surda, mas autoritária. Pronunciou
uma só palavra: as três sílabas do nome de um português largamente
conhecido no pago, famoso por curar feridas com água fria e,
principalmente, por sua habilidade na extração de balas com tenazes de
arame ou chamando-as a ponta de faca.
Aquele mestre da cirurgia primitiva e da hidroterapia vivia num
povoado como caído do céu, num sítio qualquer das solidões sulcadas pelo
Jaguarão e seus afluentes, aproximadamente a cinco léguas do ponto em
que se encontravam os três homens e a mula. Consideraram os Correa que
a viagem seria longa e difícil, no melhor dos casos não terminaria antes da
noite. Juan pensou também que pouco poderiam contar com os favores da
lua demasiado nova.
Rulfo agarrou-se nas cruzes do arreio e empreendeu um salto que
ficou pela metade. Acorreram os irmãos, pressurosos, ajudando-o a montar.
Mal se acomodou, tombou sobre as crinas, vomitando sangue. A mula,
paciente – ou indiferente –, não se moveu.
Juan desprendeu a corrente do buçal e com ela ligou, por baixo do
peito do animal, os tornozelos do ferido. Agarrou o cabresto e deu um
puxão:
– Toca, vieja.
A mula deu um passo, apenas um. O chefe entesou o corpo.
– Toca, vieja – repetiu Juan, sem resultado. – Dá-lhe, Pedro.
Pedro desembainhou o facão e deu-lhe um planchaço nas ancas. A
mula deu um passo, depois outro; mais outro... E assim iniciou-se a viagem,
lenta peregrinação cuja meta explícita era a casa do português, mas ao
mesmo tempo, numa instância inevitável e também secreta, era uma longa
viagem para a noite, uma viagem que talvez, em essência (e os irmãos o
intuíram sem demora), fosse uma caminhada até o lugar prefixado onde a
morte, quieta e de pé como as árvores do caminho, esperava pelo homem
tempestuoso e temido que mais de um crime de sangue devia a cada lado
da fronteira.
145

Imagens sucessivas podem resumir boa parte dessa viagem: a


unidade Juan-mula-Pedro andando entre macegas, árvores petiças e
arbustos de espinhos como agulhas, Rulfo inclinado no lombo da mula e os
duros cascos dela removendo o pó da trilha e amassando as gramíneas
secas, ao sol já quebrantado; Juan-mula-Pedro vadeando um arroio de
água escassa e leito pedregoso, que desembocava, por sua vez, no
Jaguarão, e, ao sol mais baixo, Rulfo tombado sobre as crinas, os cascos
empinados da mula pisando com jeito uma encosta que também era
empinada; Rulfo balançando-se e sua comprida sombra balançando-se bem
mais, enquanto a mula avançava com cautela por um liso areal e Pedro
golpeava-lhe as ancas com o facão; num cenário de esparsas pedras
cinzentas, não muito grandes e em pé como homens, e de árvores altas em
cujas copas modorravam os últimos clarões do sol, Juan puxando o
cabresto e gritando pela vez milésima: “Toca, vieja”, e Rulfo Alves
emergindo de seu mutismo para dizer, surpreendentemente, com voz
precisa, não firme, mas bem modulada, um pouco zombeteira, um pouco
vitoriosa:
– Eu já imaginava, Dom Luís, que andavas à minha procura.
Juan Correa ouviu muito bem a frase, mas custou a acreditar, a
aceitar, a verdadeiramente ouvi-la. Não se atreveu a olhar para trás e até se
preocupou em puxar com mais força o cabresto. Também compenetrou-se
em caminhar em silêncio, em não repetir as palavras com que tantas vezes
tinha instado a mula. Adivinhava, sem saber como, que Rulfo ia erguido,
oscilando, os olhos extraviados, flutuantes, os braços como asas
destroçadas e a cara...
– Não mente – era novamente a voz rouca de Rulfo. – E vai pra
puta que te pariu!
Juan já não podia negar que ouvia e sentiu no seu íntimo uma
espécie de rachadura. Conhecia a biografia do chefe e sabia pela metade,
temendo saber tudo, que aquele Dom Luis era o velho Luís Medina, que
Rulfo matara com duas punhaladas nas imediações do Arroio Yerbalito.
Como para obrigá-lo a reconhecer aquele fato de pesadelo, a voz rouca fez-
se ouvir, em tom conciliador:
85
– Sabes muito bem que não te matei pelas costas.
Juan estremeceu, fechou momentaneamente os olhos e quisera
fechar também os ouvidos. Alguém ou alguma coisa respondeu, decerto o
inaudível Luís Medina, pois Rulfo pareceu sorrir e concordou:
– Bueno, isso sim...
Seguramente houve outra réplica e Rulfo protestou, com energia
desfalecente:
– Não, isso não!
Fez-se um silêncio que durou muitos metros do lento andar da mula.
O homem que abria caminho não olhou para trás e continuou calado, alerta,

85
Na edição da Ed. Francisco Alves, este trecho aparece assim:
“ – Eu calculava, Dom Luis, que andava a me procurar.
Juan Correa ouviu muito bem essa frase, mas custou a acreditar, a aceitar, a verdadeiramente ouvi-
la. Não se atreveu a volver a cabeça e até se preocupou em puxar com mais força o buçal. Também
compenetrou-se em caminhar em silêncio, em não repetir as palavras com que tantas vezes tinha
instado a mula. Adivinhava, sem saber como, que Rulfo ia erguido, oscilando, os olhos extraviados,
flutuantes, os braços como asas destroçadas, a cara...
– Não mente – era novamente a voz rouca de Rulfo. – E vai pra puta que o pariu.
Juan já não podia negar-se a ouvir e sentiu no seu íntimo uma espécie de rachadura. Conhecia a
biografia do chefe e estava a saber pela metade, temendo saber tudo, que aquele Dom Luis era o
velho Luis Medina que Rulfo matara com duas punhaladas nas imediações do arroio Yerbalito. Como
para obrigá-lo a reconhecer este fato de pesadelo, a voz rouca fez-se ouvir, em tom conciliador:
– Bem sabe que não o matei pelas costas” (ARREGUI, 1982, p.28-29).
Pode-se observar que as duas versões mais se afastam nos trechos dialogados, pela supressão do
“tu” sulino. Pode-se notar também que a denúncia do tradutor Sergio Faraco é bastante exagerada,
ao menos no conto em pauta. Seus motivos parecem ser menos literários que políticos.
146

puxando forte e sem folga o cabresto. Avançavam entre pedras cinzentas e


árvores altas. Estas, distantes umas das outras, só de longe em longe
conseguiam tocar-se pelos ramos. A noite estava próxima, mas não descia
sobre o mundo, brotava de dentro dele, enredando-se vagarosamente com
os elementos da paisagem. E a mula, que por certo registrava essa
aproximação, tornava-se cada vez mais lenta e desconfiada, mais pesada
no cabresto... Gritos de pássaro – esses gritos desconsolados e anônimos
que parecem riscar e até rachar um entardecer do agreste – começaram a
cair como em rajadas das copas das árvores. Um desejo ocupava, quase
por inteiro a alma do homem que abria caminho: não queria mais ouvir a
voz de Rulfo Alves.
Esse desejo não se realizou e novamente Juan teve de ouvir a voz
do chefe, alta e bastante clara no começo, depois trabalhosa, murmurante.
Notou que Rulfo Alves ainda discutia com o velho Medina e falava depois
com seu irmão Antônio Alves e seu amigo Vicente Suárez, o primeiro
degolado, o segundo crivado de balas na penúltima guerra civil. Juan,
mesmo querendo, não teria conseguido voltar a cabeça. Caminhava com
um esforço desmedido de todos os músculos e como se tivesse de copiar
cada movimento do movimento anterior. E enquanto isso a noite apertava a
sua teia e ninguém senão ela era quem emudecia – de repente, como se os
roubasse do mundo dos vivos – os invisíveis pássaros gritões. Juan se
sentia condenado pela mão presa ao cabresto, sem possibilidade de soltá-
lo, e pela curta distância imposta pelo comprimento de seu braço. A voz de
Rulfo se levantava em escarcéus imprevisíveis, desfalecida em pausas,
recomeçava inexoravelmente...
Aconteceu então que Juan, inconscientemente, começou a
acrescentar coisas ao que dizia a voz, a inventar ou criar por sua própria
conta a partir da confusão (dos gaguejos e pausas, sobretudo) do delirante
monólogo. Assim, ouviu nomes próprios talvez não pronunciados,
reconstruiu de qualquer maneira palavras rotas ou afogadas, completou
arbitrariamente frases que se haviam truncado. O que em realidade escutou
e o que acreditou escutar se enredaram num emaranhado indiscernível, e
essa mistura foi somando interlocutores de vozes sem som ao entrevero de
diálogos que era aquele monólogo, foi povoando com novos personagens o
conclave de defuntos convocado pelo ferido. Acreditou perceber, ou
imaginou, que à tumultuosa reunião concorria outro assassinado, Geraldino
Moreira, desnucado por Rulfo com uma garrafada, na porta de uma taberna,
e também o pai dos Alves, Miguel, que ele conhecera só de nome, e ainda
uma mulher chamada Paula, que vivera alguns anos com o chefe, e um
contrabandista, o negro Lorenzo, baleado pelos comandados do Comissário
Silveira, e outro morto pela mão de Rulfo, o milico brasileiro por nome Dos
Santos...
A noite, mais iminente do que em verdade chegada, era
onipresente. Como todo homem, Juan Correa já sentira vertigens diante do
vazio da noite, mas nunca o noturno tinha significado para ele o que
significava agora: um modo de ser das coisas. Foi por isso, sem dúvida, que
ver uma pedra (uma entre tantas, vários metros adiante) ameaçando deixar
de ser pedra para ser Dom Luís Medina não o impressionou como
demasiadamente sobrenatural. Era uma das muitas rochas comparáveis a
sentinelas esquecidas e passivamente monstruosas, e se transformava,
sem transformar-se inteiramente (como ocorre às vezes aos avatares dos
sonhos), no ancião alto e de cara fechada e sem gestos que Rulfo
despachara, numa ventosa noite de primavera, junto a um fogacho
escondido entre os matos do Yerbalito. Juan puxava o cabresto quase com
fúria, a velha mula avançava com sua má vontade de sempre... avançava
como em outro mundo estrito e firme, bem diferente daquele que começava
a desordenar-se nos olhos de seu condutor. O monólogo do chefe era agora
um murmúrio que Juan talvez nem ouvia, e a pedra era e não era, era e
deixava de ser e voltava a ser o alto e agora desenterrado Luís Medina,
147

esperando. A mula avançava... A pedra, de perto, era simplesmente uma


das muitas pedras que se erguiam pelo caminho.
A pedra era apenas a pedra, mas nos ramos baixos de uma árvore
parecia estar Geraldino Moreira, escondido. Sim, era ele, e se dobrava
como um grande pássaro à espreita, espiando com olhos de vivo pelos
buracos de sua caveira. Juan registrou em seu corpo os impactos do medo
(sua alma já estava fechada a qualquer novo espanto), mas conseguiu
desviar os olhos.
Desviou-os em vão: em pé, junto ao tronco de outra árvore e
apoiada nele parecia estar, ou estava mesmo, Paula...
Juan, pernas frouxas, arrepios gelados nas vértebras, obrigou-se a
contemplar o que seus olhos pensavam ver... Paula como desfigurada pelos
vários anos de morta, um rancor já sem força nas pupilas de vidro opaco,
uma pequena alegria maligna e um certo desvario coexistindo no rosto de
nuanças terrosas, meio borradas.
Juan, às vezes tropeçando, puxava o cabresto.
Numa outra árvore reapareceu e logo se ocultou o sorrateiro
Geraldino Moreira.
E outra pedra, por breve momento, transformou-se no velho Medina.
e passou rapidamente e tornou a passar, recortada nas primeiras
sombras noturnas, ainda vagarosas, nebulosas, uma outra sombra mais
nítida, mais sombra, que devia ser Vicente Suárez, o único amigo que Rulfo
incluíra em sua biografia.
e outra sombra delimitada, mas lenta, foi visivelmente Antonio Alves,
sujeitando com ambas as mãos sua trôpega cabeça de degolado de orelha
a orelha.
e outra foi o velho Miguel, o pai
e outra foi o negro Lorenzo, com seu andar alquebrado, incerto, de
negro entrado em anos
e outra que surgiu impetuosamente e fugiu de um salto foi talvez o
milico Dos Santos...
A noite cingia a paisagem e do murmúrio de Rulfo emergiam
palavras soltas e dissociadas e como cheias de pavor, nomes próprios que
gritava, imprecações e pedaços de imprecações...
O alucinado puxava o cabresto, a mula avançava com seus
alheados passinhos matemáticos e suas sempiternas ganas de empacar.
Aos olhos de Juan, uma alta pedra cinzenta era novamente ou
queria ser o velho Medina. E outra pedra mais baixa, também em pé como
um homem, expunha em seu topo a cara amulatada e vingativa do milico
brasileiro, e uma árvore falou, confusamente, e Paula reapareceu com sua
máscara de louca e seu leve regozijo satânico, e uma pedra balbuciou uma
injúria, e uma sombra disse algo, e outra sombra calada e parcimoniosa e
severa foi Dom Miguel Alves em pessoa, e outra sombra apressada lançou
gritos hostis...
O murmúrio do chefe parecia não ter fim e a noite cingia mais e
mais a paisagem, cingindo também a turba de mortos em torno do homem
que cabresteava a mula.
Giravam os mortos, giravam rondando e se atropelavam numa
endemoniada desordem... E no meio daquele horror, como sonhando e
sonhando-se e como se fosse ao mesmo tempo motor, espelho e carne de
um sonho de febre alta, caminhava o alucinado Juan Correa.
Mas, subitamente, cessou tudo. Calou-se a voz de Rulfo, o mundo
vibrou um instante, imobilizou-se e silenciou de modo estranho.
Uma faca, lançada de longe a uma tábua, crava-se com um golpe
seco e vibrante, e ali permanece imóvel, como enterrada desde muito
tempo. Algo parecido passou-se com o mundo, aos olhos e ouvidos do
também imóvel Juan Correa. Uma paz terminativa e minuciosa, tão urgente
que dir-se-ia instalada por um relâmpago secreto, cravou as coisas em si
mesmas, reduziu-as à quietude e ao mutismo que lhes eram conaturais.
Pedras e árvores deixaram de ser ou de arremedar ou de ocultar fantasmas.
148

As sombras voltaram a ser aquelas sombras gratas que nos verões dos
matos, nos campos muito acidentados, nos cerros, iniciam a noite por conta
própria. E a noite, embora ainda não o fosse (e fosse o último minuto do
doce tempo de pausa que não é dela nem do dia), retrocedeu um pouco,
deu um pequeno passo atrás, cedeu seu lugar àquela pausa belamente
imprecisa. A paisagem inteira adquiriu uma serenidade desmedida,
sobrepassando as possibilidades humanas de apreendê-la. Aquele mesmo
sossego, aquela nobreza fora de escala, parecia corresponder
misteriosamente a profundas pulsações da terra e à recuperada dimensão
do céu, e roçar ou tocar, por fim, na mula agora imóvel (“E ela sempre se
sai com uma das suas”, dissera um dos Correa) e no corpo e na alma de
Juan Correa. O mundo era também mais claro. Recém agora via Juan um
fragmento de lua, nitidamente, com uma proximidade bem mais amistosa do
que aquela aparentada por outros elementos da paisagem. E olhou para
trás.
Juan se volta e vê então algo que sabe que vai ver: o chefe está
morto, tombado sobre o pescoço da mula com a gravidade totalitária dos
defuntos. Mas também percebe, na claridade difusa, algo de todo
imprevisto: seu irmão Pedro, com os olhos baixos, certo ar de homem
atarefado, está limpando a faca na anca peluda da mula.
– Pedro! – exclama Juan.
Pedro ergue os olhos.
– Mas Pedro... – torna e reprova Juan.
Pedro Correa olha para a faca, já vai guardá-la e diz:
– Não tinha jeito. Se não o tranqüilizo, ele nos enlouquece os dois...

O conto, escrito em 1960, apresenta grande mescla de referências: os irmãos


Correa são descritos como tapes e falam espanhol com sotaque abrasileirado, o
curandeiro português mora em terras uruguaias, a identidade nacional dos
personagens principais é atribuída pelo leitor. Brasil e Uruguai não são
mencionados, ainda que a fronteira esteja muito presente. Além disso, as margens
do Jaguarão estão invertidas, já que os contrabandistas uruguaios partem da
margem esquerda/Uruguai ao encontro dos soldados do comissário Silveira na
margem direita/Brasil, o que não corresponde à geografia factual. (Fig. 22).
FIGURA 22: Paso del Centurión: esquema das pa(i/s)sagens em “Contrabandistas”.
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman com base em ARREGUI ([1960] 2003).
A história divide-se em dois momentos: primeiro apresentam-se informações
minuciosas sobre as técnicas de organização de uma caravana, uma descrição bem
focada no factual e no local. Ao tocarem a margem direita, os contrabandistas são
recebidos com tiros, morrendo o velho e o rapaz, Rulfo86 ferindo-se gravemente.

Inaugura-se a segunda parte do conto, em que o sobrenatural vai tomando


conta da “paisagem agora com mortos” (ARREGUI, [1960] 2003, p.36), e a temática
é menos ortgebunden (MORETTI, 2003), menos presa ao lugar. Numa jornada rumo
a “um povoado como caído do céu”, em direção à casa do curandeiro, a distância
vai-se pouco a pouco povoando dos fantasmas do passado do moribundo, rumo ao
lugar onde a morte espera.

A riqueza de detalhes verídicos oferecida pela descrição inicial reforça a


verossimilhança da fantasmagoria que se descortina nessa jornada por mundos
sobrepostos, onde o que se move é o espaço e não o tempo. O caráter documental
da primeira parte coloca-se a serviço da narrativa, invertendo a hierarquia presente
no “Contrabandista” de Simões Lopes Neto. Pedras e árvores transformam-se, para
Juan Correa, nos mortos do passado de Rulfo Alves, até que seu irmão dá cabo do
chefe.

A caminhada pelo entardecer não informa muito sobre o ofício de


contrabandista, mas faz da fronteira internacional uma metáfora para a morte, dando
à paisagem um caráter sobrenatural e reforçando o papel dos contrabandistas como
mediadores, pasadores, ora de mercadorias, ora entre vivos e mortos.

Apesar de o conto priorizar o fantástico, há nele interessantes percepções


sobre o espaço fronteiriço. Por exemplo, o fato de a fronteira ser desenhada por um
rio não traz maiores dificuldades à sua travessia, ao menos por homens a pé ou a
cavalo e o conceito de fronteira natural é relativizado pelos conhecedores do lugar.

No alinhamento dos contos, temos mais uma versão do relato da operação


quase bélica de homens e cavalos, irmanados na condição fronteiriça e opostos aos
representantes da aduana. Desta vez, no entanto, o medo e o horror à morte
substituem à honra e à fidelidade familiar. O gaúcho heróico é substituído por uma
figura cruel e gananciosa.

86
O nome parece ser uma saudação a Juan Rulfo (1917-1986) destacado escritor mexicano cujas
obras El llano en llamas e Pedro Páramo são apontadas como precursoras do realismo fantástico e
das crônicas dos deserdados.
151

3.5. “GUAPEAR COM FRANGOS” DE SERGIO FARACO

“Guapear com frangos”, de Sérgio Faraco (Alegrete, 1940), trata de dar


destino ao corpo de um contrabandista morto no ofício e aqui também um homem é
obrigado a cavalgar com a morte. Foi escrito pelo tradutor de Mario Arregui, que
radicaliza a linguagem já no título, abandonando as variações “Contrabandista”,
“Contrabando”, “Os contrabandistas” e partindo para a língua regional com um título
nada explícito.

O autor é muito produtivo, traduziu vários autores uruguaios e argentinos,


publica desde manuais de xadrez até biografias, passando por estudos críticos de
Shakespeare. Ele escreveu vários contos de contrabando e fronteira, como
“Travessia”, “O vôo da garça pequena” e “A voz do coração”. Também escreve
“literatura urbana”.

Cabe citar Guilhermino César para comparar os contos acima com os textos
que seguem. O crítico identifica duas fases no regionalismo literário gaúcho: na
primeira, os clássicos do gênero “trazem-nos o camponês rio-grandense à moda
gaúcha, heróico e fanfarrão mesmo na sua miséria”; na segunda, o protagonista,
“semi-proletário rural [...], percorre os livros dos autores rio-grandenses a pé e
desencantado” (1994, p.37) 87.

GUAPEAR COM FRANGOS

Sergio Faraco, 1986

Quando o tropeiro Guido Sarasua morreu afogado, aquele López foi


um dos que tresnoitaram o Ibicuí rio abaixo e rio acima, na obrigação de
não deixar corpo de homem sem velório. Chovera demasiado nos primeiros
dias de novembro, as águas se engaruparam nas areias, fazendo espalho
nos baixios, corredeiras em grotões que davam voltas e iam alcançar mais
adiante o rio, se entreverando nele com guascaços de espuma, marolas
caborteiras e um rumor de tropa sob a terra. Desmerecendo o aconselho da
razão, aventurara-se o Sarasua à louca travessia e agora jazia debaixo
daquele aguaçal endemoniado, pasto e repasto num farrancho de traíras.
Encontraram a canoa de borco, presa nos galhos de um salgueiro, e assim
começou o resgate em que figuravam aquele López e mais certo Honorato
pescador e mais um chacreiro e seu filho maior e outros que não vêm ao
caso.
Dois dias se passaram com os homens lancheando o rio até a barra
do Ibicuí e volvendo despacito, chuleando o corpo na corrente e naquele
mar dentro do mato. Na manhã do terceiro dia, ao botar a lancha n'água, o
filho do chacreiro avistou algo que parecia um tronco a resvalar na

87
Há aqui também uma referência ao texto “Os fundamentos do regionalismo”, de Dyonélio Machado
(Província de São Pedro, n.2, p.128).
152

correnteza. "Olha o morto", gritou o guri. Estavam perto do remanso onde


fora achado o bote. Decerto enredado, só agora Guido Sarasua se libertara
de sua prisão de água e singrava para o rio maior, sereno, soerguido,
solene com um buque de oceano.
Os homens laçaram o corpo e o trouxeram. Deitaram-no em lugar
seco e foram reunir-se ao longe para decidir se enterravam ali mesmo – tal
o estado em que se encontrava – ou levavam à família. Guido Sarasua,
quase sentado em sua rigidez de morto velho, parecia querer ouvir a
discussão de seu destino e fitar os homens com os buracos dos olhos
comidos pelos peixes. O sol pegava de viés no seu costado e ele parecia
mais inchado, mais verde, tão decomposto que o filho do chacreiro, a vinte
braças, vomitou três vezes. Os mais velhos, não: já haviam laçado outros
mortos naquelas e noutras águas, já não se achicavam no primeiro bafo da
podridão. E foi por isso que, num acordo que lhes pareceu decente e
respeitador, resolveram que o morto não podia ser entregue aos bichos sem
os recomendos do padre e uma vela que alumiasse os repechos do céu.
Honorato lancheava o corpo até o aberto onde haviam arrinconado
os cavalos, o chacreiro enviava um próprio à família, o guri ia ao povo
cabrestear o padre, e assim foram repartindo os serviços, e assim, àquele
López, tocou-lhe repontar o desinfeliz tropeiro, no último estirão de sua triste
volta para casa.
De retorno ao paradouro dos cavalos, partiu cada qual com seu
mandato e quedou-se solo o López com seu morto.
– Fodeu-se o viejo Sarasua – murmurou.
A faconaços, atacou um amarilho de bom porte e quitou dele uma
forquilha, cuja ponta apresilhou no arreio de seu baio. Com um galho menor
e o cordame que lhe emprestara o pescador, fechou e apequenou o
triângulo das varas que iam de arrasto – zorra meio achambonada que, na
circunstância, resultava ao contento. Perto, atropelado pelas moscas, o
Sarasua apodrecia, López precisou trancar a respiração para erguer o corpo
e sentá-lo na travessa da forquilha. Terminou de amarrá-lo e se afastou,
pálido, suando frio na testa e nas mãos. Acendeu um cigarro, pela folharada
no alto do arvoredo esteve um tempo a vigiar o vento, o preguiçoso vento
de uma manhã que se anunciava luminosa e escaldante. Com o mato
alagado, adiante a areia já secando, fofa, com a ressolana e o tranco de
cortejo, a viagem ia pedir mais do que duas horas, razão bastante para
acomodar seu rumo a contravento.
Partiu com o baio a passo, cruzando braços de rio, rasas lagoas,
areais, o galharedo se enganchava no cordame e ele precisava desmontar,
tocar no corpo, vez por outra erguê-lo, sacudi-lo. Nem deixara ainda os
sítios inundados quando lhe escapou um gemido. Apeou-se, correu até um
pequeno descampado e chegou já vomitando. Sentou-se por ali, arreliado
consigo mesmo. Na sua lida diária, de tropeadas secretas que varavam
alambrados, de furtivas travessias do grande rio que corria em cima da
fronteira, na sua lida de partilhas, miséria, punhaladas e panos
ensangüentados, via a morte e a corrupção do corpo como outro mal
qualquer, como os estancieiros, a polícia, fuzileiros e fiscais de mato, não
podia aceitar que numa viagem de paz viesse a ter enjôos de chininha
prenha. E cismava e se demorava na clareira, fumava outro cigarro quando
um relincho esquisito do baio e um ruído arrastado e outro relincho o
despertaram daquelas sombrias ruminações. Correu de facão em punho e
aos gritos espantou o tatu que fuçava nos restos do tropeiro. Sempre
chegou tarde. Feroz arranhador de caixões nos cemitérios campeiros, o
rabo-mole não poupara o Sarasua, saqueando pedaços do ventre, alguma
carne do pescoço, e da sobra cuidava o mosqueiro.
López montou de um salto e tocou o baio quase a trote pelo
caminho que escolhera entre o matagal, contrariando o ventinho molengão.
Não se animava a olhar para trás, não queria ver o corpo dilacerado e
também achava que, olhando, ia padecer demais a danação daquele cheiro.
Agora reinava o sol de pico, o arvoredo sombreando curto e o baio
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assoleado a tropicar. López fumava sem parar para trampear o olfato,


tentava distrair-se com pensamentos pueris e no meio deles se intrometiam
odores de mornura adocicada. E ele voltava a pensar, a perguntar-se, logo
ele, que não tinha o costumbre malo de se quedar cismando, imaginando
coisas, como os doutores, os preguiçosos e os jacarés.
De sua inquietude participava o cavalo, sempre a cabecear, trocar
orelhas, de quando em quando um nitrido baixo, ameaçador. Outros tatus?
Algum graxaim faminto na retaguarda do cortejo? López sujeitou o cavalo,
ouviu o rebuliço de pequenos animais pela ramaria. Desmontou, viu que o
Sarasua, depois do papa-defunto ou de outros bichos cujo assédio lhe
escapara, trazia uma cova na barriga e parte do costilhar já bem exposta.
Outra golfada de vômito e, sentindo que perdia a visão e o equilíbrio,
afastou-se com passos trôpegos, foi parar lá longe num montículo de areia
onde despontava uma sina-sina. Lá o vento favorecia e não sentia cheiro
algum, de lá podia ver o baio, o corpo, vigiar e proteger sua carga. Tirou a
camisa, enxugou o suor que lhe escorria pela testa e lhe salgava os olhos.
O mato era um grande forno verde e a areia já queimava no contato com a
pele. López via o baio com as virilhas encharcadas, abanando em
desespero a comprida cola para espantar a mutucagem, e figurou que
naquela altura, sem ser movimentado, o corpo de Guido Sarasua estaria
coberto de centenas, milhares de grandes e médias e pequenas moscas.
Pensou em desatrelar o cavalo e partir a galope, emborrachar-se no
primeiro bolicho do caminho. Mas não, não ia fazer esse papel de maula.
Era um pobre-diabo como todos os tropeiros, chibeiros, pescadores e
ladrões de gado daquela fronteira triste, mas jamais faltara à palavra
empenhada. Prometera levar o corpo e trataria de levá-lo, ainda que tivesse
de vomitar o próprio bucho. Ou de guapear com os bichos. Sim, porque vira
uma sombra na areia. No céu, um corvo espreitava o cadáver de Guido
Sarasua.
López quis levantar-se, suas pernas vacilaram, e ao menor
movimento o estômago se embrulhava. Firmou a vista na direção da carga,
o baio abanava a cola, pateava. Passou um segundo corvo em vôo rasante,
sumiu atrás das árvores, e era este o batedor mais avançado, o outro
permanecia dando voltas, agora mais baixas e menores. López pegou o
revólver. Quando o batedor reapareceu ele fez pontaria, ia atirar, perdeu-o
atrás do arvoredo. Quedou-se imóvel, cuidando, o baio outra vez se
arreliava, deu dois nitridos curtos, raivosos. López ergueu-se, sentiu uma
tonteira, uma zumbeira no ouvido, começou a andar e andava mais
depressa e prendia a respiração, chegou quase correndo e montou mal,
precisou se pendurar nas crinas para pôr-se às direitas no arreio.
O sol do meio-dia abrasava-lhe o pescoço, os ombros nus. López
cavalgava com a camisa no nariz e ansiava outra vez por vomitar. Viu de
longe, no campo, duas arvorezinhas gêmeas, e disse consigo que não
vomitaria antes de alcançá-las. Trezentos metros, quatrocentos talvez, o
baio avançava com dificuldade, enterrando as patas na areia, e López ouvia
o zumbido infernal como pendurado ao pé da orelha. Que restaria de Guido
Sarasua? E restaria alguma coisa para encaixotar debaixo de uma vela?
Voltou-se de viés, como para espiar antes de ver. E viu que o bicharedo
tinha lidado a capricho enquanto estivera a tomar um alce debaixo da sina-
sina. Guido Sarasua era agora um par de pernas despedaçadas, um grande
buraco negro das costelas para baixo, e ali se moviam, uns sobre os outros,
em camadas, moscas, formigas, vermes e uma profusão de insetos. López
saltou do cavalo e abancou-se a dar de camisa no que sobrava do tropeiro.
E gritava e voltava a guasquear o corpo, as moscas esvoaçavam em torno
de seus pés, de sua cabeça, batendo em seus ouvidos e seu rosto.
Alucinado, puxou o revólver, disparou a esmo e o tiro como o despertou.
Pálido, boca aberta, começou a recuar, caiu, levantou-se, tornou a recuar,
cambaleando, o vômito lhe saía quase sem esforço, descendo pelo queixo,
pelo peito. Recuou até sentir que não podia recuar mais, que suas forças se
esvaíam, e então caiu, sentindo a areia a arder e a grudar nas costas nuas.
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O imenso céu azul ao redor, que via através de uma teia de


fibrilações, e novas sombras que lhe cruzavam por cima. Moveu a cabeça e
avistou, não longe, aboletado num galho rasteiro e como se soubesse não
ter adversários, um enorme corvo negro. Laboriosamente, ofegando, pôs-se
de bruços. Apoiou os cotovelos na areia, apertou o revólver com as duas
mãos e disparou. A ave tombou, recompôs-se, deu um salto e caiu
novamente, a cabeça entre as patas e as compridas asas a bater. López
suspirou, deitou a cabeça no braço, seu corpo arqueou-se para um
inesperado vômito, mas nada mais havia para vomitar e de suas entranhas
brotou um ruído metálico. E uma vertigem que não se acabava. E calafrios.
Pensou que precisava erguer-se e o corpo negaceava, os olhos já não se
abriam e a cabeça teimava em passarinhar idéias. Fez ainda um supremo
esforço, mas os pensamentos se enredavam, fugiam, e antes do desmaio
ouviu confusamente, como dentro da cabeça, um relincho feroz, um fragor
de patas, e depois não ouviu mais nada.
Por menos de hora esteve aquele López como ausente do mundo,
mas ao despertar teve a impressão de que se haviam passado dias,
semanas, talvez anos. Deu fé, primeiro, de seu peito ardido. Em seguida, a
memória de um cheiro, a memória de um medo e outras memórias e outros
medos. Levou a mão à cintura, e não encontrando o revólver pensou-se
desamparado, perdido. Tateou a guaiaca, os flancos do corpo, localizou-o
no chão a dois palmos do nariz. Pegou a arma e, lentamente, como se
vigiado por mil olhos, ergueu o rosto e espiou ao derredor. Longe, além das
arvorezinhas gêmeas, lá estava o baio tranqüilo a pastar. Mantinha a
forquilha pendurada, mas do corpo nem sinal. López lembrou-se do galope
que ouvira e pôde reconstituir a cena: o cavalo disparando, a forquilha aos
solavancos, o corpo de Guido Sarasua sendo projetado e volcando no chão.
Com preocupação crescente seu olhar transferiu-se do campo para o fim do
mato, entre as areias. Nada viu, mas ouviu um rumorejar, algo entre o
murmúrio e o espanejar de sedas. Custou a identificá-lo, embora habituado
àquela espécie de retouço, tipo bando de china em festo. Era o banquete.
López sentou-se, apertando os lábios. De seus olhos saltaram grossas
lágrimas que correram junto do nariz e hesitaram na saliência dos lábios,
perlando. Passou por ali a língua seca, como a revitalizar-se em seu próprio
sentimento. Levantou-se, por fim, descortinando a cercania. No fim do mato,
uma dúzia de aves disputava postas de carne escura e ele partiu para lá,
cambaleando, o revólver preso nas duas mãos. Alguns corvos se
abalançaram naquele grotesco galope com que alçam vôo, os outros ainda
se atracavam na carniça quando ele começou a atirar. Quatro disparos
compassados, quatro balas perdidas, e as aves se alçaram todas numa
súbita revoada de asas e crocitos. Todas menos uma, aquele carniceiro que
tentou voar e, de tão pesado, se escarranchou numa ramada. López
aproximou-se com surpreendente rapidez e o agarrou. Quis matá-lo pelo
bico, esgarçando-o, o corvo se debatia e as garras vinham ferir seus braços,
seu peito e até seu rosto. Tomou do pescoço, então, para quebrá-lo, e ao
sentir numa só mão o peso inteiro, fraquejou e o bicho escapuliu, meteu-se
na mesma ramada onde pouco antes tombara. López fitou-o, fitou o bando
que, no céu, persistia em cercana e aplicada vigilância. E eram já mais
numerosos, e já vinham outros voando baixo, e outros apareciam pousados
em galhos bem próximos, silenciosos, pacientes. O cerco se fechava, e
López, por caminhos tortuosos de seu pensamento, logrou suspeitar que os
bichos tinham vencido. Procurou a camisa, vestiu-a, deu uma espiada no
corvo que, sorrateiro, tentava mudar de ramada. Não, não se considerava
derrotado ou covarde. Era a lei, pensava, e pelear com aqueles frangos
negros não ia mudar coisa alguma. E era a mesma lei que reinava em sua
vida e na vida de seus conhecidos. Todo mundo se ajudava, claro, mas
quando alguém morria os outros iam chegando para a partilha dos
deixados. Peixes, moscas, tatus, ratos, aves carniceiras comiam a bucho,
as coxas e os bagos de Guido Sarasua. Os companheiros levavam do
morto uma cadeira, uma bacia, um par de alpargatas pouco usadas, um
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ficava com a cama, outro com a mulher, e a miuçalha, como a ossada de


uma carniça, ia se extraviando ao deus-dará. De que adiantava guapear
com os bichos? Aproximou-se do corpo estraçalhado. De Guido Sarasua
ainda sobravam algumas carnes, protegidas pelas costelas e outros ossos
maiores – o bastante para um bando de urubus famintos. Desembainhou o
facão.
– Me desculpa, índio velho.
E como quem parte uma acha de lenha, curvou-se sobre o Sarasua
e abriu-lhe o osso do peito ao meio.

Em mais um conto de terror, Guido Sarasua morre ao insistir em cruzar o rio


Ibicuí na enchente. Seus parceiros procuram-no pela “obrigação de não deixar corpo
de homem sem velório”, até encontrar sua canoa presa nos galhos de um salgueiro
(talvez daí venha o nome sarasua, “lugar dos salgueiros” em basco). López é
encarregado de levar o corpo até a casa do morto. A missão revela-se impossível,
pois o cadáver é destroçado por animais em busca de alimento. Assim, López vai
abandonando a moral ao longo do caminho que não chega a concluir.

Num primeiro momento, a opinião de López – ecoando o senso comum – é de


que não se pode deixar um corpo sem enterro. No início da jornada, a primeira
náusea é rejeitada como “enjôo de chininha prenha”, já que a morte não se
distinguiria de outros males, como os “estancieiros, a polícia, fuzileiros e fiscais do
mato”.

Em seguida, abalado pelo mal-estar e pela morbidez excessiva provocada


pelos sucessivos avanços dos carniceiros (tornando a narrativa quase insuportável),
López argumenta de si para si sobre a importância da honra. Até que, depois de
perder as forças e recuperá-las, López curva-se sobre o Sarasua e quebra o osso
que protegia as últimas carnes do cadáver. Esse gesto vem acompanhado da
constatação de que há uma semelhança entre a rapina de animais e a dos
humanos.

No conto há três progressões simultâneas: a da paisagem, do mais


úmido ao mais seco, do rio em direção ao povoado; a da moral, que vai da
afirmação dos preceitos religiosos à aceitação da cadeia alimentar; e dos corpos, o
morto literalmente se despedaçando e López, de náusea em náusea, abandonando
crenças (Fig. 23).
156

FIGURA 23: Foz do Ibicuí: mapa do percurso de López e do defunto Sarasua.


Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman a partir de FARACO, [1986] 2000. Tratamento de Circe Dietz.
157

No conto de Faraco, o corpo volta à natureza e guapear com frangos – isto é,


combater corvos e urubus – é guerra perdida. A moral é uma circunstância, bem
menos absoluta que aquela que custara a vida ao Chirú de Darcy Azambuja. A
paisagem fica gradativamente mais inóspita, os corpos se desfazem, e com eles a
honra. Novamente, os contrabandistas constituem-se nos intermediários. Entre a
cultura e a natureza, a integridade dos corpos e sua dilaceração, entre a vida e a
morte, os passadores ativam a paisagem humanizada com suas práticas.

“A tragédia do corpo” já aparecera no “Contrabandista” de Lopes Neto, antes


de tornar-se o tema central em “Guapear com frangos”, e remete à Antígona de
Sófocles, que no século V a.C. “desobedece pela justiça e pela verdade” (FRAISSE,
1997, p.49), aquela que luta para dar um destino ao corpo do irmão Polinices,
honrando o morto com os funerais que lhe garantiriam baixar ao Hades, a morada
dos mortos.88 Assim, articulam-se conto-causo-mito, conforme desenvolvemos no
capítulo 2.

Essa obra é freqüentemente interpretada como a representação do conflito


entre a lei natural (da família ou dos deuses), defendida por Antígona, e a lei do
estado, pontificada por Creonte. O contrabandista é um contraventor frente à lei do
estado, mas, por outro ângulo, pode ser visto como um defensor da sobrevivência
de sua família ou, como é usual formular na fronteira, sua ação pode ser ilegal, mas
é legítima. A restituição do corpo à família encena a devolução da honra ao
contrabandista e, consequentemente, à comunidade local. No entanto, López é
forçado a dar-se conta que, maior que a lei do Estado e que a lei dos homens é a
ordem das cheias dos rios e dos animais carniceiros, a mais natural das leis.

88
“Pois não ditou Creonte que se desse a honra / da sepultura a um de nossos dois irmãos /
enquanto a nega ao outro? Dizem que mandou / proporcionarem justos funerais a Etéocles – com a
intenção de assegurar-lhe no além-tumulo / a reverência da legião de mortos; dizem, também, que
proclamou a todos os tebanos / a interdição de sepultarem ou sequer / chorarem o desventurado
Polinices: / sem uma lágrima, o cadáver insepulto / irá deliciar as aves carniceiras / que hão de
banquetear-se no feliz achado” (SOFOCLES, 1998, p.23-34). Além da coincidência do tema, imagens
como a recepção entre os mortos e o banquete das aves de rapina respaldam essa analogia.
158

3.6. “O SULQUE DE RODAS VERMELHAS” DE ALDYR GARCIA SCHLEE

Aldyr Garcia Schlee nasceu em Jaguarão em 1934, e tem produzido contos


sobre “o júbilo dos deserdados, o regozijo dos esquecidos”, quase sempre os pobres
e os muito pobres da fronteira (SCHLEE, 1999, p. 5). Ele posiciona sua obra na
comarca do pampa, ao afirmar que seu livro Linha Divisória contém cuentos
puebleros, de literatura “brasileira, mas, antes, gaúcha [...] um pouco uruguaia nos
temas e na amplitude geográfica” (p. VII), nem bem campeiros ou criollos nem
propriamente urbanos. Os livros de Aldyr Schlee circulam também em espanhol, em
versões feitas pelo autor mesmo, que também traduziu clássicos argentinos e
uruguaios como o Facundo, de Domingos Faustino Sarmiento e Pátria uruguaia, de
Acevedo Diaz, além de verter contos de João Simões Lopes Neto para o espanhol.

Em sua obra há histórias sobre sotaques e vocabulário, sobre as relações


amistosas entre brasileiros e uruguaios, sobre ciganos fronteiriços, sobre
passadores no rio etc. A escrita de Aldyr Schlee orienta-se pela busca do relato oral,
pelo registro das vidas comuns.

O SULQUE DE RODAS VERMELHAS

Aldyr Schlee, 1988

As quitandeiras vinham todos os sábados, instaladas em bolantas,


faétons ou sulques, ou sentadas de lado em cavalos cheios de
penduricalhos, enfiadas, pencas, cestas, sacos, sacolas, aves, ovos e
espigas. Algumas atravessavam a ponte para oferecer seus produtos do
lado de cá, quase todas permaneciam sob os primeiros mais altos arcos da
rampa que leva ao Río Branco. As que se bandeavam tinham fregueses
certos, conhecidos, compadres, levavam os filhos junto para a benção e
voltavam com açúcar, farinha, café e alguns trocados. As que ficavam sob a
ponte, na sombra aliviavam os cavalos, espalhavam em volta o que tinham
à venda, e aproveitavam para tirar uma tora enquanto não chegavam os
primeiros compradores. Ou alguma mutuca renitente.
Doña Lydia era quitandeira uruguaia, de voz alta, esganiçada, mas
baixota, gorda, mulher de mais de seis ou sete arrobas, viúva que nem
gostava de se lembrar do seu marido, brasileiro e bêbado, morto em
bochincho, depois de levar uma tunda tuzina de rebenque. Ela ficara com
seis filhos para sustentar, escada de um a sete anos – fora um que morrera
de coqueluche e que então estaria com cinco. Dos seis, tinha colocado a
menina mais velha na casa da madrinha, dera o mais pequeno para um
vizinho criar, e vivia com quatro num rancho, a légua e meia da Cuchilla,
criando galinha, plantando milho e abóbora, engordando a porca com os
leitões.
Comprar um sulque era a maior ambição de Doña Lydia. Um sulque
de altas rodas vermelhas, pretinho, puxado pelo cavalo manso que
carregava a pipa. Um sulque que a levasse a Río Branco e que pudesse
atravessar a ponte até Jaguarão, carregando mais, tanto na ida com os
159

frutos que vendia, como na volta com os mantimentos que comprava. Era
nessa compra e venda que ela depositava suas esperanças de ter o
carrinho, a “aranha”, como se chamava no Brasil... Sempre vender mais um
pouco do que comprar e guardar mais esse um pouco, sempre...
De guaiaca em punho, enquanto contava os reales e juntava os
pesos e imaginava o sulque, Doña Lydia aliviava o surrão no rancho,
trazendo os quatro filhos de cinto apertado, a ração contada: café amargo,
bolacha de barrica, charque, arroz-de-carreteiro. Só fazia pão uma vez por
mês, não tinha vaca de leite, e o resto – mogango, abóbora, milho, galinha,
ovo, laranja, limão, não era para comer: era para vender.
Sabia que os guris até furavam casca de ovo com alfinete para
chupar, e que roubavam limão ou laranja de vez em quando. Naranja, como
ele dizia, misturando português e castelhano. Mas fazia que não via. E
ficava com muita lástima deles, sujeitos àquilo. E, de noite, desconjurava o
pai dos filhos pela miséria em que os deixara, e rezava forte, pedindo
perdão a Deus, explicando que só queria o bem de todos, precisava do
sulque, estava ficando velha, gorda, nem escanchada se ajeitava mais no
cavalo, que dirá de lado, com a perna formigando de dormente, se assando,
escorregando, por distâncias e distâncias, a lo lejos, só para sustentar os
pibes.
Punto Fijo era o nome do seu cavalo de sela, cara branca, entre
malacara e picaço porque não era nem uma coisa nem outra, nem claro
nem escuro, sendo antes lobuno, só com a estrela de meio dos olhos
escorrendo até o focinho de narinas largas e beiços cor-de-rosa. Cavalo
baldoso que não puxava nem água, mas que agüentava firme os quase cem
quilos de Doña Lydia se desequilibrando e resmungando por cima. Para
puxar a pipa havia um matunguinho de pêlo comprido, até de pestanas
compridas, dócil e com ar de envergonhado, que vivia pastando na volta do
rancho e se submetendo às vontades mínimas da criançada. Os dois
cavalos estavam magros como os guris. E notando isso é que Doña Lydia
se preocupava, não pelos cavalos, naturalmente. Mas pelos filhos
minguantes, pelas economias poucas e pela soma de tanta falta de tudo.
Entretanto, quando encontrava outra quitandeira a caminho de Río
Branco, levantava as mãos para o céu, por la Vírgen, agradecendo pela
saúde de ferro e pelos chicos que possuía, dizendo que graças a Diós nada
lhes faltava; e que podia ficar velha descansada porque casa larga e comida
farta os filhos tinham; e que eles já sabiam se arranjar na sua ausência. Por
baixo do lenço preto, então, sua cabeça imaginava o sulque e sua
consciência a recriminava com doçura consolante. O coração sofrido se
descompassava na mentira, saltava violento diante do sulque e subia ligeiro
e quente, no peito, quando chegava a vez da consciência. Tanto e tanto que
Doña Lydia se afogueava enrubescida, tinha que parar de falar para conter
as lágrimas, emocionada.
Mais emocionada ainda ficava ao ver os filhos dados: a mais velha,
já ficando moça, lá em Jaguarão, o menorzinho com sete ou oito anos, ali
pertinho, vendo-a passar, abanando rindo. Terezita estava bem acomodada
com a madrinha, tratavam-na como gente da família e havia uma esperança
comprida de que casasse com o menino moço da casa. Paco, Paquito, não
passava necessidade, já ajudava nas lidas de todo-o-dia e tinha até
promessa de ir para o Liceo. Mas os olhos de Terezita quando ela chegava
de visita; e as mãos de Paquito quando ela passava pela cancela, os olhos
e as mãos ficavam durante muito tempo fitando-a e acenando-lhe, olhavam-
na por dentro e remexiam-na em cima do cavalo. E faziam tremer suas
mãos e se embaciar seus olhos.
Aí, Doña Lydia chegava em casa sem ralhar com os outros: Patin,
Gelito, Roberto e La Lola, que então era simplesmente Lola. La Lola, só a
chamavam assim quando se zangavam com ela. A menina tinha perto de
treze anos e cozinhava o de sempre além de ajudar um pouco na horta, na
roupa lavada e no banho dos irmãos: Patin, entre nove e dez; Gelito, entre
dez e onze; Roberto, com onze anos. Patrício, Angel e Roberto mesmo,
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Bobo às vezes. Estes, brincavam mais do que tudo, o que exasperava a


mãe. Mas é verdade que não esqueciam de cuidar das galinhas, da porca, e
principalmente dos cavalos (Bobo gostava muito dos cavalos). E
diariamente eles enchiam a pipa de água. Mas exageravam quando fazia
calor, voltando empapados, embarrados, sujos. La Lola é que se via...
Assim, arrenegada e preocupada, Doña Lydia foi vivendo até que
um dia teve o dinheiro necessário para comprar o sulque. E teve o sulque,
na forma de um carrinho de segunda mão com seu rodado alto pintado de
vermelho. O vizinho que o vendia facilitava tudo, as molas estavam boas, o
banco também, o varal era especial, lustrado...
A quitandeira se regalava diante do carro de rodas altas tirado por
um cavalo – seria o seu pestanudo velho. E nem pensou muito para fechar
o negócio.
Dois dias depois o sulque estava entregue e instalado sob um
tapado de santa-fé, ao lado do rancho, exposto à admiração dos filhos e à
satisfação de Doña Lydia. Ela, ali mesmo numa sombra, ao lado do
carrinho, amarrava os ovos em tiras de pano de saco de farinha, formando
colares de dúzias para serem conduzidos no pescoço do cavalo ou na
própria cintura. Lola acendia o fogo lá dentro; Patin dava milho às galinhas;
Gelito enchia de moganga um balaio; e Bobo puxava Punto Fijo pelo
cabresto, pedindo para montá-lo e acompanhar a mãe até Río Branco:
Poderiam levar mais coisas...
Ele ajudaria a vender...
Venderiam mais...
Quem sabe se todos fossem no sulque visitar Paco e Terezita?
Verdad, mamá?
Doña Lydia então viu Bobo, Roberto com outros olhos; abençoou o
filho e o sulque, e se deu conta de que já não precisava vender mais e mais
como antes. Nem sofrer como antes...
E para mostrar a Deus que não era sovina como Ele poderia pensar
– e que só queria o bem de todos os seus entes queridos –, naquele dia
mesmo foi para a cozinha e fez um puchero com muito milho e muita
abóbora e conseguiu leite com um vizinho e todos comeram moganga. À
tarde, quando o sol começou a baixar, atrelou o cavalinho no sulque e foi
dirigindo suavemente, carinhosamente em direção à estrada.
Já era quase noite quando ela voltou. Um pontinho negro que surgiu
longe e veio aumentando em forma de cavalo, carro e gente – ela e Terezita
e Paquito que vinham de volta para casa.
No fogão, Lola estava atrapalhada preparando galinha com arroz.
Patin e Gelito alvoroçavam-se no sem-saber que fazer com a chegada do
irmão mais novo. E Roberto, Bobo, sentia que Punto Fijo agora era só seu.
Tudo tinha mudado tão de repente!...

Esse conto trata de um tipo tradicionalíssimo de contrabandista, que se


encontra nas fronteiras do sul, de Rio Branco (UY) a Posadas (AR), pelo menos
(SCHIAVONI, 1993, GRIMSON; VILA, 2002). Narra a vida da quitandeira em seu
comércio de produtos básicos, na sobrevivência compartilhada da fronteira. O
marido brasileiro, as vantagens de cruzar a fronteira para economizar nos produtos
da cesta básica, o pensamento fixo nas formas de passar e nas técnicas de
transportar caracterizam a vida modesta dos fronteiriços no entorno urbano, junto à
ponte e ao rio.
161

A história destaca-se por tratar do “todo-o-dia” feminino e familiar, recorrendo


a receitas, a apelidos familiares, às formas cristalizadas do trato íntimo, apontando
para o tempo que parece não passar, mas que, ao contrário, é capaz de levar às
minúsculas vitórias cotidianas que marcam a vida das famílias e os horizontes
próximos. Em poucas páginas, resumem-se sete anos de lutas em que

não há rebeldia, tampouco estritamente credulidade; mas uma espécie de


mansa aceitação, tocada de ceticismo, da possibilidade de um mínimo,
ínfimo, pequeno milagre. Esses pobres de A.G.S.[Aldyr Garcia Schlee],
quando lhes surge a possibilidade de pedir algo, pensam em açúcar, mate,
massa para encher a barriga, e farinha para fazer tortas fritas em tarde de
chuva (RAVIOLO, 1991, p.8).

O encanto desta história está na personagem central, a pesada, lenta e


maternal Doña Lydia, caso único numa literatura masculina, posto que feita por
homens, tematizando o heróico.

3.7. “ARREGLO” DE AMÍLCAR BETTEGA-BARBOSA

No período entre 1994-2002 Amilcar Bettega-Barbosa (São Gabriel, 1964)


escreveu contos sobre a fronteira, ambientados na campanha. Ao invés de exaltar o
gaúcho e a região, como ocorria no começo do século XX, temos a caracterização
de um lugar violento e “vazio de expectativa”, onde o contrabando é uma “alternativa
à falta de alternativa” (entrevista, Paris, 23/03/2007).

Além da temática, a criação/registro de uma linguagem coloquial, marcada


por espanholismos, insere o conto na literatura de fronteira. Ao contrário do conto
anterior, aqui o sentimento é de opressão a perder de vista.

ARREGLO

Amilcar Bettega-Barbosa, 1996.

Aquilo do cachorro nem sei como é que me veio. Eu estava era


mordido com esse Mendes, não queria nem podia deixar o fresco posando
de galo sem que ninguém lhe chamasse nos ferros. Porra, o Vico era
parceiraço de anos, irmão mesmo. Tá certo que nos últimos tempos a gente
andava meio apartado, afinal de contas ele ia se perdendo num tipo de vida
do qual eu forcejava para escapar: o Vico foi chibeiro pequeno, talvez dos
últimos numa época em que o chibo já perdia a força e o rio não passava de
uma paisagem d’água irmanando a miséria; com o minguado do negócio ele
enveredou de vez para a bandidagem e ultimamente vinha se defendendo
no abastecimento de açougueiro que não questionasse a procedência da
carne, arriscando forte nas madrugadas sem lua e deixando seu rastro de
buchada e couro e cabeça e tudo quanto não podia levar, sempre à custa
162

de muita gambeta em brigadiano e o bafo quente de algum capataz


sobreavisado. Mas o que ele gostava mesmo era de uma festa, o Vico tinha
boa estampa, melhor lábia, e fazia um sucesso medonho com o mulherio,
não sei se apesar ou por causa da fama de mau.
Só sei que naquela maldita noite, com o corno virado por via de um
arranca-rabo com a Maria de Fátima, eu tinha tomado mais de garrafão de
um vinho ordinário e doce, e ainda estava metido num sono de morto, tão
longe do mundo que não sei quanto tempo a Polaca levou me sacudindo
para eu acordar. Mas antes que eu pudesse me putear por ter acabado
outra vez de porre e naquela cama fedida, antes que sentisse a língua
grossa e azedada do trago e percebesse que minha cabeça rachava de
tanta dor, antes mesmo de poder mandar a Polaca e suas carnes de puta
velha para o raio do buraco que a pariu, o Mulita já havia entrado no quarto,
com cara de quem tinha visto uma assombração: “Foderam o Vico,
queimaram ele com um balaço na nuca, foi de traição”.
Chê, tem horas que te dá vontade de abrir os dedos, sair sem rumo
por esse mundão de Deus. Foi o que senti naquele momento, eu queria era
me escapar daquela cama nojenta, daquele quarto fedendo a porra,
daquela mulher desgraçada que se deitava com todo o mundo pelo dinheiro
da comida mas que de mim não cobrava, a infeliz, porque “gostava de fazer
comigo”. Me vesti e arrastei o Mulita pelo braço, entramos na Rural e pisei
com raiva, sem respeitar buraco nem preferencial, o motor se estalando
todo em direção à Federal. No Parador encostavam os ônibus que vinham
de Buenos Aires e Uruguaiana, e era o único lugar aberto àquela hora da
madrugada onde se podia tomar um café quente. Pedi dois; e acho que
gritei com o Mulita:
– Agora me conta!
Ele raspou a goela e meio inquieto foi dizendo do trago que tomava
lá no cabaré da Márcia, quando chegara a turma do Mendes fazendo um
esparramo cuiudo. Já estavam bem chumbados, ele disse, e falavam que
se o Vico quisesse mulher que agora teria de se arranjar com alguma lá
pelo céu.
– Apurei o ouvido – continuou o Mulita – e fiquei curingando de
longe, vi quando uma das meninas se arretirou lá pra dentro. Dali um pouco
veio a Sarita, possuída, se esganiçando e querendo se atracar nos
cupinchas do Mendes. A Márcia tocou todo mundo a campo fora e fechou a
casa. Aí eu vim atrás de ti.
A rixa ali vinha de anos, qualquer um sabia, esse Mendes se achava
dono da Sarita mas quem reinava naquele corpo era o Vico. Fora o Mendes
que a trouxera da campanha, quase criança, trocada por um saco de arroz
para mermar a fome do desgraçado do pai dela, da mãe dela e dos oito
irmãos entropilhados num ranchinho de terra batida e quincha rala. Levara a
guria para a Márcia, a fim de ajudar na cozinha, na arrumação dos quartos,
e se reservar para ele, esse Mendes. Naquele tempo o Vico fornecia bebida
fina para o cabaré e sempre aproveitava para fazer uma média com as
meninas regalando a cada vez um vidrinho de perfume, um lenço
estampado, um que outro brinquinho mais vistoso. E sempre dava o melhor
presente para a Saritinha. Depois lhe contava longamente histórias de um
país que ficava do outro lado do rio, um outro povo, uma outra língua,
histórias e presentes que renderam o amor e o cabaço da menina Sarita; e
o ódio eterno desse Mendes.
– Então foi por causa daquela puta?
– Puta sim – respondeu o Mulita – mas a Sarita era engatada no
Vico de fato, ele é que se deitava com ela mais pela comida de graça e pra
cutucar o Mendes, que era bem dele isso de provocar. Diz que até com a
maninha de quatorze anos do Mendes ele andou se metendo.
Enquanto Mulita falava eu ia lembrando da última prosa que tive
com o mano Vico. Ele queria que eu desviasse três caixas de balas lá da
ferragem, andava cismado que lhe preparavam uma boa. Não dissera
nenhum nome e nem eu lhe perguntara: ele já era quatreiro marcado
163

naquelas bandas, e fora isso era abusado, não respeitava mulher de


ninguém; o resultado é que morava gente que por este ou aquele motivo
tinha de desejo de sobra para um acerto de contas com o Vico. “Tô fora,
irmão”, eu dissera, mal desconfiando que mais dissera para mim mesmo,
querendo me convencer que eu tinha largado de fato aquela vida maleva.
Muito bicho já havíamos carneado de noite, Vico e eu, no costado do
corredor, arriscando ganhar um tiro nos cornos ou, pior ainda, levar laço de
brigadiano recalcado. Muita madrugada varamos na zona, na jogatina.
Algum bochincho armamos por aí, e não foram poucos os infelizes que se
arrependeram de terem cruzado conosco. Só que agora eu não queria mais
saber de entrevero para meu lado, há muito tinha largado o carcheio, e do
trago e da zona fazia uso sem me esbaldar muito, como qualquer cristão.
Só bem depois fui me dar conta que essa mudança nas idéias era por
causa da Maria de Fátima. Na época eu vinha lhe fazendo a corte com
tenção séria de ajuntar os pelegos assim que desse, tinha arranjado um
emprego no comércio e até em me desfazer do meu Smith & Wesson com
cabo de madrepérola eu vinha pensando. Mas aí vem esse Mendes e
queima o Vico pelas costas, puta que pariu, aí começa a te crescer uma
raiva por dentro, vai te batendo um nojo de tudo, nojo desse jaguara sem
peito para enfrentar um homem de frente, nojo da vida, nojo até da Maria de
Fátima que armava um salseiro bárbaro por uma coisa de nada, louquinha
para me botar os freios sem nem ainda me ceder os encantos.
– Tá pensando em fazer alguma coisa, mano velho? – A voz do
Mulita era seca, certeira, e sua pergunta não era pergunta, era mais uma
aprovação. Claro que sim, no fundo eu sabia que ia fazer alguma coisa, não
me passava pela cabeça que um patife como o Mendes pelasse a coruja de
um parceiro meu sem levar o troco de volta.
Mas na hora menti:
– A única coisa a fazer é dar uma assistência no funeral, que eu
saiba o Vico tem só a mãe e um irmão retardado.
Quando saímos já havia uma barra de luz no céu, e aspirar com
força aquele ar gelado de agosto foi como limpar o corpo de todo o cansaço
e a ressaca da noite, eu sentia que meu coração troteava no compasso
outra vez.
No velório veio pouca gente, algum companheiro do jogo, três ou
quatro mulheres que ninguém conhecia – na certa conquistas do Vico velho
– e um que outro vizinho da mãe. Fiquei por ali escorado numa parede,
controlando de longe o choro surdo da velha, sua doble tragédia de mãe de
um morto e de um abobado, que é quase como estar morto em vida. Fiquei
olhando para o Vico estirado na sua última cama, a melena farta como que
emoldurando uma cara que apesar de já meio baia ainda guardava certo
frescor. A bala tinha entrado pela nuca e lhe saiu abrindo uma flor no meio
da testa, e não fosse por essa chaga preta, onde volta e meia pousava uma
mosca, o rosto tinha o aspecto tranqüilo de sempre, como se ele tivesse
morrido de um suspiro, e não com um pedaço de chumbo lhe trespassando
a cabeça de trás para frente.
No cemitério, na saída, me acheguei na Sarita e apartei ela para um
lado. Ela confirmou o que haviam me dito no velório: o Mendes ainda estava
na Márcia, num porre federal, dizendo que não saía de lá sem que ela lhe
aplacasse as vontades.
– Só se fosse pra cortar o saco daquele puto – ela disse. – Até já
saí de lá com medo de fazer uma bobagem.
– Pues então tu volta – e lhe falei o que cismava em volutar na
minha cabeça.
Fui para casa e me deitei um pouco. Acordei já noitezita, abri a
gaveta do bidê e peguei meu Smith & Wesson. Já decidira vender aquela
beleza e quem sabe no outro dia mesmo fosse atrás da Maria de Fátima
para ver se a gente ajeitava o nosso lado. Mas antes, para me desfazer de
vez daquela ruminação de pensamentos e consciências, me faltava uma
164

última empreitada. Carreguei o tambor com uma bala sola, que o homem
era só um. E me fui.
Fui de a pé. A porta do salão estava encostada e não havia nenhum
vivente lá dentro, reinava um silêncio absoluto – a Sarita tinha cumprido à
risca o arreglado. No fundo do salão havia uma portinha de ferro que dava
para um pátio lajeado, fechado na volta por um passadiço coberto que era
onde ficavam os quartos. Ao lado da portinha, já dentro do quadrado do
pátio, tinha um cubículo baixo de madeira com uma pequena abertura na
porta: era a casinhola de um pastor capa preta, o guardião da casa,
enraivecido a cada dia pela comida pouca e pelo cativeiro, pois era para
isso mesmo que o mantinham ali. Lembro que mais de uma vez, para findar
com algum bochincho, vi a Márcia entrar salão adentro quase arrastada por
aquele animal vertendo da língua uma baba de fúria, o latido rouco e
selvagem estremecendo as paredes da casa.
Pois assim que cruzei a porta, o bicho se debateu e começou a
acuar como um condenado – era o aviso. Me quedei ali na espera, e
falando baixinho com o cachorro no intento de que a minha voz conseguisse
acalmar a fera. Dali um pouco saiu de um dos quartos a Sarita enrolada
num lençol, gritou com energia para o cão e o animal se aquietou. Veio na
direção da porta e, ao passar por mim, quase sem me olhar, disse baixinho:
– É todo teu.
Apaguei o cigarro que já me queimava os dedos, caminhei até a
porta do quarto e fui abrindo devagar.
E lá estava aquele Mendes, deitado de bruços, com a cara virada
para a parede, pelado, só com uma ponta do lençol tapando a bunda. Ao
ouvir o ruído da porta ele deu uma risadinha e falou numa voz flauteada:
– Vem aqui com o teu paizinho que ele quer brincar de novo.
– Te vira, infeliz, que eu não gosto de rabo cabeludo – gritei,
apertando o cabo do meu revólver.
Ele deu um prisco e se virou de soco, já procurando as calças em
cima da cadeira, na certa buscava alguma arma.
– Se mexer mais um dedo eu te enfio uma bala na boca – e apontei-
lhe o revólver.
Ele se quedou arfante, talvez nem se desse conta que fazia as
vezes de uma chinoquinha desprevenida tentando se cobrir com o lençol.
Claro que estar sem roupa o deixava em mais desvantagem ainda. Eu
continuava com o braço estendido, mirando-lhe no meio dos olhos, acho
que esperava ele dizer alguma coisa.
– Se vai atirar que atire no más. Não sou homem de muita
paciência. – A voz veio rouca, e se notava um pequeno fio de coragem.
Naquela hora me ficou claro que eu não sabia o que fazer com
aquele infeliz, certo era que vingaria a morte do Vico, que daria uma lição
no ordinário, quiçá a última dessa puta vida. Não sei, mas pensei na velha
mãe do Vico, na tristeza silenciosa delante o caixão. Será que outro tiro
remediaria o estrago no coração da velha? Pensei na Maria de Fátima,
numa vida diferente que a companhia dela me prometia. Não, não era a
primeira vez que eu apontava o berro para um homem e se ainda
continuava vivo era porque tinha aprendido que essa hora nunca foi nem
nunca será a mais propícia para escamoteações do pensamento. Mas
agora não, agora eu pensava. E não sabia o que fazer com aquele infeliz. E
gritei:
– Quem atira pelas costas não merece ser chamado de homem.
– Pra morrer não existe lado.
– Mas pra matar só tem um, filho duma puta: o da frente – e
engatilhei o revólver.
– Matava de novo se fosse preciso aquele prevalecido – o
desgraçado gritou, se espremendo contra a cabeceira da cama, meio
enrodilhado no lençol.
Eu continuei teso, do cano da arma saía uma linha invisível que não
desgrudava do centro da testa do Mendes, e continuei quieto, e o meu
165

silêncio era quase um pedido para que ele continuasse, a cancha livre para
algum lance novo naquela história, alguma coisa que eu não soubesse e
que pudesse me dispensar de matar aquele calavera. E acho que ele
percebeu, pois na sua face passou de relance uma expressão de alívio,
ligeira, embora incapaz de vencer todo o medo estampado na cara:
– Desembucha, corno – dei um passo à frente e quase lhe encostei
o revólver na lata dele.
Ele se espremeu mais ainda, estava como que pregado à cabeceira.
– Matava de novo se fosse preciso – por fim berrou. – O puto pegou
minha irmã à força e ela emprenhou. Só fiquei sabendo quando ela arriou
na cama com um febrão... Andava estranha há tempo e eu botei ela na
parede... Aí me contou tudo... Ele disse pra ela enfiar uma agulha de tricô
pra tirar e ainda ameaçou de morte se ela falasse... Deu inflamação a coisa
da agulha, e a guria tá que não quer mais sair da cama.
Falava aos trancos. E aos trancos me foi crescendo uma sanha na
garganta que me fazia tremer a mão estendida e tremer o corpo todo de
raiva, raiva daquele infeliz, pelado e todo encagaçado na minha frente, raiva
da guria enfiada numa cama com suas feridas do corpo e da alma, mas que
num upa se levantaria dali para cair na vida e cumprir seu destino em algum
cabaré de Rosário, raiva do Vico, irmão de lida e farra mas o grande filho da
puta de sempre, raiva de mim mesmo por estar fazendo outra vez o meu
papel numa história de sujeira, como se esta fosse a minha sina. E raiva
também de tal sina, que no fim das contas era a mesma sina de todos nós
que nascemos e crescemos sem posses numa fronteira cada vez mais
dura, agarrados como guachos a certos vigores de moral, no fundo tão
vazios quanto nossos próprios futuros.
O pulso foi amolecendo, fui deixando cair o braço e larguei o
revólver em cima da cama, fora do alcance do Mendes. Quando me virei já
trouxe a mão fechada e sentei-lhe um murro no lado do ouvido. Ele
emborcou no chão, ao lado da cama, e, quando virou a cara na tenção de
se aprumar, desci-lhe os dois punhos na tábua do pescoço. O bicho se
aninhou nos meus pés, atordoado, e eu me servi a coice naquela cara, e
era muito a cara do Vico que eu chutava e quebrava os dentes e moía o
osso do nariz a patada. Mas o lôco tinha lá sua valentia, agora reconheço, e
meio na cega, porque duvido que enxergasse alguma coisa com tanta
paulada pela cabeça, levou a mão nas roupas em cima da cadeira e num
relance me acertou o flanco com uma adaga, me abrindo um beiço no
costilhar. O homem tinha a cara banhada em sangue e bufava como cavalo
sonador. Floreava a adaga na minha frente, com um risinho por trás
daquele véu colorado.
– Te fodeste, machito. – E se veio.
Tentou um pontaço, mas me livrei com uma recueta, empurrei com
o pé um mocho que estava no caminho, ele tropicou, deu uma testaviada e
a adaga escapou-lhe da mão. Não tive nem tempo de me aproveitar e ele
se avançou a soco, me pegando uma boa no olho. Nos atracamos no corpo
a corpo, no mano a mano, e eu mais bati que apanhei. Começamos no
quarto e terminamos no meio do pátio, esse puto do Mendes desfeito numa
massa de sangue e osso quebrado, bem surradito, incapaz de esquecer
para o resto da vida de tal sumanta, e eu... Bueno, eu estava vingado, ferido
com um puaço acima do vazio, judiado, capengueando, mas quase em paz
comigo mesmo. Que se fodesse o Vico no acerto de contas com o Patrão
Velho lá em cima, a minha parcela estava feita.
E o Mendes gemia, tentava se erguer. Me dirigi até a portinha que
dava para o salão e só então me dei conta que o cachorro se esganiçava lá
dentro da casinhola com metade do pescoço para fora, acuando como um
desatinado. Só então percebi que aquele latido rouco, funesto, não parara
desde a hora que a peleia começou. Continuei caminhando, despacito. Já
na porta me volvi. Olhei para o Mendes e ele me olhou. Acho que foi aí que
nos entendemos, e acho que foi aí que eu entendi que o Vico, eu, o Mulita,
todos somos feitios de uma só forma.
166

Espichei o braço e soltei a tramela da portinhola.


Quando saí lá fora, ainda ouvia o plac-plac das mandíbulas
esfomeadas se fechando no vento de tanta ânsia, ainda ouvia o grunhido
abafado pela primeira abocanhada em cheio, o barulho surdo do corpo
batendo na laje, da carne descolando do osso.
Eu tinha uma gana de mamar um tonel de canha.

O restabelecimento da honra aparece como uma armadilha em Arreglo, de


Amílcar Bettega-Barbosa. O conto se passa na fronteira marginal, entre quartos de
cabarés e um “parador na Federal”, em Rosário do Sul. O parador da rodovia
Federal, que poderia ser descrito como um não-lugar – não fosse o uso da
expressão local – sublinha a presença da escala nacional e aponta para a
articulação supra-nacional dessa estrada, que vai em direção à Argentina. O entorno
rural é descrito como miserável e o rio é só paisagem.

Como na narrativa de Aldyr Schlee, a ação se desenrola no espaço urbano


contíguo ao campo. Os cavalos aparecem como resquício de tempos idos, de
práticas tradicionais, enquanto atualmente a rede rodoviária organiza o território.

Arreglo inicia com o assassinato do contrabandista Vico por Mendes. Como


numa tragédia grega, o narrador é levado a vingar essa morte, apesar de cogitar
mudar de vida para casar. Vico, o contrabandista, morto ainda antes do início da
narrativa, era chibeiro pequeno numa região abafada pela história, diminuída pela
decadência da economia do charque e pela geopolítica de momentos passados, o
abigeato – isto é, o roubo de gado – aparecendo como ocupação de marginais na
fronteira decadente.

O assassinato é mais um crime dentro do quadro de miséria humana da


fronteira, levando a um desfecho bárbaro: depois de surrar Mendes brutalmente, o
narrador solta um cachorro esfomeado e feroz que termina de matá-lo,
desencadeando o fim trágico que o conto de Sérgio Faraco apontava como indigno,
mas inevitável.

Ao longo do século XX, a honra masculina parece ter-se coagulado em rituais


desesperados, a decadência econômica da região levando à destruição do vínculo
entre essa honra e seu significado social. O enterro de Vico é patético, sua morte é
vingada a contragosto, e representa a restituição de uma ordem indesejada. Nessa
narrativa há a manifestação de uma raiva contra o gaúcho mítico, que poderia ser o
Jango Jorge criado por Simões Lopes. Revela-se o impasse das gerações criadas
167

sob a disciplina da representação textual do contrabando enquanto prática honrada


e destemida. Tal representação é anacrônica numa fronteira há muito esgotada. É
como se o símbolo fosse oco e estivesse fora do lugar.

Alinhando os contos surge uma história do lugar em que primeiro trata-se de


demarcar a fronteira, de estabilizar os contornos do território nacional. Em seguida,
aparece a propriedade fundiária mais ou menos acessível, enquanto nos contos
mais recentes há queixas sobre a expropriação, a miséria, a dificuldade de aceder à
terra. Arreglo é revelador desse tempo novo em que a fronteira é
predominantemente urbana, ora saudosa do imaginário rural, ora torturada por
expectativas herdadas e inalcançáveis.

As transformações na região – na forma da diminuição de sua importância


econômica, da urbanização da população fronteiriça ou da ascensão do transporte
rodoviário – podem ser detectadas por fontes objetivas, como a estatística.
Entretanto, a compreensão do significado de tal processo para o imaginário e o
cotidiano territorializado é viabilizada apenas pelo exame de fontes que se debruçam
sobre a subjetividade local onde se percebe o teor opressivo do mito do gaúcho num
tempo que impossibilita sua experiência completa.

3.8. INTERPRETAÇÕES GEOGRÁFICAS DOS CONTOS DE CONTRABANDO

Os contos insistem na questão da honra. As redes de fidelidade necessárias


ao contrabando entrelaçam praticamente toda a população da fronteira: unem os
integrantes (flutuantes) do bando, seus fornecedores e fregueses, a família que
ajudam a sustentar, as mulheres que seduzem, e excluídos ficam apenas os
guardas, geralmente apresentados como recém-chegados, venais ou ignorantes da
lógica local. Amilcar Bettega-Barbosa, em seu conto, lembra que a violência, esteja
ela a serviço ou contra a honra, é perpetrada também entre os membros do grupo,
miseráveis na beira da estrada. A miséria também figura nos contos de Mario
Arregui e Sérgio Faraco, levando a adequação da honra a leis maiores, naturais.

A legitimação do contrabandista é, portanto, a justificação da população local.


Ao valorizar a astúcia, a bravura, a rebeldia do contrabandista, enfatizam-se traços
168

positivos daquele que poderia ser descrito como um contraventor. Menos que um
bandido, ele é um depositário de certas “verdades” locais.

Pode-se associar a construção de uma territorialidade fronteiriça, com base


em laços de fidelidade e compartilhamento moral, aos processos de desenho de
fronteira. Não se trata de um grupo étnico reivindicando território, e deve-se frisar
que as nacionalidades brasileira e uruguaia são experimentadas intensamente na
fronteira. No entanto, deve-se notar a licença que a população local toma para dar
conta de suas necessidades, jogando com as determinações do Estado.

A fronteira assume várias formas nos textos analisados. Ela representa a


passagem para a morte para Jango Jorge, Chirú e Rulfo Alves, na forma do
encontro com os guardas dos limites do Estado. No conto de Lopes Neto, a fronteira
é uma imposição do Estado-Nação sobre uma territorialidade anterior. Em Mario
Arregui, ela é uma metáfora do sobrenatural. Aldyr Schlee a mostra como uma fonte
de oportunidades, ampliando as possibilidades de sobrevivência. Bettega-Barbosa
enfatiza a condição marginal do lugar e de seus moradores.

A literatura regionalista ocupa-se incessantemente da fronteira, usando-a


como tropo ou locus na representação da cor local ou dos dilemas universais. Vale
explicitar que a fronteira aparece como metáfora da morte no conto de Mario
Arregui, mas nas outras narrativas é o lugar da ação, com características próprias,
de modo que sua representação textual remete à fronteira gaúcha, uma fronteira real
mudando ao longo da história, e aos contrabandistas que neles circulam, e não a
uma fronteira ideal, abstrata ou essencial.

A poderosa polissemia da fronteira é sintetizada por Franco Moretti (2003),


que afirma que os autores oitocentistas constroem personagens cômicas ou “trágico-
sublimes” ao relatarem a aproximação a uma fronteira. As cômicas aparecem nos
espaços que se opõem debilmente ao novo poder central, enquanto as trágico-
sublimes povoam as áreas que oferecem resistência:

O espaço age sobre o estilo, produzindo um deslocamento duplo (em direção


à tragédia e à comédia: em direção ao ‘alto’ e ao ’baixo’) daquele registro
‘realista’, ‘sério’, médio, que é típico do século XIX. Embora o romance
apresente uma baixa figuratividade (como diria Francesco Orlando), perto da
fronteira a figuratividade surge: o espaço e os tropos se entrelaçam; a retórica
depende do espaço. [...] As metáforas ‘expressam’-no, ‘dizem’-no por meio da
estranheza da sua predicação [...]. Mas como as metáforas usam um campo
familiar de referência, também dão forma ao desconhecido: o contém e
mantém de algum modo sob controle (MORETTI, 2003, p. 53-57).
169

De acordo com essa análise, a fronteira gaúcha resistiria até hoje à


homogeneização pelas culturas nacionais. Todos os contrabandistas morrem no fim
da narrativa, exceto a quitandeira. Possivelmente porque a unidade pressuposta na
região e nos caminhos que a articulam foi dilacerada pela fronteira, “matando” –
simbólica ou concretamente – os agentes heróicos da passagem.

Nenhum contrabandista é narrador de sua história, são personagens dotados


de ações silenciosas e astutas, realizadas nas sombras e nos caminhos
secundários, na margem da margem. A história das mulheres nesse cenário é ainda
mais marginal, diante da masculinidade do tipo regional, dos soldados e gaúchos
que dominam o imaginário sobre a fronteira. Doña Lydia, que, com suas migalhas
nada heróicas consegue reunir sua prole, destaca-se por sobreviver ao final da
narrativa.

Os contrabandistas representam a possibilidade de acionar a fronteira fora da


lógica legal. Gradativamente afastam-se do perfil de soldados, tornando-se
marginais na sociedade que os gerou. Pode-se traçar uma linhagem de
contrabandistas, observando suas encarnações e, através de seus atos, a
transformação do espaço literário e geográfico em que se desenrola a ação.

Todos os relatos são protagonizados pelos contrabandistas. Todos os algozes


são menos legítimos que os contrabandistas – e não teria que ser necessariamente
assim: na literatura de frontier dos westerns, quase sempre o xerife é o herói.
Conclui-se que essa é uma literatura de pertencimento regional, em oposição ao
Estado nacional.

3.9. SIMBOLOGIA E METÁFORAS DA FRONTEIRA E DO CONTRABANDO

As metáforas apostas à fronteira coincidem com os momentos da vida que


motivam ritos de passagens, levando a crer que a fronteira geográfica figura no
registro literário também como signo desses trânsitos. Arnold van Gennep, ao
analisar e classificar, em 1908, os ritos que pontuam a vida individual, afirma que
tais momentos regulam a indeterminação entre duas situações determinadas:
170

É o próprio fato de viver que exige passagens sucessivas de uma sociedade


especial a outra e de uma situação social a outra, de tal modo que a vida
individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e
começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade
social, casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de
ocupação, morte (GENNEP, [1908] 1977, p. 26-7).

Possivelmente, apropriações muito genéricas da fronteira pela literatura não


se relacionem substancialmente com aspectos da cultura local, informando mais
sobre o pólo universalizante da obra literária, aquele que se propõe
representatividade e legibilidade ampla. As metáforas da fronteira como rito de
passagem são traduções culturais cujo compromisso seria mais com a recepção,
com a chegada do texto, do que com o objeto que serviu como base da
representação.

Essa questão aparece, para o pesquisador interessado na interpretação da


cultura espacialmente situada, como um dilema ligado ao grau de generalização, já
que a busca de explicações para as práticas encontradas em campo pode acabar
por esterilizar, em taxonomias taxativas ou afirmativas essencializantes, os
significados atribuídos pelo grupo aos seus atos. Note-se que as figurações políticas
da fronteira como lugar de subversão e exclusão social não constam na taxonomia
de passagens de Gennep.

Segundo Moretti, a fronteira é a passagem para o desconhecido, do interior


do Estado-Nação para suas margens, de um território a outro, onde se desenrolam
processos de construção do estrangeiro. Ao caricaturar os habitantes das fronteiras,
estes são excretados do corpo da nação, contidos em subclasses. Essas
generalizações surgem como uma remissão dos sentidos locais àqueles mais
amplos, buscando aproximá-los de usos unânimes. Interpretar a fronteira em seu
sentido mais universal (literal e metaforicamente) implica distanciá-la do contexto
que a gerou.

Os contos aqui interpretados aproximam-se de pontos de vista locais,


desviando desse tipo de generalização baseada nos contextos nacionais ou em
aspirações universalizantes. Ao mesmo tempo, as narrativas moldam-se
mutuamente, chegando a rebelar-se contra as representações passadas e
canônicas, reivindicando a reaproximação à experiência cotidiana. Essa tradução
171

cultural enfatiza o lugar, selecionando, entre os termos gerais, aqueles pertinentes


ao contexto em análise. A tradução ouve o campo, se esforça para distinguir as
palavras certas para nomear as práticas ou lugares, se pergunta por que tais termos
e não outros. Traduzir, transladar, passar, parecem avalizar interpretações mais
próximas dos sentidos locais das práticas.

3.10. OS CONTOS E O SENTIDO LOCAL DO CONTRABANDO E DA FRONTEIRA

Ao fim desta corrente de representações textuais, revela-se um continuum


entre os contrabandistas de ficção, como se fossem todos refigurações de um
mesmo personagem, adaptando-se às transformações do espaço que habitam,
dialogando com a tradição da literatura e dos costumes.

Sendo a fronteira um objeto geográfico, e havendo uma estreita relação entre


os objetos geográficos e a produção de cultura – ou, como se conclui no capítulo 2,
sabendo que a sociedade se territorializa gerando representações textuais e que
essas mesmas representações textuais entram na construção cultural e política dos
lugares – pode-se afirmar que a fronteira gera uma cultura específica. O
contrabando é, nesse sentido, uma prática cultural conectada com a condição
fronteiriça. Há uma sobreposição entre a prática do contrabando e a cultura da
fronteira, cujos índices mais reconhecidos são o portuñol, as famílias mistas, a
política transfronteiriça, a música e a literatura de fronteira.

No entanto, valorizar o contrabando como prática local é problemático:


reivindicar o delito conforma uma sociedade fora da regra nacional, motivando, por
um lado, uma série de subterfúgios frente à nação e, por outro, um forte sentido de
cisão em relação aos que não pertencem ao grupo.

As obras locais sobre contrabando apelam para o folclore ou para a


“contracultura”, fazem o elogio do passado ou da margem. O folclore, o elogio do
passado, imagina um território originalmente isento de fronteiras, criadas por
imposição de poderes maiores ou externos, que mutilaram o território original sem,
no entanto, extinguir, nos seus habitantes, o nexo pregresso. A contracultura, a
172

poesia da margem, atribui à região fronteiriça valores como liberdade, autenticidade,


criatividade, alinhando-se aos pobres para exaltar seu inconformismo.

Por outro lado, isso também leva a uma coesão interna, baseada na
cumplicidade moral: os níveis de envolvimento com a atividade variam, há os que
são cúmplices apenas no sentido de partilharem o segredo e não condenarem a
prática. Esse grupo – a sociedade local – não é uma classe social, nem um grupo
profissional, nem uma facção política. Os bandos e seus cúmplices abrangem uma
grande parte ou a totalidade da população do lugar. Deve-se acrescentar que o
contrabando dá coesão e identidade, mas não de uma forma pacífica, acomodada.
Há embates, disputas, mortes, beneficiados e prejudicados. Conflitos, enfim.
Podemos concluir que há um saber e uma identidade nessa sociedade, nesse lugar,
mas não há justiça.

A literatura de fronteira e, especificamente, os contos de contrabando revelam


lances e nuances do comércio ilícito internacional e da sociedade em que é
praticado. A série de narrativas aqui encadeadas mostra que o tema mantém-se em
movimento, integrando-se na corrente de representações textuais em que circulam
leitores e autores, contrabandistas fictícios e reais.

Como estratégia de aproximação aos sentidos locais do contrabando, a


literatura nos forneceu subsídios, que servem como orientação para o trabalho de
campo, no levantamento das práticas dos fronteiriços. Alinhando tradição, costumes
e práticas, podemos nos aproximar dos hábitos ou costumes que se fazem no
espaço social, que trazem em si a ciência do lugar, dos pais e dos precursores, ao
mesmo tempo em que necessariamente se territorializam no presente.
173

4. A GEOGRAFIA DOS CONTRABANDISTAS EM SANTANA DO


LIVRAMENTO-RIVERA

Este capítulo apresenta resultados da análise dos materiais obtidos nos


trabalhos de campo. A partir de observações, entrevistas e conversas
(representações textuais orais do contrabando) com diferentes agentes na fronteira,
foi possível identificar um vocabulário do contrabando da(s) cidade(s), algumas
materializações do comércio internacional no espaço urbano, as redes tecidas na
sociedade fronteiriça e entre os agentes no lugar e em outros pontos dos territórios
nacionais. Entre os elementos que interagem com o contrabando estão o câmbio, os
regimes extraterritoriais, Foi possível ainda comparar tais resultados com as
conclusões presentes em outros trabalhos sobre o cotidiano nas fronteiras.

4.1. DESCREVENDO O CONTRABANDO NA FRONTEIRA

Nos cinco anos de visitas à fronteira, foi possível identificar várias estratégias
legais e ilegais de comércio e consumo transfronteiriço, bem como sua interação
com legislações, com as atitudes do controle aduaneiro, com as oscilações
cambiais, entre outros elementos de ordem econômica. As interpretações colhidas
na literatura científica e nos contos de contrabando ajudaram a circunscrever e
analisar as informações e experiências de campo89. Os mapas produzidos e
apresentados neste capítulo espacializam a interpretação das dinâmicas
encontradas em Santana do Livramento-Rivera em 2008, ano de conclusão da
pesquisa, demonstrando as interações sociais e econômicas nesse espaço e
buscando construir uma cartografia do contrabando, especialmente daquele de
pequenos volumes conhecido como bagayo.

89
Durante a realização do doutorado, ao todo foram 14 idas à Santana do Livramento-Rivera, com
duração e propósitos diferentes. Estive em campo quatro vezes em 2004; três vezes em 2005; três
vezes em 2006; duas em 2007; duas vezes em 2008. Além disso, estive em várias outras cidades de
fronteira: entre as cidades-gêmeas visitei o Chuí (BR)-Chuy (UY); Posadas (AR)-Encarnación (PY);
São Borja (BR)-Santo Tomé (AR); Jaguarão (BR)-Rio Branco (UY); Uruguaiana (BR)-Paso de los
Libres (AR); Quarai (BR)-Artigas (UY); Barra do Quarai (BR)-Bella Unión (UY); Foz do Iguaçu (BR)-
Ciudad del Este (UY)- Puerto Iguazú (AR). Visitei também Montevidéu, Tacuarembó, La Coronilla,
Colonia del Sacramento e Treinta y Tres, todas no Uruguai. Retrospectivamente, observo que os
fenômenos em curso no Uruguai chamaram muito mais minha atenção que os que se desenrolam no
lado brasileiro da fronteira, possivelmente pela curiosidade despertada pelo outro, ou por conta da
maior visibilidade dos processos numa condição de estranhamento.
174

A elaboração dos mapas aqui apresentados baseou-se em fontes qualitativas.


Como já afirmei, a pesquisa estatística é problemática na fronteira, onde os
fenômenos se afastam das normas e justapõem-se bases censitárias geradas a
partir de critérios nacionais distintos90. O contrabando, ato fronteiriço, acrescenta um
caráter ilegal – tendendo, portanto, à invisibilidade – à descontinuidade estatística.
Suas materializações são discretas, disfarçadas, efêmeras. Por exemplo, no terminal
rodoviário, lugar óbvio para pesquisar sobre trânsito de passageiros rodoviários, há
poucos bagayeros, que preferem embarcar em outras paradas a fim de diminuir sua
visibilidade.

Apesar dos contrabandistas optarem pelos caminhos alternativos e pelas


horas ermas, numa fronteira densamente ocupada como Santana do Livramento-
Rivera, a prática deixa marcas na línea, na estrada para Montevidéu, na
concentração de lojas voltadas ao comércio internacional, tornando-se perceptível
ao observador empenhado. O trabalho de campo deu-se através do
acompanhamento das práticas e dinâmicas, conjugado a entrevistas abertas e
bastante extensas, muitas vezes resgatando temas identificados na análise dos
contos de contrabando.

Minhas fontes orais foram conversas com os fronteiriços. Realizei entrevistas


semi-estruturadas, nas quais algumas perguntas repetiam-se, guiando a construção
da informação aqui apresentada. Perguntas sobre as formas de iniciação e prática
do bagayo, sobre as razões para viajar, sobre a origem e o destino das bagayeras,
sobre as redes de venda da mercadoria, sobre o volume e o tipo de mercadorias
comerciadas, por exemplo, deixavam os informantes livres para contarem os seus
causos e refletirem sobre os mesmos em seu próprio tempo. Tratava-se, como
sugerem Martin W. Bauer, George Gaskell e Nicholas C. Allum (2002, p. 35), de dar
voz de autoridade a uma posição ontológica pouco visitada. Na conversa, as
representações êmicas do contrabando circulavam entre os interlocutores, sendo
resgatadas na presente interpretação.

90
Etimologicamente e historicamente, a estatística liga-se à descrição, não necessariamente
quantitativa, do Estado: segundo Paul Alliès, a construção do território estatal passou pelo
estabelecimento de fronteiras lineares, contínuas e cortantes, possibilitadas pela consolidação do
instrumental cartográfico e estatístico, através do qual os dialetos, os enclaves religiosos ou étnicos
passam a ser eliminados ou desconsiderados (1980, p.68-71).
175

A maior parte das conversas com as bagayeras se deu nos armazéns da linha
e uma vez acompanhei-as à Tacuarembó, observando a passagem da Aduana. Com
bastante perseverança, me ofereci para ouvir as bagayeras tratar, com um meio
sorriso e com um olhar de soslaio, de assuntos que, por seu conteúdo, demarcam
quem está dentro e quem está fora do grupo. Perguntei-lhes “como foi sua primeira
vez?” Ou então, usando a estratégica frase de Robles, guarda riverense e meu
“contato” principal, que me apresentava às informantes dizendo: “Esa señora vino oír
sus sufrimientos”, me propus a ouvir a história das batalhas cotidianas, disposição
bastante efetiva, pois todos querem falar de suas dores, tê-las reconhecidas.

As redes construídas levaram à aproximação com as bagayeras, e


certamente o caráter noturno de grande parte do contrabando – explicitado em
expressões como “negócios na madrugada”, “trabalho noturno” e nos contos de
contrabando – não foi aprofundado nesta pesquisa, muito por conta dos horários e
percursos possíveis a uma pesquisadora cautelosa com os contextos de
criminalidade e violência presentes na atividade do contrabando.

Além dos encontros com os contrabandistas, professores de geografia de


Rivera, advogados, comerciantes, artistas e outros profissionais foram perguntados
sobre a forma de organização do contrabando na(s) cidade(s) e sobre as maneiras
pelas quais experimentavam a condição fronteiriça, sendo ainda instados a contar
anedotas de contrabando. Os policiais uruguaios que tiveram a gentileza de me
receber, em entrevistas memoráveis, foram de imensurável ajuda na compreensão
da atividade. Uma lista dos entrevistados encontra-se no Apêndice A. As entrevistas
não se distinguem das conversas, aproximando vários pontos da trajetória do
indivíduo, apresentando sempre um cunho informal, errático mesmo, aberto à
subjetividade e aceitando a memória com a sua parcela de invenção e reflexividade
(CARDOSO, 1986).

O registro desse material se fez com anotações escritas feitas na hora e


completadas posteriormente. Sempre que a ocasião fosse propícia – quando a
entrevista se realizava na casa do informante e não em lugar público, quando a
mesma era previamente agendada, principalmente – a conversa era gravada. Uma
excursão fotográfica está documentada no Apêndice C. Com os informantes mais
próximos, foi possível retornar aos temas para dirimir as dúvidas e checar as
176

informações cartografadas, o que se mostrou muito valioso para a compreensão da


riqueza de significados locais da atividade.

O que se aprende conversando com uma pessoa? Ela manifesta as


possibilidades do tempo-espaço do grupo; como elemento, pertence ao grupo e tem
com ele identidade. Conversando com os praticantes da fronteira, avancei na leitura
do lugar, selecionando elementos a serem observados, identificando objetos que
poderiam passar despercebidos, já que seu valor está no uso. Esta representação
textual traduz, portanto, idéias que muitos interlocutores ajudaram a formar, fossem
eles informantes nativos ou colegas de pesquisa de campo, sintetizando as distintas
estratégias de pesquisa assumidas e reformuladas ao longo desses anos, idéias
essas influenciadas também pelos trabalhos de literatos, historiadores, sociólogos,
antropólogos e geógrafos, abordando o comércio transfronteiriço nesse ou em
outros lugares.

Para aceder aos relatos de contrabando, a essas verdades sigilosas, é


preciso contar com a confiança do informante. O mesmo vale aqui, estendo aos
leitores deste relato a cumplicidade a mim outorgada. Mesmo assim omiti ou mudei
os nomes próprios, preservando a toponímia.

4.2. UM VOCABULÁRIO DO CONTRABANDO

Conforme se mostrou nos capítulos anteriores e como se observa em campo,


nessa fronteira o contrabando é totalmente legítimo. Isso não quer dizer que possa
ser comentado de qualquer forma e em qualquer situação, menos ainda com
aqueles que não fazem parte dessa rede comercial de caráter ilegal. Ou seja, a
aceitação social pelos praticantes do lugar, pelo grupo territorializado na fronteira, é
condição para ter acesso à informação sobre o contrabando. O sigilo instala-se no
limite entre pertencer ao local ou ser visto como extra-local, criando uma geografia
metafórica da informação.

Em campo, as traduções culturais se impõem como necessidade. Existe um


vocabulário específico à prática e ao lugar, cujo conhecimento possibilita acessar
177

sentidos locais. Os contrabandistas empregam muitos eufemismos para referir-se a


atividades sigilosas. As gírias são influenciadas pelas línguas em contato e pelas
mercadorias transportadas, sendo específicas a cada lugar. A profusão de nomes
também fala da grande especialização das técnicas.

Alguns termos devem ser destacados nessa comparação entre o discurso


científico e aquele usado pelos informantes: bagayo e suas declinações;
contrabando; passar/pasar; arrumar; coimear e linha/línea.

A expressão bagayera/os tem alcance geográfico restrito: corresponde às


paseras na fronteira Posadas (AR)-Concepción (PY) (SCHIAVONI, 1993, 2005;
GRIMSON; VILA, 2002; RABOSSI, 2004), aos quileros ou passadores de
Uruguaiana (BR)-Paso de los Libres (AR) (CASTILLO, 1963, SOUZA, 1994a), à
botija, em Jaguarão (BR)-Río Branco (UY), aos pasabolsos do Chuí(BR)-Chuy(UY),
aos chibeiros e ao contrabando-formiga popularizado na mídia e empregado na
literatura cientifica (ZERO HORA, 1975; QUADRELLI-SÁNCHEZ, 2002; GRIMSON;
VILA, 2002; RUBERT, 2003; COLVERO, 2004; GUTFREIND, 2006), aos porte-cols,
beuze-blauwer e pacotilleurs da literatura estrangeira (BEQUET, 1959; DAENINCKX,
2005; AZZI, 2007).

O termo êmico bagayero continua amplamente desconhecido em outras


formas de discurso, como na linguagem científica aqui exercitada, o que mostra que
a adequação localmente registrada não se traduz facilmente a outros lugares e
disciplinas. A palavra refere-se à bagagem, ao carregamento e à silhueta volumosa
dos portadores. Na prática, parte do ofício consiste em saber, em termos de volume
e aparência, empacotar as mercadorias; em conhecer as estratégias para disfarçar
os pacotes (no ônibus, no carro, no corpo) e em facilitar sua passagem quando
retidos na Aduana.

Da mesma forma, empregar a palavra “contrabando” em Santana do


Livramento-Rivera equivalia a uma declaração de ignorância do ethos fronteiriço.
Além de revelar-se como estranho ao lugar, significava não pactuar com a
compreensão local sobre a atividade, já que a designação “contrabando” se origina
em parâmetros extra-locais de legalidade, trazendo em si uma condenação velada.
Isso é inadmissível num contexto em que a atividade é disseminada e normalizada,
178

envolvendo a todos, seja como estratégia de abastecimento cotidiano, seja como


alternativa de ocupação e geração de renda.

Por exemplo, em 2005, no início da pesquisa, em Uruguaiana, durante uma


conversa informal com o funcionário do Museu Crioulo, na Casa de Cultura
Municipal, tudo ia bem enquanto se falava sobre as peças do acervo e sobre os
costumes campeiros, ou mesmo sobre a família dele. A conversa já durava um bom
tempo quando a pergunta “e o senhor conhece histórias de contrabando?” fez com
que o guia recuasse dois passos, respondendo, sério: “De contrabando eu não sei
nada!”. Ao que retruco: “Não dá pra perguntar sobre contrabando, que todo mundo
dá dois passos para trás e diz que não sabe nada!” O senhor ri também e, se dando
conta de termos criado um causo, encena tudo novamente, agora sorrindo. Mas
nada revela.

Outro exemplo, retirado de uma entrevista com Robles, mostra os usos e


juízos locais:

Adriana: O que é o contrabando-formiga?


Robles: Não é a coisa tão delitiva. É mais um contrabando do dia-a-dia.
A: É, mas o que tu quer dizer com uma coisa assim mais delitiva, menos
delitiva?
R: O que temos é um contrabando grande. Ou, por exemplo, como se diz, a
operação formiga. O meu amigo diz cupim, aquele que vem no dia-a-dia. É
o que nós temos, isso aqui, baseado nisso, por exemplo, é como sobrevive
a gente que viaja às vezes 300, 400km levando açúcar, erva, tanta coisa,
tudo aquilo que interessa, é roupa, isso é um contrabando que leva de
ônibus...
A: Para comprar aqui? De onde que eles vêm?
R: Eles vêm de todo o Uruguai.
A: De todo o Uruguai? Vem de Montevidéu fazer...
R: De todo. Pequeno contrabando.
A: E o que levam?
R: Levam de tudo. Desde comestíveis, até roupa, inclusive até peças de
carro né? O que for encomendado para eles, eles levam. É isso aí o dia-a-
dia, cigarro, um monte de coisas, tudo que é fundamental para o uso eles
levam, não adianta.
A: Mas é só coisa pequena ou quantidade pequena ou grande também? E
quando é que tu acha que deixa de ser contrabando-formiga e passa a ser
uma coisa mais perigosa, mais séria? Mais delitiva, como tu diz?
R: Quando nós pegamos, todo ele, todo o contrabando é delitivo.
A: Contrabando é não pagar imposto?
R: Um seria. Já é infração quando uma mercadoria de um país entra,
ingressa no outro sem pagar imposto. Aí ele já é contrabando.
Evidentemente, para mim ele já se torna um contrabando mais perigoso
quando ele tá de caminhão, em quantidade, todas essas coisas né?
Evidentemente que a operação formiga também não deixa de ser um delito
perante a lei nossa, e aqui hay gente que leva de caminhão tanto prum lado
como pra outro. (...)
A: Contrabando é muito forte?
179

R: A palavra contrabando é uma palavra muito forte... Bagayo é uma


palavra melhor. É o bagayero que tava vindo aqui.
A: E o negócio formiga é...?
R: É o bagayo...
A: Mas não se usa muito
R: Não. Se usa o bagayo... (Robles, entrevista, Santana do Livramento,
24/01/2006).

Os verbetes sobre “contrabando” também são exemplares: se, nos dicionários


de circulação nacional, este é descrito como “introdução clandestina de mercadorias
estrangeiras, sem o pagamento de direitos” (AURÉLIO, 1986, p. 465), no Diccionario
Riverense (LÉON, 1988, p.168) informa-se apenas que “assim se chama um vau
sobre o Rio Negro, nos limites com Cerro Largo, ao sul do Paso Layado, cujo nome
se origina em ser o favorito dos contrabandistas”.91 O intelectual municipal sabe ser
impróprio falar de contrabando?

Como precisão, registre-se que o termo, localmente, também pode remeter a


burlas às leis que limitam a passagem fronteiriça, mas não envolvem comércio. Por
exemplo, são muitas as histórias de defuntos “contrabandeados”, onde o trânsito
não visa lucro, mas desviar dos obstáculos colocados pelas leis nacionais à
circulação por um território compartilhado.92

Passar ou pasar é, paradoxalmente, o ato essencial do fronteiriço. O verbo é


empregado para referir-se ao constante leva-e-traz de mercadorias realizado pela
população local, é uma forma local de nomear o contrabando. Não ignoro a crítica
em GRIMSON; VILA (2002, p. 69), que afirmam que as abordagens que tratam os
fronteiriços como passadores de fronteiras (border crossers), difundidas pelos
Estudos Culturais e pelas pesquisas realizadas sob o signo do integracionismo
reavivado pela instalação do Mercosul, podem negligenciar os conflitos sociais e
culturais locais, além de pouco enfatizar a separação física que pode ser gerada
pela fronteira dentro de grupos étnicos homogêneos. No caso aqui estudado, o
termo é usado localmente para denotar a atividade contrabandista, e não uma
escolha do pesquisador.

91
“Así se denomina un vado sobre el rio Negro, en los límites con Cerro Largo, al sur del Paso
Layado, cuyo nombre se origina en ser el favorito de los contrabandistas”. Compare-se às três
páginas dedicadas ao professor Julio Cairello (p. 134-6) e às seis sobre a Confeitaria Metropolitana,
fabricante do Postre RiveLi (p. 1365-72).
92
Contrabando, longe da fronteira, pode ainda ser um eufemismo para amante.
180

Arrumar é dito em português para indicar suborno, vista grossa ou outras


atitudes coniventes dos guardas fronteiriços no trato com os contrabandistas. Há
uma idéia de acomodação aí presente, simétrica às estratégias de
acondicionamento das mercadorias empregadas pelos bagayeros. O suborno stricto
sensu é dito coima, uma corruptela de comissão.

Sobre o termo êmico linha/línea: essa forma de referir-se ao limite


internacional remete ao desenho e à cartografia, mostrando que os processos
demarcatórios implementados pelos Estados foram absorvidos na representação
nativa do território. Por outro lado, a linha, como um fio, tem um caráter frágil e
pouco constritivo e assim é habitualmente tratada no cotidiano do lugar, como um
pequeno obstáculo a ultrapassar.

4.3. ANEDOTAS DE CONTRABANDO

Muitas anedotas sobre os contrabandistas e suas operações foram ouvidas


em campo. Sempre que requisitados, os informantes contavam alguma, indicando a
propensão do tema a transformar-se em causo, que precisa circular.

O dicionário de francês “Le Petit Robert” (1990) ensina que anecdote vem do
grego anekdota, significando coisas inéditas. Seu sentido é registrado como
“particularidade histórica, pequeno fato curioso, cujo enredo pode esclarecer o que
está por baixo das coisas, a psicologia dos homens”. Cita-se Voltaire: “Anedotas são
pequenos detalhes há muito tempo escondidos”. Termina o verbete: “anedota, o
detalhe ou o aspecto secundário, sem generalização e sem alcance” (t.n.)93. Em
português, mais do que uma história curiosa, ou um detalhe sem importância, é uma
piada, faz rir ou sorrir. Em espanhol – cruzando a fronteira geográfica e lingüística –
um falso cognato: anécdota é a história reveladora. Arriscando valorizar o aspecto

93 e
“Anecdote. n.f. (1751; titre de recueil, fin XVII ; lat. Anecdota (surtout plur.); gr. Anekdota “choses
inédites”, titre d’un ouvrage de Procope). Littér. Particularité historique, petit fait curieux dont le récit
peut éclairer les dessous des choses, la psychologie des hommes. “Les anecdotes sont des petits
détails longtemps cachés” (Volt.). – Cour. Historiette. “L’un d’eux avait une anecdote à racconter”.
(Maurois). Absolt. L’anecdote, le détail ou l’aspect sécondaire, sans généralisation et sans portée. Ce
peitre ne s’éléve pas au-dessus de l’anecdote”. (PETIT ROBERT, 1990, p.68.)
181

secundário apontado no verbete, procedeu-se uma leitura desse material, em busca


de facetas do contrabando.94

As anedotas recolhidas tratam de lambrettas, carrinhos de mão e outros


transportes. Tratam da morte e da relação entre contrabandistas e aduaneiros. A
mais conhecida, que parece ser a matriz das demais, que me foi contada dezenas
de vezes, na fronteira ou fora dela. No entanto, já em 1962, no livro “O primo
Altamiro” e elas, Stanislaw Ponte Preta contava essa história, sob o título “A velha
contrabandista”.

Todos os dias uma velhinha cruza a fronteira numa lambretta com uma
saca na garupa. Na saca há somente palha. Os inspetores cansam de
esvaziar essa saca em busca do esperado contrabando, sem nunca
encontrá-lo. Anos se passam e na véspera de sua aposentadoria, um
funcionário da aduana dirige-se à velhinha pedindo que ela, enfim, revele o
segredo da saca. A senhora diz:
– Não há segredo na saca, o que eu passo é a lambretta... (PONTE
PRETA, 1962).

Esta crônica aparece hoje na internet numa versão intitulada, como mandam
os dias correntes, “A velhinha traficante” (PONTE PRETA, 2008).

Na década de 1970, a construção civil tomava impulso na fronteira e a


anedota se metamorfoseia, incluindo cimento e carrinhos de mão. Em Santana do
Livramento-Rivera, Higuéron, fiscal sanitário uruguaio, em conversa em 2005, conta
que “Um senhor passava a fronteira diariamente com um saco de cimento num
carrinho de mão. Nada havia de anormal no cimento, tampouco a quantidade
serviria para proibir sua entrada no Uruguai.” Pergunta Higuéron, como numa
charada ou adivinhação: “O que contrabandeava o senhor?” E responde ele mesmo,
triunfante: “O carrinho de mão!”

A ênfase no transporte, em ambas as histórias, mostra a importância do


passar, reiterando o sugerido pelos contos de contrabando. Mostra ainda como
atravessar de um país a outro é um fato corriqueiro, um gesto que não requer muita
preparação ou formalidade.

94
Numa versão anterior desse texto as anedotas eram apenas registradas em nota de pé de página,
junto à discussão das obras explicitamente “literárias”, privilegiando seu teor ficcional. A análise
dessas representações textuais parece um pouco distante do que se espera encontrar em um
trabalho geográfico, mas esse repertório figura aqui por conta de seu caráter de narração
originada/modificada no lugar, que representa também uma prática reflexiva dos fronteiriços.
182

Em Paso de los Libres, a história muda um pouco, como relata Arce, numa
entrevista na presença de vários pesquisadores, em 2005:

O negro José Rodriguez, na época da construção dos bairros militares,


empurrava diariamente seu carrinho de mão com um cacho de bananas.
Sempre que interpelado na Aduana, punha-se a reclamar:
– Não dá pra comprar carne, não se consegue comprar pão, nem sequer
leite pras crianças!... Elas têm que se contentar com bananas! (Arce,
entrevista, Paso de los Libres, 07/2005).

Com um sorriso, Arce encerra o relato: “O que contrabandeava o negro?” “O


carrinho de mão!” é a resposta em coro do grupo. Era um negro, levava bananas,
certamente era um contrabandista brasileiro – e falador. Por isso reclamava de não
poder alimentar seus filhos de forma digna, justamente com pão e leite, produtos
argentinos considerados de melhor qualidade em comparação aos brasileiros.

Em Porto Alegre, em 2006, um colega nascido em São Borja, ao saber sobre


esta pesquisa a respeito do contrabando, interrompe as considerações teóricas e
conta o causo em que “o estancieiro passava todo dia, com sua cuia de mate e
térmicas, pela ponte entre São Borja e Santo Tomé (AR), não se esquecendo de
prosear com os guardas aduaneiros.” Uma pergunta retórica ao interlocutor repete a
adivinhação: “O que contrabandeava o estancieiro? Sêmen de gado!”

Esta anedota choca ao transformar a usual garrafa térmica sob o braço dos
mateadores em algo bizarro. As relações de amizade do estancieiro com o guarda
também são dignas de nota, mas servem aos propósitos do primeiro. Ingenuidade
ou conivência?

A próxima história faz o caminho inverso, lançando mão da compaixão para


realizar o habitual contrabando. Raphael Copstein contribui para esta coleção
relatando que

Uma das alfândegas da fronteira recebe um delegado novo, que declara


que durante sua gestão não haverá contrabando. Um morador do local
duvida e o desafia para uma aposta. Uma semana depois, o morador vem
cobrar o estipulado. Diante da surpresa do delegado, o fronteiriço afirma:
– Mas o senhor inclusive tirou o chapéu quando ele passou...
– Eu?!
– É, aquele defunto que veio ser enterrado aqui, o caixão estava cheio de
tecidos (Raphael Copstein, entrevista, Porto Alegre, 2006).
183

O delegado é enganado porque ignora as práticas do lugar: não basta querer


coibir o contrabando, é preciso conhecer seus segredos.

Quanto à familiaridade entre contrabandistas e aduaneiros, Olmo contou, em


2005, em Rivera que um contrabandista conhecido se fez fotografar no teto de um
carro de polícia, abraçado ao aduaneiro, registrando a sólida amizade que nascera
de capturas sucessivas. A história se apóia na experiência de uma fronteira que
coloca em relação ao invés de isolar.

Familiaridade, em muitos casos, o que não significa que os acordos não


devam ser respeitados, e que os papéis da fronteira sejam desempenhados pelos
agentes, mesmo que se trate da coima, como mostra o relato de Álamo e Rosa,
ouvido em Rivera Chico.

O contrabandista passara inúmeras vezes, naquele dia, pela guarda.


Sempre cumprimentando, dava ares de familiaridade, até que o aduaneiro
perde a paciência e responde ao olá sacando sua pistola e falando:
– Não vão ser teus “boa tarde” que vão levantar as paredes da minha casa!
(Álamo e Rosa, entrevista, Rivera, 2006).

O cotidiano é mostrado através de outra anedota, dessa vez apelando para o


humor negro. Em 2006, em Santana do Livramento, Robles contou que

Eu me lembro do contrabando de corpo. (...) Foi o causo de gente morta, de


um cara que morreu e queriam enterrar. Os parentes queriam enterrar em
Santana, porque ele era brasileiro, né? Acontece que não podia passar o
corpo pro Brasil. Oficialmente não havia corpo. Então, o que fizeram com o
cara? Agarraram e disseram “bom, então vamos fazer o seguinte: bota ele
dentro do carro”. O cara dentro do carro sentado, aí onde ele tá, com a mão
abanando assim, ó, a mão assim parada, assim passaram o corpo,
contrabandeado. Hoje é diferente, ali é uma sala velatória, tu vela ali e leva
pra Santana bem tranqüilo. Não tem problema nenhum. E isso do corpo era
bem verdade, o cara vinha com a mão abanando assim ó, bem durinho
como uma lechuza [coruja]. (Robles, entrevista, Santana do Livramento,
24/01/2006)

A idéia que se destaca é considerar contrabando qualquer liberdade em


relação à legislação nacional, tomando a expressão como sintética das atitudes que
buscam soluções para os problemas e especificidades locais. A idéia de
contrabando é ampliada, abarcando os muitos recursos que são empregados na
condição fronteiriça.
184

Em fontes escritas, há o relato do americano Todd Gitlin, ambientado na


fronteira entre Estados Unidos e México

Semana após semana, um certo sujeito passava com um caminhão


carregado de tralhas por uma fronteira. E, semana após semana, o oficial
da alfândega, desconfiado, mandava-o esvaziar o carro em busca de
contrabando. Nunca achava nada, e por isso era sempre obrigado a deixá-
lo ir. Passaram-se longos anos. Um dia, o último antes de sua
aposentadoria, o fiscal resolveu tirar aquilo a limpo. “Eu sei que você é um
contrabandista”, disse ao motorista. “Nem adianta negar. Tudo que quero
saber é: o que você carrega?”.
E o outro respondeu, “Caminhões, ora!" (apud MARTINS, J. 2003, p.1).

Apesar de um caminhão ser uma mercadoria sensivelmente diferente dos


carrinhos de mão, e indo além da consideração de possíveis plágios, constata-se
novamente que a fronteira pede passagem.

Compare-se o repertório acima com o relato de Alejandro Grimson (2003,


p.28). O antropólogo argentino traz anécdotas – no sentido de contos, causos – que
se passam na fronteira em Uruguaiana-Paso de los Libres:

Circulam por Uruguaiana dezenas de anedotas sobre a passagem da


fronteira. Cada habitante tem uma pequena ou grande coleção de histórias
sobre a alfândega argentina. Essas histórias são divididas com os amigos, a
família ou os companheiros de trabalho. Algumas foram vividas na própria
carne, outras lhes contaram, outras foram lidas ou vistas na televisão. A
estrutura do relato é mais ou menos a mesma: um cidadão ou cidadã
brasileiro/a pretendia cruzar a fronteira com uma motivação social ou
cultural (uma partida de futebol, um concerto, ver a família, comprar um
vinho argentino) e, ao chegar à Alfândega, encontra um problema grave
(maus-tratos, um entrave aduaneiro, uma exigência migratória) que
complica a passagem (durante alguns minutos ou uma noite). Finalmente
consegue passar a um custo demasiado alto (de tempo, de paciência, de
dignidade). [...] Alguns choferes, empregados e funcionários moram em
Uruguaiana e precisam negociar de várias maneiras com os funcionários
argentinos. Sentem que a fronteira “é um inferno”. [...] A convivência do
povo, no dia-a-dia, “isso não temos, não gostam de conviver diariamente”. É
raro que alguém vá à cidade vizinha para o aniversário de uma pessoa,
“não tem amizade, não fecham as coisas, por que? Pela dificuldade na
aduana para ir a Libres tu pensas duas vezes”. Roberto conta que passa
seis meses sem ir à Libres, ainda que aprecie os alimentos, a roupa e
outros produtos argentinos. Ele gostaria ao menos de passear, conversar
com esse e aquele, “mas chega lá, estão mudos, né, não dizem uma
95
palavra” (Roberto, engenheiro, 60 anos) (t.a) .

95
“Circulan por Uruguaiana decenas de anécdotas sobre el cruce de frontera. Cada poblador tiene
una pequeña o gran colección de historias sobre la Aduana argentina. Esas historias se comparten
con los amigos, la familia o los compañeros de trabajo. Algunas las vivieron en carne propia, otras se
las contaron, otras las leyeron o las vieron en la televisión. La estructura del relato es más o menos la
misma: un ciudadano o ciudadana brasileño/a pretendió cruzar la frontera con una motivación social o
cultural (un partido de fútbol, un concierto, ver la familia, comprar un vino argentino) y cuando llegó a
la aduana se encontró con un problema grave (el maltrato, una traba aduanera, un requisito
migratorio) que complicó el cruce (durante unos minutos o una noche). Finalmente logró pasar a un
185

A longa citação descreve uma situação de fronteira extremamente limitante,


causadora de sofrimento. A fronteira é comparada ao infierno, como no “Martín
Fierro”, passá-la é fazer o cruze, uma cruz dividindo o lugar, cerceando os contatos,
entravando as trocas, afastando comunidades vizinhas. Entre a linha imaginária em
Santana do Livramento-Rivera e essa fronteira sináptica há uma enorme diferença,
que não se deve à existência da fronteira natural, mas ao caráter cerceador do
controle aduaneiro.

A fronteira é dramática e cômica ao mesmo tempo. O que se revela aqui não


são as metáforas da fronteira – os significados derivados por vezes encontrados na
literatura e expostos no capítulo anterior, quais sejam o sobrenatural, a morte. As
anedotas apresentam preceitos sobre a forma de viver cada fronteira concreta, no
tempo e no espaço.

No caso de Santana do Livramento-Rivera observa-se a adaptação do


contrabando às transformações espaciais como o rodoviarismo – seria a lambretta
originalmente uma mula? – e a urbanização, figurada no carrinho de mão. As
anedotas tematizam as diferentes relações com os aduaneiros, sejam eles
ignorantes (no caso da aposta) ou coniventes (como na reivindicação pelas “paredes
da casa”), permissivos ou arrogantes no manejo da fronteira como um objeto do
poder estatal que pode ser apropriado pelo agente encarregado de exercê-lo. Acima
de tudo, registra-se o orgulho da população local em relação à sabedoria fronteiriça,
difundindo jocosamente os expedientes criados para contornar o cerceamento dos
contatos estabelecido pelo Estado-Nação. Tal conteúdo assemelha-se aquele
observado na análise dos contos de contrabando, no capítulo anterior, onde se
identifica a valorização da astúcia, da bravura e da rebeldia do contrabandista.96

costo demasiado alto (de tiempo, de nervios, de dignidad). [...] Algunos chóferes, empleados y
empresarios viven en Uruguayana y deben negociar de diversas maneras con los funcionarios
argentinos. Sienten que la frontera “es un infierno”. [...] La convivencia del pueblo, del día a día, “isso
nós não temos, não gostam de conviver diariamente”. Es raro que alguien vaya a la ciudad vecina por
el cumpleaños de una persona, “não tem amizade, não fecham as coisas, por que? Pela dificuldade
de aduana para ir a Libres tu pensas duas vezes”. Roberto cuenta que pasa seis meses sin ir a
Libres, aunque le gustan los alimentos, la ropa y otros productos argentinos. Le gustaría al menos ir
de paseo y conversar con uno o otro, “mas chega lá, estão mudos, né, não dizem uma palavra”
(Roberto, ingeniero, 60 años).
96
Falando da fronteira basca (França-Espanha) Hélène Velasco-Graciet (2006) aponta para a
apropriação simbólica das zonas de fronteira pelas populações locais, que as transformam em
“lugares da expressão da transgressão das normas nacionais”, levando à construção, naquele caso,
de uma identidade singular, de vila de contrabandistas. Como no caso aqui estudado, os discursos
186

4.4. A ESPACIALIZAÇÃO DINÂMICA DO TERCIÁRIO FRONTEIRIÇO

No cotidiano da(s) cidade(s), o limite entre compras transfronteiriças e


contrabando é de difícil demarcação. Por exemplo, um número recente do jornal “A
Platéia”, que circula em Livramento-Rivera, em português e espanhol, trazia uma
propaganda de eletroeletrônicos do free shop, com preços em dólar, ainda que tal
comércio volte-se a venda para pontos mais distantes do território (05/10/2008, p. 9).
Além disso, estimativas de informantes calculavam que cerca de 60% da população
local estava envolvida com o contrabando.97

É interessante resgatar as imagens propostas pelo geógrafo marroquino Hrou


Azzi (2007, p. 4-5), que apresenta o contrabando como um rio cuja fonte situa-se
nos territórios vizinhos ou distantes e que corre de forma perene, mas subterrânea,
sendo visível apenas na nascente e na foz, onde ressurge e toma forma no tecido
comercial. Ele também descreve o contrabando ou descaminho como um cone, cuja
base são os setores da economia que operam na legalidade, afunilando-se quando
as mercadorias entram na ilegalidade ao passarem a fronteira. A base pode ser
também constituída por produtos reexportados, importados legalmente para o
mercado local, mas sendo desviados de seu destino declarado.

Ao identificar os lugares em que se contrabandeia em Santana do


Livramento-Rivera, pode-se reconhecer uma mancha contínua de estabelecimentos
voltados ao comércio e serviços transfronteiriços no espaço urbano de Santana do
Livramento-Rivera, constituindo a base do cone figurado por Azzi. Espacialmente, a
mancha espraia-se da Av. Sarandí por algumas ruas paralelas e transversais, e seu
contorno ampliou-se durante o período de realização desse trabalho,

daquela população são marcadamente irreverentes ao abordar as restrições estatais, os aduaneiros,


suas rondas etc. Incluímos a fronteira gaúcha na afirmativa, ainda que não de forma tão taxativa de
que: “Os discursos das populações fronteiriças são idênticos: todo indivíduo, pelas práticas
transgressivas que cometiam nessa zona proscrita, onde tinham a impressão de viver fora das
normas impostas, de se distinguir do resto da comunidade nacional e de experimentar ‘a liberdade’”
(t.n.). “Les discours des populations frontalières sont identiques: chaque individu, par les pratiques
transgressives qu’il menait dans cette zone proscrite, avait l’impression de vivre hors des normes
imposées, de se démarquer du reste de la communauté nationale et de connâitre ‘la liberté’”
(VELASCO-GRACIET, 2006, p.77).
97
“Hoje, se tu vai aqui, nessa fronteira eu acredito que uma base de 60% dela vive de contrabando
né? Principalmente Rivera. Sim, e já não é tanto, porque hoje temos muitos funcionários públicos, é a
polícia, é intendência, ministério de salud pública, e mais seriam professores e assim vai.” (Robles,
entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).
187

especificamente entre 2007 e meados de 2008, quando apresentou sua maior


extensão em Rivera.

A principal razão para tal aumento foi a valorização do real em relação ao


dólar, incrementando a competitividade dos produtos oferecidos no free shop,
motivando excursões de compras de brasileiros (de várias cidades gaúchas e de
estados como SC e MS) e ampliando o número de lojas, de 15 em 2004 para
aproximadamente 50 em meados de 2008, empregando quase 2000 pessoas (A
PLATÉIA, 16/12/2007). A relação do free shop com a conjuntura econômica é
estreita: Gustavo Laclau, então diretor da Asociación Comercial e Industrial de
Rivera, relatou que, em 1999, quando da desvalorização do real, havia 72 free shops
em atividade em Rivera; já em 2002, quando aconteceu uma grave crise na
Argentina, com sérias repercussões no Uruguai, houve cerca 3000 demissões no
comércio de free shop (entrevista, Rivera, 20/07/2005)98. A valorização do dólar em
relação ao real, em fins de 2008, gerou uma imediata redução no movimento, ainda
que as obras de expansão dos free shops tenham-se mantido, inclusive com
investimentos de empresas de terceiros países.

Os turistas de compras são atraídos pelo free shop, levando à multiplicação


de comércios de oportunidade como restaurantes, lojas de roupas fabricadas na
Argentina, brinquedos e aparelhos eletrônicos chineses trazidos do Paraguai, que
tomam a forma de estabelecimentos improvisados em portas de garagens, porões e
similares. A multiplicação do número de vendedores ambulantes nas calçadas da
área central de Rivera também aponta para a ampliação do movimento econômico.
Segundo Gustavo Laclau, cerca de 60% do comércio de Rivera é informal,
adaptando-se às variações conjunturais (entrevista, Rivera, 20/07/2005) (Fig. 24).

Além disso, em meados de 2007, inaugurou-se um supermercado Tata, a 13


quadras da fronteira, abastecendo riverenses, santanenses e turistas e propiciando
a abertura de mais lojas voltadas ao comércio transfronteiriço nas suas redondezas.
Em Santana do Livramento, os supermercados não vivem sua melhor fase, eram
dez estabelecimentos de grande porte em 2005, no início desta pesquisa, e hoje são

98
Os dados apresentados por Gladys Bentancor-Rosés diferem: segundo essa autora, em 2002,
havia 52 lojas funcionando nesse regime, quatro a menos que em 2001 (2002, p.114).
188

cerca de cinco. Os hotéis, restaurantes e outras lojas que servem aos consumidores
brasileiros aumentaram sensivelmente seu movimento.

É consensual a idéia de que há uma relação direta entre a valorização do real


frente ao dólar americano e o aumento da área dedicada ao comércio
transfronteiriço em Rivera, expresso no ditado êmico “a fronteira vai bem quando o
país vai mal”.

FIGURA 24: Rivera: foto de comércio de ocasião sobre a línea – 2008


Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

O comércio entre as cidades-gêmeas varia com as diferenças locais dos


preços de bens de consumo, determinados pelas taxas nacionais sobre os distintos
produtos, pelo custo de vida e pela oscilação cambial – a relação de troca entre o
peso uruguaio, o real e o dólar americano (NEVES, 1976). Supondo a existência de
um mercado unificado, a repartição do movimento de compras entre as duas
cidades pende para a cidade que apresentar câmbio baixo, o que usualmente indica
que a economia nacional está em retração.
retração. Na cidade que apresenta câmbio
valorizado, somente o mercadorias e terciário raro mantêm sua atração sobre os
consumidores do outro lado da linha (NEVES, 1976, p.155 e ss). Nas palavras de
Julio Cairello: “Mientras nuestra moneda fue fuerte, todo venia
venia de allá, ahora ya tá
189

más difícil la cosa, porque lo real está muy caro para nosotros”. Assim, as trocas
entre as cidades-gêmeas se distribuem, ampliam ou retraem em função do poder
aquisitivo de suas populações.

Entretanto, o mercado local não depende apenas dos moradores das cidades-
gêmeas, uma vez que as cidades fronteiriças polarizam mercados numa escala mais
ampla, regional, de modo que o aumento das atividades econômicas numa cidade
não se faz necessariamente a expensas do conjunto das atividades econômicas na
outra. Por exemplo, a hinterlândia brasileira de Rivera extrapola sua cidade-irmã,
uma vez que os free shops e os preços praticados do outro lado da fronteira atraem
compradores de outras regiões. Daí que bons negócios em Rivera também trazem
benefícios para Livramento, que servem aos “turistas de compras” atraídos pelas
ofertas além-fronteira. Provavelmente, esse contingente seja cada vez mais
expressivo, em vista do aumento nos deslocamentos rodoviários.

Pode-se concluir que, ainda que seja usual associar o bom momento
econômico de uma cidade à decadência da outra, as queixas sobre a transferência
de comércio entre as cidades nem sempre procedem. Tais discursos podem ser
identificados como manifestações do espelhamento já discutido no capítulo 1, ou
seja, do hábito de comparar os dois lados da fronteira, seja para lamentar-se sobre a
bem-aventurança dos outros, seja para imitá-los em suas práticas mais bem-
sucedidas, ou ainda para saber reconhecer e valorizar as diferenças e
oportunidades dadas pela condição fronteiriça.

Na página seguinte encontra-se o mapa “Santana do Livramento-Rivera:


materializações do terciário transfronteiriço – 2008” (Fig. 25).

A mancha de estabelecimentos é identificada como “comércio e serviços


transfronteiriços”, indicando armazéns da linha, depósitos de venda via balcão, lojas
de materiais de construção e de roupas, postos de combustível, supermercados,
free shops, casas de câmbio e cambistas ambulantes, camelôs, lancherias,
queijarias, restaurantes e demais estabelecimentos dedicados primariamente à
venda para a população flutuante vinda do país vizinho, que se dirige às cidades de
fronteira com o propósito de adquirir mercadoria, de forma legal ou ilegal, seja para o
auto-consumo ou para revenda.
FIGURA 25: Santana do Livramento-Rivera: materializações do terciário transfronteiriço – 2008.
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman. Cartografia de Circe Dietz e Nola Gamalho sobre a carta topográfica de Santana do Livramento, 1984.
Esta concentração de lojas e serviços organiza-se em dois eixos. O primeiro
estende-se junto à linha de fronteira por aproximadamente 3km, desde o cruzamento
com a Av. 1825 (antiga Calle Cuaró, a principal do bairro Rivera Chico) até o fim da
Av. Paul Harris.

O segundo eixo parte da linha pela Av. Sarandí e ruas paralelas. Estas vias
abrigam estabelecimentos com regime de free shop e outras lojas de oportunidade,
até a Calle Viera, onde a proximidade com as Migraciones já dava à vizinhança um
caráter internacional, agora estimulado pelo novo supermercado; segue pelo acesso
à Ruta 5, estrada que liga Santana do Livramento-Rivera a Montevidéu e às cidades
uruguaias localizadas na porção oeste do país, onde encontram-se transportadoras,
paradas de ônibus, a Zona Franca e várias barracas de couro. Vale lembrar que
essa segmentação em fenômenos internacionais, nacionais e locais aqui só se
justifica pelas operações analíticas que realizamos.

Os pontos dedicados ao transporte rodoviário, como os terminais, as paradas


de ônibus regulares, os depósitos de venda via balcão, os estacionamentos dos
ônibus fretados e as transportadoras também estão indicados no mapa das
materializações do terciário transfronteiriço. Estes são pontos referenciais para
bagayeros, turistas de compras e transportadores de mercadorias em grandes
volumes. Os “órgãos nacionais de controle fronteiriço” no espaço intra-urbano
incluem a Delegacia da Receita Federal e a Polícia Federal em Livramento, a
Aduana uruguaia e as Migraciones, em Rivera. Deve-se notar que a maior parte do
controle de mercadorias se faz fora da cidade, em órgãos integrados a partir de
acordos no âmbito do Mercosul, permitindo que controles mais demorados sejam
realizados sem prejudicar os fluxos urbanos. A instalação das barreiras aduaneiras
fora do centro urbano parece ampliar a liberdade com que se realizam as trocas no
interior da(s) cidade(s).

Outras materializações do comércio transfronteiriço, no caso,


indiscutivelmente ilegal, são as barracas ou depósitos de contrabando,
especialmente couro, lã, madeira. Tais armazéns podem ser usados pelo
proprietário ou alugadas como depósito para mercadorias de terceiros. Segundo os
informantes, Olivo, um eminente contrabandista da(s) cidade(s) tem várias barracas
192

junto à linha99. A localização dos galpões é estratégica: na fronteira, mas fora do


centro da cidade, onde é possível realizar volumosas operações de carga e
descarga, sem chamar tanto a atenção:

Aí tu te pergunta por que tão pertinho assim um do outro, essas obras, mas
só que uma obra é do lado uruguaio e outra é do lado brasilero. Por que
nesse beco aqui? Supostamente porque aqui não hay um controle tanto da
polícia, fica mais longe pra chegar, uma coisa e outra, quando se
movimenta, a polícia de lá vem e avisa eles: “olha aqui, temo indo”...
Entendesse? Então, com aquela caminhoneta vermelha que tu vê ali... eles
fazem todo o tempo a campana, o seu batedor... vem um caminhão dele,
ele vem na frente e controla... aí por rádio ele avisa (Robles,
100
entrevista/excursão, Santana do Livramento-Rivera, 25/01/2006).

As várias barracas e casas de Olivo localizam-se em bairros periféricos de


Livramento e Rivera – razão pela qual não constam no mapa das materializações do
comércio fronteiriço. Muitas vezes, são fortalezas bem equipadas para a boa vida.
Segundo Robles, o bairro Sacrifício de Sonia, em Rivera, teve rede elétrica e o
abastecimento de água estendidos por iniciativa de Olivo, numa troca de favores que
constrói a autoridade do contrabandista, mesmo entre os agentes do Estado:

Ele foi que mandou integrar e fazer um monte de coisa aí. Agora tem uma
coisa, né? Eles dão vida pra pobreza. O casario ao lado daquele galpão lá
de baixo, ele botou água só pro pobrerio usar a água dele. Tiver que ajudar
um, ele ajuda, dentro da própria polícia, dentro da comisaría essa de cá, ele
ajuda a pagar água e luz pros milico, entende?, veio um aí, disse que tamo
com tal problema lá, então tá, hay um dinheiro por mês que eles dão, tu
entende, pra aduana, pra polícia... (idem).

A urbanização de Livramento-Rivera sempre esteve relacionada a


demarcação do limite e aos lugares que permitem sua passagem, como mostramos
no capítulo 1. As cidades surgiram para demarcar, mas tornaram-se uma só por obra
de intercâmbio duradouro. Das vantagens locacionais para a indústria surgiram os
bairros Armour e Wilson. O contrabando, como um dos esteios da vida fronteiriça,
está na origem de Rivera Chico. O processo não se concluiu, na medida em que
novas áreas, como o Sacrifício de Sonia, são ocupadas ou urbanizadas em função
de sua situação propícia ao trânsito clandestino de mercadorias.

99
Informações sobre Olivo podem ser encontradas no Apêndice C. O mesmo ainda não foi
entrevistado porque, nas palavras de Robles, “o cara é meio arisco”.
100
A íntegra dessa entrevista, realizada no veículo do informante enquanto o mesmo apresentava os
lugares do contrabando em Livramento-Rivera, transcrita e ilustrada com fotografias dos pontos
visitados, encontra-se no Apêndice C. Grande parte dos informantes fala portuñol, e por vezes foi
possível inserir nas transcrições indicações dos usos locais da língua.
193

4.5. O MERCADO FRONTEIRIÇO E SEUS AGENTES

A população da(s) cidade(s) se abastece em ambos os lados da fronteira,


escolhendo em função do preço e da qualidade atribuída ao artigo. O que poderia
ser caracterizado como “contrabando intra-urbano” é facilitado pela inexistência de
qualquer limite físico, pela concentração da população junto à linha fronteiriça e pela
naturalização da prática, vista como um hábito do lugar, isento de censura moral.
Nas palavras de um informante “son oportunidades si, es perfectamente natural
andar dos cuadras e ir al comercio más allá” (Romero, entrevista, Chuy, 06/03/2008).

De parte dos comerciantes, a condição fronteiriça é mais um elemento a ser


considerado. Como diz Robles, “o cara que põe um comércio aqui não pensa só em
Livramento. Ele pensa que vai vender pra nós. Hoje somos uma base de 200 mil
habitantes na cidade. Mais o flutuante que nós temos, que deve ser de 30 mil
pessoas diárias” (Robles, entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).

De forma geral, produtos industrializados, remédios e derivados de petróleo


são comprados em Santana do Livramento, enquanto carnes, fiambres, laticínios,
derivados do trigo, vinho e lãs são adquiridos em Rivera. Peças de carro brasileiras
são compradas no Brasil, enquanto as partes de reposição dos carros importados
em circulação no Brasil são trazidas do Uruguai, onde são mais baratas porque
sujeitas a menos impostos. O mesmo ocorre com as bebidas importadas para o
Uruguai.

Note-se que não são produtos fabricados naquele país, mantendo-se,


portanto, a condição uruguaia de entreposto, que não se extinguiu com as
negociações voltadas à criação de uma união aduaneira no âmbito do Mercosul.
Uma análise histórica dos produtos contrabandeados cotidianamente mostra uma
reversão nos fluxos dos produtos industrializados, ligada à substituição de
importações no Brasil depois da II Guerra Mundial. Se hoje são os produtos
industrializados brasileiros – principalmente eletrodomésticos e carros – que vão
para o Uruguai, antes se traziam produtos importados de terceiros países para o
Brasil, com intermediação uruguaia, conforme se viu no capítulo 1.

Observa-se que há uma constante atualização das práticas comerciais no


lugar. Novas regras para o comércio internacional somam-se à oscilação cambial,
194

fator preponderante na mudança da conjuntura e das oportunidades que esta


coloca, de modo que os fluxos não são cristalizados. Lembremos do relatado sobre
o comércio de farinha no capítulo 1, onde as restrições ao comércio internacional de
trigo e seus derivados, em meados do século XX, são transformadas em vantagens
para os comerciantes transfronteiriços e desencadeiam a “fase da farinha” argentina
no Brasil.

Se a farinha argentina ou uruguaia tem sido preferida, pelo preço e qualidade,


me surpreendi, em julho de 2008, com a abertura, no lado brasileiro, de armazéns
na linha (garagens e depósitos convertidos) cheios de sacas de farinha. Explicaram-
me que a farinha é argentina, exportada para o Brasil e então vendida (em que
condições legais?) para o Uruguai. Os fronteiriços, nas compras para consumo
cotidiano, continuam privilegiando massas e pães uruguaios, talvez feitos com
farinha comprada no Brasil e produzida na Argentina. É interessante que a incerteza
cambial e o conseqüente redesenhar dos fluxos não são vistos necessariamente
como problemas, sendo entendidos também como recursos que se apresentam aos
moradores do lugar, adaptados à condição fronteiriça.101

Como estratégia comercial, a lógica do espelhamento orienta a decisão do


empresário uruguaio que possui um free shop em Rivera e um supermercado em
Livramento, atuando nos dois principais setores do terciário fronteiriço
contemporâneo, conforme as variações no câmbio. Localmente fala-se também em
lojas-espelho, aludindo à existência de duas lojas do mesmo ramo, uma em cada
lado da fronteira, pertencendo à mesma pessoa, a fim de contornar os efeitos
destrutivos da oscilação cambial e de facilitar o aproveitamento do diferencial de
preços. Como exemplo, temos duas óticas e dois postos de combustível, operando
um de cada lado da fronteira e pertencendo ao mesmo dono (Figs. 26 e 27).

A segmentação de agentes locais descrita por Grimson; Vila (2002), opondo


os comerciantes de um aos do outro lado da fronteira e ambos aos contrabandistas

101
“E quando dá uma variação de moeda, por exemplo, de preço, por exemplo, aqui de repente o
aceite tá mais barato, de repente fica mais barato do lado de lá... aí passam daqui de Livramento pra
ir lá comprar, ou vender ou vivem lá, porque varia de uma cidade à outra, o sea que tu tens o recurso.
Se tu quer trabalhar, se tu quer te movimentar, mesmo sendo em contrabando, tem. (...) Todo o
comércio na fronteira é com isso? São duas cidades, um só povo. Porque tem um comércio aqui e
trabalha com o Uruguai, tem um comércio no Uruguai e trabalha com os brasileiros. A fronteira (...)
propicia sim, a união”. (Robles, entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).
195

não procede na fronteira aqui descrita. Ao afirmarem que os comerciantes formais


são os maiores interessados na manutenção das barreiras que criam os diferenciais
de preço no limite internacional, os autores desconsideram que, por vezes, os
empresários possuem interesses em ambos os lados da linha e se valem destes
para lucrar com o movimento comercial gerado pelas diferenças cambiais102.

FIGURAS 26 e 27: Santana do Livramento e Rivera: fotos do espelhamento nos


postos de combustível – 2007
Fonte: Fotos de Adriana Dorfman.

Note-se que um critério importante para as decisões de consumo é a


atribuição de qualidade às mercadorias e fornecedores. Segundo Andréa Quadrelli-
Sánchez (2002, p.61):

Esta fronteira apresenta, para sua população, uma série de oportunidades e


recursos novos e estratégicos, e é neste sentido que falamos de um sentido
prático da fronteira.
Se considerarmos uma prática como o contrabando, esta prática revela uma
estratégia cotidiana ou um sentido prático da fronteira para comprar ao
melhor preço, melhorar a rentabilidade ou adquirir produtos diversos.
Porém, a população fronteiriça, que pratica o contrabando cotidianamente, o
faz em função de determinadas suposições sobre qual é o melhor fiambre
(para riverenses e santanenses,
santanenses, o queijo e o fiambre uruguaio é de superior
qualidade e se compra em Rivera), onde se conseguem os melhores lençóis
e toalhas de banho (tradicionalmente em Livramento), onde comprar os

102
“Os comerciantes formais e informais das cidades [de Posadas,
Posadas, AR e Encarnación, PY] que,
histórica ou momentaneamente, têm preços mais baixos, também estão entre os interessados na
manutenção dos diferenciais de preço que aumentam suas vendas. Então, quais são os principais
prejudicados pela fronteira? Nessas cidades
cidades essencialmente comerciais, os maiores prejudicados são
os comerciantes formais das cidades (histórica ou temporariamente) mais caras, por exemplo,
Posadas. Entretanto, eles não reivindicam o desaparecimento da fronteira, ao contrário, reivindicam
um controle mais estrito do contrabando-formiga. Ou seja, eles querem que a fronteira seja mais
forte, e não que ela desapareça”. (t.n.) (“The formal and informal merchants of those cities that,
historically or momentarily, have lower prices, are also very interested
interested in maintaining the price
differentials that increase their sales. Therefore, who are the most hindered by the border? In these
quintessentially commercial cities, the most hampered are the formal merchants of the (historically or
temporarily) more expensive cities, for instance, Posadas. Nevertheless, they do not request the
disappearance of the border, but instead ask for a strict customs control against “contrabando
hormiga”. That is, they want the border to be more powerful, not to disappear.” (GRIMSON; VILA,
2002, p. 83).
196

medicamentos mais confiáveis (geralmente nas farmácias uruguaias), etc.,


etc. Isto é, não é conveniente falar de sentidos práticos da fronteira sem
considerar as idéias, estereótipos ou representações que riverenses e
santanenses têm desta fronteira e de si mesmos, porque para os atores
fronteiriços o mundo da fronteira não só se divide em dois (antes e depois
da linha, cá ou lá ou deste lado e do outro lado), também se carrega de uma
série de valores que determinam que coisas são melhores, onde e por quê
são melhores, desde as escolas ou os serviços públicos até a aspirina, as
lingüiças, os biscoitos ou os cachorros.

Dessa forma, as óticas de Rivera são consideradas melhores, possivelmente


porque se atribui aos uruguaios maior seriedade e ao seu ensino uma qualidade
superior, implicando maior qualificação da mão-de-obra. A possibilidade de aplicar
critérios qualitativos às mercadorias é mais freqüente entre as classes médias da(s)
cidade(s), visto que suas opções incluem escolhas que implicam maiores gastos.

Entre os usos cotidianos da fronteira esse é dos menos problemáticos, porque


ambas as partes – comprador e vendedor – se beneficiam. Poucas pessoas
reclamam desse hábito, em geral os comerciantes do outro lado da fronteira, que
resgatam argumentos nacionalistas, como a necessidade de constituir um mercado
interno e proteger a indústria nacional, mas que também usam da estratégia de
abastecimento binacional em suas casas.

Como dito anteriormente, em 2005, havia 10 grandes supermercados em


Santana do Livramento, abastecendo uma vasta hinterlândia uruguaia, vendendo em
real, peso uruguaio, peso argentino e dólar. Havia um claro superdimensionamento
da rede de varejo, quando comparada com outras cidades de igual tamanho, e
nesse caso pode-se afirmar que tais lojas não atendiam apenas à população da(s)
cidade(s). Em 2008, saltam à vista o número de postos de gasolina e farmácias
espalhados por Santana do Livramento103.

Os produtos com grande contraste nos preços praticados em cada lado da


fronteira podem desaparecer das lojas do lado menos competitivo. O gás de cozinha
é um exemplo visível: literalmente inexiste na cidade uruguaia e é facilmente
identificável nos depósitos ao ar livre de Santana do Livramento. Durante um

103
Há, portanto, mudança nos poucos anos que separam este texto da tese de Quadrelli-Sánchez
(2002, p. 61), onde se afirma que havia uma preferência pelas farmácias uruguaias, tidas como mais
sérias.
197

período bastante longo, motos carregadas com até oito bujões de gás eram marca
da paisagem. Uma lei recente proibiu (e foi acatada) a circulação de tais veículos.

Crescendo em nível de envolvimento dos agentes locais com o contrabando,


tem-se o dito contrabando de ocasião, em que a população complementa a renda
obtida em atividades formais com incursões ao comércio ilegal de mercadorias.
Segundo um informante:

Não é nada raro o sujeito pensar:


– Hoje tá chovendo, ninguém vai vir, terça-feira, dia calmo... Ah! vou lá fazer
um frete...
Aí o cara fecha a loja dele, onde ele trabalha normalmente, vai aumentar a
renda, né, sei lá, se virar de algum jeito. (Olmo, entrevista, Livramento,
07/2005).

Ou o que conta uma amiga nascida na fronteira:

Meu pai era funcionário do DAER [Departamento Estadual de Estradas de


Rodagem], claro que não dava para educar e vestir uma família tão grande.
Então, no fim-de-semana, a gente cruzava a fronteira pra tomar banho de
rio, as crianças se ajeitavam em cima da lona, e embaixo iam ventiladores
desmontados. (Petúnia, entrevista, Porto Alegre, 2006).

Um frete, atividade bastante inocente, ou uma excursão familiar, tornam-se


ocasião para o contrabando, à moda da fronteira. Nota-se que a facilidade de cruzar
a fronteira banaliza a decisão de incrementar a renda com essas iniciativas.
Observe-se também a expressão frete, onde o passador se apresenta apenas como
encarregado do transporte das mercadorias.

Fatores sazonais influem no movimento. No verão, as melancias plantadas na


área rural de Rivera são muito consumidas no Brasil, oferecidas em pirâmides na
beira das ruas e estradas, especialmente ao longo da linha. Na excursão com
Robles, entreouviu-se um guarda da aduana, questionado sobre a continuidade da
colheita de melancias em sua chácara: “Se não dá, a gente faz dar!”. Além de
policial, ele é granjeiro, além de plantar melancias, ele as contrabandeia. Subsiste a
adaptação que já se encontrava no bando de Rafael Pinto Bandeira (GIL, 2003) ou
noutros momentos do passado da região do Prata (MOUTOUKIAS, 1988, p. 202).
No inverno é a madeira do monte nativo (o bosque natural) que é oferecida junto à
linha, em barracas improvisadas.
198

Existem também os camelôs da linha. Segundo Enrique Mazzei (2002a, p.69),


são majoritariamente de Rivera (só 10% nasceram em Livramento) e oferecem em
suas bancas mercadoria como óculos, CDs, roupas, cosméticos,
cosméticos, bolsas e cigarros,
trazidos do Paraguai. O Bagashopping se instala em construções fixas na “Praça
dos Cachorros”, antigamente conhecida como Pérgula, sobre o limite internacional e
em frente à Aduana uruguaia (Fig. 28). Tais comerciantes infringem – além das leis
ligadas à alfândega e aos royalties – ao artigo 11 do Estatuto Jurídico da Fronteira,
assinado em 1933 por Brasil e Uruguai, onde se proíbe a construção ou
reconstrução a menos de dez metros do limite internacional, nas zonas urbanas e
suburbanas.

FIGURA 28: Rivera: foto do Bagashopping na linha com estátua da Pérgula –


2006
Fonte: foto de Adriana Dorfman.

Tal artigo foi resgatado em 2002 pela presidência uruguaia, propondo a


desocupação da linha. Depois de embates, o despejo do Bagashopping não se
efetivou, devido à forte mobilização dos camelôs, que alegavam serem
concessionários do espaço em disputa, respaldando-se nas taxas pagas à
Intendencia de Rivera, de acordo com a Ordenanza Municipal de junho de 1995
(BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p. 83-86). As contradições entre a legislação nas
199

diferentes escalas foram estrategicamente acionadas pelos interessados, ativando


sua condição fronteiriça104.

Há três tipos de operadores de câmbio monetário em ação na(s) cidade(s).


Há grandes casas de câmbio em toda a mancha do terciário transfronteiriço. Essa é
uma atividade tradicional em Rivera, praça de lavagem de dinheiro conhecida além
da escala local, como explica Julio Cairello:

Lavagem de dinheiro também é uma indústria nacional, não apenas aqui.


Há casas de câmbio que não têm nada que ver com Rivera, há bancos em
que não entram riverenses nem por acaso, estão todos aí, agências em que
vêm os brasileiros, já que no Brasil se controla muito o imposto de renda, é
tudo muito controlado, aqui não, recém começam a discutir se vão taxar a
105
renda, ainda não foi decidido, então sonegam, não é? (t.n.) (entrevista,
Rivera, 21/07/2005).

Também localmente, as casas de câmbio resolvem o problema das moedas


estrangeiras deixadas nas caixas registradoras de Livramento diariamente.
Enquanto no Uruguai podem-se usar todas as moedas, no Brasil é preciso trocá-las,
só se pode negociar em moeda estrangeira com autorização do Banco Central, e é
crime de evasão de divisas não declarar a saída de moeda. Recorre-se à legislação
mais distendida em vigor no país adjacente. Com o grande movimento comercial das
cidades, surge uma taxa de câmbio local, que reflete as tendências internacionais e
as políticas nacionais, aos quais agrega o movimento comercial local.

O segundo tipo são os cambistas itinerantes, agentes das casas de câmbio


uruguaias, que trabalham visitando as lojas algumas vezes por dia para trocar

104
A visão aqui apresentada difere daquela de Enrique Mazzei, ao descrever a posição dos camelôs
como reféns: “Essa situação, talvez legitimada em sua base pelo jogo político local, mas
cotidianamente exposta ao vai-e-vem regulamentarista municipal e ministerial motivado por
demandas de diversas origens locais, condiciona a uma maior insegurança as já precárias condições
de trabalho, constituindo o grupo como um setor cativo e responsável final de um complexo de
decisões e permissividades das quais são reféns ou sujeitos passivos, mais que atores principais.”
(t.n.) (“Esa situación, quizás legitimada en su base por el juego político local, pero cotidianamente
expuesta a los vaivenes reglamentaristas municipales y ministeriales derivados de reclamos de
diverso origen local, condiciona a una mayor inseguridad a las ya precarias condiciones de trabajo,
constituyendo al grupo como un sector cautivo y responsable final de un complejo de decisiones y
permisividades de las cuales son ‘rehenes’ o sujetos pasivos, más que actores principales”) (MAZZEI,
2002b, p. 6).
105
“Lavado de dinero, eso es una industria nacional también, no es solo acá. Hay casas de cambio
que ni, no tienen nada que ver con Rivera, hay bancos que no entran riverenses ni por casualidad,
están ahí, todo las agencias, por ejemplo, viene un brasileño, en el Brasil se controla mucho los
impuestos, no?, principalmente el impuesto a la renda, es muy controlado, acá no, acá recién ahora
están discutiendo si van a poner uno a la renta, todavía no se resolvió, entonces cuando ya no pagan
impuestos, sonegan, no?” (Julio Cairello, entrevista, Rivera, 21/07/2005).
200

moeda. Observei em mais de um comércio a chegada nada discreta de duplas de


homens ou mulheres jovens em motos, com pochettes recheadas de grandes maços
de pesos, dólares e reais, para recolher depósitos e distribuir troco. Na(s) cidade(s),
as lojas, mesmo aquelas que podem ser descritas como portinholas, aceitam as
várias moedas em circulação, mas preferem dar o troco na moeda estrangeira,
provavelmente para diminuir a quantidade a ser trocada com os cambistas.

Robles explica como funcionam os câmbios e qual sua relação com o


contrabando:

R: Não deixa de ser contrabando, né? Sabia que de dinheiro também existe
contrabando?
A: Pois é, eu tava falando com o [diz um nome]. Ele tava contando.
R: O cambista? Tanto que ele fazia cinco mil real na época que era um por
um, dólar e real tavam um por um.
A: E aí, valorizou o real.
R: Então assim... houve um problema, eles eram muitos sócios e então
perderam dinheiro.
A: Pois é, ele tava falando assim, se eu entendi direito, ele disse que, como
todo mundo compra em real do lado de lá e em peso do lado de cá, e no fim
do dia não pode ser assim, o cara tem que destrocar a moeda novamente.
No fim do dia ou durante dia. Aí fica esse negócio de troca e destroca, e
troca e destroca. Esse é o lance?
R: Isso é o câmbio.
A: E tem as casas de câmbio grande que precisam juntar de volta os pesos.
Mas por que que elas compram?
R: Acontece o seguinte... Como é que vou te explicar? Eles começam com
um capital durante o dia, né? E se ele vai fazer de cambista, por exemplo,
emprestam dinheiro pra ele trabalhar. Então ele trocou todo aquele dinheiro,
por exemplo, deram pra ele dez mil reais. Aí ele trocou um pouco a peso,
um pouco a dólar, um pouco a dinheiro argentino, e assim vai, e todo vice-
versa. Ele pegou esse dinheiro argentino e vendeu o dinheiro argentino e
deram pra ele em real, só que aí vem um argentino de lá que lhe sobrou
real e quer entrar pra dentro do Uruguai e vende. Assim começa. É um
troca-troca que até marea, que até tu te troca... [risos] E quando chega no
fim do dia, ele tem que pagar pro cara os dez mil reais.
A: Essa hora é um desespero então...
R: Não é um desespero, que tudo o que tu fez, fez consciente no normal,
tem que manejar nos lucros. Digamos que em cada troca tu ganha uma
porcentagem de coima, uma porcentagem.
A: Mas tem câmbio brasileiro?
R: Não, não tem câmbio aqui em Livramento no momento. Tinha ali em
frente da Praça Internacional, o Turim, eu acho que era. Teve um tempo e
de repente sumiu. Eu não sei o que houve, porque dentro dessas casas de
câmbio tem lavado de dinheiro, né? (Robles, entrevista, Santana do
Livramento, 24/01/2006).

Cada estabelecimento comercial tem sua taxa de câmbio, fazendo com que
os moradores da(s) cidade(s) levem tanto pesos como reais na carteira, contornando
câmbios desfavoráveis eventualmente praticados nas lojas. Isso significa que as
201

pessoas também compram moeda estrangeira, e em algum momento também


passam pelos cambistas de rua, o terceiro tipo de agente de câmbio. Isso não
representa qualquer dificuldade, porque há pelo menos dez guarda-sóis pintados
com nomes como Johnni, Ademir, Jorge, e sob cada um deles um ou mais
cambistas e sua calculadora em frente ao Parque Internacional. Sendo um hábito, as
pessoas têm um agente com quem preferem negociar, se cumprimentam, se
chamam pelos nomes, fazem piadas, o cambista faz um preço especial etc. Nessas
barracas há, por vezes, cigarros paraguaios ou americanos, ou alguma mercadoria
em demanda, como bebida ou relógios (Fig. 29).

FIGURA 29: Santana do Livramento-Rivera: foto dos cambistas na Praça


Internacional – 2006
Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

Essa atividade mostra como as práticas locais são


são subitamente alçadas à
escala global, pois o setor financeiro tornou o Uruguai conhecido internacionalmente
como a “Suíça latinoamericana”, não no sentido de desenvolvimento social, mas de
paraíso fiscal. É essa liberalidade que explica a visibilidade e a facilidade das
operações dos cambistas, que representam o ponto extremo de uma rede de
extensão global. Ao mesmo tempo, é interessante observar que cada
estabelecimento comercial define, dentro de uma determinada margem, sua própria
“política cambial”, que combina oferta, procura e taxa de câmbio. Por exemplo: o
dono acredita poder atrair mais clientes usando uma taxa de câmbio baixa, porque
202

supõe ser essa a tendência? Ou acha que determinada moeda está em queda, por
isso prefere evitar retê-la? Aceita cartões de crédito internacionais, porque assim
“branqueia” seu dinheiro?Muitos outros tipos de contrabando são encontrados em
Santana do Livramento-Rivera. Os mesmos gêneros trazidos pelas bagayeras são
transportados em quantidades vultosas, em caminhões que atravessam a fronteira
em lugares desertos e depositam o açúcar ou o combustível em galpões, onde serão
depois envasados e “orientalizados”. Os envolvidos nessas operações são os peões
de contrabando dos dias de hoje, pois administram a passagem de mercadorias de
propriedade alheia.

Entre as modalidades de contrabando, destaca-se o tradicional – mas sempre


atualizado – abigeato, ou seja, o roubo ou contrabando de gado, carne couro e lã.
Uma reportagem do Correio do Povo, de 1972, descrevia as bases da prática:

É a estrada larga. De uso comum, de brasileiros e uruguaios. Atravessando


o dorso da coxilhas, de um lado as estâncias rio-grandenses, de outro, as
uruguaias. Os marcos de alvenaria, que assinalam o gume da linha divisória
vão se sucedendo, no leito do callejón, 500 ou mil metros um após o outro.
E à esquerda, indo de Livramento para o oeste, as porteiras das estâncias
uruguaias indo para o callejón, e à direita as porteiras das estâncias
brasileiras, também dando para o callejón. Algumas displicentemente
abertas.” (ALMEIDA, 1972, p. 18).

A extensa fronteira seca combina-se aos latifúndios, às redes estabelecidas


na época dos frigoríficos e à facilidade de aquisição de terras por estrangeiros no
Uruguai.106 O controle fiscal desses produtos se faz de duas formas: a primeira é
realizada nas propriedades, através do censo agropecuário uruguaio, muito
detalhado; a segunda é pelas guias de exportação das barracas de couro e lã. As
duas formas estão sujeitas à fraude. Falando sobre o censo agropecuário, Nogal
explica que se pode vender a carne e apresentar apenas o couro, mesmo que a
propriedade onde supostamente foram criados os animais não possua dimensões
para contê-los:

Adriana: E aqui tem um negócio que eles marcam uma por uma, eles
sabem...
Nogal: Há, aqui sim, desde os tempos da ditadura, né? Se na ditadura tinha
um tipo que tinha mil vacas, morria uma, ele tinha de sacar o couro e dar
conta na comisaria e levar a oreia, a marca da vaca. Quando ele vendia o

106
Apesar de não ser tema do presente trabalho, cabe lembrar que o mercado de trabalho na
agricultura brasileira e uruguaia, na fronteira é fortemente entrelaçado, levando a mobilidade
geográfica da mão-de-obra, geralmente em condições muito precárias.
203

couro, tinha de ser a mesma marca, né? Quem fez dinheiro foi o [diz um
nome] ele vendia pelo Brasil, por aí, por exemplo, cem, duzentas, trezentas
vacas, e eles devolviam o couro. Quer dizer que ele fazia negócio, né?
Pero... devia ter só três, quatro quadras [de campo]. (Nogal, entrevista,
Rivera, 19/07/2007).

Higuerón, um informante qualificado, aponta que as estatísticas da produção


de lã no departamento de Rivera são as mais elevadas do Uruguai (200 a 300% a
mais) por conta dos barraqueiros, que compram a lã no lado brasileiro e a depositam
em suas barracas, providenciando documentos que a legalizem através de guias de
barracas inativas. Assim, os informantes costumam ironizar os procedimentos
estatísticos, corroborando para a afirmativa feita no início deste capítulo, de que a
análise estatística só pode ser levada a cabo na fronteira com muita atenção.107

Segundo Gladys Bentancor-Rosés, isso configura o “contrabando técnico: a


aquisição e venda de guias obtidas através de falsificação e/ou compradas de
produtores”, que podem assumir diferentes formas: alteração na declaração de
volume, compra de guias em branco (2002, p. 107). Como lembra um informante, as
barreiras sanitárias também são burladas nessas operações. Nas palavras de Nogal:

É como a lão brasileira, por exemplo, os tipos compram a lão brasileira aqui,
milhares, e iludem como é?, o fisco brasileiro. Eles têm ali, como é?, aquela
guia, como é?, são três guias que dizem né, que usam, os barraqueiros ali,
não é?, os benditos iam nas barracas acertar as guias e aí chega e é tudo
frio. Tem barraca que está fechada, mas ficam os expedientes tudo. Tão já
no ramo e consiguem as notas já vencidas, frias e fazem. Vem aqui pro
Uruguai, não paga imposto, entra como contrabando. Pero que passa?,
quando o homem vai vender a lão ela é que paga imposto e quanto não
ganha com essa lão? Isso é o contrabando, o mesmo com a vaca que vem
do Brasil. Por que se a vaca está mais barata no Brasil, se vai lá e se
compra. [...] esses problemas de aftose, e eles siguem com as vacas que
sabem que são vacas brasileiras (Nogal, entrevista, Rivera, 19/07/2007).

Deve-se notar que tal contrabando se faz principalmente através de


operações ligadas à documentação das operações de compra, venda e
beneficiamento dos produtos primários, envolvendo grande número de funcionários
públicos, o que ocasionalmente desencadeia operações anticorrupção, de efeito
limitado no tempo e no espaço. Um informante no Chuy resume: “Ahí está el gran
contrabando, de papeles y no cargado” (Romero, entrevista, Chuy, 06/03/2008)

107
Outros exemplos são dados na dissertação de Gladys Bentancor-Rosés (2002, p. 108): os
registros de animais perdidos com couro, cuja média nacional gira em torno de 1,5%, chegam no
departamento de Rivera a 10% do rebanho; há uma propriedade que passou cinco anos sem declarar
nascimentos de terneiros, apesar de contar com um plantel de 1700 vacas e 150 touros.
204

4.6. EXTRATERRITORIALIDADES E CONTRABANDO

O recurso à extraterritorialidade é usual na fronteira, pois permite ao Estado


incentivar projetos econômicos em áreas consideradas deprimidas por sua situação
de margem da economia nacional, ao facilitar aos agentes privados a exploração da
renda fronteiriça. Por extraterritorialidade entende-se o estabelecimento, pelos
governos dos Estados-Nação, de regimes de exceção em porções do território
nacional, seja no que diz respeito a leis trabalhistas ou ambientais, à arrecadação de
diferentes impostos etc.108 Zonas francas, distritos de processamento para
exportação, áreas de livre comércio, free shops, além de regimes de isenção como a
venda via balcão multiplicam-se e, com estes, desenvolvem-se novas estratégias de
contrabando.

Os free shops foram instalados no Uruguai a partir de 1986, com argumentos


de espelhamento: visavam ressarcir o comércio riverense frente a um longo período
favorável à Livramento e outras cidades fronteiriças, motivado pelo crescimento
“milagroso” da economia brasileira na década de 1970 e, especificamente, pelo
desenvolvimento industrial muito superior. Essas lojas são isentas de impostos de
exportação, operam principalmente com mercadorias de luxo produzidas em
terceiros países, na condição de venderem apenas para os consumidores finais
estrangeiros. Os free shops buscam tirar vantagem dos momentos em que a
oscilação cambial aumenta o poder de compra dos brasileiros, atraindo-os para a
fronteira. Entretanto:

O free shop foi feito aqui justamente para isso, para vender para os
brasileiros, porque de fato nós que vivemos aqui não podemos comprar no
free shop, é tudo para o exterior, essa é a lei.
Na verdade compramos tudo que queremos no free shop, porque eles têm a
documentação dos brasileiros, porque para comprar no free shop tem que
ter, quem compra, a documentação brasileira. Eu não sou brasileiro, mas
vou ali e compro o que quero. Como eles lançam isso? Têm fichas de
brasileiros que compram ali e nelas colocam o que compram. Pronto, quem

108
“A suspensão total ou parcial de regulamentos e taxação em territórios delimitados é uma
prerrogativa dos Estados nacionais. O estatuto de extraterritorialidade permite a criação de territórios
especiais onde certas normas válidas no território nacional são suspensas (mas não as leis) pela
própria autoridade constituída. Atualmente é um expediente cada vez mais mobilizado pelos Estados
como uma forma alternativa de regulação das fronteiras internacionais para atender objetivos
econômicos. Tanto os centros financeiros offshore como as zonas francas ou área de livre comércio
são as grandes beneficiarias desse estatuto.” (MACHADO, L. 2006, s/p).
205

vai checar? Às vezes há uma investigação, mas no geral não (t.n.) (Julio
109
Cairello, entrevista, 21/07/2005).

Além das vendas para uruguaios, o contrabando ligado aos free shops
consiste na revenda das mercadorias por eles importada para a comercialização no
Brasil. Os turistas de compras, que transportam perfumes, aparelhos eletrônicos,
etc. desrespeitando o valor máximo de US$ 300,00 podem ser enquadrados por
descaminho. Há redes que operam, no entanto, com milhões de dólares:
ocasionalmente são noticiadas apreensões, em operações da Receita Federal do
Brasil e da Polícia Federal, de caminhões de bebida, de produtos eletroeletrônicos,
mídia como CDs e DVDs, destinados, em princípio ao free shop, mas desviados
para comercialização no interior do Brasil.110

No início dos anos 2000, foram criados os regimes extraterritoriais de


“exportação direta” para vendas por indústrias, e “exportação indireta”,
intermediadas por estabelecimentos comerciais, o que é mais difundido em Santana
do Livramento111. Mais conhecida como “venda via balcão” trata-se principalmente
da venda aos uruguaios de materiais de construção e bebidas, reconhecíveis pelo
rótulo for export only. Como não há isenção de importação no Uruguai, as
mercadorias saem legalmente do Brasil, mas entram ilegalmente no Uruguai. Muitas
vezes as mercadorias são vendidas no Brasil, constituindo ainda outro tipo de
sonegação. Nas palavras de um informante: ”via balcão só é legal em cima dos
marcos”.

109
“El free shop se hizo acá justamente para eso, para vender para los brasileños, porque de hecho,
nosotros, los que vivimos acá no podemos comprar no free-shop, es todo para el exterior, pero esa es
la ley. En realidad compramos todo que nos da la gana en el free-shop, porque ellos tienen la
documentación de los brasileños, porque para comprar no free-shop tiene que tener, la persona que
compra, documentación brasileña, yo no soy brasileño pero yo voy allí y compro lo que quiero.
¿Como ellos descargan eso? Tienen fichas de brasileños que compran alli y después en las fichas de
los brasileños lo que compran. Pronto, ¿quién vá averiguar? A veces hay alguna investigación, pero
en general no.” (Julio Cairello, entrevista, 21/07/2005).
110
É o caso da Operação Prata, desencadeada em 2004 e 2005, que revelou uma quadrilha que
movimentava milhões de dólares por mês. Uma das conseqüências das prisões relacionadas a tal
operação foi o assassinato já mencionado, de dois policiais civis brasileiros. (SUSPENSE..., 2006).
111
Trata-se da suspensão de IPI, do ICMS, Cofins e PIS/Pasep para as mercadorias destinadas a
consumo fora do Brasil, vendidas em real (§ 1º do art. 1º e no art.3º do Decreto nº 4.732, de 10 de
junho de 2003 da CAMEX). No entanto, a venda via balcão esbarra na norma de bagagem do
Ministério de Economia e Finanzas do Uruguay, que segue o tratado do MERCOSUL prevendo
isenção de US$150 dólares em compras em fronteiras terrestres e taxa de 50% sobre mercadorias
que excederem o valor (Decisão 18/94 do Tratado de Ouro Preto, regulamentada no Decreto 572/94)
(ACIL, 2007).
206

Na prática, isso é acomodado por discretos depósitos junto à linha, com


porteiras que se abrem rapidamente quando da chegada de kombis e outros carros,
com vidros geralmente pintados de branco, que providenciam o transporte das
mercadorias vendidas por caminhos laterais à Aduana (Figs. 30 e 31).

FIGURA 30: Rivera: foto da aduana com marco e desvio para mercadorias
vendidas via balcão – 2005
Fonte: foto de Adriana Dorfman

Robles explica como a “exportação indireta” circula nas cidades e entra como
contrabando no Uruguai:

R: Por exemplo, faço frete, vou lá na [diz o nome de uma empresa], no cara
onde faço frete, carrego a caminhonete, ele me dá a nota e eu passo na
Receita. Vou lá na Alfândega, a Alfândega confere a nota, confere a
mercadoria, tudo certinho, carimba a nota, ficam com a minha via e me
entregam uma via, já têm uma terceira via, aí. Só que aí, no momento que
eu passei pro lado, lá a mercadoria já é contrabando, no Uruguai. Aqui no
Brasil é legal, exportação em reais.
A: Mas aí passa direto pela aduana?
R: Não passa na Aduana uruguaia. Não, pois lá é contrabando.
A: Porque a gente tava no Porto Seco da outra vez, aí o cara mostrou pra
gente aquele monte de portão e aí sobe lá atrás e ele disse que lá é a
exportação via balcão. E como é que faz pra não passar pela aduana deles
lá?
R: Como faz? Como faz, é... tem óculos escuros aí? [risos] Entendesse? Vai
ter que ver até que ponto não apertam do outro lado. A Alfândega tá sendo
omissa em certos pontos, a mercadoria não vai desaparecer ao passar
aquele portão ali, ela não vai virar fumaça, ela teria que aparece em algum
lado.
A: Isso vale tanto pra grande quanto pra pequeno?
R: Sim, tanto que uma embalagem que tu compra do via balcão onde diz
que é proibido de vender em território nacional. A venda em território
nacional brasileiro, né? Porque tem a isenção de vários impostos. Uma
caixa de Black Stone, sabe o que é? É um uísque dos mais barato que tem.
207

Hoje tá 34 reais mais ou menos. E eles ali tão vendendo a 60, 70 reais.
Quer dizer que é muito mais que o dobro.
A: Mas aí não tem gente que compra de via balcão e consome no Brasil?
R: Mas até eu passo no Uruguai, vejo uma cervejinha e carrego. Tu vai aqui
ao lado aonde vende refrigerante, bebida, é tudo cerveja Sintra. Aqui em
Livramento tem vários comércios onde tu vai encontrar a cerveja Sintra.
Porque se tu não vai comprar na via balcão ela é muito mais cara, então tu
ta encontrando dos dois tipos. (Robles, entrevista, Santana do Livramento,
24/01/2006).

FIGURA 31: Rivera: foto das kombis e depósitos de venda via balcão sobre a
linha de fronteira – 2007.
Fonte: foto de Adriana Dorfman – 2007.

O grande movimento de compradores brasileiros em Rivera motiva


atualmente queixumes nos comerciantes de Livramento, que reivindicam a extensão
do regime de exceção ao lado brasileiro da fronteira112. As queixas também são

112
Por exemplo: “Na Assembléia Legislativa [do RS], estará sendo realizada uma audiência pública
[...]. A crise [...] está centrada no
no fato de os comércios dos municípios de Fronteira, bem como demais
setores, assim como a economia (mediante não circulação de dinheiro) vivem estagnação, enquanto
as empresas uruguaias, sobretudo de free shops, vendem milhões de dólares, especialmente para
brasileiros. Desemprego, fechamento de lojas, queda nos serviços, atraso nos tributos,
encerramentos de empresas, marginalidade, ausência de dignidade via miséria, entre uma série de
outros problemas sociais e socioeconômicos são as principais conseqüências dessa realidade. A
legislação sobre as áreas de fronteira (outrora áreas de segurança), nascida no governo Getúlio
Vargas e ratificada no regime militar, impede que 47 mil quilômetros quadrados do território gaúcho
sejam aproveitados economicamente. A maior parte desse território está na Metade Sul. Livramento,
Jaguarão, Chuí, que fazem fronteira com cidades que têm free-shops, assim como Quaraí, entre
outros, querem e precisam de medidas compensatórias, haja vista os problemas que enfrentam. Mais
de 100 prefeitos, em Livramento, em evento da Confederação Nacional de Municípios e Famurs,
recentemente, diagnosticaram com amplitude essa crise institucional“ (Zero Hora, 16/12/2007).
208

incorporadas pelos defensores da proposta de diminuição da largura da faixa de


fronteira, para 50 km113. Paradoxalmente, argumentos nacionalistas são usados
numa reivindicação dos agentes locais pela internacionalização do espaço
fronteiriço, liberando quase 50 mil km no Rio Grande do Sul a investimentos
estrangeiros, especialmente aqueles ligados à silvicultura e à produção de celulose.
Há uma metamorfose no discurso, de reforço da soberania nacional para a busca
crescente de inserção nos circuitos internacionalizados de produção.

Vale notar que essas medidas reforçam o papel de entreposto das cidades-
gêmeas, já que tanto o free shop quanto o regime de venda via balcão visam
aproveitar a renda fronteiriça para atrair consumidores de outras localidades.

A Zona Franca de Rivera, pensada como pólo atrator de industrialização da


área, é apontada como tendo tido resultados limitados em sua proposta original.
Afirma-se que opera mais como lugar de maquiagem e depósito de contrabando114.
É difícil precisar quanto dessas informações correspondem à realidade, mas como já
foi dito anteriormente, vale como verdade local, ou ao menos depõe sobre a
onipresença do contrabando no imaginário do lugar.

Diante de tantas iniciativas, por parte dos Estados-Nação, de estabelecimento


de extraterritorialidades na fronteira, os inúmeros expedientes usados pelos
habitantes da linha podem ser entendidos como arranjos na escala local, fora da
legalidade nacional, soluções ad hoc empregadas e legitimadas por grande parte da
população, podendo-se falar de extraterritorialidades locais ou territorialidades
contrabandistas. Reiteradas vezes ouvi informantes justificarem a prática do

Observe-se que os municípios citados permaneceriam na faixa de fronteira, mesmo com sua redução
para 50 km.
113
Segundo o Projeto de Emenda Constitucional 49 de 2006, do senador Sérgio Zambiazi,
modificando a lei 6634/1979, que vincula à segurança nacional a necessidade de uma faixa de 150
km vedada a investimentos estrangeiros.
114
“Na Zona Franca são imensos galpões para o contrabando, aonde as coisas chegam de qualquer
parte do mundo, do Brasil ou de Montevidéu, por onde for, a aí lhes mudam as marcas, e seguem
para o mercado interno, para o Brasil, para São Paulo, as coisas vindas da Europa, é zona franca
porque não paga imposto, só mudam o nome da mercadoria e pronto (...) chegam containeres todos
os dias no porto de Montevidéu” (t.n.) “Nós decimos zona franca, enormes galpones, y todo para el
contrabando, porque traían las cosas allí, a la zona franca, de cualquier parte del mundo, tanto por
Brasil como por Montevideo, por lo que sea, e ahí les cambiaban las marcas de las cosas, seguía
para el mercado interno, y venían para el Brasil, San Pablo, y todas cosas que venían de Europa, es
zona franca porque no pagan impuestos, solo cambiar el nombre de la mercadería e ya está, e al
puerto de Montevideo todos los días llegan conteineres.” (Julio Cairello, entrevista, Rivera,
21/07/2005).
209

contrabando como uma alternativa à falta de emprego e políticas sociais para a


fronteira; denunciam também que as medidas extraterritoriais não são pensadas
para o desenvolvimento regional, mas para benefício de membros da elite:

R: Não adianta terminar com contrabando, tu tem que ter emprego. Pra dar
um emprego tu tem que montar o que? Fábricas.
A: Mas tirar dinheiro de onde pra montar fábrica, né? Fábricas que queiram
investir...
R: Não tem ninguém, ninguém investe aqui. Tudo que se investe é com
interesse político. A Zona Franca é só de interesse político, os free shop é
uma coisa política, pra que? Pra gerar emprego supostamente, mas não é
pra gerar emprego, é pra abrir posto [de trabalho] pra gente que tenha
capital pra investir. Tem gente manejando os interesses políticos, né? Tu
não pode dar emprego público pra ele, né? Pois então vamos dar um
espaço pra ti abrir um free shop. E lá os cara iam abrir um free shop...
(Robles, entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).

Utilizar o conceito de extraterritorialidade, normalmente reservado às medidas


estatais, aplicando-o aos atos dos habitantes da região fronteiriça não visa
descaracterizar o conceito, e sim sublinhar que as práticas dos fronteiriços em vários
âmbitos da vida cotidiana possuem regras e lógica próprias, mesmo quando
conformam exceções à lei estatal, dando margem à identificação de uma
extraterritorialidade local.

Propor a existência de uma territorialidade contrabandista parte da


apropriação da proposta de Bertha Becker ao afirmar que as territorialidades
expressam práticas espaciais coletivas fundadas na “convergência de interesses,
ainda que conflitiva e momentânea, e cuja articulação com os demais níveis se faz
através de conflitos e de sua superação, isto é, através das relações de poder”
(1988, p. 109).

4.7. ESCALAS DA TERRITORIALIDADE CONTRABANDISTA

O contrabando é praticado em escalas muito variadas. Sem esgotar o objeto,


identifiquei em Santana do Livramento e, especialmente em Rivera, vários tipos,
como o contrabando cotidiano; o abigeato; o bagayo; a revenda de produtos dos free
shops; além de outras formas de contrabando envolvendo grandes volumes, valores
e distâncias, que não são aprofundadas nesta tese.
210

Pode-se classificar o contrabando conforme o artigo e o volume


contrabandeado; conforme a origem e o destino da mercadoria (rural ou urbano, do
ou para o Brasil, Uruguai ou terceiros países); conforme a antigüidade da prática (o
bagayo e abigeato têm sido praticados ao longo da formação territorial desta região,
o que não quer dizer que não se atualizem; existem formas emergentes, como o
contrabando de componentes de informática, de sementes transgênicas ou de
agrotóxicos115); conforme o número de contravenções implicados (trata-se apenas
de elidir impostos ou do trânsito de mercadorias proibidas?; há suborno, coerção,
crime ambiental, assassinatos associados ao trânsito das mercadorias?); conforme a
rede mobilizada; conforme o volume transacionado etc.

O foco desta pesquisa é a espacialização dos agentes, de modo que organizo


a discussão segundo a inserção sócio-econômica do contrabandista e a descrição
dos lugares por onde eles circulam, na rede gerada pelo contrabando116. As
diferentes práticas de contrabando ligam-se às características de seus protagonistas
em termos sociais, econômicos e geográficos.

Os contrabandistas podem ser pobres e fazer a compra e o transporte eles


mesmos; podem ser ricos, operando em grande escala e usando várias rotas, com
vínculos locais de ocasião se valendo de peões117.

Os contrabandistas pobres ou bagayeros não encontram outra ocupação


profissional ou se valem do contrabando como forma de complementar sua
remuneração. Segundo os relatos das informantes, são auto-empregados que usam

115
Uma série de reportagens publicadas no jornal porto-alegrense Zero Hora, em fevereiro de 2008,
traz dados sobre o contrabando de agrotóxicos: em 2005, foram presas duas pessoas; em 2006, 17 e
em 2007, 50 pessoas foram flagradas com cargas ilegais de agrotóxicos. O volume também vêm
crescendo: 0,55 mil litros e 5,9 quilos (2005); 2,5 mil l e 740 kg (2006) e 8,8 mil l e 4,5 t (2007),
apenas em Santana do Livramento. Segundo o periódico, os agrotóxicos produzidos na China são
contrabandeados para o Brasil (num valor de US$360 milhões por ano) através do Uruguai (30% da
mercadoria, com destino ao RS, MS e MG) e do Paraguai (70% do total contrabandeado para
lavouras no PR, SP e MG). Além de cometer contrabando (lei 334 do Código Penal), há crime contra
a lei 7802/1989 (que regula a utilização de agrotóxicos) e contra a legislação ambiental (lei
9605/1998) (GRAEFF, 2008).
116
Tal opção liga-se ao objetivo de construir uma geografia dos agentes que praticam a fronteira, e é
diferente daquela do geógrafo marroquino Hrou Azzi (2007), que trabalha em três níveis: aquele das
estruturas de comércio, o das localizações e o dos bairros periféricos. Segundo Alain Musset, uma
descrição do contrabando deveria organizar uma tipologia por níveis de capitalização, tipo de produto
e escala de ação; ou privilegiar sua característica tradicional ou emergente (entrevista, Paris,
23/02/2007).
117
Conhecidos no contrabando paraguaio como mulas, laranjas ou naranjas, trabalham para grandes
contrabandistas, principalmente trazendo cigarros, geralmente em ônibus fretados (Juíza Salise
Sanchotene, entrevista, Porto Alegre, 15/02/2006).
211

o contrabando como uma alternativa ao mercado laboral restrito. Tal informação é


corroborada por Lídia Schiavoni (2005), que afirma que “nessas buscas não apelam
para ‘qualquer coisa’, recorrem a experiências prévias, à rede de relações e/ou
garantias gerada pelo conhecimento de casos bem-sucedidos”118. Normalmente
aprenderam o ofício com os pais ou com amigos que já faziam as viagens.

Sua relação com a aduana é dúbia, por vezes contam com a conivência da
guarda aduaneira, por outras são submetidas à perda da mercadoria e mesmo a
humilhações, dada sua posição de elo fraco no tecido social. O controle aduaneiro
não é muito estrito, mas é imprevisível, e a conivência pode se dar por interesses
econômicos ou em troca de favores, por compartilhamento de uma rede social ou
por certa solidariedade de classe que legitima o contrabando-formiga. São
tipicamente mulheres uruguaias, que viajam em bandos de quatro ou cinco pessoas,
abastecendo-se em Livramento nos armazéns da linha, onde estabelecem relações
duradouras. Da mesma forma, os clientes nas cidades de origem são conhecidos de
antemão, muitas vezes são parentes ou vizinhos de bairros populares que adquirem
a mercadoria para consumo próprio ou para abastecer suas vendas.

Eventualmente podem-se encontrar homens no bagayo; entretanto, os


homens têm alternativas como cortar madeira nos bosques e, no caso de
contrabandear, voltam-se para o transporte noturno de cigarros, CDs piratas ou
bebidas, em geral mais rentável do que o transporte de mercadorias mais triviais
como alimentos, roupas ou, no máximo, remédios119.

Os contrabandistas médios têm boa inserção na sociedade local, geralmente


exercem atividades legais e mesmo de destaque na comunidade, o que lhes propicia

118
“A idéia de autoempregar-se surge como uma saída diante de um mercado restrito. Os indivíduos
mais necesitados tentam obter ganhos, mas nessas buscas não se apelam para ‘qualquer coisa’,
recorrem a experiências prévias, à rede de relações e/ou garantias gerada pelo conhecimento de
casos bem-sucedidos, assim esboçando possíveis caminhos” (t.n.). “La idea de autoemplearse surge
como una salida frente a las restricciones del mercado. Los individuos más constreñidos por las
necesidades intentan obtener algunos ingresos pero en estas búsquedas no se hace “cualquier cosa”
sino que las experiencias previas, la red de relaciones y/o garantías que brinda el conocimiento de
casos exitosos, así se esbozan posibles caminos” (SCHIAVONI, 2005, p.347).
119
Segundo relatou Lapacho, um amigo em necessidade aceitou levar do Uruguai para o Brasil
algumas centenas de CDs ocultos no motor de seu carro. O peso da carga fez com que andasse
lentamente, o que despertou a desconfiança da Polícia Rodoviária brasileira, levando à revista do
carro e à prisão por contrabando. O informante lamentava a má sorte do amigo, desmoralizado diante
da filha pequena (que o acompanhava para ajudá-lo, uma vez que Lapacho havia declinado o convite
à excursão). Observe-se que a vergonha estava em ser preso, e não em contrabandear (Lapacho,
entrevista, Livramento, 12/2007).
212

vínculos com os fiscais da fronteira, usados para passar sua mercadoria e evitar que
seus concorrentes o façam. Como relata Nogal, policial uruguaio aposentado, figura
folclórica: “E quando prendi um brasileiro? um que tem uma barragem, qual é o
nome dele? [diz o nome], pode ser? Ele me ofertou uns dólares e que eu fosse caçar
e pescar na barragem dele e eu disse que ele tava preso, mas no outro dia me
correram.” (entrevista, Rivera, 19/07/2007).120

Muitas vezes esses membros da sociedade local abastecem suas lojas com
produtos de contrabando; noutros, usam suas lojas ou serviços para adquirir
produtos que serão revendidos ilegalmente: é o caso de desvio de bebida alcoólica,
destinada ao free shop, para venda ao Brasil; do transporte de peças automotivas e
combustíveis originários no Brasil nas linhas de ônibus regulares uruguaias; das
manobras de nacionalização de couro e lã nas barracas (depósitos) espalhadas pela
cidade. Devido à posição social privilegiada, não é fácil aceder localmente a
informações sobre suas operações, e sabe-se mesmo de assassinatos ligados à
eliminação de testemunhas121.

Nas vezes que tentei contato com comerciantes de Santana do Livramento-


Rivera, obtive acolhida fria. Na Asociación Comercial Industrial de Rivera, ACIR, dois
senhores uruguaios muito experientes no comércio transfronteiriço, um dono de uma
companhia de ônibus e outro proprietário de duas óticas, uma em cada lado da
linha, deram um longo depoimento (Fig. 32). O problema é que ambos negavam
saber qualquer coisa fora do senso comum sobre o assunto, afirmando que “Claro,
se eu for no supermercado lá [no Brasil] e precisar de copos, estando barato eu
trago”. No entanto, um deles já tinha sido processado por contrabando de
gasolina.122

120
A íntegra dessa entrevista encontra-se no Apêndice D.
121
É o caso de dois policiais civis brasileiros encontrados mortos em Rivera em fevereiro de 2006.
Eles haviam sido afastados de suas funções em 2004, após anos de trabalho na delegacia de polícia
de Livramento, por terem sido flagrados pela Polícia Federal agindo como batedores de um
carregamento de uísque de free shop que rumava para São Paulo (relatos em campo; SUSPENSE...,
2006; SEPULTAMENTO...,2006; PCS BRASILEIROS..., 2006).
122
A frustração causada por essa entrevista ainda não foi completamente analisada, na medida em
que a mentira coloca em xeque a figura do informante – agora um deformante – e, com ele, toda a
prática de pesquisa que se baseia em depoimentos. A leitura do artigo de Janaína Amado sobre o
“Cervantes de Goiás” (1995), que trata de um desconcertante depoimento mentiroso recolhido pela
pesquisadora, e de sua interpretação vinte anos depois, recoloca a questão: mais do que mentiras, o
que queriam dizer os informantes? Quais as lições que eles deram?
213

FIGURA 32: Rivera: foto em entrevista na ACIR/CEB – 2005


Fonte: foto de Adriana Dorfman.

Em certos casos, o contrabando é a fonte de enriquecimento. É o caso de


Olivo, self-made man comparado nas histórias locais a tio Patinhas. Começou seu
ofício com apenas uma bicicleta, que até hoje ele guarda,
guarda, sendo atualmente dono
das barracas de couro e depósitos de contrabando citados em seção anterior. Olivo
foi chamado em uma entrevista de “o contrabandista más grande que tem aqui”,
atestando sua importância e seu vínculo no lugar.

Dos grandes contrabandistas


contrabandistas pouco ouvi, apenas algumas histórias sobre
volumosos transportes de ouro ou dólares encontrados com russos, sobre um
deputado ou senador brasileiro que traz, de avião, metralhadoras AR-15 do Paraguai
e sobre as manobras da Zona Franca, que envolvem componentes
componentes eletrônicos,
drogas e armas:

Nogal: - Eu vou cerca, esse problema da zona franca do cara aí. Caíram
poucos, né, [diz um nome], que um é dos maior traficante de drogas que
tem aqui neste Rivera e cosa, e ele tá no Brasil e teve até o dia que se
casou a filha e tinha até os PM de custódia dele, né? [...] isso foi um
contrabando millonário. La famosa zona franca, que caíram vários
comissários: o comissário de Melo, [diz um nome, diz outro nome]... Caíram
como nove implicado, além de vários empresários grandes.
[contrabandeando] de tudo, cigarro, whisky, eletrônicos, que a zona franca é
por donde pasa tudo para os free shops, não é?
214

Adriana: - E como é que descobriram?


N: - Bueno! Ai, este, foi problema de dois políticos. Veio o [presidente do
Uruguai] que não gostava do [presidente anterior], que é o dono da máfia,
[...] e então agarrou a inteligência e fez rastrear ele e... Antes não podia
prender porque prendia um caminhão e mandavam largar (entrevista,
Rivera, 19/07/2008).

Como se vê, os grandes contrabandistas dedicam-se a afazeres múltiplos e


com ramificações em outras escalas.

4.8. O BAGAYO: TERRITORIALIDADE E AGENTES

Os bagayeros são contrabandistas que operam com sua capacidade de


cruzar a fronteira, e não com documentação ou outra burocracia. Vale citar Hrou
Azzi, geógrafo marroquino, teorizando sobre o contrabando e a economia informal
em espaços fronteiriços em vias de desenvolvimento para observar a explicação que
ele dá para a ação dos pacotilleurs (aqui traduzido por bagayeros):

A forma mais simples de contrabando, aquela dos bagayeros, que


atravessam a fronteira mais de uma vez por dia e praticam o contrabando
em massa ou o pequeno contrabando, está associada à organização do
encaminhamento das mercadorias por bandos de contrabandistas
equipados de material adequado e preparado para todas as eventualidades.
É nesse contexto e dadas suas características seculares e o papel da
proximidade geográfica, que populações inteiras aderem a tal atividade.
Além disso, certos setores desse tráfico são prerrogativa de uma única tribo,
excluindo as demais. O caráter étnico ou tribal é um elemento básico na
123
organização e no acesso a tal atividade (t.n.) (AZZI, 2007, p.3).
O trecho transcrito estabelece, primeiramente, que o tipo mais elementar de
contrabando é o bagayo; que há um grande número de pessoas envolvido na
atividade; que os bagayeros se organizam em bandos; que a prática é tradicional;
que se liga à convivência nas fronteiras; que há um elemento étnico que dá acesso à
atividade e que forja o limite da cumplicidade.

123
“La forme la plus simple, celle des pacotilleurs, qui traversent la frontière plus d’une fois par jour et
pratiquent la contrebande de masse ou la petite contrebande, est associé a l’organisation de
l’acheminement des marchandises par des bandes de contrebandiers équipées en matérial adequat
et préparés pour toutes éventualités. C’est dans ce contexte et vu le caractère seculaire et le rôle de
la proximité geographique que des populations entières adhèrent a cette activité. Et plus encore
certains secteurs de ce traffic sont l’apanage d’une seule tribu en excluant des autres. Le caractère
ethnique ou tribal est un élément de base dans l’organisation et l’accèss a cette activité“. (AZZI, 2007,
p.3).
215

O que acontece em Santana do Livramento-Rivera tem vários pontos em


comum com o descrito acima. No caso aqui em estudo, o bagayo apresenta-se
como um ofício tradicional de fronteira, aprendido com os pais e amigos, com certa
clivagem de gênero, sendo exercido – em geral – por mulheres. As bagayeras
atravessam a fronteira repetidamente, em grupos originários da mesma cidade, o
que certamente não as aproxima de uma tribo ou etnia, mas estabelece uma
coincidência de percurso.

Trata-se do transporte de produtos como cigarros, bebidas alcoólicas, erva-


mate, açúcar, sal, óleo, refrescos em pó, maionese, gelatina, biscoitos variados,
doces, sabonetes, vestuário, roupas de cama, sapatos, lingerie e bijuterias, sempre
de marcas populares e o mais barato possível, em quantidades que variam de dois a
meia-dúzia, ou seja, um micro-varejo, chamado localmente de surtido, que pode ser
traduzido como sortido ou como rancho, ou ainda, provisões. Encontrei algumas que
levavam medicamentos genéricos, por serem muito mais baratos que os uruguaios,
ainda que com extremo cuidado e discrição, uma vez que essas mercadorias se
afastam do surtido, fogem de um dos princípios do bagayo, colocado por Magnolia
da seguinte forma: “yo trabajo con la tranquilidad”. Alguns homens exercem o ofício,
podendo se especializar no transporte de certos produtos, como cigarros.

As bagayeras reúnem-se nos armazéns da linha, no lado brasileiro da rua-


linha (Fig. 33), onde as entrevistei, esperando os momentos de menor agitação para
conversar, observando suas atividades enquanto montavam seus volumes.
216

FIGURA 33: Santana do Livramento: foto das bagayeras na linha – 2006.


Fonte: foto de Adriana Dorfman.

Em janeiro de 2006, visitei a Casa Globo. O dono, sr. Encina, foi


extremamente prestativo. Seu armazém constituía uma espécie de atacado do
bagayo, onde os uruguaios provenientes de várias cidades abasteciam-se de
surtido. Duas manhãs nesse estabelecimento resultaram em muitas entrevistas,
feitas sobre o balcão da loja ou no banco (Fig. 34). Esclareço que o dito banco, que
tornava esse estabelecimento atraente para as contrabandistas, era um assento, e
não uma fonte de crédito. Dele pôde-se avistar a vasta rede em que a atividade se
desdobra.

Encina conta que as compras são pagas


pagas à vista, o maior movimento se dá no
começo do mês, e que “os piores momentos da linha são quando o real está muito
alto”. Quando o peso está alto, as pessoas “se perdem [têm a mercadoria
confiscada] de manhã, vêm de tarde de novo”.
217

FIGURA 34: Santana do Livramento: foto do banco na Casa Globo – 2006.


Fonte: foto de Adriana Dorfman.

As bagayeras que entrevisto vêm de ônibus de Tacuarembó, Paysandú,


Florida, Tranqueras, Vichadero e Paso de los Toros (Fig. 35: Uruguai: hinterlândia
do bagayo oriundo de Santana do Livramento – 2008). Note-se que algumas
viajantes vêm de cidades limítrofes à Argentina. Segundo elas, algumas passagens
da fronteira foram dificultadas por protestos argentinos contra a construção das
fábricas de celulose, ou papeleras, em território uruguaio. Além da maior facilidade
de acesso, alguns preços são mais convidativos em Livramento. As bagayeras
mantém sua ocupação mesmo exercendo seu ofício noutro lugar.
218

FIGURA 35: Uruguai: mapa da hinterlândia do bagayo vindo de Santana do


Livramento – 2008.
Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman. Cartografia de Circe Dietz e Nola Gamalho sobre bases do
INPE/ Departamento de Defesa Americano / Grupo Retis.
219

Algumas bagayeras vêm acompanhadas de ajudantes que, com a


aprendizagem da atividade, podem começar a agir por conta própria. Outras trazem
seus filhos (especialmente no período de férias escolares), o que é visto como mais
uma vantagem para as mulheres, que não têm que se preocupar com quem vão
deixá-los durante sua jornada de trabalho. Várias informantes relataram ter
aprendido o ofício com o pai ou irmão, mostrando tanto o caráter tradicional como a
função da viagem em família na transmissão da experiência.

Em julho de 2007, a Casa Globo fechou e no lugar há um novo atacado,


chamado Casa Vargas, clean e bem equipado. As paredes foram pintadas de uma
cor clara e têm câmaras em ângulos altos do salão. Há um computador no caixa
(posicionado em frente para a entrada da loja) para controlar estoque e dar nota de
compra. Não há mais banco “porque atrai tanto o bom como o ruim”, frase de
Perera, proprietário da loja, que não precisa ser interpretada porque era mais uma
forma de desconversar do que uma assertiva, tratava-se mais de um “não é da tua
conta. Porque vou te explicar coisas que quem precisa saber, sabe? E se tu não
sabe é porque não precisa saber”, invocando o pacto de silêncio que me exclui, que
exclui o outsider.

Perera é curtido do sol e muito atento, olhar rápido e jeito desconfiado, self-
made man orgulhoso de sua trajetória, fez questão de me mostrar as fotos dos
estabelecimentos anteriores, primeiro uma carroça, depois um barraco, depois um
barracão que vendia madeira e lenha e agora essa casa na linha. As fotos estão ao
lado da sala da gerência, construída num mezanino no fundo do salão, com entrada
pelo depósito (através de corredores feitos de pilhas enormes de sacos de açúcar,
que supostamente seriam vendidos quilo a quilo) e janelas sobre o movimento.
Conversamos principalmente enquanto ele atendia o caixa e conversava com
clientes ou alguém que vinha resolver algum pequeno negócio, como deixar um
cheque. Ele jogava o tempo todo com me dar atenção ou não, responder ou não
minhas perguntas, era reticente e acompanhava as frases interrompidas com
olhares que eu entendia como dizendo: “sobre esse assunto estamos todos de
acordo e não há muito mais a dizer”.

Os compradores recebiam algum registro da compra, porque quando


começam a ser atendidos, o vendedor anota os pedidos num bloco, sempre entre
220

piadas e frases curtas. O movimento acelerado de buscar no depósito o açúcar, as


balas etc., arrumá-los numa pilha e conversar em voz alta dá muito dinamismo à
cena. O vendedor ainda se encarrega de acompanhar o comprador ao caixa e voltar
para atar as compras, ajudar o cliente a levá-las até o veículo, ou fazer uma pilha
num canto aguardando a entrega. A transformação da casa Globo na casa Vargas
foi mais do que uma mudança de razão social: uma forte aceleração no ritmo do
estabelecimento acompanha o rebatismo. Desaparece o banco e em seu lugar,
surge um computador, mostrando também um movimento modernizador.

Na Casa Santa Rita, outro armazém da linha, a umas quatro quadras da Av.
Sarandí, trabalham o dono Manzano, seus filhos, a esposa e outro empregado. Além
deles, há outros quatro ou cinco atendentes, que saem e entram constantemente.
Manzano é branco e loiro, de 45-50 anos, com sotaque da colônia. Homem
ocupadíssimo, respondia minhas perguntas enquanto atendia o caixa, coordenava a
ação dos empregados e falava no telefone. Nasceu na Serra, onde plantava fumo,
mas já está na fronteira há mais de 30 anos, 25 dos quais como proprietário da Casa
Sta. Rita. Nos primeiros anos na cidade, foi tassimetrista, mas era um trabalho mais
cansativo e pior remunerado. Segundo Robles, ele tem terras no Uruguai,
equilibrando os negócios quando o comércio vai mal. Uma leitura das histórias de
Perera e Manzano aponta para uma mobilidade social no contrabando, onde a
possibilidade de acumulação representa aproximar-se e fixar-se na linha, e de certa
forma, emergir do rio do contrabando, chegando a sua nascente legal.

Manzano conta que a casa Santa Rita vende “alimentíssimos, a linha dos
salgadinhos, balas, erva, maionese, margarina, açúcar e óleo. Óleo agora não,
porque no Uruguai está mais barato”. Ele informa que as bagayeras escolhem suas
compras pelo peso, pelo preço, pelo volume e, nos bons tempos, também pela
marca. O comerciante reclamou das regalias que o free shop uruguaio tem e que o
comércio brasileiro não tem, e reivindicou que as vantagens do sistema de venda via
balcão – isenção de ICMS dada pelo governo estadual que será abordada na
sessão sobre extraterritorialidades – sejam estendidas ao comércio varejista, o que
possibilitaria a legalização do bagayo.

Nesse armazém, converso com uma senhora de 74 anos, que vem desde os
nove à fronteira. Ela mora em Canelones, isto é, a seis horas de ônibus, para
221

comprar mais ou menos 1600 pesos (na época, 2007, 160 reais ou 80 dólares) em
colorau (pimentón) e outros gêneros miúdos. “Açúcar agora não, porque lá (no
Uruguai) está mais barato”. “Já merecia me aposentar”, brinca ela, jogando com a
tensão entre a visão corrente de que o bagayero é um trabalhador, o que lhe
outorgaria direitos, e o caráter ilegal da profissão por ela exercida.124

Na mesma manhã, conheço o bando da Hortencia, composto por ela mesma,


uma senhora vivaz de mais ou menos 50 anos, morena, contrabandista há uma
década; sua filha Azucena, com cerca de trinta anos, muito sorridente e fumante; e
Margarida, que me deu mais atenção. Com certeza, Margarida era a que tinha mais
sofrimentos a relatar, uma mulher bem vincada, de óculos, que me contou que não
conseguia mais morar em Rivera, onde uma filha tinha sido assassinada pelo
namorado traficante, que o marido tinha fugido com a nora, que ela cuidava dos
netos, na verdade trabalhava para sustentar o filho, para os netos etc. Havia outra
senhora menos próxima e alguns homens no grupo, um calvo, barrigudo e piadista,
que dizia ser marido de Hortencia e de Azucena ao mesmo tempo e que não quis
conversar, dando apenas apartes ocasionais; outro, mais jovem, tipo galã fronteiriço,
de calça branca, cabelo crespo comprido em cachinhos cuidados, pulseiras, e outros
adornos, que quis saber quantos anos eu tinha e se eu era casada; além de um
homem de aproximadamente 40 anos, mais alto e simpático, que só descobri
pertencer ao bando durante a viagem de ônibus, alguns dias depois, na sexta-feira.

Todos eram uruguaios, bagayeros de Mercedes, uma cidade perto da


fronteira entre o Uruguai e a Argentina. Margarida estima em cerca de 700 o número
de pessoas que se ocupam do bagayo. Eles viajam até dez horas para chegar a
Livramento, onde compram suas mercadorias: bastante bebida alcoólica brasileira,
cigarros paraguaios, comestíveis baratos, lingerie.

Ali, no banco do armazém, fiquei horas vendo-os “empacotar”, quer dizer: um


deles verteu vários litros de uísque em garrafas pet de guaraná, outra arrumou e

124
Para os fronteiriços, é importante afirmar que o bagayo é um trabalho, apesar de ilegal, um
recurso frente a falta de emprego, como mostram as palavras de Robles: “Eu tenho pra te dizer que
têm brasileiros trabalhando em contrabando e viajando pro Uruguai. Tenho comprovado vários, te
digo porque tenho viajado nos ônibus e eles viajam também. Se dedicam ao contrabando porque é a
maneira de vida mais fácil pra eles, o sea, é o trabalho que eles têm. Eles hoje te dizem que estão
trabalhando no contrabando, embora sea ilegal, eles tão trabalhando. Em Livramento também tem
uma quantidade trabalhando com ele. É trabalho.” (entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).
222

rearrumou suas compras em caixas pequenas de uma marca barata de biscoitos. As


caixas foram cortesia do estabelecimento comercial, assim como a piola, o fio de
ráfia, tão importante que tem um empregado encarregado de administrá-la (capaz de
rebentar a ráfia com as mãos!), tudo isso muito claramente acordado. Hortensia
distribuiu, sem muitas explicações, parte de suas compras entre as colegas que
dispunham de mais espaço em suas sacolas.

O mais impressionante (prazeroso, para dizer a verdade) foi assistir (e ajudar,


afinal sou mulher e estava ali só conversando) à confecção de uma saia de cigarros
paraguaios, na forma de um pano floriado duplo, com costuras verticais e paralelas
que deixam canais de tecido. Nessas repartições entram três carteiras de cigarro por
vez, estofando os gomos. Ali foram mais de 15 pacotes de cigarro, ou 180 carteiras,
ou quase 4000 cigarros. As embalagens de cartolina eram achatadas (primeiro
dobradas, depois prensadas com o peso do corpo, sentando-se nelas)
cuidadosamente, para depois serem remontadas. E uma vez recheada a saia, veste-
se sobre as calças jeans. Uma saia meio cigana. Muitos maços mais foram
disfarçados em embalagens de erva-mate.

Várias horas da excursão dos bagayeros são dedicadas à organização do


“volume” ou bulto. São gestos em busca do volume e da aparência: compactar a
quantidade ou disfarçar os produtos mais controlados. Parece ser melhor
contrabandear guaraná e erva-mate, produtos autorizados pelas tradições, que
bebida e cigarros, também tradicionais, mas menos inocentes. Que mal pode haver
numa caixa de biscoitos recheados? Essas escolhas fazem parte da lógica que
harmoniza aduaneiro-bagayero: convém mostrar respeito à patrulha. Ainda que
aquela saia não convencesse alguém empenhado em achar contrabando, ela
representa o compromisso em jogar o jogo do bulto, do volume, do disfarce, não
desacatando ostensivamente a ordem. A organização das mercadorias constitui, de
certa forma, uma prática ritual – lembremos de van Gennep – necessária à
passagem da fronteira: ao ordenar os produtos, com gestos conhecidos e repetidos,
reafirmam-se os valores culturais, reproduzem-se modelos, adquire-se controle
sobre o processo, assegura-se a ordem. Esse momento mostra ainda que uma das
vantagens do bando coeso é compartilhar a tarefa e a responsabilidade de carregar
a mercadoria.
223

O bagayo é uma atividade de mulheres “autônomas”, como opção às faxinas


e outras modalidades de trabalho doméstico e pouco qualificado.125 Maiores ganhos,
diminuição da própria despesa, liberdade de horário e de trazer os filhos,
continuidade da atividade tradicional da família, desemprego e dignidade foram
citados como razões pessoais para aderir à prática. Deve-se acrescentar que as
informantes sorriam e mostravam bastante orgulho de serem bagayeras, “micro-
empresárias”, aceitando os riscos da atividade sem estigmatizá-la, ao mesmo tempo
evitando a posição aviltada da empregada doméstica. Segundo Lidia Schiavoni
(entrevista, Posadas, 11/12/2005) as paseras sentiam-se com pleno direito de fazê-
lo, por considerarem que a aduana é uma máfia e que na verdade há contrabando
muito mais volumoso que passa com a conivência de certos guardas aduaneiros.

Não há preconceito local em relação às bagayeras. Gladys Bentancor-Rosés


afirma, em sua dissertação, que mais dos 70% dos fronteiriços por ela entrevistados
descrevem o contrabando como natural, percentual que se aproxima de 100%
quando se trata de contrabando-formiga (2002, p. 104).

No caso local, conforme observado, trata-se de tomar um ônibus de manhã


cedo em alguma cidade do oeste do Uruguai (foram citadas Tacuarembó, Mercedes,
Fray Bentos, Paysandú, Florida, Tranqueras, Vichadero, Paso de los Toros e até
Montevidéu) e vir até Santana do Livramento comprar os produtos em armazéns da
cidade, como a Casa Santa Rita, a extinta Casa Globo e a Casa Vargas, que se
localizam na linha, o que facilita os arranjos de transporte. Esta cidade é escolhida
principalmente pela facilidade de transporte coletivo, em função da ligação pela Ruta
5 com Montevidéu. Os bagayeros das cidades a leste da Ruta 5 dirigem-se ao Chuí
ou outra cidade. A preferência pelo transporte coletivo se dá porque, em caso de
fiscalização, há a possibilidade de confisco do automóvel, o que representaria uma
perda financeira muito maior126. Tudo é bem visível, não há muito sigilo, os roteiros

125
A percepção das questões de gênero ligadas à atividade em estudo foi tardia nessa pesquisa, uma
vez que as mulheres são figuras secundárias ou ausentes na maioria dos contos de contrabando, o
que lembra o caráter parcial ou pontual dessas narrativas e a necessidade de complementar com
outras fontes o quadro organizado com base na literatura. A percepção sobre a importância do
gênero no estudo das paseras deu-se graças à entrevista com Lidia Schiavoni (Posadas, 11/12/2005)
e à leitura de seu livro (1993) sobre as trabalhadoras da fronteira em Posadas (AR) - Encarnación
(PY).
126
Caso seja comprovado que o ônibus tinha sido preparado (compartimentos secretos, bagageiros
especiais) para transportar contrabando, dá-se o confisco do mesmo, com punição para o proprietário
(Juíza Salise Sanchotene, entrevista, Porto Alegre, 15/02/2006).
224

são habituais e os fornecedores são conhecidos. Isso é feito duas ou três vezes por
semana, em geral.

Note-se que o arranjo espacial dos postos de fiscalização fronteiriça torna a


fronteira mais permeável: as Migraciones estão no perímetro urbano, separadas das
barreiras alfandegárias e sanitárias. Seguindo pela Ruta 5 há uma aduana e uma
barreira sanitária em Curticeras, a 15 Km de Rivera, e há um posto da Guarda
Caminera em Manoel Diaz, a 70Km, além de barreiras móveis. A fiscalização é
esporádica, e as bagayeras têm vários esquemas para diminuir o risco de confisco:
redistribuir os pacotes entre os passageiros do ônibus; vestir camada sobre camada
de roupas; coimear. Em períodos de maior repressão também se usa contornar a
Aduana a pé ou em carroças, pelo campo, e retomar o ônibus mais adiante.

Conforme Robles:

A: Mas as pessoas não passam propriamente pela estrada, né?


R: Sim, de ônibus sim. Como ela leva pouca coisa, geralmente deixam,
quando é pouca coisa. Agora, por exemplo, quando vai muito, muita gente
no ônibus e se vê muito pacote, aí de repente vem a ordem do chefe,
tascam tudo, não deixam nada. É a operação zero quilo.
A: Varia com o quê?
R: Varia com a quantidade que levam no ônibus.
A: Mas não depende, sei lá, qual o tipo de produto? Ou chegar um chefe
novo? Ou querer mostrar serviço por alguma coisa?
R: Não. Geralmente quando há uma operação como a operação Prata, isso
incentivou que começassem a atacar muito, que não deixassem passar
nada. Então, o que fazem os que geralmente levam de ônibus? Eles
contratam uma carroça e saem por fora, passando a Aduana. Daí se vão.
Lá têm a Manoel Diaz, a 70 quilômetros daqui, que lá é um posto policial
com mais de 15 policial, ou seja, cinco por turno. E esse posto ataca muito
a mercadoria. Então, lá em Manoel Diaz, eles descem antes de Manoel
Diaz, caminham a pé, cruzam Manoel Diaz por campo e vão pegar o ônibus
lá diante.
A: Isso aí demora quase um dia inteiro pra fazer?
R: Pra eles sim, muitas vezes sim.
A: E o cara faz todo dia?
R: Faz todos os dias, todos os dias. Uns fazem um dia de manhã, vêm de
manhã e aí ficam. (Robles, entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).

Em 20 de julho de 2007 acompanhei as bagayeras em sua viagem. No


terminal rodoviário de Rivera havia apenas uma senhora com seus volumes. Nas
paradas seguintes, no entanto, vários passageiros carregando inúmeros pacotes
entraram no ônibus, escolhendo seus lugares e demorando em acomodar sua carga.
Os pacotes foram distribuídos também entre outros passageiros. Algumas mulheres
usavam vestidos que revelavam sua vontade de ocultar. A viagem seguiu tensa pela
225

Ruta 5 até Curticeras e, no posto aduaneiro de Manoel Diaz, o ônibus parou.


Silêncio e olhares e uma última empurradinha no volume sob o banco precederam a
saída de Hortencia do coletivo, possivelmente para arrumar a passagem, conforme
contou Robles em sua entrevista.127 Os maleiros do ônibus foram abertos e pouco
se via da janela. Um aduaneiro entra no ônibus e pede para abrir uma caixa, que
contém vários sacos de sal, leva-a embora.

Alguns minutos depois ela retorna, com expressão aliviada, indicando que
não haveria problema na passagem. Quando o ônibus retoma seu caminho, ela
grita, pela janela, despedindo-se dos aduaneiros: “¡Feliz día del amigo!” Todos no
ônibus riem do duplo sentido. A distensão é também indicada pelo início do almoço,
o grupo abre suas bolsas e pega sanduíches e refrigerantes. Apreensão e amizade
combinam-se na relação bagayero-aduaneiro. Pergunto às informantes sobre o
resultado da vistoria e elas me explicam que tudo correu bem, que passamos sem
problemas maiores, que a caixa continha apenas sal, e que os guardas daquele
turno eram camaradas.

Em caso de apreensão da mercadoria, “se te tiram, em casa tem algo que


funciona como uma poupança” (t.n.)128. E se o câmbio estiver favorável, repete-se
no mesmo dia a jornada.

Na volta à cidade de moradia, há que levar os gêneros encomendados até os


compradores, vizinhos, a família, pequenos armazéns na zona periférica ou por
exemplo, para “a venda da irmã”129. A roupa íntima e as bijuterias são vendidas em
casa, em locais de trabalho ou nas feiras dominicais.

O número de bagayeros aumenta ou diminui conforme as mudanças cambiais


e as oscilações no mercado de trabalho. Câmbio favorável leva a um aumento no
lucro e conseqüentemente, no número de interessados em exercer a atividade. O
desemprego faz com que mais pessoas busquem esse “nicho acessível”. Segundo
Lidia Schiavoni o mercado de trabalho é determinante, tanto pela busca de uma
alternativa ocupacional, do auto-emprego, quanto pelas pequenas economias feitas

127
“Vai um ônibus daqui até Tacuarembó, os caras, esses bagayeros juntam cada um pouco de
dinheiro pra dá pro aduanero” (Robles, entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).
128
“Si te sacan, hay algo en casa que es como un ahorro” (Hortensia, entrevista, Santana do
Livramento, 17/08/2007).
129
“El quiosco de la hermana” (Margarida, entrevista, Santana do Livramento, 17/08/2007).
226

com a aquisição de mercadorias a um preço menor, que podem parecer


insignificantes, mas que são relevantes numa economia muito deteriorada, como é o
caso na fronteira (entrevista, Posadas, 11/12/2005).

No horizonte das bagayeras está o Paraguai. A viagem é muito mais longa,


por isso requer maior investimento no valor da passagem, além de envolver maiores
riscos. Santana do Livramento funciona, assim, como entreposto de contrabando de
roupas e cigarros paraguaios para o interior do Uruguai130.

Ainda que Azucena tenha afirmado, enquanto fumava e se atarefava na


arrumação quase ritual do bulto, que “lo que nosotros llevamos es poco y nada”, o
ofício de bagayero envolve toda uma série de práticas ligadas ao empacotamento,
ao conhecimento do mercado, dos gostos e da clientela na cidade de origem, à
maestria nas nuances do câmbio e de outras oscilações ligadas ao comércio
exterior, à construção e manutenção de uma rede de intermediação e apoio ao
trânsito dos produtos, ao conhecimento lingüístico, à opção por fornecedores e
estabelecimentos na fronteira, às formas de franqueá-la.

Se aqui não encontramos o caráter tribal apontado por Hrou Azzi, ser
bagayero requer instaurar redes de solidariedade com os outros e com os iguais (em
grupos que ora circunscrevem bagayeros, ora os fronteiriços, os uruguaios etc.),
operando códigos compartilhados e saberes construídos nessa condição fronteiriça
específica. Cabe apontar que esses agentes marginais e deserdados são capazes
de se reunir, percorrer estradas e passar fronteiras juntos, se determinar numa
economia ora visível, ora subterrânea, remediando sua situação periférica e
desafiando as leis do Estado em nome da sobrevivência (LARGUÈCHE, 2001, p.12).

130
Reinterpreta-se a tradição, já que o tabaco têm sido levado do Brasil para o Uruguai desde antes
do desenho da fronteira, conforme mostra-se no capítulo 2.
227

4.9. OS ADUANEIROS ENTRE O ESTADO E O LUGAR

O contrabando parece responder a necessidades locais – de emprego, de


oportunidades de melhorar o padrão de consumo, de abastecer-se com produtos
mais escassos, de aproveitar as oportunidades do lugar – que vão de encontro ao
estabelecido legalmente. Na medida em que houver certo destaque – em volume –
desencadeia-se a repressão. Mas como as necessidades persistem, há de se achar
um compromisso entre a necessidade local e a lei, o que se faz através da relação
entre contrabandista e do aduaneiro.

No contexto das cidades-gêmeas, mais difícil que abordar ou aceitar o


contrabando é fazê-lo em relação ao comportamento dos aduaneiros. Se, dentro da
legalidade nacional, a população deveria respeitar a separação entre a economia de
um e de outro lado da fronteira, não comprando, ou pagando as taxas definidas pelo
Estado para o trânsito de mercadorias, o aduaneiro é o responsável pela repressão
ao comércio livre ou pela cobrança das taxas. Ao colocar-se como executor da
legalidade nacional, o guarda de fronteira revela a impropriedade desta.

Na prática, no entanto, a idealização do guarda de fronteira como inimigo


irredutível do contrabandista – presente também na literatura – rui diante da
realidade encontrada em campo. Ali aparece uma figura menos rígida, mostra-se um
fronteiriço comum, inscrito nas redes de parentesco e solidariedade, suscetível a
pressões, subornos e à caridade. As fotos a seguir mostram o avô e o pai de Rosa,
de Rivera Chico, na década de 1950; eles eram respectivamente aduaneiro,
retratado diante do posto em que trabalhava, com seu neto no colo, e
contrabandista, posando na Praça Internacional recém inaugurada (Figs. 36 e 37).
Portanto, os lados opostos pela lei nacional são reconciliados pelos laços familiares.

No entanto, questiona-se localmente a honra do aduaneiro com maior


freqüência, pois se ele coíbe o contrabando pequeno é visto como um aliado dos
elementos externos à lógica fronteiriça, como um representante do Estado-Nação; e
se ele permite o contrabando volumoso é considerado hipócrita, por receber um
salário por uma função que não exerce.
228

FIGURAS 36 e 37: Rivera: fotos do pai aduaneiro e de seu filho contrabandista


(na Praça Internacional) – anos 1950.
Fonte: Acervo pessoal de Rosa.
229

Certamente, no cotidiano, o aduaneiro, o policial ou o guarda se acomodam


tolerando o que é considerado razoável, em termos de volume e valor de
mercadorias contrabandeadas. Saber respeitar as forças maiores, dos grandes
contrabandistas, também é importante. Nas palavras do guarda Robles:

Aqui nós ainda respeitamos os valores das pessoas, entendesse? Ainda


hay um certo pudor, ainda não é escancarado. Tu fica na tua, fica quieto e
deixa que eles tussam, entende? Não te mete com nada e pronto, essa é a
lei, deixa quieto que eles, vai chegar um momento, eles caem, como agora,
que tão tudo à deriva, né? Tudo com medo, porque o que acontece, os
caras tão buscando a sonegação de impostos, um monte de coisa...
(entrevista/excursão, Santana do Livramento-Rivera, 25/01/2006).

Da mesma forma que se dá com o contrabando-formiga, o acobertamento de


pequenos volumes é bem-visto, enquanto a conivência com grandes esquemas é
condenada. Aplica-se a lógica exposta pelo aduaneiro da anedota, de condição
modesta, que perdia a paciência diante da ganância do contrabandista, exigindo
então sua parte “para erguer as paredes de sua casa”.

A população local também se pauta pelo bom-senso, ao julgar o aduaneiro,


sendo compreensiva ou complacente com os que não enriquecem e condenando
aqueles que ostentam a riqueza obtida com o acobertamento. “Esse é o pior tipo!”
afirmou Rosa de Rivera Chico, e nas manchetes de um jornal uruguaio, numa
reportagem sobre a corrupção na aduana, certos comportamentos são classificados
como “obscena ostentação” (BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p. 105).

Há ainda a idéia de que a ação do aduaneiro corresponde a um “poder


pequeno”, que se organiza com seus colegas em esquemas que facilitam a
passagem do contrabando. Segundo relato de Ombú, durante um período, na
década de 1990, havia “un grupo de poder chico en la Aduana, montaron una
estrategia, con chóferes y embarcadores que pasaban una por la derecha y una por
izquierda”, i.é, uma parte pelas vias legais e outra por contrabando (entrevista, Chuy,
06/03/2008).

Por outro lado, esse poder pequeno pode ser instrumentalizado pelas facções
políticas locais. Julio Cairello conta que em certos momentos se reprime mais ao
230

contrabando que em outros, dependendo da situação política local e das vantagens


que um cabo eleitoral é capaz de auferir e distribuir.131

Do depoimento se depreende que o controle da fronteira também é um


elemento de poder na escala local, como já ocorria desde o século XVIII (vide
capítulo 1). Assim, a oscilação no volume das apreensões de mercadorias liga-se a
uma acomodação dos elementos do controle fronteiriço, desencadeada pela
chegada de um novo fiscal que não conhece as regras, ou que precisa mostrar
serviço a um chefe; a determinação de reprimir um grupo específico; uma reação a
não ter recebido suborno; ou ainda uma ação ligada ao momento de adoção de
novas normas. Parece que as apreensões falam mais sobre a Aduana que sobre a
quantidade total do contrabando.

Os contatos que tive com guardas aduaneiros e policías uruguaios foram


muito importantes no sentido de matizar os julgamentos que se apressam em
adjetivar os funcionários do Estado como beneficiários do enriquecimento ilícito.
Muitas histórias mostram uma condição miserável e as escassas oportunidades de
se apropriar da riqueza que vêem circular. Dois causos de Robles apontam nessa
direção:

Sabem como eles trazem o dinheiro, agora? Dentro do corpo, pegado, por
causa do medo de assalto. Deu o causo que houve um acidente ali no
posto, em Curticeras, aquele no qual morreram uns russos, sei lá o que. Um
ônibus veio, um caminhão veio e entrou e pegou eles, morreu cinco. Ai os
guris foram e não acharam nada. Aí chegou na hora de fazer a autópsia,
chega o médico forense e tão tirando a roupa dele e quando vêem o cara
tem um cinto aqui e começaram a tirar dinheiro. E os policiais que estavam
de serviço olharam pro doutor e o doutor olhou pra eles. Se olharam com
aquela expressão, como quem diz, “e agora, o que que nós fazemos?” Que
burrice, aquele monte de dólar e ninguém se animou a revistar o homem
pelo caminho, né? É muito bocaberta, mesmo [risos]. (...) E tem um causo

131
“Hay etapas que se reprime más, otras que se deja más (...) Y depende que tienen en ese
momento, no, pero cambian, cambian, a veces por padriño político, el partido que está gobernando, a
los caudillos de ellos, como se llaman allá? Cabo eleitoral, ese tiene ciertas prebendas para pasar,
pero después cambian, y cambian, no es una cosa que todo…” (Julio Cairello, entrevista, Rivera,
21/07/2005). A informação é reiterada pelo depoimento dado a Gladys Bentancor-Rosés, onde se
descreve um aduaneiro, do “tempo em que estes percorriam a fronteira a cavalo” (pelo menos até a
década de 1970, patrulhas a cavalo percorriam a fronteira): “O guarda era um personagem, um
chefete, um benfeitor dos pobres, era o que te deixava passar o contrabando miúdo, como se fosse
uma dádiva que te concedia. As pessoas ficavam devendo favores, que eram lembrados na época
eleitoral, porque os guardas tinham fortes vínculos políticos, principalmente com o Partido Colorado”.
(t.n.) (idem, ibidem, p.110 “El guarda era un personaje, era un caudillón, un benefactor de los pobres,
era el que te dejaba pasar el surtido, como si fuera una dádiva que te concedía, la gente le quedaba
debiendo favores, que te los hacían recordar en la época electoral. Porque los guardías tenían fuertes
vinculaciones políticas, sobre todo con el Partido Colorado”. (BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p.110).
231

de um policial que morreu e o policial com o sapato furado, com o dedo de


fora assim e o morto ali com o sapato novo ali, e o policial começou a olhar
e começou a trocar. Trocou um, quando chegou o comissário, ele com o pé
dum, um pé doutro. O comissário olhou e ficou quieto. E ele disse: “Alguma
ordem, comissário?” “Sim, sim, termina de trocar o sapato logo” [risos]
(Robles, entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).

Tampouco é correto inferir que a burla a certas leis do Estado ligue-se a um


desdém pela pátria ou uma posição contrária ao Estado. Por exemplo, Robles, meu
principal informante, me presenteou com uma estatueta em bronze de José Artigas,
num dia que a vi sobre uma cômoda em sua casa. Ele explicou que a tinha
encontrado, insistiu em dá-la, porque se tratava do prócer uruguaio e também
porque sua história me interessaria, já que Artigas seria el primer contrabandista.
Ouvi tal comentário a respeito de vários personagens históricos do Uruguai e do Rio
Grande do Sul, o que também legitima o contrabando, humaniza o herói nacional e
equipara o pragmatismo atual àquele praticado pelos fundadores da nação.

Bastante revelador também é o causo da bandeira queimada, contado por


Nogal e Robles, sobre o tempo em que os dois trabalhavam na mesma comisaría:

Robles: Sabe que a coisa mais sagrada aqui no Uruguai é a bandeira, né?
Adriana: Hum-hum.
R: Aí temo tudo de manhã cedo já [ele faz um gesto de que está bebendo],
de manhã cedo alguns tomavam, outros não, uns tomavam mate.
Nogal: outros caña.
A: uns tomavam mais, outros tomavam menos.
R: Tava assim, dentro da comisaría. Entrávamos às três da manhã e
saíamos às 11 e meia. Quando chegava de manhã – quando tava calma a
noite, até de manhã cedo tu conversava – quando chegava, o sol saía, tu
tinha que, a primeira coisa, colocar a bandeira. Quem é que me deu a
bandeira pra botar? Tu me tira a bandeira?
N: hum!
R: Este me dá a...
N: Este se abaixa, não agarra e...
R e N juntos: E cai a bandeira
R: Este me tira no fogo. Este me tira a bandeira pra eu colocá e eu, eu não
boto nada, e me agacho assim e ele tira, caiu lá dentro da estufa, lá [...]
N: Quer dinheiro pra comprar bandeira? Eu disse pra ele? Vai lá no Olivo, o
contrabandista mais grande que tem aqui era ele, diz de parte minha que te
dê dinheiro pra bandeira.
A: Bah!
R: Ele deu o dinheiro e nós fomos lá e compramos a bandeira, [risos]!
N: Ninguém se deu conta. Disso o comisario sabia, o [diz o nome]. Te
lembra?
R: Que ele sabia? Claro, claro, o nego sabia, abriu a loja de manhã cedo e
nós com uma bandeira, tchê. Botemo a bandeira, bem novinha, bem
novinha a bandeira, a coisa mais bonitinha. A outra tu tem aí?
N: Tenho!
R: Traz pra mostrar pra ela
232

N: Não sei onde é que tá... Tem um rombo desse tamanho, assim. Violeta,
tu sabe onde é que está a bandeira? Tu não sabe onde está a bandeira
queimada?
[...]
A: Que coisa vocês, queimando a bandeira do Uruguai!
R: Mas que coisa, se nós somos pegos ali naquele dia, pelo amor de Deus,
né?
N: Más bah!, nós ia dormir os dois juntos [na prisão] (Nogal, entrevista,
Rivera, 19/07/2007).

O episódio em que dois guardas acabam, por descuido, chamuscando um


símbolo nacional, sendo socorridos pelo contrabandista no restabelecimento de sua
integridade, é exemplar da distância entre lesar o fisco, contrabandeando ou
acobertando o descaminho, e romper com a fidelidade à nação. Este causo mostra
ainda como o contrabando pouco se relaciona com a inscrição monumental do
Estado na fronteira – para utilizar o fraseado de Hasting Donnan e Thomas Wilson
(2001) –, não se contrapõe à gramática nacionalista, mantendo-se a adesão aos
símbolos nacionais. Nesse ponto, o contrabando tem a ver estritamente com a
política pragmática da escala local, é territorialidade e não uma territorialização
alternativa, e os aduaneiros são os primeiros a revelá-lo. Pode-se dizer ainda que a
territorialidade contrabandista contempla mais a acomodação das diferenças e
necessidades dos marginais do que a criação de identidades.

O quadro até aqui esboçado não se detém sobre a violência subjacente às


relações na fronteira, onde a distribuição desigual de poder e a multiplicidade de
delitos e exceções acarretam em abusos e ultrajes. Talvez os crimes e a coação
estejam praticamente ausentes deste trabalho sobre as práticas fronteiriças por
causa da minha condição de mulher e da rede que estabeleci, também formada em
grande parte por mulheres, assim como pelo envolvimento afetivo com o lugar, os
contrabandistas e seus expedientes. Dessa forma, pouca atenção foi dada aos
relatos sobre armas e demonstrações de força ou de coragem, apesar das histórias
constarem dos relatos dos fronteiriços, como se pode ler nos Apêndices B, C e D.
233

4.10. TRADIÇÃO, COSTUMES E PRÁTICAS

As práticas dos contrabandistas pequenos são recheadas de saber


acumulado sobre a mercadoria, o vulto, a passagem, o bando. A transmissão desse
saber se faz entre as gerações de uma mesma família ou entre amigos, os recém-
chegados acompanhando os mais experientes em seu ofício. Nesse ponto de vista,
as práticas dos contrabandistas podem ser entendidas como manifestações da
tradição ligadas ao uso dado pelos habitantes ao seu lugar.

Ao mesmo tempo em que prevalece o silêncio do contrabandista na literatura


– ou ele está morto, ou é levado ao silêncio em nome do sucesso de sua missão –
canta-se o caráter folclórico do bagayo, despertando uma carga sentimental e
identitária que torna a prática positiva, inocente e valorizada. Assim, entre os
moradores do lugar, e possivelmente também na ampla área influenciada pelos
valores fronteiriços, a prática do bagayo pode ser comentada e defendida com vários
argumentos.

Naturaliza-se o contrabando por suas raízes históricas. As obras locais sobre


contrabando apelam para sua folclorização, atribuindo-lhe uma continuidade no
tempo, um “desde sempre”, recuperando as palavras de Simões Lopes Neto. Alega-
se que o povoamento foi motivado pela fronteira, mas dependia do contrabando para
abastecer a população, como se mostrou no capítulo 1, o que leva ao elogio do
passado e da margem. Além disso, afirma-se freqüentemente que até os heróis
nacionais eram precursores do descaminho. Muitos exemplos dessa naturalização
do ilícito, respaldada em razões históricas, podem ser encontrados nas entrevistas
transcritas em apêndice.

Legitima-se o contrabando como um gesto pela sobrevivência, como se todo


contrabando fosse bagayo. Segundo Eric Hobsbawn, o “bandido de bom coração” e
as muitas variações do “bandido social”, cujo epítome é Robin Hood, está presente
em todas as culturas e épocas ([1969] 2000). Esse personagem aparece como um
defensor da justiça social, um vingador ou um militante primitivo da resistência, cuja
aura política não depende tanto de suas ações concretas, mas de uma função social
de protesto que o bandido encarna. Mandrin, o capitão dos contrabandistas, alinha-
se a Robin Hood, Cartouche e Arsène Lupin, considerados bandidos de bom
234

coração, injustiçados ou perseguidos por atos considerados menores, como roubar


caça ou contrabandear. Ele só mata para se defender ou vingar a honra, só tem
como inimigos as autoridades locais, o clero ou outros poderes opressores
considerados venais ou corruptos, só é preso em caso de alguma traição, é
admirado pela coragem, astúcia, força, correção e generosidade, porque rouba dos
ricos para dar aos pobres (SERVICE..., 2005, p. 10). Ele entra no imaginário popular
como referência à resistência política, a uma personalidade forte ou às raízes locais.

Esse enquadramento aplica-se perfeitamente aos bagayeros: ainda que


trabalhem em causa própria, sua legitimação pela sociedade fronteiriça liga-se à
posição periférica do grupo em relação ao Estado insensível às necessidades
sociais. Tal compreensão traduz-se no entendimento local de que se trata de um
“comércio de subsistência”: nos comentários mais elaborados sobre a atividade
emprega-se com freqüência essa expressão, numa reinterpretação bastante livre da
idéia de agricultura de subsistência – aquela que não entra no mercado –
enfatizando tratar-se de um comércio que administra pequenas quantidades e gera
pouco lucro, ou de uma inocente estratégia de sobrevivência.

O contrabando é visto como inerente à condição fronteiriça, o que aparece


nas palavras de Julio Cairello:

Na fronteira sempre acontece, às vezes abertamente, noutras nem tanto


(…) a única forma de combater o contrabando realmente é produzindo e
competindo, não há outra forma, havendo diferença de preço entre os dois
132
lados, é inevitável que apareçam contrabandistas.

Ao facilitar o contato entre diferentes arquiteturas econômicas nacionais, que


se materializam nos preços, no câmbio, na disponibilidade de mercadoria, a
condição fronteiriça aparece como origem do contrabando.

A condição fronteiriça também leva ao contrabando pela distância, e pelo


consequente custo nos transportes entre a margem e a capital, como informado por
Cairello: “hay eso en Montevideo, hay algunas cosas, pero que llegue hasta acá,

132
“En una frontera siempre va a existir, a veces muy a la vista así, sin cuidado ninguno, pero otras
veces son más controlados (…) la única manera de combatir el contrabando realmente es
produciendo y competiendo, no hay otra manera, si hay diferencia de precio de un lado y de otro, no
hay manera, aparecen contrabandistas en seguida”.
235

encarece mucho el transporte, entonces nos conviene mucho más” (entrevista,


Rivera, 21/07/2005).

Há uma sobreposição entre a prática do contrabando e a cultura da fronteira,


que articula ainda outros índices como o portuñol, as famílias mistas, a política
transfronteiriça, a música e a literatura gaúchas. O folclore e a poesia da margem
atribuem à região fronteiriça valores como liberdade, autenticidade, criatividade e
tradição, alinhando-se aos marginais para exaltar suas iniciativas (Fig. 38).

Mas, se já concluímos sobre a política pragmática dos aduaneiros, o caráter


político do contrabando está em aberto. Os contrabandistas não são subversivos,
eles burlam as regulações econômicas e o controle do território pelo Estado em
função de interesses comerciais, e não como uma forma de protesto contra leis que
não contemplam as necessidades locais. No máximo, o contrabando é
involuntariamente político, tornando-se pretexto para reivindicações nacionalistas ou
regionalistas no caso de conflitos entre grupos locais.

Mais de um informante afirmou que o contrabando tem mesmo um caráter


alienante, na medida em que é um paliativo para as demandas locais, uma solução
vista como fácil. Questionado, Higuerón dá o exemplo dos agricultores desmotivados
para as duras lides rurais porque acham saídas mais rápidas no contrabando.133

133
Uma reportagem de jornal publicada em 12 de outubro de 2008 relata: “A atividade clandestina é
um problema que afeta diretamente os empresários da cidade. A falta de mão-de-obra é um
empecilho. ‘Temos dificuldades para contratar gente para trabalhar. Poucos aceitam ganhar em um
mês o que podem ganhar em dois ou três dias “passando” cigarros’, conta Jair Schllemer. ‘Esse é o
grande problema aqui em Guaíra. O contrabando é encarado como um trabalho, uma ocupação, e
não como um crime’, revela o delegado-chefe da Polícia Federal, Érico Ricardo Saconato. ‘E o pior é
que esse é um crime que não dá cadeia. Como a pena é de apenas de um a quatro anos, as pessoas
são liberadas e voltam a cometer o mesmo delito.’” (VINTE DIAS..., 2008)
236

FIGURA 38: Reportagem “Fronteira: Queda do real dá sobrevida a


chibeiros” – 1999.
Fonte: Zero Hora, 20 de junho de 1999, p. 40.
237

Afastando-se do sentido mais genérico dessa reivindicação de legitimidade,


há outras formas em que a sobrevivência do bagayo é instrumentalizada pela
sociedade fronteiriça: a existência do contrabando-formiga estende um manto de
legitimidade e tolerância a outros tipos de contrabando. Nas palavras de Nogal:

Diz que esse, como é?, medio de vida de la frontera, um caminhão


container desses truck, que dizem... [falando para Robles] Tu prendiste
aquela mulher, que tinha ali, como é? [...] Que agarrei um caminhão
brasileiro com um truck como é... cheio de papel higiênico, canha, cerveja
brasileira, tudo brasileiro. E ela: - vamos arrumar, dindo? - Eu não arrumo.
Meu precio é muy caro! E eu por menos de 1 milhão, 2, de dólares nunca
vou arrumar. [Falando para mim e para o Daniel] Pagar né? Então ela se
achicó... E aí veio um aduaneiro corrupto e: “Mire, usted se olvidó del
permiso ayer en la aduana.” (Nogal, entrevista, Rivera, 19/07/2007).

Nessa fronteira, rompe-se o sigilo em torno do saber contrabandista apenas


quando se trata de pequenos volumes e agentes modestos. Há níveis de segredo,
conforme o tipo de contrabando, a violência envolvida e, especialmente, a inserção
social do contrabandista. Recupero a diferenciação entre contrabandistas pequenos,
a elite local e os estrangeiros: as práticas dos pequenos podem e são discutidas e
folclorizadas. Quanto os outros, mantém-se o sigilo, posto que implicaria na
denúncia de pessoas importantes, com poder sobre os policiais, sobre os
trabalhadores da fronteira, sobre os burocratas municipais. Os estrangeiros, quando
pegos, são simplesmente criminosos, mas em geral eles têm poder econômico
suficiente para comprar seu trânsito e sigilo, salvo nos raros casos em que
protagonizam as páginas policiais.

Pode-se afirmar que se trata de outra modalidade do jogo do bulto: as


bagayeras passam, são visíveis e inocentes como as caixas de biscoito que
carregam, desviando a atenção das modalidades média e grande do contrabando.

Extrapolando mais uma vez, é possível afirmar que o contrabando na


fronteira, como um todo é, por vezes, usado como acobertamento para outras
ilegalidades de maior monta, em outros pontos do território. Como Robles aponta

Segundo se comenta, todo mundo diz, enquanto eles tão aqui, lá no porto
de Montevidéu tá passando contrabando que tu nem imagina, tu me
entendesse, nos containers. Nos próprios containers mesmo, tu não vê
nada, tu não sabe nem o que eles estão trazendo. Enquanto eles vêm pra
cá, lá tá passando horrores de coisas. É o verdadeiro despiste aquele: “tchê
fulano”, o fulano vende droga, né? Aí diz, “tchê fulano, vamos te dar uma
batida”. Aí o fulano diz: “me dá a batida, porque assim limpa a área”. Então
238

que acontece, tu vai e dá a batida no fulano, o fulano vai e tu não acha


nada. Aí no outro dia, o fulano tá vendendo e tu diz: “Vamos dar uma batida.
Não, se nós demos uma batida”. E o juiz vai e diz: “Não, vocês já deram
batida e não tinha nada”. Tu entendesse? Então tu limpou a área. (Robles,
entrevista, Santana do Livramento, 24/01/2006).

Os fronteiriços parecem ter uma interpretação bastante acurada de sua


situação, estando equipados pela tradição, atualizada na prática, a situar-se diante
das questões específicas do lugar complexo onde vivem, lugar esse marcado pela
dinâmica do setor terciário legal e ilegal, pela cristalização do aparato nacional civil e
militar direcionado ao controle do limite e pelos campos de força da política local,
institucional ou não. A fronteira mostra-se como um lugar privilegiado para
interpretar as diferentes escalas em que se entrelaçam cultura, economia e política
global.

As lógicas das passagens nesse cotidiano de transgressões dos limites e


acomodações à condição fronteiriça incluem os usos da tradição para legitimar
práticas contemporâneas; o jogo do bulto, demonstrando o desejo dos
contrabandistas de evitar afrontar aos aduaneiros; os discursos ligados ao
nacionalismo visando à internacionalização da faixa de fronteira; a territorialidade
contrabandista que não desafia o território nacional; entre outros processos que
podem ser identificados na(s) cidade(s) de Santana do Livramento-Rivera. Tais
lógicas mostram a opulência das práticas locais e a necessidade, por elas
colocadas, de dedicar-se ao seu estudo, compreensão e valorização, construindo ou
atualizando conceitos que permitam acompanhá-las.
239

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deste cotidiano de transgressões ordenadas em torno do uso prático da


fronteira, explorado em diversas representações textuais e gráficas ao longo desta
tese, podemos resgatar alguns pontos de caráter mais abrangente.

5.1. As lições dos fronteiriços

Na apresentação desta tese cito Quintana Morales para lembrar que, se a lei
não foi feita na Campanha, o contrabando e sua poesia se fazem correntemente na
fronteira gaúcha.

Nesta conclusão, proponho que as representações locais traduzem os textos


gerados em tempos e espaços distantes, intermediados por referências mais
próximas ao contexto dos contrabandistas e aduaneiros que se territorializam
contemporaneamente na fronteira gaúcha. Há um encadeamento entre as escalas,
no sentido temporal e geográfico, estrutural e processual, que permite ver as
cidades de Santana do Livramento e Rivera simultaneamente como fruto da
demarcação territorial dos Estados do Brasil e do Uruguai e da agência dos
habitantes daquele lugar culturalmente inserido na Comarca do Pampa.

As histórias nacionais e regionais se enriquecem com o estudo, ao qual


buscamos contribuir, das práticas dos fronteiriços, uma vez que os contrabandistas
reais, praticando o lugar, contestam, usam e multiplicam as representações que os
enquadram como heróis do folclore regional, porta-vozes de espacialidades pós-
nacionais, como personagens trágicos da fronteira metafórica ou como marginais
submetidos pela pobreza e falta de opções. A prática das bagayeras, ou melhor, de
Hortencia, Azucena, Robles, Olivo e seus companheiros, é mais complexa – porque
se transforma ao sabor do momento – que a de Rafael Pinto Bandeira, Emilio Calo,
240

Jango Jorge, Rulfo Alves ou Doña Lydia, que chegam a nós representados
textualmente e consolidados como figuras da fronteira, em textos que decifram e
codificam o lugar.

Acima de tudo, o estudo desse lugar mostra como e quanto seus habitantes
têm sido capazes de produzir o espaço em que vivem, distanciando-se de uma
suposta homogenização do território nacional. Os contrabandistas e aduaneiros de
hoje resistem a revelar suas estratégias para a condição fronteiriça, mas insistir na
interrogação permite equacionar questões como a experiência da cultura e da língua
nacional, revelando a mescla de espanhol, português e termos regionais, em
dialetos, jargões e senhas. Aprendem-se também sentidos práticos da economia e
da geografia política, mais especificamente do câmbio, da renda fundiária, da
estatística e da matemática financeira, das barreiras econômicas, do uso
instrumental da nacionalidade, dos limites do Estado, entre outros temas de extrema
relevância para a compreensão da territorialidade dos grupos humanos.

5.2. A geografia do pensamento

Parti de um corpus textual formado por representações históricas, teóricas e


literárias da fronteira e dos contrabandistas, para chegar a anedotas, causos,
relatos, observação, registro fotográfico e produção cartográfica em diálogo. O
trabalho de tradução das diferentes representações textuais e gráficas foi
extremamente enriquecedor, no sentido fronteiriço de reconhecer que a instabilidade
é também um recurso. A incerteza epistemológica em que me lancei orientava-se a
descrever geograficamente o contrabando, num percurso que passou por aprofundar
o entendimento das representações textuais de diferentes ordens, da relação entre
tais representações e os lugares que as produzem, do significado que assumem
para a população que as origina e recebe. Na ausência de método previamente
estabelecido, se me escapam as referências bibliográficas, entre a ignorância e a
necessidade de explicar, construi artesanalmente o argumento.
241

Uma forma de responder às questões metodológicas foi propor a existência


de uma geografia do pensamento ou das representações, em que se situa
territorialmente a representação, em três âmbitos: sublinhando o lugar em que se
encontra o emissor em termos escalares, dito lugar da enunciação (que território
esse lugar subordina cultural e politicamente?, a que tradições/gênero responde o
emissor?); enfatizando o objeto geográfico representado (de que espaço se trata? o
que ele simboliza?); valorizando o lugar da recepção (qual a distância cultural entre
a experiência do emissor e a do receptor?).

Testei a geografia do pensamento ao revisar a teoria da fronteira, mostrando


que, mesmo na empreitada teórica, voltada para a generalização das observações,
há um contexto de origem particular que interroga o pesquisador. A geografia do
meu pensamento na elaboração desta tese sobre os contrabandistas na fronteira
gaúcha pode servir como exemplo.

Grande parte deste trabalho foi escrita em Porto Alegre. Aqui (o lugar da
enunciação) é a capital do Rio Grande do Sul, uma província cultural de
regionalismo recalcitrante no contexto brasileiro, dentro da Comarca do Pampa,
subtropical, hispanófona, pastoril, fronteiriça. Minhas tradições culturais – além de
um humanismo difuso, leigo e racional, de um gosto pela literatura, pelo humor e
pelo diferente, de uma desconfiança ancestral pelo nacional, de uma escolarização
dentro da teoria dos conjuntos – ligam-se à Geografia Social, num percurso que
inclui estudos de Geografia Moderna em Porto Alegre, ênfases na Geografia Política
e Econômica no Rio de Janeiro, a orientação metodológica em Florianópolis, uma
breve passagem interdisciplinar e teórica em Paris. Situar-me em diferentes lugares
de enunciação mostrou-me a elasticidade das representações: em Porto Alegre fala-
se em nome do Rio Grande do Sul, com uma postura de pertencimento negociado
ao Brasil (na expressão de Ruben Oliven, 2006), o que coloca a fronteira
internacional no centro das discussões teóricas. No Rio de Janeiro, a capital cultural
do Brasil, as representações textuais geralmente tratam da nação e do território
brasileiro, enquanto, em Paris, observei com freqüência a construção de
representações ainda mais amplas e genéricas.

O objeto geográfico aqui representado, a fronteira em Santana do Livramento-


Rivera animada pelos contrabandistas, não se enquadra numa segmentação escalar
242

administrativa unívoca, dada sua característica de contato internacional. É


cosmopolita, com a riqueza cultural dos mercados tradicionais atualizada pelo influxo
de migrantes, pela velocidade das tecnologias e pela proliferação de
extraterritorialidades. Os intelectuais municipais são numerosos e produtivos, muitas
de suas criações tratam da história e da cultura locais, ainda que valorizem uma
suposta centralidade nas redes do Mercosul. Ao mesmo tempo, a(s) cidade(s)
mantém características dos latifúndios monocultores e do interior. Além de suas
características próprias de sítio e situação, a simbologia da fronteira incide nas
análises sobre o lugar, pressupondo liberdade, transgressão, decaimento moral,
associados a ritos de passagem.

Quanto à recepção, posso dizer que escrevi pensando na Geografia feita no


centro do Brasil, o que me motivou a explicar os contextos regionais com maior
detalhe. Por exemplo, toda a naturalidade atribuída localmente ao contrabando na
fronteira e em Porto Alegre demanda longa comprovação em outros contextos
geográficos. Essa experiência me levou a propor a geografia do pensamento, uma
vez que me senti compelida a reiteradamente justificar a temática localista, da
periferia, cujo estudo pode ser confundido com um discurso regionalista
cientificamente irrelevante e politicamente equivocado.

A geografia do pensamento não é a única dimensão a informar as


representações sociais, evidentemente. É importante considerar os influxos
culturais, econômicos e de muitas outras ordens que, incidindo sobre o lugar,
influem na representação textual, seja ela oral ou escrita, do espaço. Ao jogo das
escalas soma-se a periodização dos processos em estudo.

5.3. Metodologias para uma geografia social do contrabando

A geografia do pensamento ajuda a organizar a gama de documentos aqui


usados para interpretar o contrabando e seus agentes na fronteira. O estudo do
contrabando contemporâneo pode se voltar ao exame dos registros do sistema
judiciário e das crônicas policiais, à interlocução com seus praticantes ou com as
243

narrativas literárias. São chaves para aceder ao conteúdo do território da circulação


ilegal de mercadorias, marcado por lugares de conteúdos econômicos diferentes e
caminhos variáveis, dependendo das barreiras policiais e dos lugares de
fiscalização. Como fontes e temas ainda em aberto para futuros estudos: a
espacialização da Receita Federal na gestão das fronteiras; o contrabando como
uma questão de gênero; a existência e o modo de funcionamento de taxas de
câmbio locais; a urbanização contrabandista; os aduaneiros; as relações entre
contrabandistas locais e transnacionais; a política local transfronteiriça etc.

Ainda que o recurso à quantificação geralmente produza dados relevantes


sobre o objeto em estudo, é curioso notar que a bibliografia sobre o cotidiano na
fronteira mostra dados estatísticos muito díspares para procedimentos cotidianos
como casar, falar a língua etc., o que talvez se deva à adoção de metodologias
pouco comparáveis entre si – cujos critérios raramente estão explicitados nos
trabalhos. A comparação entre os vários estudos e o que foi visto em campo
também mostra significativas contradições e diferenças, que provavelmente se
devem à dificuldade em circunscrever a população local num padrão unificado de
comportamento, ao menos a partir da análise factível na pesquisa quantitativa
possível ao pesquisador solitário.

Sem dúvida, a dinâmica acelerada da fronteira também é responsável pelas


discrepâncias, tornando indispensáveis os trabalhos de campo, que permitem a
observação e o contato com a população. O pesquisador no campo entra em
contato com seus informantes (gerando suas fontes), o que permite maior
proximidade aos sentidos locais do objeto em análise (os informantes delineiam o
objeto). No estudo de práticas ilegais como o contrabando, a permanência em
campo condicionou o acesso à informação até então sigilosa.

A atenção à linguagem, inserida num esforço de tradução cultural, foi


extremamente proveitosa para a investigação. Representações textuais, como o
causo e a anedota, marcam as interpretações locais sobre o contrabando e seu
lugar na sociedade fronteiriça. Nesta tese, a análise das representações textuais da
vida fronteiriça foi de grande rentabilidade para orientar, em termos de sentidos
locais, a validade da teoria geográfica. No caso em estudo, a importância do exame
da literatura de ficção para a interpretação do contrabando vem da articulação
244

circular entre contos e práticas. As palavras de Martin Fierro ou de Blau Nunes (o


narrador de Simões Lopes Neto) são ouvidas nos depoimentos contemporâneos.
Por exemplo, a visão do contrabando como uma prática que ocorre “desde sempre
ou desde os tempos da tomada das missões” legitima o contrabando ao atribuir-lhe
um caráter tradicional e a-histórico.

Note-se ainda que o estudo dos contos de contrabandistas mostra que não é
apenas da descrição de paisagens que se faz uma interpretação geográfica da
literatura.

5.4. Os alcances dos símbolos fronteiriços

As representações sociais dos habitantes da fronteira gaúcha não se limitam


ao lugar. Por um lado, estão impregnadas das construções nacionais e de
elementos platinos. Por outro lado, pode-se observar um espraiamento dos símbolos
fronteiriços, ampliados à região da Campanha e ao conjunto do estado do Rio
Grande do Sul. A compreensão das dinâmicas em curso nesse lugar-fronteira
esclarece sobre as interações culturais e políticas no âmbito regional e sobre a
formação da imagem do gaúcho, o “tipo regional” do Rio Grande do Sul, perante si e
perante o restante da população brasileira. Tenta-se criar uma correspondência
entre os símbolos locais e a divisão em unidades da federação demarcadas pelo
Estado-Nação. Características atribuídas contemporaneamente aos gaúchos
surgem da extensão de atributos dos fronteiriços a outros habitantes do Rio Grande
do Sul, mostrando tradições surpreendentemente relevantes, bem como costumes
atualizados pela prática. Desta forma, as trocas fronteiriças, as lutas pela
demarcação, a vizinhança com o Prata hispanófono, em suma, o pertencimento à
Comarca do Pampa descrita por Ángel Rama (1982), são reivindicados, em termos
culturais, numa área maior que a condicionada pela região fronteiriça, e que
encontra um novo limite na escala nacional.

Ainda pensando nas dinâmicas identitárias, é interessante observar que a


primeira metade do século XX foi marcada, no estado, pela desarticulação das
245

trocas econômicas da região com o Uruguai, pela diminuição da autonomia e pela


nacionalização da fronteira. A incorporação da região fronteiriça à economia
nacional numa posição pouco favorável não impediu que o tipo e os costumes locais
fossem estendidos ao conjunto do estado do Rio Grande do Sul para uso na escala
nacional, mostrando que a economia não determina a política e a cultura.

5.5. A condição fronteiriça

Considerando o que foi levantado sobre a(s) cidade(s) fronteiriça(s) de


Santana do Livramento-Rivera, organizadas as informações e interpretações em
eixos que correspondem à história da região, às diferentes formas de representação
textual acessadas no estudo do contrabando e da fronteira, aos significados culturais
presentes na literatura do contrabando e à prática cotidiana do comércio
transfronteiriço legal e ilegal, vê-se um lugar que oferece aos seus habitantes a
possibilidade de mobilizar recursos de dois Estados nacionais, na forma de
diferentes línguas, sistemas legais, educativos, de saúde pública, redes de
transportes, políticas econômicas etc. A grande variação nos usos práticos da
fronteira se faz a partir do equacionamento de fatores como o 1. o câmbio
monetário, 2. o custo de vida em cada país, 3. avaliações qualitativas sobre
mercadorias formadas a partir de 3.a. tradições e da 3.b. mídia, 4.a. legislações
nacionais em sua 4.b. implementação local, 5. agentes internacionais atraídos pelas
trocas fronteiriças 5.a. no comércio ou 5.b. na política.

Em suma, vê-se um lugar marcado por sua condição fronteiriça, capacitando


seus habitantes nas especificidades da vida local. Às opções disponíveis e
restrições impostas aos moradores da fronteira correspondem habilidades por eles
adquiridas em vários campos, que permitem que os fronteiriços se comuniquem, se
relacionem, trabalhem, produzam bens materiais e imateriais adequados ao lugar
em que habitam. As especificidades da fronteira podem ser resumidas na expressão
condição fronteiriça.
246

A condição fronteiriça influi na organização dos agentes territorializados em


Santana do Livramento-Rivera, gerando casos em que se unificam objetos (como
acontece com as redes de fornecimento de gás), casos em que se duplicam objetos
(como na organização da cooperativa de saúde ou dos postos de gasolina), casos
em que se constroem os objetos da diferença (demandando um contingente de
funcionários públicos civis e militares para administrar as barreiras e limites
nacionais), casos em que a diferença é ampliada (pela proximidade de elementos
que se opõem ou excluem, na experiência nacional, por exemplo), casos em que a
diferença é apagada pela criação de dispositivos de transição (entre as línguas,
através do dialeto, nas famílias mistas em seu papel de acomodação às legalidades
limítrofes, aqui os exemplos são numerosos), casos em que a diferença atrai formas
extraterritoriais e agentes internacionais (free shop, zona franca, imigração), entre
outros.

A condição fronteiriça ensejou ainda o crescimento das atividades


econômicas, regulares ou informais, ligadas à renda fronteiriça gerada pelo contato
de diferentes economias nacionais, estimulando os regimes extraterritoriais e o
comércio transfronteiriço legal e ilegal (o contrabando). Sob esse aspecto, a
condição fronteiriça favorece a economia das cidades, fortalecendo sua
centralidade.

5.6. Territorialidades contrabandistas

Essa formação territorial distingue-se da européia, que experimenta


sucessivos desenhos de limites inter-estatais, resultando no rompimento de
territorialidades nacionais pré-existentes – o paradigma é o País Basco –, de modo
que as teorias lá originadas devem ser aplicadas ao caso aqui em estudo com
bastante discernimento. Lá, é corrente a interpretação das tradições contrabandistas
como atos políticos que visam recompor uma coerência territorial dilacerada pela
emergência de Estados-Nação. Na bibliografia africana sobre o contrabando, a
garantia de confiança e sigilo, o amálgama do bando, encontra-se no pertencimento
étnico, ausente no caso em estudo.
247

No caso de Santana do Livramento-Rivera, o contrabando não questiona a


posse do território estatal e as nacionalidades são experimentadas de forma intensa,
ainda que instrumental. Propomos o uso do conceito de extraterritorialidade local ou
territorialidade contrabandista com a finalidade de evidenciar os inúmeros
expedientes pelos quais a população local – ou frações desta – se defende e tira
proveito dos diferenciais fronteiriços, seja na forma do bagayo, seja na reivindicação
de maior internacionalização da região através da diminuição da largura da faixa de
fronteira. Não parece haver uma lógica de institucionalização no horizonte dos
agentes locais, mas sim a convivência entre o projeto estatal-nacional para o espaço
e outras territorialidades que se infiltram na concretude do território, a partir dos
agentes que praticam esse espaço.

A fronteira, como objeto em constante e extenuante manutenção, a despeito


dos efeitos acumulados historicamente, estimula as territorialidades capilares. Nesse
sentido, a prática do contrabando extrapola as dimensões econômica e cultural,
ganhando repercussões políticas, já que pode-se concluir que a fronteira-lugar
resiste à homogeneização pelo Estado-Nação.

Há ainda um estresse sobre a fronteira ligado ao contato e à presença de


estrangeiros. Essa conectividade ampliada não dilacera o território em torno porque
é praticada por pessoas em todos os níveis sociais e em escalas geográficas
variadas.

Diante de tais afirmativas, conclui-se que a fronteira é situacional e não é


essencializável, ela está condicionada pelos processos históricos que a geraram e
pela conjuntura atual de sua espacialização. Ainda que a estrutura formada pelo
Estado territorializado e delimitado por uma fronteira esteja disseminada pelo mundo
todo, em cada lugar o conteúdo dado à fronteira geográfica expressa o processo e o
momento histórico, bem como a suíte escalar em que se enquadra.
248

5.7. Paisagem fronteiriça e urbanização contrabandista

Estamos diante de uma região que se forma através do desenho da fronteira,


em função 1.das ações dos Estados com vistas a construir seus limites e 2.da
atração exercida pelo diferencial característico da fronteira, seja ele econômico ou
cultural. Assim, as cidades foram fundadas com vistas a fortalecer a presença dos
Estados-Nação em ambos os lados da linha divisória e ações nacionalizantes de
caráter político, militar e infra-estrutural foram levadas a cabo pelos governos
centrais. No caso em estudo, a linha é seca e pouco fiscalizada, pondo em contato,
sem obstáculos físicos ou fraturas políticas de difícil superação, dois Estados-Nação,
com suas respectivas características. Muitos topônimos fazem referência a
passagens e atalaias.

As possibilidades de contato levaram ao desenvolvimento de uma cidade sob


dupla soberania nacional, constantemente experimentada. Ainda que a facilidade de
cruzar o limite leve seus freqüentadores, por vezes, a afirmar a inexistência da
fronteira, pode-se falar de uma paisagem marcada, que incorpora as materializações
do limite estatal como marca distintiva do lugar. A concretização mais conspícua do
limite são os mais de 500 marcos de fronteira plantados na cidade e no campo a ela
adjacente, pirâmides pintadas de cal, numeradas, indicando em suas faces a
coexistência de Brasil e Uruguai. Os marcos saem da paisagem e são reproduzidos
em logotipos comerciais e institucionais, alternando-se à representação das
bandeiras nacionais entrelaçadas e ao obelisco da Praça Internacional. Os
escritórios de turismo também fazem uso da imagem dos marcos, bandeira e
obelisco para caracterizar a cidade.

A prática do contrabando tem influenciado a organização interna das cidades-


gêmeas. Os principais lugares do comércio local dispõem-se em dois eixos
perpendiculares: ao longo da fronteira e numa linha de fuga, rumo aos centros
abastecidos pelo comércio transfronteiriço. A busca de passagens alternativas às
vias principais paulatinamente consolida novas rotas, atraindo serviços e população,
a ponto de criar bairros, como se deu com Rivera Chico e, no presente, ocorre no
Sacrifício de Sonia.
249

5.8. Processos de espelhamento

A toponímia apresenta, além de passos e lugares de observação, a repetição


em ambos os lados do limite, Chuy/Chuí, por exemplo. É interessante destacar a
idéia de espelhamento, um processo recorrente nas várias fronteiras internacionais,
como mostram as obras de Carlos Fuentes e de Alejandro Grimson, mas que
assume formas distintas no convívio social e nas relações econômicas na fronteira
de Santana do Livramento-Rivera.

No caso aqui analisado, há várias formas pelas quais a convivência entre


santanenses e riverenses é influenciada por comparações sobre graus de
desenvolvimento, qualidade de produtos, hábitos a serem imitados ou discriminados.
São processos de espelhamento social, em que os grupos se distinguem, se
comparam, se hierarquizam, se imitam ou rejeitam. Pode-se exemplificar com a
adoção pelos pecuaristas de Livramento das técnicas uruguaias de melhoramento
genético na produção.

A comparação entre a situação econômica em cada lado da fronteira serve


muitas vezes como argumento para reivindicações que se travestem de
nacionalismo, mas que visam os interesses de setores: em nome de compensações
diante do sucesso do vizinho, as lideranças políticas mobilizam-se em torno da
redução da faixa de fronteira, da instalação de free shops no lado brasileiro, da
implementação do regime de isenções fiscais para exportação indireta etc. É
evidente que a bem-aventurança alheia não implica desgraça própria e, na prática,
muitas vezes o crescimento econômico de um dos países implica aumento do
movimento econômico na cidade lindeira, mas os políticos instrumentalizam a
retórica da comparação entre nações para objetivos de classe, segmento produtivo
ou grupo.

Nesse jogo identitário, as características mutuamente atribuídas na escala


local se invertem dentro dos conjuntos nacionais. Explico: os santanenses julgam
aos riverenses como típicos cidadãos uruguaios, mas os uruguaios em geral vêem
os riverenses como ‘abrasileirados’.

Um julgamento corrente, tanto entre os fronteiriços como em outros âmbitos,


afirma que a fronteira tem influência moral sobre seus habitantes. Além daquelas
250

qualidades que listo como resultantes da vida em condição fronteiriça (flexibilidade e


tolerância), há quem creia numa moral relaxada e comodista, em busca de soluções
“fáceis”. Por fim, há os que vêem a fronteira como um lugar maléfico, que leva ao
descaimento, à dissolução do caráter e da língua nacionais pela contaminação com
o exterior, desencadeando patologias sociais e de expressão. É interessante notar
que a fronteira e, extrapolando, os lugares, sejam vistos como impregnados de
oportunidades, possibilidades de enriquecimento ou aventura, sobrecarregados de
armadilhas morais etc. No caso em estudo, a atribuição se justifica, em última
análise, pela mudança legal e territorial, pela situação periférica, pelas diferentes
posições na geografia das representações textuais.

Além das implicações sociais, o forte vínculo entre os mercados de Santana


do Livramento e Rivera, associado à constante oscilação cambial das moedas que
os regem, geram uma forma de espelhamento econômico na escala local, que se
manifesta pela repetição de lojas e serviços nos dois lados do limite internacional,
como é o caso dos postos de gasolina e das óticas; ou por estratégias empresariais
que combinam os ramos mais rentáveis de cada economia, aliando supermercados
em Livramento à free shops em Rivera, por exemplo. Também nos serviços, vemos
a territorialização transfronteiriça na duplicação de postos de cooperativas médicas,
de igrejas evangélicas etc., reproduzindo as formas em ambos os lados da fronteira.

5.9. Os dispositivos de transição

Muitos outros casos dispensam a repetição dos objetos, pois a


complementaridade e proximidade enseja trocas: os habitantes constroem as redes
entre os mercados e serviços urbanos. São muitos os dispositivos de transição
criados pelos fronteiriços para adequar-se ao limite internacional e às diferenças que
este cria no espaço. Como usuários de serviços de saúde e educação, numa
situação periférica de fronteira – e dos países, de modo geral –, muitos fronteiriços
se servem das estruturas instauradas pelos Estados-Nação em suas diversas
escalas administrativas nos dois lados da linha. Certamente, a precariedade dos
serviços de cada lado empurra os habitantes a compartilhar tais estruturas.
251

Como produtores de cultura, os fronteiriços fazem a mediação entre duas


línguas, criando dialetos, conhecidos popularmente como portuñol, academicamente
denominados dialetos portugueses do Uruguai. A religião se difunde pelos contatos
locais; as festas cívicas e populares promovem o intercâmbio entre a população; o
jornal brasileiro possui uma seção em espanhol; o lazer ganha realce ao realizar-se
do outro lado da linha. As famílias transnacionais realizam as trocas em níveis
fundamentais, nas formas de criar os filhos, na visão de mundo entre outros
aspectos relevantes. A literatura da fronteira valoriza e cristaliza as práticas de
mediação.

Como consumidores, os fronteiriços se aproveitam da existência de dois


mercados justapostos, diferenciados em termos de preços, câmbio, qualidade,
decidindo a respeito das melhores opções de abastecimento sem considerar como
delitiva a entrada de produtos oriundos do país vizinho. Se somam ao quadro as
muitas modalidades de comércio voltadas a consumidores de outros pontos dos
territórios nacionais, sejam eles turistas de compras brasileiros em visita ao free
shop, bagayeros nos armazéns da linha ou uruguaios em busca de material de
construção isento de taxas pelo regime de exportação indireta (via balcão).

A fronteira gera trabalho para os controladores da própria fronteira e dos


órgãos a ela associados (militares, guardas, fiscais de renda ou sanitários,
aduaneiros, outros tipos de funcionários públicos), para os trabalhadores do
comércio formal ou informal que surge em busca da renda fronteiriça (vendedores
nos free shops ou em outras lojas do terciário transfronteiriço, camelôs, ambulantes),
para os contrabandistas em suas várias modalidades.

O contrabando se apresenta como um ofício possível dentre as muitas


opções geradas pela condição fronteiriça, uma vez que sua prática é naturalizada
localmente, ainda que por vezes implique outros delitos menos tolerados. O
contrabando é um dispositivo de mediação entre mercados isolados, produzindo
mercadorias complementares ou praticando preços diferentes.
252

5.10. A geografia dos contrabandistas

As redes e territórios dos contrabandistas tornam-se visíveis através da


investigação das lógicas locais, nem sempre evidentes. Concluiu-se que os objetos
geográficos indispensáveis para a descrição do contrabando podem ser expressos
em cartogramas onde constem os lugares de abastecimento, os percursos e o
destino das mercadorias contrabandeadas. O conhecimento dos enredos que
organizam os bandos e suas relações com a sociedade em geral e com os órgãos
de controle das fronteiras, em particular, elucida sobre o significado do contrabando
para os habitantes do lugar. Os elementos da economia nacional revelam o motor do
contrabando, os regimes extraterritoriais apontam emergências na prática. Tende a
haver uma correspondência entre escala geográfica, modernidade e capitalização do
contrabando e do contrabandista. Identifiquei diferentes escalas de operação: o
contrabando cotidiano; o bagayo; o descaminho de produtos dos free shops; o
abigeato; além de formas envolvendo grandes volumes, valores e distâncias.

Quanto ao contrabandista, pode-se classificá-lo pelo artigo e o volume


negociado; conforme a origem e o destino da mercadoria; segundo a tradição da
prática (o bagayo e abigeato são tradicionais, sempre se atualizando; o contrabando
de agrotóxicos, de sementes transgênicas ou de informática são formas
emergentes); conforme as contravenções implicadas (elidir impostos, passar
mercadorias proibidas; subornar; coagir; atentar contra o ambiente; matar); conforme
a rede mobilizada etc. As redes que ligam os agentes do contrabando respeitam
apenas parcialmente essas classes, uma vez que há diferentes papéis a serem
desempenhados, tarefas mais ou menos expostas ou perigosas, que demandam
inserção em diferentes círculos locais. A relação com a aduana é dúbia, oscilando
entre conivência e punições legais, dependendo de interesses econômicos ou dos
favores devidos pelo compartilhamento de uma rede social ou por certa
solidariedade de classe que legitima o contrabando-formiga.

O conteúdo econômico dos territórios em suas várias escalas e articulações é


continuamente construído e destruído, seus limites políticos adquirem funções
correspondentes. A permanência do bagayo e a riqueza da vida no lugar mostram
que a cultura dos contatos e oscilações fronteiriças habilita seus moradores a
experiências territoriais originais.
253

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ZERO HORA, 09/04/1975, p.23.


269

APÊNDICE A: RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS.

Muitas entrevistas foram realizadas com a garantia de sigilo, em vista do


caráter ilícito dos assuntos abordados. A lista abaixo apresenta apenas os nomes
dos entrevistados que abordaram os temas tratados ao longo deste trabalho na
qualidade de autoridades acadêmicas ou profissionais. Buscou-se incluir também
alguns dados sobre os informantes e o momento do depoimento.
• Antônio Augusto Fagundes, tradicionalista gaúcho, em Xangri-lá, RS, 10 de
janeiro de 2004.
• Sérgio Faraco, escritor gaúcho, em seu gabinete de trabalho, Porto Alegre,
RS, em 27 de abril de 2004.
• Marli Borniatti e Sandra Ferreira, técnicas da Divisão do Mercosul, da
Secretaria do Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais do Governo do
Estado do Rio Grande do Sul, no Centro Administrativo do Estado, em Porto Alegre,
em 15 de setembro de 2004.
• Suzana Beatriz de Oliveira e Antonio Paulo Cargnin, geógrafos da Secretaria
de Desenvolvimento e Obras do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, No
Centro Administrativo do Estado, em Porto Alegre, em 15 de setembro de 2004.
• Neiva Otero Schaeffer, geógrafa gaúcha, professora aposentada da UFRGS,
no Núcleo de Integração Universidade-Escola, em Porto Alegre, RS, em 20 de
setembro de 2004.
• Alma Galup, Directora del Departamiento de Cultura de la Intendencia
Municipal de Rivera. Entrevista realizada na Secretaria da Cultura de Rivera, em 20
de julho de 2005, em espanhol, com a presença do antropólogo gaúcho Daniel
Francisco de Bem.
• Gustavo Laclau, uruguaio, presidente de la Associación Comercial e Industrial
de Rivera (ACIR) e dono de ótica. Entrevista concedida na ACIR, Rivera, em 20 de
julho de 2005, em espanhol.
• Abílio Briz, engenheiro uruguaio, Director General de Promoción y Desarollo
de la Intendencia Municipal de Rivera, Uruguai. Entrevista concedida em espanhol,
na Intendencia de Rivera, em 21 de julho de 2005, com a participação das geógrafas
Gladys Bentancor-Rosés (uruguaia) e Cristiane Adiala (carioca).
• Julio Cairello, 77 anos na data da entrevista, faleceu em 2005. Geógrafo
uruguaio, professor e diretor de escola. A entrevista foi concedida em Rivera, na
casa do informante, em 21 de julho de 2005, em espanhol.
• Janaína Zorzatto, técnica da Polícia Federal em Uruguaiana, RS, em 25 de
junho de 2005, na Delegacia da Polícia Federal.
• Carlos Righero, Secretário da Cultura de Paso de los Libres, Corrientes,
Argentina, no Museu Histórico, em 26 de julho de 2005, com a presença do
antropólogo gaúcho Daniel Francisco de Bem e das geógrafas Gladys Bentancor-
Rosés (uruguaia) e Cristiane Adiala (carioca). Entrevista concedida em espanhol.
270

• Ricardo A. Saucedo Ricchini, Secretario de Gobierno, Municipalidad de Paso


de los Libres, Corrientes, AR, entrevista em espanhol, na municipalidade, 26 de julho
de 2005.
• Norberto Percuoco, presidente da Camara de Comercio Exterior de la Ciudad
de Paso de los Libres e despachante aduaneiro, e Rubens Percuoco, seu filho e
sócio, no escritório de ambos, em 27 de julho de 2005. Entrevista concedida em
espanhol.
• Olmo, comerciante em Santana do Livramento. Entrevista em seu
estabelecimento, em agosto de 2005.
• Raphael Copstein, 80 anos, geógrafo gaúcho, professor aposentado da
UFRGS. Entrevista realizada em Porto Alegre, RS, no Instituto Histórico do Rio
Grande do Sul, em 11 de outubro de 2005.
• Ceibo, diretor de uma empresa de ônibus de Rivera, e Canelón, uruguaio,
proprietário de óticas na(s) cidade(s) de Santana do Livramento-Rivera. Entrevista
realizada em espanhol, na ACIR, em Rivera, 03 de novembro de 2005.
• Álamo e sua esposa Rosa: ex-secretário de um advogado defensor de
contrabandistas. Rosa é filha de contrabandista e neta de guarda aduaneiro.
Entrevista realizada no bairro Rivera Chico, em Rivera, na casa dos informantes, em
03 de novembro de 2005, em portuñol, com a participação da geógrafa uruguaia
Gladys Bentancor-Rosés.
• Lidia Schiavoni, antropóloga argentina, Entrevista realizada em Posadas,
Misiones, Argentina, na casa da informante, em 10 de dezembro de 2005, em
espanhol.
• Fresno ex-cambista, em 22 de janeiro de 2006, nas ruas de Rivera.
• Robles, policial uruguaio, em 22, 24, 25, 26, 29 e 30 de janeiro de 2006, em
Santana do Livramento-Rivera, entrevistas com a eventual presença de amigos ou
parentes, realizadas em diversos pontos das cidades, incluindo gravação, registro
fotográfico, e localização nas plantas urbanas.
• Encina, 27 e 30 de janeiro de 2006, na Casa Globo.
• Salise Monteiro Sanchotene, juíza federal gaúcha, entrevista concedida em
Porto Alegre, na 2ª Vara Federal Criminal, em 15 de fevereiro de 2006.
• Azucena, Hortensia, Magnolia e Margarida, bagayeras uruguaias. Entrevistas
em 27 de janeiro de 2006, na Casa Globo, em Santana do Livramento, RS,
realizadas em espanhol; entrevistas, 17 e 20 de julho de 2007, na Casa Santa Rita e
no ônibus para Tacuarembó, UY.
• Manzano, dono da Casa Santa Rita, armazém de linha, durante as
transações comerciais, em Santana do Livramento, 17 de julho de 2007.
• Perera, da Casa Vargas, armazém da linha, durante as transações
comerciais, em Santana do Livramento, 17 de julho de 2007.
• Nogal, na sala de jantar do entrevistado, com a presença de Daniel F. de
Bem, Robles, a mulher de Robles, a mulher e a filha do entrevistado. Em Rivera,19
de julho de 2007, em português e portuñol.
271

• Romero, chefe do consejo departamental e Ombú, militante no movimento


popular, na sede da ONG Alternativa Chuy, no Chuy (UY), 04 e 05 de março de
2008, com a presença da Profª Drª Lia Osório, de André Cassino (UFRJ); do Prof.
Dr. Jadson Porto (UFAM), dos geógrafos uruguaios Prof. Álvaro Lopes Gallero,
Álvaro Lena Crescente, Gustavo Cánepa e Alejandro Robayna (UdelaR).
• Hamilton Silvério Lima, prefeito do Chuí (BR), do Partido Democrata,
realizada no gabinete do prefeito, na Prefeitura Municipal de Chuí (BR), em 04 de
março de 2008, junto dos pesquisadores citados acima.
• Dr. Gerardo Amaral, Intendente, na Intendencia Municipal de Treinta y Tres,
em 05 de março de 2008, junto dos pesquisadores citados acima.
• Padre Jorge, na paróquia de San Juan Bautista, Río Branco (UY), em 06 de
março de 2008, junto dos pesquisadores citados acima.
• Dr. Pedro Valenzuela, cônsul do Uruguai em Jaguarão, Dr. Rogério Sabóia
cônsul do Brasil em Rio Branco, em Jaguarão (BR), 06 de março de 2008, junto dos
pesquisadores citados acima.
• Robles, revisão dos mapas das materializações do contrabando e debate de
interpretações, na sala de jantar de Cedro, 05 de outubro de 2008.
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APÊNDICE B –
TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA: JULIO CAIRELLO

Data: 21 de julho de 2005


Lugar: Rivera, na sala da casa do informante.
Presentes: Adriana Dorfman e Julio Cairello
Idioma: Espanhol.

Adriana Dorfman: Yo quiero saber primero que es considerado contrabando,


segundo que cosas se ha contrabandeado, tercero historias que han pasado, del
tipo que pasó y tal...
Julio Cairello: podemos empezar a dar un poco
AD: primero de todo, antes de eso todo, un poco de su historia, su nombre...
JC: yo te voy hablando acá. Yo me llamo Julio Cairello. Soy descendiente de
italianos yo tengo, ya, la nacionalidad italiana también, pero nací acá en Rivera y
viví, hace 77 años que vivo acá en Rivera.
AD: é bastante, hehe
JC: estehh, no quise irme nunca, siempre he estado cerca, estudie magisterio, fui
maestro, muchos años en el área rural, en campaña, y, desde el año 59, me vine a
la ciudad como maestro, trabaje acá en la ciudad y, en el año 63, me presenté en
concurso para profesor de ciencia geográfica y empecé a trabajar como profesor de
ciencia geográfica y en el año, después, en el año 72, fui destituido y estuve preso
un año e medio por la dictadura acá en Uruguay, estuve acá en Rivera preso, en
Montevideo y en, el peñol de Libertad, que todo mundo conoce. Yyy, bueno, estuve
12 años como destituido, viviendo de changas, arreglando cosas en las casas, y
trabaje en la construcción, en construir casas, estuve en un equipo de obreros,
trabajadores, albañiles y en el 84, terminó la dictadura, yo, me restituyeran como
profesor de geografía, no quise salir como maestro, maestro pa... como dicen
ustedes, lo profesor también allá, pero, maestro es lo profesor de primaria y, me
jubilé como profesor de primaria, seguí trabajando como profesor de geografía. En el
85 llamaran a un concurso para dirección de liceos acá en Uruguay, yo me presenté,
y, empecé en la subdirección del Liceo numero 2, acá, y después pasé a la
dirección. Es decir que los cargos que tuve fueron por concurso, nunca fui nombrado
así. Pero siempre me gusto la geografia, me gustó estudiar, ya conocía a Gladys en
ese tiempo, en 67 que fundamos la Asociación de Profesores de Geografia del
Uruguay, que todavía existe, con Gladys, con Teresa, fuimos medio cofundadores
de esa asociación nacional. Y siempre he ido a congresos, reuniones,
campamientos, haciendo trabajo de estudio con gente que sabía más que yo, y con
la que aprendí muchas cosas. En el año 88 tuve que dejar el trabajo por un
problema, tuve un problema cardíaco, después tuve una operación de corazón, y,
bueno, yo tenia años de trabajo también, no, en el 88, ahí, deje la enseñanza, y
ahora estoy trabajando con la asociación de jubilados y pensionistas del Uruguay,
273

es, estoy en la directiva, estoy en eso y, ayudar en algún trabajo social, charlas,
reuniones y cosas así que no se me fijan mucho horario ni mucho trabajo tampoco,
porque tengo que estudiar un poco y por los años y por lo problema cardiaco mismo,
que fui operado y siempre seguí con problemas, pero ahora vivo, lo que tengo, lo
que tengo es experiencia, y años, entonces uno, yo conocí toda esa frontera cuando
no era ni la quinta parte de lo que es ahora. La ciudad, por ejemplo, terminaba en
esta calle que está ahí, ahí terminaba, en ese cerro ahí, vienen canteras, de donde
se sacaba piedra para construcción, ahí termina la arenisca, arriba del basalto, se
saca e se [?] para construir cimiento, de las casas, y, era intransitable, y, hablar del
contrabando, cuando yo era un guri, como dicen acá en la frontera, allá dicen garoto,
AD: en Rio Grande do Sul también
JC: en Rio Grande do Sul también dicen guri, guri e guria. Los chicos éramos los
que hacían, ahí nos mandaban para comprar en el otro lado de la frontera, no, en los
almacenes, todos los almacenes estaban para aquel lado, los almacenes
importantes, acá tenia una cosa extraña, eh... Livramento, se fundó 40 años antes
que Rivera, se fundó Livramento y lo contrabando se hacia de acá para allá. Ya
habían comercios acá en la línea divisoria, se traían las cosas, de Europa
principalmente, por ejemplo, acá no había ferreterías, no había, donde comprar
herramientas, no había donde comprar alambres, por ejemplo, y muchas cosas de
maquinas y maquinarias, no había producción en el Brasil, el Brasil ha empezado a
producir del año 50 para adelante, más o menos, a la gente de Rio Grande do Sul,
Bagé, incluso Porto Alegre, Don Pedrito y toda esa gente venia compra acá, en el
comercio de Livramento, y la mercadería venía por Montevideo y la traía a Salto,
departamento de Salto, y de Salto, en carretas y en carros venia acá a la frontera,
donde era, el negocio se hacia acá, el comercio, el contrabando del Uruguay para el
Brasil
AD: los dueños de eses negocios eran de acá de la ciudad, o de otra, de Montevideo
eran?
JC: Eran si, importadores eran de Montevideo y ellos traían la mercadería hasta
Salto, la mercadería venía por el río Uruguay, y ahí, para acá para Rivera, venia por,
esteh, carretas y carros entonces estaban los depósitos acá, acopiaban cantidad de
mercadería y venían toda la gente de Brasil, venia comprar acá, en ese tiempo,
esteh, antes de se desarrollar la industria brasileña, era aquí que los estancieros, los
agricultores, y toda la gente compraba herramientas y el alambre, que era tan
necesario para dividir los campos, no, todo iba de aquí para allá, y, bueno, y eso,
otra cosa interesante, de la diferencia de años que hay entre una ciudad y otra, 40
años de antigüedad más Livramento que Rivera, que cuando se delineó Rivera,
bueno, Rivera, departamento Rivera estaba, era parte del departamento de
Tacuarembó, estaba es que sigue, hacia el Sur, se delineó la ciudad, y el mismo
agrimensor que delineo Livramento delineó Rivera también, por eso tu ves que las
calles de Rivera están a continuación de las calles de Livramento, la misma
dirección, con la ventaja para nosotros que cuando el hombre hizo, delineó toda la
ciudad y medió todo, hizo las calles de Rivera más anchas, y las veredas,
principalmente, si tu ves la, comparas ahora cuando vayas para allá, la vereda de la
calle Sarandi con la de la Rua Andradas, vas a ver la diferencia que hay, y eso
reportó que en Rivera se ha formado una especie de concentración nocturna de la
gente de Livramento, mesas en la vereda, todo tu ves, tienes, ahora mismo en esa
época no tanto por que hace mucho frío pero en verano, toda la Sarandi de los dos
lados está llena de mesas y se llenan de gente, uruguayos y brasileños a tomar su
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bebida, a comer, todo en la vereda, porque las veredas nuestras son mucho más
anchas que las, tu vas a ver allá en la Andradas es una veredita. Sabes lo que es
vereda, nó?
AD: Si, claro, calçada.
JC: Ah, yo estoy hablando en español pero alguna palabra que no entiendas, me
preguntas, esteh, y bueno, siguiendo con el contrabando, que al principio fue de aquí
para allá, ahora, después, é claro, Brasil se desarrolló enormemente, el mercado
brasileño es enorme al lado del mercado nuestro, entonces, la industria se
desarrolló, entonces somos nosotros los que traemos todo de allá, Ahora no tanto
por que acá el paso del contrabando para allá, de allá para cá depende del valor de
la moneda, depende, por mucho tiempo el peso uruguayo fue mucho más fuerte que
el, en el principio, en nuestro tiempo era el, no era el cruzeiro, era, tenia outro
nombre la moneda brasileña
AD: Eram réis?
JC: Réis! É, réis, cem réis, mil réis, y todas esas cosas, y nuestra moneda era
mucho más fuerte, nosotros es que comprábamos todo allá, pero, incluso Rivera se
pobló últimamente, en los últimos 40 años, por mucha gente que vino del resto del
país para acá. Rivera tiene casi 100 mil habitantes, son pocos los departamentos del
Uruguay que tienen esa cantidad de gente y, por que la vida acá era mucho más
barata?, por el contacto con el Brasil, bueno y, lo que quiero decir con eso es que el
pase la de acá para allá o de allá para acá dependía de, esteh, del valor de la
moneda. Mientras nuestra moneda fue fuerte, todo venia de allá, ahora ya tá más
difícil la cosa, porque lo real está muy caro para nosotros. En ese momento hay
pocas cosas que compramos allá. Y lo otro, el primer gran contrabando, al principio
fue de ganado, que pasaban acá por esa calle nomás, en el Brasil tenían, en
Livramento habían dos frigoríficos y allá por cerca de Artigas había otro, se
instalaban acá frigoríficos de, inglés, casi siempre de capital inglés, justamente, para
faenar la carne del Uruguay, y do Rio Grande también, desde luego, pero, ya el
contrabando, las tropas pasaban acá, por esa calle, y tal cosa
AD: Pero, y, no había control de la frontera?
JC: Había, pero siempre había también...
AD: y como era la frontera, allí en la Aduana?
JC: Aduana hubo siempre, y guardias por el medio. Hubo y hay por todos lados de la
frontera, pero, tu sabes como es el asunto, se arreglan con los guardas y se acabó,
los guardas miran para otro lado y pasan. Eso siempre existió también, En una
frontera siempre va a existir, no… A veces muy a la vista así, sin cuidado ninguno,
pero otras veces son más controlados, ahora hay más control, ahora es mas
controlado porque no solo el control acá, local, sino que hay en la ruta también y
cuando el ferrocarril marchaba todos los días también se controlaba tanto, pero,
siempre hubo, en una frontera no hay caso, siempre va haber contrabando. Acá
hubo contrabando de gente, por ejemplo, japoneses, venían a Montevideo e de
Montevideo se venían a Rivera, esperaban la oportunidad para pasar la frontera
para irse para Brasil, cantidad de japoneses que están, que viven en Brasil esteh,
pasaran por acá por la frontera
AD: en que año?
275

JC: en que año? Yo te voy a decir que en 1950, por ejemplo, a la vuelta de la casa
donde yo vivía, había un gran galpón, un gran taller mecánico pero un galpón de un
hombre que tenia camiones de transporte para Montevideo-Rivera-Montevideo, y ahí
nosotros veíamos a veces, 40, 50 japoneses ahí en el galpón aquel, viviendo allí,
esperando la oportunidad para pasar para el otro lado y, allá por la época de 50,
empezaran a entrar japoneses a Brasil, no?
AD: Hubo antes también, pero...
JC: Hubo, pero, en gran cantidad, en gran escala, y no solo por acá que entraban,
desde luego, pero yo vi acá, acá como llegaban, se concentraban ahí en este
galpón, esperando el momento oportuno aguardando pasaje para el otro lado, solo
en base a dinero, no?,
AD: habían intermediarios también?
JC: Claro, habían intermediarios, si, desde luego, pero, así que el contrabando no es
solo de mercadería, de alimento y de gente también, yo vi, vi porque en el Brasil
hasta el año 50 habían japoneses, pero no había la cantidad que uno ve, uno va a
São Paulo, por ejemplo y, si, cantidad enorme
AD: y en el interior también...
JC: Eh?
AD: El interior de São Paulo.
JC: Todo, acá le metían en chacras también, por un tiempo acá en Rivera, muy
trabajadores los japoneses, acá cultivaban tomates todo el año, siempre cultivaban
tomate, en invierno no y ellos, todo el año, trabajando, y pero siempre ellos venían
para acá esperando la pasaje, porque todos los miles de japoneses que vinieron
para acá no quedó ninguno acá, difícil encontrar acá un japonés o un descendiente
de japonés, y pasaron muchos acá vinieron chacras alrededor, servían también de
base para los que llegaban, se quedaban ahí, esperaban un tiempo e pasaban, ellos
sabían que Brasil tenia mucho más futuro que Uruguay, para el trabajo, para el
comercio, no?, bueno.
AD: de tiempos en tiempos viene alguien y dice no, no se pude más contrabandear?
JC: si, tu sabes que, el cero kilo, pero no, no, no.
AD: usted se acuerda de algún intendente, algún...
JC: La aduana, lo de la aduana, no, no, yo conocí muchos guardias aduaneros,
cuando guri, mucho, nosotros veníamos a comprar en Brasil, comprar un kilo de
yerba, un kilo de azúcar, un kilo de arroz, cosa chica, para la casa, y nuestro pasaje
era por aquí, arriba del cerro, porque los guardias no podían andar con los caballos,
nos corrían, pero era tan tan tan horrible las canteras y los agujeros que había,
pozos de piedra, que no daba para andar a caballo, entonces nosotros pasábamos,
corríamos, veníamos a comprar las cosas del día, y eran etapas, momentos, pero
después se fue parando, porque en la línea divisoria, del lado de Brasil, lo único que
habían eran comercios, después claro, después empezó la venta para la gente, la
ropa brasileña, las telas, venían los televisores, todos los electrodomésticos, había
excursión de 10, 15 ómnibus para comprar de Montevideo con turistas, venia todo
mundo a comprar lo suyo. Y se dejaba, a veces se atacaba algún ómnibus, se
sacaba algo, pero, había épocas que venia la orden de no permitir, entonces si, hay
un paraje ahí donde tenían que parar los ómnibus, se revisaban, el lugar se llama
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Manuel Diaz, ahí está la policía y la aduana, a veces venia la orden de atacar, de
parar, e vaciaban los ómnibus, quedaba un montón ahí, todavía hay, esteh, hay otra
aduana ahí en el camino, que está llena de automóviles, camionetas y camiones,
que cargaban contrabando y que fueran presas, se demora años después los
expedientes, mercadería que se estraga, que e tira fuera porque, mientras se
resuelve lo que hacer con ella, no?, en general la botella de bebida, por ejemplo, la
cachaça de ustedes, mucha cantidad que contrabandeaban, la coca-cola es otra
cosa, porque la coca-cola en Livramento vale menos de la mitad que lo que vale en
Uruguay. En Rivera no, porque lo traemos todo de allá. Y hay muchas cosas, se tira
todo, se rompe, se tira, pero hay mercaderías ahí en, hay una aduana, está cerquita
de acá, ocho cuadras, que allá ves como 500 garrafas de gas, de un contrabando
que agarraran e que hace como cinco años que está allá.
AD: Donde es?
JC: En la Ruta 5 que va para Montevideo. Llevaban para Montevideo. Esta todo
empilado allí. En el campo nomás, y camiones y camionetas, pero eso son etapas,
hay etapas que se reprime más, otras que se deja más,
AD: Por que?
JC: Y depende que tienen en ese momento, no, pero cambian, cambian, a veces por
padrino político, el partido que está gobernando, a los caudillos de ellos, como se
llaman allá? Cabo eleitoral, ese tiene ciertas prebendas para pasar, pero después
cambian, y cambian, no es una cosa que todo… Ahora mismo, nosotros esta
vivienda de acá, casi todos los electrodomésticos que hay son, esteh, traídos de
Livramento, pero ahora esta con fábricas en Brasil acá más barato, después con el
free shop, fue otra cosa, el free shop, el vende electrodomésticos, máquinas,
principalmente, güisqui escocés más barata, a cada fin de semana se llena de
brasileños para comprar para controlar el free shop. El free shop se hizo acá
justamente para eso, para vender para los brasileños, porque llevando, nosotros, los
que vivimos acá no podemos comprar no free shop, es todo para el exterior, pero
esa es la ley, en realidad compramos todo que nos da la gana en el free shop,
porque ellos tienen la documentación de los brasileños, porque para comprar no free
shop tiene que tener, la persona que compra, documentación brasileña, yo no soy
brasileño pero yo voy allí y compro lo que quiero. Como ellos descargan eso?
Tienen fichas de brasileños que compran allí y después en las fichas de los
brasileños lo que compran. Pronto, quién va averiguar? A veces hay alguna
investigación, pero en general no. Bueno, no sé que otra cosa.
AD: Hace como 15 años que yo estudio acá la frontera también entonces yo me
acuerdo que hubo mucho contrabando de plata.
JC: De que?
AD: De plata, de dinero.
JC: Dinero, lavado de dinero, ese es una industria nacional también, no es solo acá.
Hay casas de cambio que ni, no tienen nada que ver con Rivera, hay bancos que no
entran riverenses ni por casualidad, están ahí, todo las agencias, por ejemplo, viene
un brasileño, en el Brasil se controla mucho los impuestos, no?, principalmente el
impuesto a la renda, es muy controlado, acá no, acá recién ahora están discutiendo
si van a poner uno a la renta, todavía no se resolvió, entonces cuando ya no pagan
impuestos, sonegan, no?, lo que dicen ustedes, juntan dinero, pero en Brasil si tu
vas a comprar un auto tienes que demostrar de donde sacaste el dinero, si vas a
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comprar una casa tienes que mostrar de donde sacaste el dinero para comprar la
casa, o un campo, lo que sea, el estado quiere saber, ta bien, tu ganaste este dinero
pero pagaste los impuestos?, el impuesto a la renta, este es lo que quiere saber,
entonces vienen a comprar acá, compran una estancia acá, por ejemplo, o casas, y
lo tienen un tiempo, después la venden, para otro brasileño, campos, estancias, y la
venden para otro brasileño, y cuando entran con ese dinero allá, ponen en un banco,
lo que sea, y de donde salió ese dinero? De una propiedad que yo tenia en Uruguay.
Tá en el Uruguay no le preguntan de donde sacó el dinero pa comprar, tenia una
propiedad, la vendió, chau, entonces es muy difícil saber como salió ese dinero de
allá, por medio de esas casas de cambio y bancos, el dinero fue lo que se dice una
cosa virtual, parece que existe pero no existe, tu compras una casa y no llevas
ningún peso en tu mano y compras la casa, firmas un documento y tá, porque se ha
hecho una transferencia bancaria pronto, no dinero. Tu compras y firmas un check,
no llevas dinero en la mano, el dinero se tornó en algo virtual, se hace transferencia
de un país a otro, por medio de un fax, de un telegrama, lo que sea y la computación
hoy, con la computación uno transfiere el dinero de un lado para el otro, pronto, se
acabó, acá en Uruguay, acá, en el año 2002, se hundieron 3 o 4 bancos, no se
hundieron, los vaciaron, transferiran todo dinero para otros lugares, no controlan
nada, y desapareció, chau, dinero de los ahorristas, qua habían puesto ahí, millones,
los dueños de los bancos, hay tres hermanos que están presos, los padres están
presos, pero otro, nada, no paso nada,
AD: y la frontera acá depende del cambio, depende de eso...de que el sistema
bancario uruguayo que este sano... no sé...el caso ese de que los bancos se
hundieron, influyó acá, en el movimiento de Rivera?
JC: porque somos pocos, hoy está el movimiento de gente reclamando por los
ahorros, así, sacaron dinero, chau, y acá ahora existe algo del primero que acá se
puede manejar cualquier tipo de moneda. En el Brasil tu vas comprar algo, tienes
que pagar con reales, no hay otro, en el Banco de Brasil solamente se puede
depositar en reales, ni dólares, ni euros, aquí en Uruguay se manejan con todas las
monedas, y existe algo que se llama el secreto bancario, nadie puede saber que es
lo que yo tengo en el banco, o no tengo, cuanto saqué o no saqué, y eso está hecho,
el secreto bancario, para el lavado de dinero de otros países, es decir, viene
cualquier persona acá con una valija de plata, va al banco y lo deposita allí, nadie
pregunta de donde vino, de donde puede venir, en la cuenta de el nadie puede, eso,
tocar, solo por orden judicial se puede abrir el secreto bancario, una estafa muy
grande, una cosa así, pero casi nunca se da eso,
AD: entonces cuando se dio ese problema de los bancos, que pasó, pasó algo acá?
JC: No, cayó, cayó el comercio porque mucha gente tenia dinero, son miles de
pequeños ahorristas, gente que se quedó sin dinero para pagar un medico, pagar el
alquiler de la vivienda, pagar los impuestos que tiene que pagar, hay una
desesperación, hay miles de personas que fueron perjudicadas, bueno, y eso
repercutió en el comercio interior también, repercutió porque el Uruguay está, hoy
tenemos la vergüenza de decir que la mitad de la población de Uruguay está en la
pobreza, la mitad, gente de la clase media se vino abajo, se vino, el mayor índice de
desocupación de América, uno de los mayores, es el de Uruguay, verdad en acá
había fabricas textiles varias, no hay ninguna, había ahora recién empezaran los
trabajadores, conseguiran crédito y empezaran la industria Pluslan, no se si oíste
hablar, fabrica de cubiertas y cosas de caucho, enorme, que vendía para todo el
mundo, se hundió, empezaron a hacer guantes de goma, ahora están haciendo
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cubiertas, empezó esta semana recién, estuvo como 20 años cerrada, con las
maquinas todas ahí, habían fábricas, frigoríficos, habían, en Uruguay, esteh... Esto,
esta, el gobierno que entró ahora tiene la obligación de levantar toda la industria
nuestra, principalmente la industria agropecuaria vino abajo, el Uruguay tiene, de
acá a Montevideo tenemos 500 km de rutas e de acá a Montevideo pasamos por
500 km de un desierto verde, no hay nada, campo vacío, no hay gente, no hay nada,
pues es que hubo una concentración en las ciudades e los asentamientos que
llaman, los rancheríos, una pobreza impresionante, recién ahora entró ese gobierno,
entró ese año se está planificando a ver hacer como. Pienso que en quince o 20
años se puede levantar de nuevo el Uruguay, tem que empezar por todo, ne?,
además porque hubo una época en que, antes de la dictadura, y en la dictadura
también la deuda se multiplicó por seis, dinero tirado afuera, y recién ahora se está
planificando para volver, a producir, había ingenios azucareros que hacían azúcar de
remolacha y azúcar de caña de azúcar, todo eso se terminó, esteh... Fábricas, la
carnicería que habían dos, fabrica nacional de cerveza era la Norteña, está todo en
poder de los brasileños, le compró la Brahma
AD: la AMBEV acá
JC: por la malta porque el país produce esteh..., todo para los cereales necesarios lo
que el gobierno de Brasil está haciendo, el gobierno de Lula y pidió que se siguiera
trabajando en una fábrica de para hacer cerveza aunque todos ahora están en
Uruguay. Mucha de esa gente que trabajaban todos y ganaban bien
AD: como usted ha dicho anteriormente esto de la, de la changa y eso incluye
también el contrabando en la frontera? Que lo busquen más para tener otras formas
de ganar su vida? Para
JC: Influye, claro que influye porque la salida que tenia la gente es esa, el
contrabando, por ejemplo para llevar, el Uruguay no tiene gas, nosotros acá en el
norte, todo gas que consumimos viene ahí de Livramento, hay pueblos que está a
cien quilómetros de acá, a 80 que viene, entonces hay grande cantidad de gente que
se dedica a eso, inclusive tu ves de repente una moto para llevar atrás 5, 6 botijas
de gas, en una moto y el, esto que sea por ejemplo por lo menos 50km de la
frontera, hay cantidad de gente que vive de eso, de ir con la mota hacia allá traer
gas, y comestibles también, una de las cosas que nosotros podemos es hacer el
contrabando y prohibir totalmente es malo porque hay muchos comestibles que no
se fabrican más en Uruguay, recién ahora están empezando algún, se no tenemos
acá, podemos ir comprar en el Brasil, hasta el arroz, que el Uruguay exporta arroz
para hasta para China exporta arroz el Uruguay, pero no hay para el consumo de la
gente, El arroz se exporta y, conoce ese arroz que viene en la bolsita de plástico ya
pronto para comer?, no hay eso acá en, hay eso en Montevideo, hay algunas cosas,
pero que llegue hasta acá, encarece mucho el transporte, entonces nos conviene
mucho más. El Brasil importa en cantidades y después vamos comprar arroz en
Brasil. Y hubo un momento en que la carne también, ahora ya no, ya está más cara
que acá, todo depende un poco del valor del peso acá. Hubo una fábrica de aceite
en Rivera y había dos en Tacuarembó y se hundieron todas
AD: se hundieron por estar cerca de Brasil o por lo que pasa con la economía
uruguaya?
JC: por estar cerca de Brasil y por varias razones. La, había una aceitera en
Tacuarembó que era de la empresa Bunge Y Born, una multinacional, acá en los
alrededores de Rivera había cantidad de gente que tenían chacras de 10, 12
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hectáreas y vivía la familia esta y cultivaban mucho el maní para la fábrica de aceite,
hacia aceite de maní, minduim que llaman ustedes?
AD: amendoim, ha ha
JC: bueno, y vino la competidora de Tacuarembó y empezó a ofrecer más dinero
para la gente por el maní y dejo la fabrica de Rivera sin material. Dos o tres años,
cerró. Después que cerró nunca más vinieron a comprar maní de nada acá, y se
terminaron los plantadores de maní, las chacras. Bueno. Y es así, no es cierto?,
después de la dictadura entró un gobierno y lo que más hacia fuerza era para la
gente de importación porque hay núcleos grupos, grupos de presión, grupos de
productores que están presionando para que los ayuden. Los importadores también
presionaban al gobierno para importar, entonces acá no se producía más ropa, todo
era importado, comida era importada, importábamos comida de Suecia, de Escocia
bebidas todo lo que tenia era importado, claro, era importado con subsidio de
manera que era más barato do que el que se producía acá. Porque cuando se hizo
el free shop, muchos de nosotros decimos que el free shop no debía ser para vender
productos importados de Europa, como son ahora, si no para productos nacionales
pero acá no se importan con los productos, ahí podríamos competir con los
productos, como les sacan los impuestos de los productos que vienen de Europa
para venderlos en el free shop, por eso venden, el güisqui en el free shop vale la
mitad que el güisqui en Montevideo, y es el mismo güisqui, porque allá pagan
impuesto y acá no entonces ellos asesinan con la mercadería. La ropa uruguaya, la
lana por ejemplo, que tenemos lana, y estábamos vendiendo la lana bruta así, sacan
de la oveja y la venden así como sale, se hicieran ropa, se produciran alimento que
tenemos, es increíble, te voy a decir, no tiene mucho que ver, estoy hablando de
todo un poco pero me da rabia de pensar la riqueza que tiene el Uruguay, y da rabia
que uno tenga que decir que la mitad de los niños del Uruguay pasan hambre, y
viven, […]
AD: En Brasil lo mismo...
JC: Bueno, Brasil tiene 180 millones, el Uruguay es más chico que un barrio de San
Pablo hay menos gente, que un barrio! De San Pablo. Y como se va a decir que este
país es un país chico, es mentira, no es un país chico, hay muchos países en
Europa que son mucho más chicos que nosotros, y tienen 5, 6 veces más población,
no es tamaño. Nosotros tenemos una plataforma marítima más grande que la parte
territorial, abandonada totalmente, tenemos pescadores que vienen a nuestra costa
pescar, los japoneses, los rusos, los holandeses, todo mundo viene a pescar, y el
pescado en Uruguay es un articulo de lujo, ¿por que? Porque el atraso...no tenemos
ni siquiera la costumbre de consumir el pescado, porque acá la gente no, no, no
come pescado. Y el pescado es una riqueza extractiva, hay solo que coger no más.
Bueno, recién ahora están hablando de eso, no tenemos ningún barco pesquero en
Uruguay y la parte marítima es mayor que la parte continental, y no tenemos un
barco pesquero.
AD: y las personas tampoco tienen trabajo
JC: Ahí en frente a Rocha por ejemplo, se juntan las corrientes frías, que vienen del
sur, con las corrientes cálidas que vienen del norte y hay una riqueza pesquera
excepcional, pero no pescamos, bueno, y entonces, también la política tiene que ver
con el atraso y el adelanto de los países porque estos países de América Latina han
sido mal administrados años por años, después de la colonización fue el desastre,
280

AD: volviendo un poco al contrabando, yo, se encuentran muchas análisis así, que
hablan del contrabando por la diferencia cambial, oscilación, que se yo, pero para
las personas que viven acá, y los personajes as veces tienen fotos quizás, de Rivera
más antiguo, testigos de las cosas que si ocurrieran, y no del análisis más
económico. Como un maestro en la sala de aula, en la clase, cuenta el gran cuadro,
el sistema, la organización y va y ilustra, no, entonces imaginando que hay un tipo
así asado, es así que nosotros trabajamos, no?, el caso ese del particular, caso de
personas que usted ha conocido,
JC: pero que que?
AD: o de amigos tuyos que trabajaban con el contrabando, que no trabajaban y
pasaron a trabajar
JC: hoy están acá, hay, siempre hubo, sigue habiendo. El contrabando, no, no, yo te
digo [¿]
por problemas de dinero, de valor del dinero, pero no porque se restriño e no se
podía contrabandear más, pero, los contrabandistas siguen existiendo, están ahí, es
tanto que acá nós decimos zona franca, enormes galpones, y todo para el
contrabando, porque traían las cosas allí, a la zona franca, de cualquier parte del
mundo, tanto por Brasil como por Montevideo, por lo que sea, e ahí les cambiaban
las marcas de las cosas, seguía para el mercado interno, y venían para el Brasil,
San Pablo, y todas cosas que venían de Europa, es zona franca porque no pagan
impuestos, solo cambiar el nombre de la mercadería e ya está, e al puerto de
Montevideo todos los días llegan conteineres, cuando inventaran los conteineres
AD: cerradito así
JC: Ahí traían contrabando de [¿] ahora mismo hay un jefe de aduana de
Montevideo, que fue duro, empezaron a abrir los conteineres e sacaron montones,
millones de cosas contrabandeadas, que vienen por Montevideo, no es por acá por
la frontera, así que el contrabando, la única manera de combatir el contrabando
realmente es produciendo y competiendo, no hay otra manera, se hay diferencia de
precio de un lado y de otro, no hay manera, aparecen contrabandistas en seguida,
así como aparece la venta de droga. No hay cosa más reprimida que esa y no hay
cosa que crezca más que la drogadicción, porque siempre se encuentra la manera
de, todo por la diferencia. Yo soy uno que pienso que el día que se legalice el uso de
la droga, viene abajo el negocio. Ya tenemos la experiencia en los Estados Unidos
con la ley seca. Termino la ley seca, terminó las mafias de aquellos tipos, de aquella
gente que muria por los mafiosos, terminó, pronto, de acá yo siempre pensé que la
manera de terminar con el tráfico de droga es legalizar, quiere comprar? Bueno,
vaya, compre ahí, comercio legalizado y controlado para esto, se termina, porque se
tu tienes que ir a una farmacia comprar una droga, tienes que poner la cara allí en el
mostradero para que te vean. La droga circula en secreto, de noche, en la oscuridad.
A entrevista é interrompida […]
281

APÊNDICE C – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA: ROBLES.

1ª entrevista com Robles e Cedro.


Data: 24 de janeiro de 2006.
Lugar: Santana do Livramento, na casa de Cedro,
Presentes: Adriana Dorfman, Daniel Francisco de Bem, Robles e sua mulher
Magnolia, Cedro e sua mulher Dalia.
Idioma: Português e Portuñol.

Adriana: O que é o contrabando-formiga?


Robles: Não é a coisa tão delitiva. É mais um contrabando do dia-a-dia.
A: É, mas o que tu quer dizer com uma coisa assim mais delitiva, menos delitiva?
R: O que temos é um contrabando grande. Ou, por exemplo, como se diz, a
operação formiga. O meu amigo diz cupim, aquele que vem no dia-a-dia. É o que
nós temos, isso aqui, baseado nisso, por exemplo, é como sobrevive a gente que
viaja às vezes 300, 400km levando açúcar, erva, tanta coisa, tudo aquilo que
interessa, é roupa, isso é um contrabando que leva de ônibus...
A: Para comprar aqui? De onde que eles vêm?
R: Eles vêm de todo o Uruguai.
A: De todo o Uruguai? Vem de Montevidéu fazer...
R: De todo. Pequeno contrabando.
A: E o que levam?
R: Levam de tudo. Desde comestíveis, até roupa, inclusive até peças de carro né? O
que for encomendado para eles, eles levam. É isso aí o dia-a-dia, cigarro, um monte
de coisa, tudo que é fundamental para o uso eles levam, não adianta.
A: Mas só coisa pequena ou quantidade pequena ou grande também? E quando é
que tu acha que deixa de ser contrabando-formiga e passa a ser uma coisa mais
perigosa, mais séria? Mais delitiva, como tu diz?
R: Quando nós pegamos, todo ele, todo o contrabando é delitivo.
A: Contrabando é não pagar imposto?
R: Um seria. Já é infração quando uma mercadoria de um país entra, ingressa no
outro sem pagar imposto. Aí ele já é contrabando. Evidentemente, para mim ele já
se torna um contrabando mais perigoso quando ele tá de caminhão, em quantidade,
todas essas coisas né? Evidentemente que a operação formiga também não deixa
de ser um delito perante a lei nossa, e aqui hay gente que leva de caminhão tanto
prum lado como pra outro. Tivemos a prova: a operação Prata, que estourou
internacionalmente.
A: Ahã, lá em São Paulo?
R: De São Paulo, ela veio terminar aqui.
282

A: De eletrônico era?
R: De eletrônico é, também, tudo vem. Hoje, por exemplo, quem controla
praticamente o contrabando é a Aduana e a polícia. E daí vem um grupo especial do
governo, também controla, também a Caminera, que é a mesma coisa.
A: É a Polícia Rodoviária?
R: É a Rodoviária, todos pertencem a nós, então eles fazem essa mesma função.
Pois controlam a FUSNA [corpo de fuzileiros navais], quase todo mundo controlam.
A: O que é a FUSNA?
R: A FUSNA é um exército mandado, ordenado pelo governo. Então eles controlam
as estradas.
A: Mas aqui o posto de controle é mais pra dentro né?
R: O primeiro que posto que nós temos é o Aduana, na ruta cinco, o que vai dar
quinze quilômetros.
A: E tu trabalha lá ou não?
R: Não, eu trabalho dentro da cidade, se chamam nós vamos prá lá. Aí quem
controla é a Aduana. Além da Aduana, nós temos a barreira sanitária que controla o
ingresso de mercadoria brasileira que seriam derivados de porco, gado, essas
coisas todas... Antes dessa Aduana, nós temos a Caminera, um posto de Caminera,
que também faz o controle de contrabando ela controla também.
A: Mas as pessoas não passam propriamente pela estrada, né?
R: Sim, de ônibus sim. Como ela leva pouca coisa, geralmente deixam, quando é
pouca coisa. Agora, por exemplo quando vai muito, muita gente no ônibus e se vê
muito pacote, aí de repente vem a ordem do chefe, tascam tudo, não deixam nada.
É a operação zero quilo.
A: Varia com o quê?
R: Varia com a quantidade que levam no ônibus.
A: Mas não depende, sei lá, qual o tipo de produto? Ou chegar um chefe novo? Ou
querer mostrar serviço por alguma coisa?
R: Não. Geralmente quando há uma operação como a operação Prata, isso
incentivou que começassem a atacar muito, que não deixassem passar nada. Então,
o que fazem os que geralmente levam de ônibus? Eles contratam uma carroça e
saem por fora, passando a Aduana. Daí se vão. Lá têm a Manoel Diaz, a 70
quilômetros daqui, que lá é um posto policial com mais de 15 policial, ou seja, cinco
por turno. E esse posto ataca muito a mercadoria. Então, lá em Manoel Diaz, eles
descem antes de Manoel Diaz, caminham a pé, cruzam Manoel Diaz por campo e
vão pegar o ônibus lá diante.
A: Isso aí demora quase um dia inteiro pra fazer?
R: Pra eles sim, muitas vezes sim.
A: E o cara faz todo dia?
R: Faz todos os dias, todos os dias. Uns fazem um dia de manhã, vêm de manhã e
aí ficam. Aí eles compram tudo, fazem o rancho deles, levam o necessário, aí...
A: E aí, chegando lá, já tem quem compre?
283

R: Já tem, ele já tem pra quem deixar a mercadoria, praticamente a mercadoria já foi
vendida.
A: O cara faz mais é o transporte?
R: É o transporte. Seria como tu vê no Paraguai.

FIGURA 39: Manoel Diaz: foto da aduana e da parada de ônibus – 2005.


Foto de Adriana Dorfman.

A: Pois é, a gente tava lá no Paraguai, tava na Argentina na fronteira com o


Paraguai, conversei com uma senhora lá e ela me disse que lá é praticamente só
mulher.
R: Só mulher?
A: Praticamente só mulher, porque os homens não se interessam porque é muito
pouco dinheiro, pouco remunerado só quando aparece uma crise muito grande,
quando tão muito sem emprego aí aparece o homem também fazendo e aqui é
diferente.
R: Não. Aqui é mulher e homem também, mas ojo, eles não são mula, eles são os
bagayeros, eles compram a mercadoria e eles mesmo vendem, né? É diferente que
no Paraguai, são pagos praticamente para atravessar a mercadoria, né? Fazem a
função de mula. Hoje, se tu vai aqui, nessa fronteira eu acredito que uma base de
sessenta por cento dela vive de contrabando né? Principalmente Rivera. Sim, e já
não é tanto, porque hoje temos muitos funcionários públicos, é a polícia, é
intendência, ministério de salud pública, e mais seriam professores e assim vai. Eles
têm muita gente involucrada dentro, que véve do contrabando.
A: Tu acha que as pessoas que moram em Rivera é que trabalham mais com isso?
Ou mais afastado?
R: Eu tenho pra te dizer que têm brasileiros trabalhando em contrabando e viajando
pro Uruguai. Tenho comprovado vários, te digo porque tenho viajado nos ônibus e
eles viajam também. Se dedicam ao contrabando porque é a maneira de vida mais
fácil pra eles, o sea, é o trabalho que eles têm. Eles hoje te dizem que estão
284

trabalhando no contrabando, embora sea ilegal, eles tão trabalhando. Em


Livramento também tem uma quantidade trabalhando com ele. É trabalho. Como
também tem do Uruguai, passando os produtos Conaprole, que deve ter visto em
Porto Alegre. Que é o queijo, o iogurte, todas essas coisa.
A: O doce de leite?
R: Então, o doce de leite levado daqui pra lá, como levam lingüiça, como levam
salame, como levam principalmente o queijo duro... Gostam muito, né?
A: É o dobro do preço...
R: Claro, é por isso que eu te digo, que eu acredito que tenha que ter lucrado. Se vai
dentro de uma fronteira assim, 50% vai lucrar. Hoje o cara que põe um comércio
aqui não pensa só em Livramento. Ele pensa que vai vender pra nós. Hoje somos
uma base de duzentos mil habitantes na cidade. Mais o flutuante que nós temos,
que deve ser de trinta mil pessoas diárias.
A: Que vêm pra isso mesmo?
R: Flutuante. São pessoas que vêm no dia e se vão. Mas algumas mantêm o hábito
de regressar.
A: Pois é, a gente vê pelo número de supermercados e postos de gasolina, né?
R: E quando dá uma variação de moeda, por exemplo, de preço, por exemplo, aqui
de repente o aceite tá mais barato, de repente fica mais barato do lado de lá... aí
passam daqui de Livramento pra ir lá comprar, ou vender ou vivem lá, porque varia
de uma cidade à outra, o sea que tu tens o recurso. Se tu quer trabalhar, se tu quer
te movimentar, mesmo sendo em contrabando, tem.
A: E é difícil ter as conexões para fazer a coisa? Se eu resolvo, cansei de ser
professora de geografia e resolvo carregar?
R: E resolve que compra uma roupa aqui e vai embora pra Tacuarembó. Lá tu faz a
tua clientela, vai oferecendo.
A: Mas não vai ter quem diga: “este caminho já é meu!”?
R: Tu resolve que compra uma roupa aqui, deu. Vai embora...
A: Mas não vai ter quem me diga: “não, esse caminho é meu”?
R: Não. Aí vale a lei da oferta e da procura. Se tu tem um preço bom eles vão te
comprar. Tem lucro certo.
A: E tu acha que eles tiram bem assim?
R: Tiram. Pode-se mostrar casos, tem casas que eles vendem só de bagayo, de
contrabando, de bagayo.
A: Contrabando é muito forte?
R: A palavra contrabando é uma palavra muito forte... Bagayo é uma palavra melhor.
É o bagayero que tava vindo aqui.
A: E o negócio formiga é...?
R: É o bagayo...
A: Mas não se usa muito
R: Não. Se usa o bagayo...
285

A: E tu acha que tem 30.000 pessoas vão por dia comprar?


R: Nessa cidade, tem. Tanto comprando como viajando, depositando dinheiro, como
tudo.
A: Tem esse tal de dinheiro que é tradicionalíssimo aqui, né? Isso não dá pra dizer
que seja bagayo, não?
R: Não.
A: É outra história.
R: Não deixa de ser contrabando, né? Sabia que do dinheiro também existe
contrabando?
A: Pois é, eu tava falando com o [diz um nome]. Ele tava contando.
R: O cambista? Tanto que ele fazia cinco mil real na época que era um por um, dólar
e real tavam um por um.
A: E aí, valorizou o real.
R: Então assim... houve um problema, eles eram muitos sócio e então perderam
dinheiro.
A: Pois é, ele tava falando assim, se eu entendi direito, ele disse que, como todo
mundo compra em real do lado de lá e em peso do lado de cá, e no fim do dia não
pode ser assim, o cara tem que destrocar a moeda novamente. No fim do dia ou
durante dia. Aí fica esse negócio de troca e destroca, e troca e destroca. Esse é o
lance?
R: Isso é o câmbio.
A: E tem as casas de câmbio grande que precisam juntar de volta os pesos. Mas por
que que elas compram?
R: Acontece o seguinte... Como é que vou te explicar? Eles começam com um
capital durante o dia, né? E se ele vai fazer de cambista, por exemplo, emprestam
dinheiro pra ele trabalhar. Então ele trocou todo aquele dinheiro, por exemplo, deram
pra ele dez mil reais. Aí ele trocou um pouco a peso, um pouco a dólar, um pouco a
dinheiro argentino, e assim vai, e todo vice-versa. Ele pegou esse dinheiro argentino
e vendeu o dinheiro argentino e deram pra ele em real, só que aí vem um argentino
de lá que lhe sobrou real e quer entrar pra dentro do Uruguai e vende. Assim
começa. É um troca-troca que até marea, que até tu te troca... [risos] E quando
chega no fim do dia, ele tem que pagar pro cara os dez mil reais.
A: Essa hora é um desespero então...
R: Não é um desespero, que tudo o que tu fez, fez consciente no normal, tem que
manejar nos lucros. Digamos que em cada troca tu ganha uma porcentagem de
coima, uma porcentagem.
A: Mas tem câmbio brasileiro?
R: Não, não tem câmbio aqui em Livramento no momento. Tinha ali em frente da
Praça Internacional, o Turim, eu acho que era. Teve um tempo e de repente sumiu.
Eu não sei o que houve, porque dentro dessas casas de câmbio tem lavado de
dinheiro, né?
286

A: Pois é, eu me lembro que muitos anos atrás quando a gente tava fazendo um
trabalho aqui, a gente via casas [de câmbio] na linha, uma do lado da outra. Ainda
tem, será?
R: Tem. Sabem como eles trazem o dinheiro, agora? Dentro do corpo pegado, por
causa do medo de assalto. Deu o causo que houve um acidente ali no posto, em
Curticeras, aquele no qual morreram uns russos, sei lá o que. Um ônibus veio, um
caminhão veio e entrou e pegou eles, morreu cinco. Ai os guris foram e não acharam
nada. Aí chegou na hora de fazer a autópsia, chega o médico forense e tão tirando a
roupa dele e quando vêem o cara tem um cinto aqui e começaram a tirar dinheiro. E
os policiais que estavam de serviço olharam pro doutor e o doutor olhou pra eles. Se
olharam com aquela expressão, como quem diz, “e agora, o que que nós fazemos?”
Que burrice, aquele monte de dólar e ninguém se animou a revistar o homem pelo
caminho, né? É muito bocaberta, mesmo [risos]
R: Tem um causo de um policial que morreu e o policial com o sapato furado, com o
dedo de fora assim e o morto ali com o sapato novo ali, e o policial começou a olhar
e começou a trocar. Trocou um, quando chegou o comissário, ele com o pé dum, um
pé doutro. O comissário olhou e ficou quieto. E ele disse: “Alguma ordem,
comissário?” “Sim, sim, termina de trocar o sapato logo”. [risos]. Tu pode ver que o
contrabando dá dinheiro, tu ganha bem, no comércio. Por exemplo, no causo do seu
Cedro é o comércio. Eles teriam a operação de entregar de vez em quando.
A: Há o negócio do balcão, as venda do balcão. Como é o via balcão?
R: O via balcão é uma exportação, aqui no Brasil é legal.
A: Mas é aqui no Brasil, passou pro Uruguai...
R: Lá é contrabando, aqui é mercadoria, tá legal. Eu, por exemplo, eu faço frete.
A: Mas é um negócio de Livramento, da fronteira?
R: Da fronteira, Quarai, Uruguaiana, Aceguá também tem. Por exemplo, faço frete,
vou lá na [diz o nome de uma empresa], no cara onde faço frete, carrego a
caminhonete, ele me dá a nota e eu passo na Receita. Vou lá na alfândega, a
alfândega confere a nota, confere a mercadoria, tudo certinho, carimba a nota, ficam
com a minha via e me entregam uma via, já têm uma terceira via, aí. Só que aí, no
momento que eu passei pro lado, lá a mercadoria já é contrabando, no Uruguai. Aqui
no Brasil é legal, exportação em reais.
A: Mas aí passa direto pela aduana?
R: Não passa na aduana uruguaia. Não, pois lá é contrabando.
A: Porque a gente tava no Porto Seco da outra vez, aí o cara mostrou pra gente
aquele monte de portão e aí sobe lá atrás e ele disse que lá é a exportação via
balcão.
A: E como é que faz pra não passar pela aduana deles lá?
R: Como faz? Como faz, é... tem óculos escuros aí? [risos] Entendesse? Vai ter que
ver até que ponto não apertam do outro lado. A Alfândega tá sendo omissa em
certos pontos, a mercadoria não vai desaparecer ao passar aquele portão ali, ela
não vai virar fumaça, ela teria que aparece em algum lado.
A: Isso vale tanto pra grande quanto pra pequeno?
287

R: Sim, tanto que uma embalagem que tu compra do via balcão onde diz que é
proibido de vender em território nacional. A venda em território nacional brasileiro,
né? Porque tem a isenção de vários impostos. Uma caixa de Black Stone, sabe o
que é? É um uísque dos mais barato que tem. Hoje tá 34 reais mais ou menos. E
eles ali tão vendendo a 60, 70 reais. Quer dizer que é muito mais que o dobro.
A: Mas aí não tem gente que compra de via balcão e consome no Brasil?
R: Mas até eu passo no Uruguai, vejo uma cervejinha e carrego. Tu vai aqui ao lado
aonde vende refrigerante, bebida, é tudo cerveja Sintra [vendida por via balcão, mas
comprada para revenda no Brasil]. Aqui em Livramento tem vários comércios onde
tu vai encontrar a cerveja Sintra. Porque se tu não vai comprar na via balcão ela é
muito mais cara, então tu ta encontrando dos dois tipos. A forma de vida em
Livramento e Rivera é uma só. Um compra aqui e o outro compra lá. Quando tu vai
nos free shop, eu vou ali com a minha cédula no Uruguai e compro. Eles usam igual
teu nome como brasileira, “Eu vendi para a brasileira fulana de tal”, é bem simples.
A: Então eles aproveitam a tua identidade e usam. A gente vai lá e tem 400 dólares
por mês pra cruzar.
R: É uma taxa pra cruzar a linha, pra cruzar pra fora [fora dos limites da cidade de
Santana do Livramento].
R: Mas acontece que a senhora tem que ter uma nota...
A: Mas se eu tenho a nota...
R: A nota com a quantidade certa, com 300 dólar, a senhora comprou 1200 dólar,
peça quatro notas de 300 dólar então, em três, quatro vezes. Agora estão liberando
mais, o que é muita influência política né? Começa a pressão, se eles trancam a
pressão pela mercadoria do lado uruguaio, o uruguaio tranca a mercadoria do lado
brasileiro.
R: O supermercado também, a gente que vem comprar, eles compram no mercado,
eles buscam um preço, e aí começa aquela gente pra lá e pra cá, buscando
mercadoria todos os dias.
A: Tem época que é mais e época que é menos? A coisa do câmbio, né? Depois
tem época do mês quando as pessoas têm mais dinheiro?
R: Tem, por exemplo, os pensionistas, no Uruguai, depois de 65 anos, tu ganha uma
pensão de duzentos e picos reais e essa gente é que vem comprar na fronteira
A: E é no fim do mês que eles ganham?
R: Seria lá mais ou menos por 11, 12, 13, esses dias, geralmente quem compra
muita bobagem é o velho, o novo gasta quinhentos contos, normal. Eles acham as
coisas mais caras.
A: Toca no calo... [risos]
R: Mas na época que eles vinham, era a época de ouro, era fácil de fazer dinheiro.
Cedro: Dinheiro que nem água se ganhava há trinta anos atrás. Vai fazer 36 pra 37
anos. Eu cheguei em outubro de 69.
R: Eles vendiam não sei quanto de banana por dia.
A: A história é a banana?
288

C: Não. Banana, abacaxi, abóbora, tudo.


A: Mas o que dava dinheiro?
C: No abacaxi a gente ganhava bem, mas a banana era o carro-chefe, podíamos
comprar um caminhão só de banana por dia e vendíamos todo ele. No começo, eu
mandava vir. Depois no final eu comprei, e o caminhão trazia.
A: De onde que vinha a banana?
C: Eu comecei com a banana de Torres, passei a buscar banana em São Paulo,
depois eu passei a buscar em Santa Catarina, porque a de Torres é muito ruim. O
mercado em Santa Catarina começou a produzir melhor que São Paulo. Aí
passamos a comprar em Santa Catarina. Hoje Santa Catarina é um dos maiores
produtores de banana do Brasil. Eu levava arroz, o básico era o arroz. Pra
Paranaguá, pra Santos, Santo André em São Paulo. Quando leva para Santos é
uma mercadoria de exportação, já quando ia para Santo André de uma cidade para
outra, era um translado, de mercadoria, de embalagem pro porto, já era mercadoria
de transportação. E quando ia pra Santos, era de mercadoria de comércio
embalagem, tudo é descarregado.
A: Um senhor contou uma história da Arisco do Paraná. Diz que eles vendiam alho
argentino made in Brazil. É?
C: Sim, eu já vi ouvi essa conversa do alho made in Brazil, eles vêm de outro país,
da Argentina, mas aonde entrar no Brasil é ilegal.
R: Aqui tivemos muito tomate, né?, a maçã, todos produtos... Por exemplo, no caso
a argentina tava melhor, ela entrava pro Brasil, mas do Brasil, ia pro Uruguai ou vice-
versa. Entrava como a cebola hoje. Nessa época aqui sabe o que que se leva muito
do Brasil? A laranja.
A: A laranja do Uruguai?
R: Levavam no meio das caixas. Por exemplo, vai a caixa fechada com plástico de
verdura ou de banana, no meio vai cheio de laranja que é pra suco. Que é laranja de
suco que tem muito no Uruguai. E é muito mais barata. E tão levando muito
A: Passando por onde?
R: Ih, eles vão estrada adentro, como não revisam, até que um dia, podem revisar.
C: Vários caíram.
R: Vários caíram.
A: É, de vez em quando alguém vai, né?
C: De vez em quando um vai.
R: De dez pode cair dois, mas eles levam muita laranja, né?
A: Aí os caras vão pela avenida principal e desviam na hora de passar a fronteira,
vão tudo por vecinal?
R: Não. Aqui as casas trabalham na linha mesmo.
A: A gente passou ali mais pra baixo, tem uma casa cheia de abóbora.
R: Passa abóboras pra lá, passa o que tiver.
289

C: Todo o comércio na fronteira é com isso? São duas cidades, um só povo. Porque
tem um comércio aqui e trabalha com o Uruguai, tem um comércio no Uruguai e
trabalha com os brasileiros.
A: A fronteira... Em vez dela afastar, ela propicia um monte de coisa né?
R: Ela propicia sim, a união.
A: E a oportunidade de ganhar pra todo mundo não, né?
R: Hoje pode de que a coisa tá tão forte, que os colégios dentro de Livramento tão
ensinando o espanhol. E o português no lado uruguaio, então tu vê que abriu campo
pra todo lado.
C: Até no esporte. Nós temos uma sociedade em Livramento tem uma cancha de
bocha que é afiliada da federação uruguaia de bocha. Nós saímos por todo o
Uruguai a jogar bocha. Nós jogamos o campeonato em Punta del Este, Minas, em
Lavalleja, disputamos junto em Rio Negro, em Salto, Paysandu, Mercedes, toda
essa região, por isso é que nós chamamos assim, duas cidades e um só povo. É
como é.
D: Foi o selecionado de Rivera jogar em Brasília.
C: É uma integração.
D: E ele foi também.
C: Eu fui pela liga de Rivera. Fui da liga de Rivera e fui convocado depois.
A: Pela liga de Rivera, é? Jogou por Rivera?
C: Joguei por Rivera. Seleção de veteranos do Uruguai. Mas aí foi só por um jogo.
290

EXCURSÃO FOTOGRÁFICA: ROBLES

Data: 25 de janeiro de 2006.


Lugar: Santana do Livramento-Rivera, por lugares do comércio fronteiriço, barracas
de couro e depósitos de contrabando.
Presentes: Adriana Dorfman, Daniel Francisco de Bem, Robles e Magnolia.
Idioma: Português e Portuñol.

R: Por outro lado ainda fazem bastante, porque deixa de entrar um monte de
dinheiro de imposto do estado. Pra quem entra esse dinheiro? Pra quem entra esse
dinheiro se a maioria não tem emprego. Entendeu? Não adianta terminar com
contrabando, tu tem que ter emprego. Pra dar um emprego tu tem que montar o
que? Fábricas.
A: Mas tirar dinheiro de onde pra montar fábrica, né? Fábricas que queiram investir...
R: Não tem ninguém, ninguém investe aqui. Tudo que se investe é com interesse
político. A Zona Franca é só de interesse político, os free shop é uma coisa política,
pra que? Pra gerar emprego supostamente, mas não é pra gerar emprego, é pra
abrir posto [de trabalho] pra gente que tenha capital pra investir. Tem gente
manejando os interesses políticos, né? Tu não pode dar emprego público pra ele,
né? Pois então vamos dar um espaço pra ti abrir um free shop. E lá os cara iam abrir
um free shop...

FIGURA 40: Rivera: foto do interior do free shop Siñeriz, Av. Sarandí - 2007.
Fonte: Foto de Daniel F. de Bem.
291

A: E é verdade que o Sineriz é do mesmo cara do...


R: Do 300... que tem o cara desaparecido... que tão involucrado no assunto do Curi.
É onde está involucrado o delegado [diz um nome] toda essa gente... isso mesmo...

FIGURA 41: Santana do Livramento: foto do Supermercado 300, Av. Tamandaré


– 2005.
Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

A: E diz que tem um bairro chiquérrimo aí, né?


R: Tem o Jardim Atenas, onde ele tem umas mansões.
A: Aqui em Rivera?
R: Não em Livramento.
A: E tu ia falar, lá na casa de vocês, tu começou a dizer assim: “esse trabalho que tu
quer fazer é muito grande...”
R: Ele é muito complexo, abrange muita coisa.
A: Por exemplo?
R: Ele abrange muito. É droga, é arma, é gado, é ovelha, é lã, é mercadoria
comestível, é roupa, é ouro, é tudo e um monte de coisa. Contrabando se baseia em
muita coisa, não é só isso.
A: E muita gente né?
R: Até materiais de obra.
A: Ah! Então me conta uma história de contrabando, umas dessas... Já contaram, é
a mais velha de todas, a da lambreta, né? Tu sabe outras?
292

R: Não é piada, é a realidade. Os caras fazem coisa que tu nem imagina.


Contrabando até de ovelha. Tu imagina que o cara, faz pouco tempo, ele roubou as
ovelhas e passou pro Brasil. Aqui é uma barraca de couro...

FIGURA 42: Rivera: foto de barraca de couro I – 2005.


Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

A: Posso tirar?
R: Pode tirar sim. Tira aqui, justo aqui. Eu me lembro do contrabando de corpo.
A: De corpo de gente?
R: Foi o causo de gente morta, de um cara que morreu e queriam enterrar. Os
parentes queriam enterrar em Santana,
Santana, porque ele era brasileiro, né? Acontece que
não podia passar o corpo pro Brasil. Oficialmente não havia corpo. Então, o que
fizeram com o cara? Agarraram e disseram “bom, então vamos fazer o seguinte:
bota ele dentro do carro”. O cara dentro do carro sentado,
sentado, aí onde ele ta, com a mão
abanando assim, ó, a mão assim parada, assim passaram o corpo, contrabandeado.
Hoje é diferente, ali é uma sala velatória, tu vela ali e leva pra Santana bem
tranqüilo. Não tem problema nenhum. E isso do corpo era bem verdade, o cara
vinha com a mão abanando assim ó, bem durinho como uma lechuza [coruja].
A: São coisas da fronteira...
R: São coisas da fronteira. Tem muitas coisas que tu tem que conversar com muita
gente. Tu te mata de ri, dava pra fazer um livro de fronteira.
A: Da fronteira da paz.
R: Aqui tinha, Por exemplo, aqui temos um galpón muito grande. O Olivo
contrabandeava num galaxi, num V8. Mas vai tu pegar na estrada! Era uma correria
bárbara, que pegar aquele V8 dentro de um caminhão não havia quem agarrasse.
A: Não dava pra provar que era ele?
R: E era correria grande.
293

FIGURA 43: Rivera: foto de barraca de couro II – 2005.


Fonte Adriana Dorfman

A: Aqui é Rivera, né?


R: Aqui nós estamos no centro, a parte baixando do centro. O Rivera Chico, aquele
dia do ônibus tu passasse por ele, né? Uma parte.
A: Pois é.
R: O teu trabalho é grande. Pra ti poder colher um monte de coisa tinha que ser em
vários dias mesmo.
A: Depois eu te mostro. Bom, aqui a gente veio comer a sobremesa.
R: Qual? É o postre RiveLi? Essa verdura
verdura aí tudo é brasileira, a maioria das verdura
aí é brasileira. Aquele o pimentão amarelo, pepino claro brasileiro.
A: Alguma coisa é daqui também?
R: Sim, claro, tem alguma coisa que é daqui. Este cara é da época, ele
contrabandeava dólar. Os caras davam
davam dinheiro pra ele levar pra São Paulo. Pra ele
chegar lá e dar pros caras. Os caras de lá davam dinheiro, moeda nacional, né? Os
caras compravam dólar, então tinha os que levavam o dólar pra lá.
A: E o outro cara aquele da [empresa de ônibus] também tem uma história de
gasolina, né?
R: De contrabando de diesel, tem o cara da [empresa de ônibus] e o cara que tem o
posto de gasolina, que é o [diz um nome] que contrabandeava diesel e gasolina.
Tem o do [outra empresa de ônibus] esse que tava botando diesel no lado brasileiro,
tava botando o diesel de lá, trazia o diesel de lá, enche nos tanques e bota lá. Aqui
tamos no Rivera Chico. Então, numa dessa, o [diz o nome], que é o dono da [uma
terceira empresa de ônibus], ele agarra e fica com o dinheiro dos caras.
294

FIGURA 44: Rivera: foto da feira dominical em frente ao Club Social y


Deportivo Frontera Rivera Chico, na Av. 1825 – 2007.
Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

A: Aí não deu?
R: Não devolveu, claro, né? Ele era o que levava o dinheiro, aí ele deu o golpe.
A: Mas aí os caras não foram atrás dele?
R: Claro, mas tu consegue, contrata, com o dinheiro, os leão-de-chácara que te
protejam e acabou teu problema. Ele chegou a matar um cara em São Paulo. Aí ele
tinha uma empresa, fez dinheiro, ele deu outro golpe lá e se veio pra cá.
A: Mas tu acha que aqui no fim fica perigoso, esse troço de mata pra cá, mata pra
lá? Quero dizer, assim, por exemplo, tu como polícia?
R: Aqui tem outra barraca de couro...
A: Quero tirar uma foto... Tu preferia trabalhar noutro lugar que
que não fosse esse aqui?
R: Não, tem uns lugares piores que aqui. Aqui nós ainda respeitamos os valores das
pessoas, entendesse? Ainda hay um certo pudor, ainda não é escancarado. Tu fica
na tua, fica quieto e deixa que eles tussam entende? Não te mete com nada e
pronto, essa é a lei, deixa quieto que eles, vai chegar um momento que eles caem,
como agora que tão tudo à deriva, né? Tudo com medo, porque o que acontece, os
caras tão buscando a sonegação de impostos, um monte de coisa... então o que
passa, según dizem hay os famosos caça-recompensa, então...
A: A recompensa de quem?
295

FIGURA 45: Rivera: foto da descarga numa barraca de couro – 2005


Fonte: Foto de Adriana Dorfman

R: São os caça-recompensa que tão tratando de recuperar a fronteira, eles


investigam tudo, quem é que sonega imposto e todas as coisas, contrabando disso e
daquilo, então eles vão e apresentam pro governo. O governo vai e manda o grupo
especial. Lá eles vêm e recuperam tudo. E aí o que acontece? Se eles recuperam
600 mil dólares, vamos dizer que os caça-recompensa têm direito a 20% desse 600
mil dólar, são 120 mil dólar. Segundo dizem, tão buscando até os donos da casa
300, da casa Siñeriz. E não acharam eles até agora, eles tão escondido aí.
A: Mas até o momento não tem nada ligando eles à história assim...
R: Tem sim, tem, acontece que tudo é uma investigação, né? Acontece que pra nós
tudo é sigiloso. Quando vê, a coisa arrebenta.
A: E essa história desse crime aí, de repente, por um tempo ela dá uma esfriada, no
contrabando mais pesado assim...
R: Pode ser. Enquanto eles tão aqui. Porque, segundo se comenta, todo mundo diz,
enquanto eles tão aqui, lá no porto de Montevidéu tá passando contrabando que tu
nem imagina, tu me entendesse, nos containers. Nos próprios containers mesmo, tu
não vê nada, tu não sabe nem o que eles estão trazendo. Enquanto eles vêm pra cá,
lá tá passando horrores de coisas. É o verdadeiro despiste aquele: “tchê fulano”, o
fulano vende droga, né? Aí diz, “tchê fulano, vamos te dar uma batida”. Aí o fulano
diz: “me dá a batida, porque assim limpa a área”. Então que acontece, tu vai e dá a
batida no fulano, o fulano vai e tu não acha nada. Aí no outro dia, o fulano tá
vendendo e tu diz: “Vamos dar uma batida. Não, se nós demos uma batida”. E o juiz
vai e diz: “Não, vocês já deram batida e não tinha nada”. Tu entendesse? Então tu
limpou a área. Aqui hoje é uma barraca de couro que foi fechada, flagrantíssimo, o
cara se matou [diz um nome] três, quatro galpón aí, mas era uma potência bárbara,
aí todo.
296

FIGURA 46: Rivera: foto de galpão – 2005


Fonte: Foto de Daniel F. de Bem.

A: Era muito grande?


R: Não, era grandíssimo, o cara dava dinheiro para um povo da polícia urbana, mas
movimentava um capital grandíssimo, grandíssimo, grandíssimo mesmo. Agora nós
vamos ver um aí, é o Olivo, mas eu acho que aí, não sei se vai dar pra sacar foto. Tu
prepara a máquina, que esses cara tão meio arisco, porque como anda a
inteligência aí.
A: Deixa que depois a gente passa aí de dia e tira.
R: Tá, aí nós viemos aqui então...
A: Quanta gente aí...
R: Sim, mas aqui é o bairro Sacrifício de Sônia. Tu já viu, isso aqui é uma pobreza
enorme que bá! Faz um filtro, não sobra muito. Eu vou fazer a volta sobre o galpão e
a casa do Olivo, uma das tantas casas e galpões que ele tem, aí tu vai ver, o quanto
envolve de dinheiro aí... Aqui ó... desse prédio aqui... olha até onde vai...
A: Mas aí como é que ele diz o que ele faz aí?
R: Pra ti ver, ele tem uma empresa de couro, de lã e agora ele botou um negócio de
madeira aí, mas tudo é contrabando, é tudo de fora. É como tu diz, como tu explica
lá em casa como eu fiz isso? E o que o governo faz que não se dá conta disso?
A: Que não vê...
R: E se eu vou pegar, se eu cometo um delito de roubar um sapatinho ou uma
chinela de dedo ou um pirulito pra poder
poder levar pro meu filho, eles me encaixam
preso, olha tudo aí, ó, a fortaleza dele. Isso aqui tu sobe lá em cima e tira foto, olha
toda a fortaleza dele. Diz que outro dia tinha dois caras da inteligência jogando
futebol, uma mulher disse, aqui nesse campinho,
campinho, ó, controlando ele. Agora vou te
mostrar o outro galpão que ele fez, em menos de um ano, ele fez toda essa obra...
A: Bem, aí dá vontade fazer também, né?
297

FIGURA 47: Rivera: foto do galpão de Olivo com vista do bairro Sacrifício de
Sônia – 2005.
Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

R: Aí tu me pergunta qual é o lado certo? Aí tu te pergunta por que tão pertinho


assim um do outro, essas obras, mas só que uma obra é do lado uruguaio e outra é
do lado brasilero. Por que nesse beco aqui? Supostamente porque aqui não hay um
controle tanto da polícia, fica mais longe pra chegar, uma coisa e outra, quando se
movimenta, a polícia de lá vem e avisa eles: “olha aqui, temo indo”... Entendesse?
Então, com aquela caminhoneta vermelha que tu vê ali... eles fazem todo o tempo a
campana, o seu batedor... vem um caminhão dele, ele vem na frente e controla... aí
por rádio ele avisa.
A: E tipo, e a história do couro e da lã nunca acaba?
R: Nunca morreu.
A: Já tamo no Brasil.
R: Ali tá o marco ó, aqui ó, aqui na frente dele tá o Olivo, olha só essa fortaleza aí.
Ele foi que mandou integrar e fazer um monte de coisa aí. Agora tem uma coisa, né?
Eles dão vida pra pobreza. O casario ao lado daquele galpão lá de baixo, ele botou
água só pro pobrerio usar a água dele. Tiver que ajudar um, ele ajuda, dentro da
própria polícia, dentro da comisaría essa de cá, ele ajuda a pagar água e luz pros
milico, entende?, veio um aí, disse que tamo com tal problema lá, então tá, hay um
dinheiro por mês que eles dão, tu entende, pra aduana, pra polícia...
A: É um poder paralelo.
R: É um poder paralelo, pra poder trabalhar, ele investe dinheiro também, entende?
A: Pra ter a tranqüilidade dele?
R: É como eu tô te dizendo, vai um ônibus daqui até Tacuarembó, os caras, esses
bagayeros juntam cada um um pouco de dinheiro pra dá pro aduanero...
R: Te mostro outro galpão do Olivo...
A: Outro?
R: Aí no fundo, aí, ó. Aqui nessa entrada. Aí tão os outros galpão dele.
A: Tudo é desse cara aí?
298

R: É, tudo desse cara... Quer que te mostre outros?


A: Dele também?
R: Dele também...

FIGURA 48: Santana do Livramento: foto da casa e galpão de Olivo com marco
de fronteira – 2005.
Fonte: Foto de Adriana Dorfman.

A: Esse é o cara aqui?


R: Esse é um dos mais grande aqui... Ele começou com uma bicicleta. O nome dele
não é Olivo, quer saber por que se chama Olivo? Ele começou trabalhando na
bicicleta [diz uma marca de bicicleta].
A: O que é [tal nome]?
R: Pra solda, aí saiu o nome de Olivo, e ele tem a 1ª bicicleta dele.
A: O cara é tipo um Tio Patinhas.
R: Isso! Ele tem ela no depósito dele ali. Pra ti ver, é uma história...
A: É uma história e meia...
R: Já outra vez nós comentamos quem era o Olivo, e depois tem outros caras que
contrabandearam com o Olivo também, e outras coisas, que andavam com ele de
caminhonete, de carro V8.
A: Ah! esse aí é o do V8?
R: Do V8. Já teve preso várias vezes por contrabando mas...
A: Fica um pouquinho e sai...
R: Aqui ó, aqui tá o outro galpão. Esse é o outro galpão...
A: Esse é mais antigo um pouquinho...
R: Hã? Esse é um dos primeiros galpão dele. Teve outros, lá pra baixo tem outros
pequeninhos ali...
A: Hein, me diz uma coisa, a justiça também tá na mesma história da fronteira?
299

R: Ah, existe corrupção também, existe poder político, existe um monte de coisas.
A: E, por exemplo, o Prefeito pra se eleger, não to dizendo este especificamente,
mas o cara nessa cidade, tem que saber se manejar pra conseguir seus votos...
R: Eu vou te explicar assim ó, o Prefeito é bem assim ó, esse cara aqui, que fez a
casa aqui, tem comércio, mas tem o contrabando no meio. Hoje, pra ti fazer uma
casa dessas não é fácil, este sim já fez uma casa aí e é um aposentado militar, fez
essa casa porque tirou na loteria, e assim vai. Este, esta casa aqui neste prédio foi
feito com o dinheiro do contrabando com verduras. Aqui ó, o cara veio e botou um
negócio de verdura aqui, que não paga imposto, tá trabalhando, não paga frete, não
paga nada, e aqui passa mercadoria pra lá, passa mercadoria pra cá, aqui seria bom
tu vir durante o dia e tirar foto. Vem ver o movimento.
A: Aqui a gente tá...
R: No Uruguai... no Uruguai, na linha divisória...
A: Na linda divisória, mas a gente tá, por exemplo...
R: No lado uruguaio.
A: Tá, mais ou menos em que?
R: Ali naquela rua já é Brasil.
R: Aqui é outra distribuidora de verdura, esse também entregava bananas, mas
depois a banana passou a ser via exportação direta. O caminhão leva direto.
R: E o primeiro na banana quem foi aqui foi o seu Cedro. Agora ele ensinou os
outros.
A: Claro... esse cara é poderoso...
R: Não é, é que o cara era muito bom, diziam assim ó: “me vende uma caixa de
banana fiado”, ele te vendia, mas depois tu não pagava ele.
A: Pelo menos, ele tava numa boa, né?
300

APÊNDICE D: TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA: NOGAL

Data: 19 de julho de 2007


Lugar: Rivera, na sala de jantar do entrevistado
Presentes: Adriana Dorfman, Daniel F. de Bem, Robles, Magnolia, Nogal, sua
mulher Violeta e a filha do entrevistado.
Idioma: Português e Portuñol

Robles: ¿Nogal donde estas?


Adriana: Vamo entrar aqui. [...]
A: Eu estou fazendo um trabalho
R: de faculdade
A: ...lá em Florianópolis sobre a fronteira. E a fronteira tem essa coisa. de bá, muitas
formas diferentes de se pensar, mas tem esse jeito específico de ver. Como essas
coisas se negociam em cima da fronteira,...o contrabando. Quem vive na fronteira
mesmo, como é que se maneja com esse negócio que não foram elas que
inventaram? E...
Nogal: Contrabando quem faz é o grande. O trabalhador este... contrabandeia pa’
comer. O contrabando grande es, vamos dizer, aqui em Rivera, são os comando da
jefatura, são os políticos... Um dia quando eu venho da Globo aí no Brasil, onde tem
os barracos lá... O flaco aquele, o Fontoura que havia vendido um precio coerente
para um brasileiro. Um deputado, senador de vocês, vão ao Paraguai e trazem
inclusive AR-15 em avião. E se conhece, é certo, não é? Que dizer que...
A: Sim, é a gente até tava falando, desculpe lhe interromper, a gente tava falando
agora pouco e tava pensando assim. Tá, todo mundo sabe que tem esse graaande e
enoooorme contrabando que vem da China e que vai para São Paulo...
N: Sim tudo isso, agora, claro, o que passa é que, mas como disseram eles: agora
com a modernização do mundo, agora tudo é por computadora e por cosas, já não é
como antes, que o aduaneiro abria, e via, o coimeava, agora não, vem o container e
se não tem aquilo para escanear não sabe o que vem...
R: Coimear é arrumar...
N: Eu cansei de pegar contrabando grande e entregar-lhe, tudo uma máfia. Grandes
capitais brasileiros, com os capital daqui e vai uma coisa e ...
Daniel: Contrabando de que tipo?
N: Ah, de lão, de de de... vem de tudo um pouco, né?
R: Couro
N: Couro, furto o país que diz, e mais um montón de uruguaio vai e compra dos
pobre brasileiro, essa gente que tem, que passa dois, três anos sem dizer não, que
são meio assim, mete esses cheques frios, trazem a lão. Isso até os dias de
hoje...não pagam, e apoiados pelos polícias daqui...
301

R: Calote...
N: É, pelos policía brasileiro, e os daqui.
A: depois que o cara já levou
N: Claro, no caso do Brasil tem lei, né? No Brasil, por exemplo. Eu vou cerca, esse
problema da zona franca do cara aí. Caíram poucos, né, o [diz um nome], que é um
dos maior traficante de drogas que tem aqui neste Rivera e cosa, e ele tá no Brasil e
teve até o dia que se casou a filha e tinha até os PM de custódia dele, né? Porque
não prendem esse senhor, diz que tem doble cidadania, mas não tem, ele só tem
essa cosa fría, que fazem, como é que dizem?
R: de estrangeiro
N:que não é o turista, esse... Então dizem os brasileiro que se o tipo [é] brasileiro
pode ser extraditado para cá. Mas isso foi um contrabando millonário. La famosa
zona franca, que caíram vários comissários: o comissário de Melo, o Chico, o nego
Padilla...
R: Cairam como nove complicado, além de vários empresários grandes.
A: E eles estavam contrabandeando o que na zona franca?
N: De tudo um pouco
R: De tudo, cigarro,
N: cigarro, whisky,
R: eletrônicos, tudo, tudo...
N: eletrônicos
R: Que a zona franca é por donde pasa tudo para os freeshops, não é?
N: É.
A: E como é que descobriram?
N: Bueno! Ai, este, foi problema de dois políticos. Veio o Battle que não gostava do
Sanguinetti, que é o dono da máfia, que foi presidente e então agarrou a inteligência
e fez rastrear ele e ... Não podia prender porque, eu prendia um caminhão e
mandavam largar. Depois diz que esse, como é?, medio de vida de la frontera, um
caminhão container desses truck, que dizem...
A: Meio de vida...
N: Tu passa com dois bolsos em Manuel Díaz e te sacam. [dizendo para o Robles?]
Tu prendiste aquela mulher, que tinha ali, como é? [...] Que agarrei um caminhão
brasileiro, com um truck como é...cheio de papel higiêncio, canha, cerveja brasileira,
tudo brasileiro. E ela: - vamos arrumar dindo? - Eu não arrumo. Meu precio é muy
caro! E eu por menos de 1 milhão, 2, de dólares nunca vou arrumar. [para nós]
Pagar né? Então ela se achicô... E aí veio um aduaneiro corrupto e disse: - Mire,
usted se olvidó del permiso ayer en la aduana.
A: Ah!!
N: Tudo arrumado! Arrumado.
D: Ah!!
302

N: E eu entreguei o tal no GRI [Grupo Resposta Imediata, um tipo de BOPE].


Sábado [...] a federal estava perseguindo eles por coima. E o tipo disparou na
caminhonete e eu andava no bar tomando uma canha, fui fazer uma citação e ouvi
pelo walkie-talkie que havia um seqüestro aqui na linha [nome das ruas], um homem
com escopeta 12, era a Federal que havia prendido, a caminhonete entrou para o
Uruguai e seqüestraram o chofer e levaram, queriam entregar e eu não deixei eles
entrar. Depois veio o [diz dois nomes] e arrumaram para [...], [Ficou assim?,
perguntou Daniel.] Ficou assim [...] Eu disse para ela que esse contrabando é do
negro [diz um nome], da chefatura, e, do fiscal da justiça, [diz um nome], eles é que
vão entregar. A el Solano no pude cuidar [...] não recibem [...], Isso é uma coisa que
sigue. Cambia de presidente, mas sigue a corrupción. Aqui tempos policia, [diz um
nome] aquele homem, está fazendo uma casa em Santana de 200 mil dólares,
ganhando 6 mil pesos por mês, vai fazer uma casa de 200 mil dólares e tem não sei
quantos autos e um montón de cosas. E [...] o famoso, Tomé, vocês conhecem o
finado Tomé que vendia ouro para o Brasil? O 3 em 1 que dizem, porque botava
gente nesse lugar, como é que llamam?, [...] cavalo e gastando um dinheirão
entonces e pega um vai ali e o que passa que eu vou para o Uruguai e 1 milhão de
cruzados, acho que era isso naquela época, e me dão 4, aí entravam e falavam com
o velho seu Tomé Pereira e o negócio é assim meu filho e trocava dinheiro
falsificado por dinheiro limpo nos câmbios. E mais de um mês para apreender o
dinheiro, quando vi já estavam prendendo na Alemanha o avião que trazia o papel.
Vinha entre dois meses, porque tu vinha de volta. Ai esse caía os companheiros. Aí
estavam fazendo negócio e caía policia, policia,na tua frente [...] Diziam, eu sou de
Porto Alegre e tô aqui e só que caí em uma cárcel daqui, longe da família de vocês.
E o tipo que faz? Dão uns pesos, agradecem e se vai [explicam mais alguma coisa
sobre o famoso três em 1]
S: Acho que tu não era milico todavia quando mataram um delegado de São Paulo,
né? Que vendeu oro para a máfia e a metade da barra de oro era plomo com pó de
ouro e vieram matar o velho aqui. E aqui se baleou um deles chegou um deles e
disse que veio limpar o velho...
R: Conta para eles a vez que tu, que vocês se enfiaram no oro, conta...
N: Chamaram um companheiro da quinze e o [diz um nome] quis roubar do velinho e
se assustou ao abrir uma dessas caixas fortes velhas, meteu a unha, abriu! E diz
assim né: esse homem não sabe nada, tá assustado, diz que nunca havia visto tanto
ouro na vida dele, fazer o procedimento, ...se presentou lá e eu disse, eu vou, e eu
ia ir com outros, o velho [diz um nome], pero foi o alcagüete do fulano, [diz um
nome], aí eu chego lá, no que olho assim – tudo máfia né? –, aqui tá a minha
oportunidade, não vou roubar de ninguém vou [...]. Abri a – eu botei casaco, o outro
disse: tinha que levar o casaco? Sim, tá fresquinho, vou levar o casaco. – Abri com a
mão, para ficar assim e agarrei o cartão e disse: Che [diz um nome], vai com o [diz
um nome] na outra caixa-forte e faz como eu que vou sacar tudo que tem aqui e vou
anotar todas essas barras de ouro. Tinha barra de ouro chilena, paraguaia, pero
tudo numerada e comprada ao dia, né? Então que não era [não era frio, diz o Daniel]
[ele concorda]... E o velho e o outro companheiro disse: Não, tu vai roubar algo aí . E
o fulano disse: não me toque num...Que tinha de fazer? Não podia matar o
companheiro e outro para levar o dinheiro, então eu fiquei [...], é dessa coisas que
se dão, todo mundo coimeado e [...]. Comissário tudo coimeado, quis trabalhar com
ele [...] ofereceu trabalho e ele não quis. [...]
303

R: Esse é o causo de uns companheiros que encontraram uns oro, prenderam um


oros e [...]
N: O cabo – diz um nome – que também foi coimeado com o dinheiro não sei do
que que ele perdeu. Era o cabo e qual outro? E esse é o oro que vem, que os
presidentes contrabandeiam. Porque no Brasil eu acho que o ouro em barra já pode
passar, né? Com numeral o algo assim eu sei que não pode passar, eu acho que
dizem o em pó o algo assim, isso é tudo entre Estados, que contrabandeiam o oro.
R: Conta pra eles como foi a história.
N: [...] a investigação ...foi menos que zero e prenderam. O tipo faltando dez por
cento do oro que estava autorizado a faltar, se prendesse né. E ele não quis, pois
pensava que ia ficar com todo o ouro, que se prendia ficava com todo. E veio oro lá
da presidência do lado de lá, e ouro não é contrabando, né? É contrabando quando
sai do país. [Roubado pra dentro não tem problema, disse Adriana... E entrando é
melhor ainda]. Pode entrar todo o oro, que passa que quando ele saí, ele paga
imposto. A lão brasileira, por exemplo, os tipos comprar a lão brasileira aqui,
milhares e iludem o fisco brasileiro. Eles têm ali aquela guia, como é?, são três guias
que dizem que usam, os barraqueiros ali, não é?, os benditos iam nas barracas
acertar as guias e aí chega e é tudo frio. Tem barraca que está fechada, mas ficam
os expedientes tudo [...] as notas vencidas, fria e falida. Vem aqui pro Uruguai não
paga imposto de contrabando tampoco, mas que passa, quando o homem vai
vender a lão ela é de tal imposto e quanto não, ganha essa lão. Isso é o
contrabando, o mesmo com a vaca que vem do Brasil. Por que se a vaca está mais
barata no Brasil, se vai lá e se compra. [...] esses problemas de aftose, siguem as
vacas que sabem que vacas são brasileiras. [Rastreamento, eles marcam, disse
Adriana]. Descobrem se não é daqui. [aqui eles marcam uma por uma, disse
Adriana]. Há, aqui sim, desde de os tempos da ditadura, né? Se na ditadura tinha
tipo que tinha mil vacas, morria uma, ele tinha de sacar o couro e dar conta na
comisaría e levar a oreia, a marca da vaca, quando ele vendia o couro tinha de ser a
mesma marca, né? Quem fez o dinheiro foi o [diz um nome], ele vendia pelo Brasil,
por ai, coisa de duzentas, trezentas vacas, [...] dava o couro. Quer dizer que ele...
negócio, né? Pero... devia ser três, quatro quadras. [risos]
R: Eu contei pra eles na forma do charge, a história claro não deixa de ser cômica,
comiquíssima, ela não deixa de ser cômica, mesmo eu tendo vivido ela. Claro,
depois de passado. Porque ele me convida pra ir [y usted no quiseste, diz Nogal], yo
no quis ir.
N: E pega um outro companheiro, que saca do medicinal. E diz: eu vou consultar
com meu santo, e foi. Que te disse o santo? Que não dá pra fazer o fulano, fui lá e
falei com o santo e ele disse que não dá pra fazer. E eu se tivesse manejado tava
cheio de dinheiro, mas como eu não sabia manejar. Pedi pra ele um auto e uma 12,
ele trouxe a chave do auto, um monza duas portas, uma 12 com dois canos, maneja
o senhor e fazemos o trabalho, e ninguém vai se dediar e eu cobro o meu. [Ia
seqüestrar ele porquê?, pergunta Adriana] É um bandido, um traficante de drogas.
Havia muitos que tinham medo dele, era um famoso [...]
R: O tipo foi assaltar o mercado [diz um nome], e o no assalto ele deu um tiro no
dono, o cara esse, o nanico, [...], ele é presidente da maçonaria.
N: Como tu sabes? [risos]
304

R: É um tipo de coração. [...], todos eles são bons [Nogal ratifica], são muito bons,
bons de ajudar a gente, se são fiel à eles, eles são muito fiéis.
N: Eu não fui levantar dinheiro com [diz um nome] porque ele quis me pagar. Se o
trabalho não deu, eu não cobro. Porque ele queria que eu levasse o tipo para o
delegado, aquele outro delinqüente, qual o nome dele?, [diz um nome] outro
bandido, mais bandido que os bandidos, leva esse barbado para aí, que o [repete o
nome] vai com o caminhão lá e vai largar [...]. Se não agarro ele [...] fazemo o
serviço pro fulano e pedirle 600 mil pesos, até é barato, né? Pero consegui com este
guri o [diz um nome] ,[...], Vamo [...] o cara chegava as sete nas casas, e das sete e
cinco a sete e cuarto, ele ficava com a mulher olhando as casas numa espécie de
uma ventana e aí ia no bolicho comprar e na mitad da vereda da calle havia um
brasileiro e uma rua e ainda por cima não tinha luz. Eu agarrei ele e levei por uma
gravatinha assim e ele quis arrumar e eu disse não arrumo. Pero que passa?, o auto
não arrancava e o Soares, apertado, sai cortando e não sabe o que fazer. E eu
agarrado atrás dele, numa camperinha de couro. E guardei o revólver e digo vou
empurrar o auto e quando vejo fico só com a campeira dele. E a mulher dele
empezou a gritar e se prenderam as luzes. Um montón de [...], eu não vou me
incomodar com os companheiros, e arranquemos o auto e passamos e havia um
patrulheiro lá,..., e se salvou...e ele veio duas vezes aqui já. E eu saí as 6 da manhã
pra fazer hora extra e ele vinha lá e eu ataquei ele. E não sei o que [era covarde,
disse o Daniel], depois o via e dava as costas até. Tipo basureiro.
R: Depois ele viajou para Artigas, né?
N: Mataram ele, é que viviam perseguido ele e ele foi falar por celular e bateu numa
cerca de pedra e se rebentou...
R: A gente chegou lá tinha um tiro.
N: Os milicos tinham enfiado ferro nele. Eles vieram de Artigas fazendo uma patrulha
pra perseguir gás, né? E garraram acidente, que ficou o ferro cravado, assim.
R: Qual era a ordem de vocês em Masoller? Quando foram pra lá, não porque
foram? Qual era o cometido? Não era contrabando?
N: Mas bagayo de que, um tanque de gás, dois? Que levava a caminhonete nossa
pra levar os infeliz esses. E quando prendi um brasileiro, que tem uma barragem,
qual é o nome, [decide entre dois nomes], pode ser? Ele me ofertou uns dólares e
que eu fosse caça e pescar na barragem dele e eu disse que ele tava preso, mas no
outro dia me correram.
R: Caímos trinta policias em Tranqueras, porque correram os trinta que tinham lá em
Tranquera, porque tinham pego os contrabandos, tomaram o whisky e robaram tudo.
N: Nã-nã, isso foi o próprio comissário que vendeu os whisky e procuraram os
cagüetes e taparam tudo.
R: Tu prende e fica como depositário, dentro da delegacia, só que sumiu tudo e aí
nos levaram nós daqui, os bons né, só os bons. Só os bons. Aí dá nisso, o cagüete
aqui é o mais velho de todos.
N: Fui ajudar o comissário: che, tinha de mandar os milicos, não tinha ninguém, fui
eu. Pra mais arriba do estádio, jogava a final Tranqueras e Corrales, né? Eu, o [diz
um nome], desse tamainho [que estava perdido com ele, disse Robles] e o [diz outro
nome]. Tão dando num milico, né? E diz outro, che acho que é aquele milico,
305

carretiavam o carreio [só controlavam a passagem] nele e acho que havia mais de
quinhentos homens e eu agarrei e só não me deram bola que [...] sabiam que eram
gás [...] e quiseram pular a cancha para me agarrar e são saragentos [sic] e picos e
se me vêm por riba, digo, vão me matar a trompada, mas eu mato um, o primeiro
que avança eu saco um tiro na cabeça e usava um magnum, digo, tenho um
magnum 357 bala explosiva. E me lembrei em Montevidéu que o professor me disse
que se vêm muita gente, dá um tiro na cabeça do primeiro, se vem muita gente! [...]
E nisso cai um morto e vou morrer [...] E me fiz a porteira ali, me fiz, me agrandei e
veio o inspetor [diz um nome], pra trabalha, investigar [...] esses pichicón estão mal
acostumados com os milicos, que o caso tá proibido. E eu disse não, tenho ordem
do ministro, e a demas eu vim de arriba, tu não tinha nem que tá pagando serviço
muchacho e diz pra esses pichicón que eu vou matar 2, 3, 4 deles. E assim, calmou,
pero fue assim...tinha o carga rápida [alguma coisa sobre um tipo de pistola]. Depois
teve aquele outro trabalho que eu tive que tirar toda a roupa no rio Tacuarembó. Que
davam num velho e amenaçavam com o rifle.
R: Conta pra eles o dia do cara que matou a mulher...
D: Por que o senhor tirou a roupa do velho?
N: Era assim, um homem novo foi na casa do homem velho, pressionar o homem
velho e ficou com a... O homem velho...ficou embaixo do caminhão e falam duma
queixa que era parente do [diz um nome], do oficial. E eu fui e disse, não passa
nada, ta tudo tranquilo e o outro pichi estava com o rifle nas costas do velho. Depois
veio o filho dele de Montevidéu. [...] Está com o [diz o nome de outro policial]. Eu vou
lá e ele escapa e eu levo o revólver pra atirar nele e se meteu o filho do velho pra
querer entrar, mas não adiantou porque tinha um candado, e diz que o candado
rebenta com a bala, isso é mentira. Eu peguei a baioneta para cortar ferro, cortei e
entrei e esse me escapou, então peguei toda a roupa dele, peguei relógio e todas as
coisas dele e saltei como que 50 vezes acima do barranco, tudo que era dele, as
sujeiras dele. Disse pro filho, recolhe as coisas do teu pai e voltei pra camionete e
soltei tudo no Tacuarembó, que cruza ali. Tinha uns que tinham tiroteado e não
sabiam porque, mas dai tudo melhorou.
R: Conta pra eles, desde o começo, a história do tipo que matou a mulher e depois
se matou. Como foi, toda a parte...[tu tava civil?, perguntou Nogal]. Não, não, eu
cheguei depois, de tarde. Conta a parte cômica também, né?
N: Teve um acidente e chamaram: Ai um acidente aqui em camino Alabasto,
comissário vai [...] e eu vou com o cabo na moto. Um acidente, lío e um acidente,
estávamos na estrada e não víamos nenhum auto, nada, e nos atacaram umas
mulher lá. Disse tiro lá na mulher que tá caída, morrida, três tiros né? Dois aqui e um
aqui assim e menació os familiar. Eu disse leva eles e saímos com um louco, o
Pereira, seguindo ele e fomos na frente da estação ali [nome da estação] e
entrincharam ali na casa do [...] com os techos. Cheguemo ali e eu dei voz de preso,
que tirasse a arma e se entregasse e ele disse que não, que ele ia pelear, que ele
havia matado a mulher e que não ia se entregar. Se quere pelear, nós peleamos,
digo, pero o arroz ta no fogo, vai queimar, e eu digo que se levar conversa com esse
tipo, ele vai se agrandar. Se esse tipo que vai pelear e a gente diz na, na, não
pelea...se quer pelear, vamos pelear, eu vou te tirar também. Tipo e nós fazia o
horário das sete da manhã às 6 da tarde. E eu digo, se esse tipo [...] disso e
desacata aqui, vai demorar e se esse tipo resolve se agrandar nós vamos ter de ficar
lá. Nós fazia um horário 12 por 24 [...ele queria ir descansar, quando o cara que
306

estava cercado disse...]. Pero yo, porque vou atirar num policial, se eu matei a minha
mulher na frente dos meus hijos, eu vou é me matar. Bom que mate [respondeu
Nogal]...Nunca pensei que...Botou o revólver e se matou. E ele havia tirado três tiro
e eu disse prum outro milico, vai pelas costas dele que ele só deu três tiros. Eu digo,
to com o jaleco, ele não vai me pegar, mas o problema é que o homem era caçador
de capincho e caçava com o revólver, tirava bem e sabe que eu ja havia recarregado
o revólver, pequenos bolsillos era um montón de balas. [Robles repete a história,
imprimindo mais humor]. Llevemo ele pra essa porqueira, a policlínica, chamaram a
ténica, sabe que horas saímos, perminou 6 menos quarto [De qualquer jeito
queimou o arroz, disse Adriana]. Nem comemo, mas se tivesse ficado dando trela
pro cara, ia bater 7, 8 e nós ainda íamos estar lá.
R: Tranqueras é um povo pequeno, mas com muita rorba, o juiz é corrupto, começa
que as autoridades máximas de lá são corruptos, tem maçonaria lá, é um povinho
pequeno.
N: Eu quando cheguei na comisaría e disseram um policia pra trazer carne, não sei
o que más, to hablando! Y, yo: Que dijo? Manda policia, igual usted puede me trayer
carne. Y yo: nã, não, policia não faz mandado pra rua, não temos subordinado aqui!
Pero os soldados, começou o outro cara, os outros, traziam... nós não trazemo
nada...
R: Ainda fazia recorrido nos [...], essa recorridas que eu tava de motorista e nos
incomodava, nos basureava o Bispo, aquele borracho...
N: Más comigo se portou bem, quando morreu aquele, como é, a primeira morte que
eu agarrei lá na assistência daquele velho, como é? Isso é uma família, o
velho...chega o guri e diz: A policia que vá na minha casa , mamãe quer os policia.
Eu fui lá e tá o homem velho, tá morto já, né? Mas sou eu quem tem que dizer... Aí
diz ela: Aí eu não chamei os milicos, chamei o doutor. Ai eu disse ansim, fiz ansim,
esse homem morreu! E a mulher disse: E o senhor que sabe disso! Me faltou uma
matéria para eu me recebir doutor [disse Nogal]! E eu mandei chamar o doutor, veio
o Bismark. Bentaver, velho Bentaver. Chegou a véia e disse; Eh Doutor, esse milico
disse que meu marido tava morto, porque podia ta vivo, se aquele doutor, o doutor
Luís. Não senhora [retrucou o médico] faz meia hora que se murrió. Viu dueña,
[disse Nogal], como faltou pouco pra eu me recebir de doutor, nem terminei a escola!
Tranquera...
R: Esse doutor Bispo, esse, nós estávamos num caso de...
N: Nãnãnãnãnão, caso que sei que depois vocês foram mexer lá nas frutas dele [se
meter com as amantes do cara].
R: Não, que mexeu nas frutas dele foi o [diz um nome].
N: Ah bom! Eu me dava bem com todo mundo lá.
R: [...] pra incomodar, ele basureava os milicos. Na cidade lá, nós éramos [...]. No
lado de fora eu disse: sabe de uma coisa? Eu vou me vingar. Peguei meu canivete,
furei as quatro gomas dele. Caminhoneta daquelas Toyota 4x4. Despúes el dijo:
Quem foi? Quem foi o culpado?
N: Quem foi que te deu a mão pra sair de chofer?
R: [riso] Foi o fulano. Me sacaram pra motorista. [...]
N: Tu tava com o cabo aquele, né? Hein?
307

R: Pode crer que eu estava [...] e ti dei. E nas costas o [a batida de dedos no ombro].
– repete duas vezes um apelido – [Robles respondeu] Para que [...]. Quando eu olho
pra trás, ansim, era o comissário.
N: Tava com o cabo ...fulano?
R: Não me lembro quem...não, era o Beltrano.
N: Não o Beltrano, quando eu tava lá...
R: Beltrano chegou dando risada, [diz um nome] disse pra ele que ele ia ficar preso
cinco dias. – Tu vai ficar preso cinco dias e o Ciclano três e não tá mais de chofer. E
o Beltrano começou a dar risada minha, ao invés de ficar triste comigo ele dava
risada. Aí eu comecei a dar risada junto com ele, claro. [...] . Tu toca na corrente lá
[Adriana diz: Eu não faria isso!] [Robles fala mais alguma coisa incompreensível]. Lá,
nós, carne não pagava, nos davam.
N: Ah sí, nós comia todos os dias só assado.
R: Só assado!
N: Eu agarrei uma intoxicación alcólica [risadas]. [Daniel pergunta: A carne dá
intoxicação alcólica?] Não mas...[risadas] Eu agarrei e tomei [Robles: Ele tomava
tudo] vinho, cerveja, whisky, né? [ Robles: Fala alguma coisa e Daniel brinca]
Violeta: Na casa antígua nossa, que era antígua, ele saia assim... e tinha uma igreja
porta a porta e ele chegava [falam junto e fica incompreensível] Abre a porta que o
Nogal tá baleado! [A mulher responde] Lugar de baleado não é aqui, é no hospital,
não é aqui, não vou abrir porta nenhuma [risos].
R: A gente saia pra assistir muita gente antígua então te davam coisas. Agora não te
dão nada. [Nogal: Agora podem te dar droga, que tem droga em pillas].
N: Eu fui na cadeia por 5 tardes. [Robles: Eu morava aqui na volta] [...] fica aqui que
eu já venho. E quando eu saí ali, era um desparramo de ladrão. E um me tirou, tiro
com 22 e taquei-le plomo, 38, duas balas, né?
R: Não, primeiro ele batia na porta, Robles, Robles! E digo...que to me vestindo e
quando ele sai dali e eu sinto os barulhos de tiro, ele tá dando tiro nos cara. Aí eu
vesti as calças ligeiro e saí ligeiro, e saímo assim e ele diz: Roubaram da carniceria.
[Nogal diz algo sobre um montón de carne velha] E nós buscando e o pitbull
levantando [Nogal diz: Não levemo nada!]... Não levemos nada [risadas], era cd e
carne pra tudo que é lado, né? Cabeça de porco, [Nogal, cabeça de porco bem
grande... risadas].
N: E o carnicero dispos chegou, de todo o problema, né?, seria a terra brasileira, pra
ir lá prender. Este, mandamo um pedaço de osso lá [Robles: pra comisaría?], eu não
quero essa sujeira. O [diz um nome] agarrou, se lembra?
R: Che, tu te lembra bem da vez que aquele quase me matou? O fulano [Nogal: tava
dormindo!] E, conta pra eles bem direitinho pra eles?
N: Se desperto com a pistola enfiada nos peito deste aqui. Me parei na frente e digo:
Che fulano [Robles falando por cima: Não, disparou, ele chegou a apertar], [Daniel
pergunta: Não saiu o tiro?]. Não, ele ficou duro. Eu digo: Saca, saca o cargador da
pistola e saca agora do cerrojo, e ele agarrou e sacou a bala do cerrojo e, é claro,
vai outra, né? E sacou o cerrojo e tinha outra bala na...dormindo, dormindo.
308

R: Tu, que foi que... Para que tu vai matar o Robles, gritaram! Ia me matar, ia me
matar... [Adriana: De sonâmbulo? Assim dormindo? Tá louco!] Ele toma lexotan,
[Nogal: desde que matou o Chinês] Depois que ele matou um começou a dar esse
problema nele. Do Chinês é outra história. A do Chinês, este queria pegar o Chinês
[Nogal: Eu?], [Daniel: Quem era o Chinês?] Ai entra a história do matador sin suerte.
N: O Chinês foi assim: eu andava com o negrinho Peñarol ele tomou uma paliza do
outro negão de Montevidéu, não sei que fim levou o castilhano aquele?, então
chamou na comisaría que havia dado no fulano. Sai eu e o [diz um nome]. Naquele
tempo se ia de a pé, camioneta só pros comissários. E chego lá e digo pro outro fica
aí que eu vou entrar. Quando entrei alumbrei ansim ali na cama um... gurizinho
pequeno. E sinto vários cruquis e sinto o ruído atrás e digo: Che, que estás fazendo
aí? Os pés na costa mia...se me dá uma pezada, [...] pra lá. [o outro cara contando
na história] Pô fulano veio aqui e me agarrou um trompazo, que era o Peñarol.
Nesse momento chega o Beltrano borracho e disse: Passou nada, vamu sin embora.
Ele entrou y levou a mão na pistola do guri y e eu saí e disse pro outro companheiro:
Che, me agarrou e me, vamo atrompar que o barbado esse vai matar o outro – não
sei o quê ...a mão na pistola – Pistola ou revólver, acho que já tinha pistola na
época. E vai matar o tarado esse, a primeira coisa que faz é botar a mão no
revólver. Saímo dali e tá o Chinês borracho, numa casa com “Métano”, patrão aí, as
três da madrugada, o Chinês borracho: que pichicón é esse? Yo voy a matar, no sei
o que. Entrou lá pros fundos, começou a bater a porta e dizia te voy a dar um tiro
seu assessino bandido, o chinês borracho, vai te embora daí, ladrón.
V: Amor, no hables em castillano, eles não tão entendendo nada! [Nós confirmamos
que entendíamos e ela ficou surpresa.]
N: Pode ferir [...] borracho. [...] Pára, que eu parto a tua cara que tu também és
borracho, né? Olha que eu to armado com rifle e te dou dois tiros [...] tirou os dentes
fora o infeliz. Saí pra fora e eu dizia pro Beltrano: eu vou abrir essa ventana, ele vai
atirar e tu sai. Ele se acalambrou [se encolheu] na porta dos fundos e o Chinês sai e
a visão [...] pra dar um tiro y ele correu [...] pero retorceu o dedo e eu falo pro Chinês
e ele volcó e tirô, sinti aquele fogo nas minhas costas e me abraçei nele e quitei-le o
rifle, levei um culatazo no peito quando ele abre o verso pra cair [...] tá. Caí lá do
outro lado do [silêncio] [Robles: quando ele já tinha dominado!] [Violeta: Era o
mesmo] [Daniel também diz algo sobre o outro, parece que um outro atirou pelas
costas]. E puro milico, eu era o único da ivil, o resto era pura milico. Jerarca, e pra
não usar o nome do chofer eu digo: Chofer! este arrima de la camioneta, marcha
atrás que tenemos un herido aquí, pra non dar nombre nenhum, compreende?
[claro, responde Daniel], non tem nada que ver! Y nós civil: che agarre o homem,
che, querem que faça tudo, no se animo a agarra? Levemo pro hospital y tal. Se não
morre, tem que matar ele na cadeia, por que se se salva, nós vamos tudo pra cárcel,
não é? Quando chegou na Cuaró e Brasil ele fez assim [um barulho de quem tá
morrendo]. Um balaço agarró a ponta do coração. Ele empezou a chorar lá no
hospital e eu: Deixa chorar, muchachos, eles vão tudo pra cárcel. Claro, homicídio.
Suicidou o tipo. Principemo a declarar, voy declarar isso e isso, assim, assim e la na
comisaría aun nos dêem uma paliza, vamo declarar o que vamos declarar a primeira
vez y nada de...o Chinês. Botam um num quarto e outro notro. Quando vejo o
comissário...o Beltrano dizia, foi o fulano que disparou o tiro e lhe deu uma
punhalada e eu chamei o comissário e disse negativo, ta mentindo, eu tenho doze
balas tinha no carregador, naquela época era doze tiros, [...] Salvei ele, né? Ele me
acusava a mi, pero [...] juzgado, eu me dava com eles. Já tava tudo armado porque
309

era [...] falta três mês pras eleição, mas era ditadura. Y [...] después que eu conheci
o otro, te conocia, como no se dio cuenta que era o fulano y eu disse não, eu
conheci ele. Si pero [...] que você lo conocia y yo dijo: no, no um dia eu tava de retén
na cadena. Por um cinqüenta anos, né? Y jogava [Robles assente] [...] y um homem
daquela idade jogando, não conheci ele, por isso é que não tem perdão. Conhecia
se fosse amigo? Não. Um tipo que nunca foi na comisaría nem por nada [...].
R: Ai depois matam o outro, qual é?, o [diz um nome] ?
N: É mas isso foi bem feito, no final o Toro matou ele [também, diz Robles] e mirou o
tiro na caminhoneta e como era um ladrão que ninguém gostava, todo mundo depôs
à favor.
R: Sim, havia outro também, todos então, todos diziam que o Nogal queria matar
eles, pero outros vinham matar, matavam antes que ele [Nogal fala algo
incompreensível, acho que para sua esposa], aí depois botaram o nome dele de
matador sin suerte. Foi? Se lembrar que nós tava tudo na comisaría? Aí... Tu
gostava de uma caninha [Sin, responde Nogal] Gostava. Um dia chego eu lá no baile
do Cuñapiru y ele: Che, me leva este pra cá. Y ele traz o tipo numa adaga no nariz
[Violeta dá um gemido], te lembra?
N: Ele agarrou e deu numa muié, mulher da vida, pero ela veio se queixar y [diz um
nome] Ah és eso, é una loca! Y eu: si, é loca, pero é uma mulher igual. Eu vou falar
com o petiço, um tal de nego Fumaça, bah, mas um baita dum negrão, grandote! Y o
negro de Gaulle: eu sou amigo dele, eu falo com ele Y bueno, então fala. E foi falá e
ele já deu um empurrão y a la mierda milico! Y aí ele se me verou [virou] y eu tinha
já uma faca aqui no cosa y saquei y tirei-lhe na y cortei fora aqui y ele se veio: diabo,
não vê que eu to sangrando? Ele disse isso falando com a boca fofa. Ah, é?
[respondeu Nogal] Y quando ele se deu volta eu dei nas nádegas dele um pinchazo.
Ele não queria levá de nós, da Choque aqui. [Robles fica repetindo o que o cara
tinha dito e todo mundo fica rindo... Robles diz: os folguetes não dá pra pegar as
vezes, né?] Mas não passou nada.
R: Não, não passou nada porque ele espantou. E ele tava no baile sozinho, não é ?
[Nogal confirma] Era sozinho. E nós tomava conta daquilo. Tu pode acreditar que
nós atirava tiro nos tipos e os tipos nos atiravam pedras. [...]
N: Não, e lá na Oitenta e... Quarenta e Cinco [nome de escola], um dia eu fui lá num
baile , eu e o mano [diz um nome] e na verdade não gostava de baile. E o [repete o
nome], o sogro véio dele, andava de escora, de colaborar ansim e havia um
brasileiro que tava bem baixado e comprava e pegava os copos e pah! [Ôo Beleza!,
disse Daniel] Eh, che, me acredita que o cara quebrou dois copos da mulher, dos
guris tomar café, e porque eu sou amigo do Sarney, gritava o homem, e ele
começou, e eu disse: eu vou parar com esse barbado. E o...chefe, não me quebra
mais os meus copos! Não, mas eu sou amigo do Sarney, tu não sabe com quem tu
está tratando! E eu: Sim, tu é que não sabe com quem está tratando. Agarrei-lhe a
guampaço e dei-lhe uma paliza! Praquele paparivédico saber que... [Robles explica
alguma coisa, risos] né...terminou e dispois também fumo naquela Quarenta e Cinco
em que havia um milico que tinha costume de orinar na porta da escola [mas credo,
disse a Adriana] disse que era famoso, fazia o que queria, né? E eu fui nesse baile,
todavia, fui eu, Beltrano e o milico, foi quando nós prendemos o [diz um nome], nós
foi, fui eu, o Beltrano, que desapareceu follando com as mulher e o Fulano, aí eu
fiquei sozinho. Daí tava um ambiente pesado, né? Sabe de uma coisa, comecei a
beber cerveja e “pinga” e tudo, porque o borracho tem uma salvação [...] E eu estou
310

assim na porta e este: Permisso. E eu, sim? Não, eu vou urinar aqui. Que? Sim, eu
costumo urinar aqui. Então pode urinar, o que que eu vou fazer? Quando ele
agarrou o...dei-lhe um gomaço. Ah, pára! [risos] Pero saiu como...e daí eu toquei-lhe
plomo nas patas, né? E aí ele ia pra cá e eu dizia, não tu vem para lá, nós passeava.
Ah, era brabo os bailes. [...] O hombre que tava me deu uma punhalada! E eu disse,
eh esse hombre foi apunhalado, señor vire acá. [na narrativa o outro cara fala uma
coisa e a resposta é uma outra pergunta:] mas quanto tempo faz que eu te
apunhalei? Hace como uns dois años. [...]
O tipo tava tão acostumado e coisa, tinha matado dois PM, todavia tinha
assessinado o pai que tinha engenho em cachoeira, campo e tudo, né? E tinha
dinheiro e tinha um tio que era senador, lá em Brasília. [...] e o velho comprou até
uma estância aqui pra se ver livre dele. E tipo se fundiu, se casou com a filha do
capataz [...]. Eu nem dava bola pra ele, ele matava fortuna e policial, cheio de mania,
melhor não dar motivo pra eso. E um dia eu estou retrasado pra Primera
[comissaría), me corre o veio, a velharada: Não, o fulano deu... deu na mulher.
Chama a rádio-patrulha e chama pra dá disciplina e botá na Primera. Chegou o véio
e deu na véia e eu olhava torto pela ventana e não quero tomar [...] e chama o véio
pra “tuir” [?] e ninguém vinha e a minha a Décima não vinha e disse o véio pra véia,
agora te quebro e vou lá dar na outra, na ruiva essa. Putcha grilo, é uma falta de
respeito, né? Fui ali e quando ele vai dá, se abaixou na caminhonete e eu falei com
ele: Che, me traz o revólver. Mas ele nunca me apontou, não, ele me dava na mão e
eu pá, né? Ele tirou o revólver assim embaixo da caminhonete e disse: Não, vizinho,
eu me voy e não vou molestar mais. E me tocou a caminhoneta por riba e o primeiro
tiro pegou no radiador dele e arrebentou tudo, 357, né? Ah, fez um buraco que e
después, este, tirei-lhe três tiros más. A caminhoneta por seca, ele apenas passou
ali e fundiu, no outro dia o taura veio botar fogo no meu rancho aqui. Mas ele se
escapou, né? [Era manso, disse o Robles, por ela assim era mansinho, mas era
perigoso. O homem é drogado]
R: Sabe que a coisa mais sagrada aqui no Uruguai é a bandeira, né? [Hum-hum, faz
Adriana] Aí temo tudo de manhã cedo já [possivelmente ele faz um gesto de que
está bebendo], de manhã cedo alguns tomavam, outros não, uns tomavam mate
[outros caña, disse Nogal] [uns tomavam mais, outros tomavam menos, disse
Adriana] Tava assim dentro da comisaría, entravamos a três da manhã e saíamos as
11 e meia. Quando chegava de manhã, quando tava calma a noite, até de manhã
cedo tu conversava, quando chegava, o sol saía, tu tinha que a primeira coisa coloca
a bandeira, quem é que me deu a bandeira pra botar? Tu me tira a bandeira? [hum!,
responde Nogal] Este me dá a... [este se abaixa, não agarra e...] e cai [os dois falam
juntos] a bandeira [este me tira no fogo]. Este me tira a bandeira pra eu coloca e eu,
eu não boto nada, e me agacho assim e ele tira, caiu la dentro da estufa lá [...].
N: Quer Dinheiro pra comprar bandeira? Eu disse pra ele? Vai lá no Olivo, o
contrabandistas mais grande que tem aqui, era ele, diz de parte minha que te dê
dinheiro pra bandeira. [Bah, faz a Adriana] Eu nunca quis prender ele e indagavam,
né? Dá uma esmola, né? Entendeu, né?
R: Ele deu o dinheiro e nós fomos lá e compramos a bandeira, rarara! [Ninguém se
deu conta, disse Nogal] Disso o comissário sabia, o [diz um nome] Te lembra? [Que
ele sabia? Pergunta Noga] Claro, claro, o nego sabia, abriu a loja de manhã cedo e
nós com uma bandeira, che botemo a bandeira, bem novinha, bem novinha a
bandeira, a coisa mais bonitinha. A outra tu tem aí? [Tenho!, disse Nogal] Traz pra
mostrar pra ela [Não sei onde é que tá!, disse Nogal, Tem um rombo desse
311

tamanho, assim]. [Robles chama Violeta] Tu sabe onde é que está a bandeira? Tu
não sabe onde está a bandeira queimada? [...]
A: Que coisa vocês, queimando a bandeira do Uruguai!
R: Mas que coisa, se nós somos pegos ali naquele dia pelo amor de Deus, né? Má
Bah! Nós ia dormir os dois juntos [...].
N: No GRI [...] um grupo especial, levantaram tudo que era mala conducta e
mandaram pra lá e dizia o [diz um nome]: Aqui se luto guerreiro, combatentes. E eu
dizia: Che loco, bota só cinco, bota quatro varas na cela. Tava assim então e [...]
numa pecinha que fizeram a calabouça pros milicos, né? No, agora somo tudo
guerreiro, no, pero bota quatro balas aí. Não vai bota no cano. E o cara: não, porque
eu sou combatente, botou quatro balas, botou uma no cano e ...quando vai levar a
escopeta assim, bum, pá [espalhou combatente, disse a Adriana] [E todo mundo fica
quieto, disse Robles] Não, foi um canhonaço perto memo e eu me virei assim, mas
tocou na perna. O cano tá pra lá e digo tranca a porta que ninguém entre aí [...].
Bueno, quando fomo se levantar, que nós já tinha a custódia, ele se levanta e cai.
Taí, a bala esfriô, né? A bala quente pode te fazer um balaço no [...] e olhamos
assim e não tinha nada, ele disse: eu vou morrer! Olhamo à volta e tinha um
coisinha de madeira [...] desabrocha [desabotoa] e bota da pura aí e vamos agarrá
entre dois e fazer essa custódia. E salimo dali e digo: olha eu vou aqui e vocês
aguardem lá. E aí que eu sei de um “borracho pesado”, claro, porque a gente não
podia caminhar e ele se fazia que tava mal mesmo, [...] pra que socorressem e vamo
pro hospital, pro sanatório e [...] chegamo lá o doutor sacou um plomo. Ele disse:
Franco [...] teve como um mês sem trabalhar, tudo [Tudo primo, diz Robles]. Se dão,
se...eu, me dão de baixa, né? E agüentei e em um mês não fechava a ferida, sacou
placa e tinha otro plomo más. [...] dois plomo da doze [hum-hum, faz a Adriana] e
dizia o doutor Que que foi isso? E o [diz um nome] piscô e disse, eu fui pescar e me
enganchei num anzol, lá num teco [Daniel ri] [...]
R: Outra vez, os guris na cárcel, não escapou um tiro, diz que a bala corria por tudo
que é lado, até que caiu pra fora. [Robles faz exclamações para afirmar o fato].
N: Não, e o negão [diz um nome] que era de cima, lá de Montevidéu [Si, diz o
Robles, bromeando] [...] Pero que passa, dava cinco balas, a primeira ele saca,
conversando ali, volviando ele saca e guarda no bolsillo de trás, depois sacou três
balas, conversando e fico lá, assim botando as coisas por aqui [faz o barulho de que
está arrumando coisas na mesa]. Bum, pá, fez um buraco na telha. Nós tava tudo
rebocado de cal de parede e entrou o comissário, que passou aqui?, não passou
nada. E diz o oficial [...] cinco dias de “arresto” pro [diz um nome]. [Era muito comum
dos milicos se balearem, disse Robles].
R: O nego banana brincando com o [diz um nome] e deu um tiro e de repente chega
o outro e pum e deu-lhe, né? E a bala entrou aqui, por aqui [começou! disse Nogal]
passou assim, levam o não o [repete o nome], um banana baleou o [repete o nome],
levam o tal no hospital, no sanatório, quando chega no sanatório, quando chega no
sanatório lá, chega a mulher do policia e diz: Ai amor ainda bem que não furou a
camisa nova. É, mas tinha uma baita mancha [arremata o Robles, todo mundo risos]
[...].
N: E o [diz um nome], o loco aquele que deram um tiro e entrou aqui pelo rim e não
tinha um riñon, era o riñon operado e a bala entrou, seguiu e isso é na cárcel [Hum-
hum, faz o Robles] [...] a bala caminhou por tudo e se, ficou no garrão.
312

R: E também levaram ele daqui da cárcel pro hospital e o hospital não se deu conta,
os médicos não se deram conta, daí do hospital levaram direto pra comisaría da
novena, lá onde nos levaram e quando chega lá, lá ele sentiu, aí botam ele na
caminhonete para levar pro hospital de novo, aí ele morre, rã! Ai ele morreu no
hospital [Bah, faz a Adriana] Ah, tão vivo até agora, né? [...] Hã, agora deve fazer,
quanto deve fazer isso, 6 meses [...] Nogal? [É, responde o outro] É tão ainda em
negócio de sumário [...] Os brasileiros não conhecem aquilo, né? Eles não sabem
[mas geógrafo adora, né?, diz Adriana] Sim, ali é a vila Tomás Albornoz, que era
território uruguaio, mas que o estádio do Figueroa, comprô, deu marcador pra trocar,
puxar a linha mais para cá de volta. Não sei se ele comprou, o que, pra mim era
estância, Uruguai, ele fez as casas ali [...] tinha terra, a Vila Tomás Albornoz.
N: Sim, ali foi assim, foi, foram esses do quartel, como é que dizem? Servicio de
Geodésia, [agora eles vêm de avião, fez a Adriana] antes era de, o capitão fulano
empezou, não sei como é o nome do desgraçado esse, empezo a se empená pros
brasileiros, tavam fazendo a Linha e sacaram a linha mal e dispois ficou desenhado,
aqui tinha de ser o arroio tal, enquanto que pra chegar no arroio tu tens que chegar
mais pra cá. Ficou! Antiguamente eles faziam a olho, agora não, o sérvicio
geográfico, eu acho que é, não? Sacam foto por tudo, e antes não, se esperasse?
R: Ali é uma zona muy conflitiva, sobretudo o gado, né?Ali onde tá a famosa rosada,
né? [Donde mataram um, disse Nogal] Donde mataram um cara ali que, volta e meia
roubavam vaca dali, mas ele era o que organizava.
N: [...] esse caballo, aí?, Yo no quise más, tavam uns frios bárbaros e os cobertores
furados, e não queriam me dar poso, [...] [Mas a pessoa ficava caminhando pela
fronteira?, Pra cuidar a fronteira? Perguntou a Adriana] Não a cavalo [Indo e vindo?
Perguntou Adriana] [Percorre de estância em estância, diz Robles]. Si, si, porque
tem que estar no meio dos capões, dos galpões, iam numa leiteria por exemplo e as
vacas não eram [...] As vaca andavam em riba dum [Bah!], Ali no [...], [Sim, disse o
Robles, Conta pra eles a história do Beltrano, conta pra eles do começo. Que que tu
tens a ver com isso, Nogal?] Não, eu sabia donde estava. [...] me deram ladrão toda
a vida, que assim se criou na zona, né? Eu não vo... [Ladrão de que? pergunta o
Robles] Ladrão de vaca, ah, roubava até na...o Fulano que matou, era um agente de
Bagé. Ai ia ordem, né? Se contrata essa gente [Claro, diz Daniel] e eu vou buscar
um, uma mesa que eu comprei num companheiro e quem me dá a carona é outro e
digo, che, digo, dizem que balearam o Fulano e tá. Não, não [começa a explicar o
outro] Fulano tá morto, fui que.... Dois estancieiros pagaram, aquele que tava
falando, matou as vacas do tipo e mandou dizer pros tipos que tava linda a carne e
não sei o que e mandaram matar ele, já tavam cansados, né? E, naqueles anos foi,
olha, eu vou te dizer uma coisa, disse [o cara que conta a história pra ele], foi um
tipo, espero que ele saísse das casa, deixou não sei quantos mil pesos pra mulher e
disse que esperava ele na, não é mais porteira ali, né? As porteiras onde tavam,
agora é [...] O chamaram pra fazer um trabalho, queria que ele fosse como guia no
más, mas claro, o tipo foi, o outro a cavalo, quando o Fulano se abaixou pra abrir a
porteira, o outro atirou, deu-lhe tiro na cabeça, botou no cavalo e levou lá pra [Pra
serra, disse o Robles[ Pra serra [coxilha, diz o Robles] é onde tá a viação essa e
deitou ele nos pelegos e [uma pedra, né? Perguntou o Robles[ Não, não, nos pelego
e numa, como é?, numa caneleira e botou a cruz, numa caneleira, assim em cima, e
ele tá ansim, ansim, ansim no cerro, agora nada de [...] por aqui, nada. E ieu, eu
tava numa patrulha seguida aqui, pensei descubrir ladrão e companheiro ladrão, me
dei conta e era uma máfia, quase fui eu pra cárcel. Disseron que eu era chofer. Mas
313

não sei nem andar em bicicleta, o que me salvou é isso, né? E, bueno, vamo
sumário, estava o [diz um nome] oh, eu ia pra chefatura e ele tava uma fera, viu que
eu roubei nada e tá limpo a ficha aqui e o famoso sub-chefe aquele, o sujeira que
teve de chefe em Maldonado [diz um nome], otro delincuente, e outro pichi,
traficante de droga, atirante em milícia, eh, e o [diz um nome] e o tal da investigação,
cabo, isso tudo investigação [...] encontra o Fulano, o Fulano tá morto, enterrado [...]
e tá deitado, os pelegos anism, ansim e donde, e eu digo, não, não vou dizer que
não vi. Descobre você que faz-me jus.E diz o [diz um nome] e o que veio fazer acá?
Eu vim aqui declarar que [...] pero tenho outra dita pra revelar aqui, digo, tem um
milico que usou o auto do sub-comissário pra roubar na casa do [diz um nome] [...] e
bueno e agora eu vou destapar todos esses ladrão e eu digo, eu denunciei, me
trazem mim preso, claro, era uma máfia grande, né? Tinha dinheiro em pillas...

N: Entraram no calabouço, tem uma declaração sobre todo lo que dice e eu, Quem
que tenho prova? Não tem muita gente aqui e diz o sub-chefe, não, não, che, mira
que já está tudo arreglado, só te van a perguntar o que...Tá tudo arreglado?
[pergunta Nogal] não quero que arrume nada, eu não fui denunciado, nanã, só firma
aqui no más e deu que ...esse montes de chorros. Eu tive nessa patrulha e saí com
o exército, bando de chorro, bandido, uma área que tu conhece bem, né? Então eu
descobri os ladrão e corri ele e ele apanhou e como ele era cabo, era encarregado
da patrulha civil e digo, che, fulano tá roubando, [agora falando para outra pessoa] a
que, este aqui te lembra? O? [diz um nome] que diziam também de tio [repete o
nome] rouba um monte e leva pra Tacuorembó desarmado, de caminhão: Ha, eso
vá ser um operativo grande, deja no más que o comissário e um dia eu to aqui e
passa um milico e che, roubaram as escolas essas de recuperação, ali da [as
entidades, diz o Robles] não do gajo ali, donde estes guri iam e eu saio, averiguá,
descubro tudo do conta pro coisinha lá. E o vem volta e meia e diz, che, mas os
ladrão deixaram alguma coisa? E eu digo, eu pedi a caminhonete e eles não
quiseram me dá caminhonete, eu disse que não tinha nafta, pero no, nafta, venho te
busca aqui e vai o fuca. Prendi minha mão, invadi a primeira, Novena, todos os
troços. Quel que él trazia? Ai outro dia eu fui, che e [diz um nome] se largô?, si, pero
largô, largô todo aunque, claro que quando eu tava com o guri preso lá, apareceu
aquele, sargento, outro bandido lá, pero desconfia, desconfia dos companheiros, nós
botava os presos no batecler e fazia submarino junto [Sabe o que é submarino?
Perguntou o Robles] [Ouvi falar. Diz a Adriana] [E o que que é? pergunta o Robles]
[É tu bota o cara mergulhado no] [e tu pisa na nuca dele e puxa a cadena, salta ba]
[coisa horrível, disse a Adriana] Né? Trabalhava e gostava da farra, quando nós
saía, tuchhuu, um ia pro barrero, outros quebravam pro [...] e já havia um montão,
caíam verde porque não eram daqui, eram comissão. Después o Chico Teta roubou
numa carnicieria e eu prendo o [diz um nome] e tô lá e diz o, vieram buscar o
Fulano, o tipo esse que não se entregava, eu se fosse ladrão e iba me buscar preso,
eu não me entregava, num cerco, não [...] pegaram ele, os rato vieram com uma
denúncia tua na chefatura, parece que tu deste num, ai? Pode ser. Investigação. Eu
disse aqui comigo e quando temo no destino da chefatura, quando eu chego lá me
mete num calabouço e dói as vistas. Pero eu tava tranquilo e tinha outro párajo loco
que fazia senha e eu chamei o oficial, turco casaca e disse, che, me bota noutro
lugar. Milico tá preso ali, digo eu tá preso, e tá me fazendo senha, eu não tenho
nada com ninguém, eu não sei porque me trouxeram aqui. Não tens que conversar
nada, disse o guarda. Quando chegou de noite pedi comida, de casa não, do cárcel
314

ali mesmo [...] tem obrigação de me trazerem um colchão e trouxeram uma vianda
furada, sopa de cárcel, pura graxa, e tava no espaço da cura, do socó e eu engraxei
tudo ali e ele, che tem que, e eu, não limpo nada, nem vou comer tampoco. E os
companheiros, que eu tinha por companheiros [...] parece que roubou não sei
quantas cárcel. E o [diz um nome] me acusava de vir de noite na comisaría, pegar a
caminhonete e sair na noite pra fazer os assaltos tudo. Se eu tenho essa categoria,
eu vou no Banco República, vou encher dois barricão de dólares e me vou, né? Pero
era uma machadada que tava metida, tal, tal outro, [...] que era milico, que era
casado com a filha do Beltrano, os caballeros más grande que havia. E eu toquei na
jarra sim [...] por confiar, a gente quando trabalha com um companheiro. Isso que
haviam difundido um informante ..., queimou o churrasco, tava enarado e dispois,
che, vão te limpar, hein? Digo quem? Os companheiros teus, do tamanho meteu, e
eu digo, não [...] bem, pero no se animaram e falto e quando vê terminou que eu era
chofer. Segunda vez que, me manda chamar o chefe de policia e eu sai e entrei com
um despacho lá e ele disse, porque sois ladrón. Non, ladrón non, estás equivocado.
Porque vos sois ladrón [continuou o interlocutor], porque robás e não sei o que... E
eu, só pra le dar uma prova, quando roubaram a caminhonete de um brasileiro [diz
um nome] que os produtores engajados, se eu venho da Cuaró a pé e prendo o sub-
comissário tal, prendo aquele que mataram hoje, qual é o nome dele, maricão
aquele. Como é o nome dele? [diz outro nome]. E digo e prendam o filho do Fulano,
tão os ladrão a mais pra vocês, vocês buscam, esses são os ladrões. São ou não
são? E ele disse: Quem tá roubando o tal da segunda? E eu digo, o tal, o comissário
tal da tropa, todos milico e foi a roubar, voltou os ladrão lá. E disse: usted se anima a
prender? E eu, si me dê um bom armamento e uma equipe [...] e presos tudo, tudo.
Pero, vem me interrogar o pichicón esse. Te para de patrão e dice que eu era ladrón
e cosa e ele, não eu quero saber porque [...] E o [diz um nome], um comissário que
agora ta processado por roubo na Zona Franca, e o outro velho, traficante de droga,
junto com o [diz um nome]. Diz que estão pra Curticeras, né? [Robles, confirma]
Peixes grandes que agora tão caindo tudo. Bom, me acusaram y [...] mas eu não
entro nessa história, me acusaram a mim, mas não me conheciam e outro disse:
Mas é o Nogal. Eu tava direto na frente dele y o juiz disse, quais desses são, não é
nenhum. Eu olhava ele e pensava, dou um golpe no pescoço dele e me vou antes
que me agarrem. Depois ele me chamou a parte e disse, não, é isso e isso e isso, tu
não tem nada que ver com isso y outra cosa no le haga nada porque entonces van
poder le processar, si él aparece morto, van a buscar usted. Bem, fiquei vivo, pero
cada vez que ia num baile [...] Começaram a me transladar, yo recorri toda Rivera.
R: Aqui em Rivera é assim, quando te buscam pra ti reconhecer, te buscam um tipo
mais ou menos parecido, uns três, quatro parecido te confundem. Hay um torto ai
que matou umcara ai, passou com um carrinho-de-mão na frente da comisaría.
Inclusive o cara conta que a mão caiu fora do carrinho, na frente da comisaría e ele
botou pra dentro e desovou o cara na frente do [...], viste? Ai o juiz pediu tortos,
porque o matador era torto, porque o testemunha tinha que ver, ai quiseram levar,
nós tinha, temo, um colega que é torto que não se animou a ir, ficou com medo que
reconhecessem ele. Chega ali na hora da verdade e depois provar que tu é
inocente? Que [...] pavorovo e justamente igual, o sistema que tem a justiça nossa,
primeiro te põem pra dentro e depois tu tem que provar que tu é ou não é.
N: Aqui, quando eu ingressei em 74, colaboravam com os milicos brasileiros, né?
Um dia tínhamos saído para um recorrido às duas da manhã e o – diz um nome –
era um delinqüente bárbaro, mas que trabalhava, 12, 14 horas, vinte e se tinha que
315

caminhar, caminhava. Ele viu uns oficiais e disse: acho que são os brasileiros,
entraram na casa dos – diz um sobrenome –, os famosos – repete o sobrenome –,
mataram quase todos... E ele, vamos apurar para ajudar os brasileiros. Eles ficaram
desconfiados e nós dissemos: viemos ajudar. [...] E aquele, o negrão grande aquele
que a mulher matou ele, te lembra? Um dia ele faz uma rapinha [...], tassimetrista e
corta um homem na boca, só que o tassimetrista era brasileiro e que passa? Eu saio
com o [diz um nome], apertado num auto, do cunhado brasileiro esse, vamo buscar
em recorrida e fui em Rivera Chico e tavam [diz dois nomes] borrachos, pá não tão
ai, naquela época não havia rádio. E diz o homem, não vamos lá ver, lá perto do
Nicolini, por lá, ele morava lá e dá a casualidade que ta aquele baita macho lá e eu
baixei do auto e pensei que o [diz um nome] ia comigo e não saiu. E eu peguei no
revólver e ele vem disparado e pechou e naquela época os PM faziam patrulha em
um fuca, e ele pechou nos PMs e empezaram a dar nele e eu che, dá pra eu dar
também? [risadas!] Sabe que eu nunca vi um tipo espossado que tocaram ele de
cabeça pra dentro do fuça, mas deram uma paliza nele. Levaram ele para a
delegacia e deram outra paliza más.

Aqui a entrevista é interrompida.


316

APÊNDICE E: CD ICONOGRÁFICO

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317

ANEXO 1:
TRANSCRIÇÃO DE OBRAS DE INTELECTUAIS MUNICIPAIS

Parte da investigação em campo buscava marcas da cultura local,


especialmente do contrabando como prática cotidiana, inclusive em fontes escritas.
Assim, grande tempo e atenção foram dedicados à pesquisa em museus, arquivos,
bibliotecas e livrarias.
Esta coleção de textos se volta a recuperar a produção daqueles que Carlos
Reverbel chama de escritores municipais – que não alcançam projeção nacional,
provincianos na origem e na temática, talvez também no estilo – e que falam de
pessoas comuns e personagens típicos (CHIAPPINI, 1988, p.57). Suas obras
situam-se na escala local da geografia do pensamento e abordam o imaginário do
lugar, fazendo com que haja forte representatividade no que narram.
Na medida do possível, transcrevi os poemas e demais textos na íntegra, na
intenção de preservar o contexto e permitir interpretações diferentes. O mesmo
propósito justifica a inclusão de pequenas notas biográficas, sempre que
disponíveis.
Segue a lista do que se encontra neste Anexo.
1. Agustin R. BISIO, Epístola de la amistad
2. Olyntho María SIMÕES, Una carta
3. Olyntho María SIMÕES, Riverense
4. Olyntho María SIMÕES, Canto a la ciudad de Rivera
5. Lalo MENDOZA, El contrabandista
6. Lalo MENDOZA, El moirones
7. Reginaldo QUINTANA MORALES, Pecado (milonga)
8. Conde D’EU, Visita de D. Pedro II a Santana do Livramento em 1865
9. Ever BLANCHET, Desde la frontera
10. Mirtha Garat de MARÍN; Delia Cazarré de ALVEZ. “El mapa se dislocaba…”
11. Mirtha Garat de MARÍN; Delia Cazarré de ALVEZ sobre o contrabando
12. Mirtha Garat de MARÍN; Delia Cazarré de ALVEZ sobre Aparício Saravia
13. Mirtha Garat de MARÍN; Delia Cazarré de ALVEZ contra o D.P.U.
14. Mirtha Garat de MARÍN; Delia Cazarré de ALVEZ; Graciela ELISEDO, sobre
lingüística
15. Chito de MELLO,La frontera de la paz
16. Chito de MELLO, Rompidioma
17. Chito de MELLO, Náun véin qui náun téin
18. Chito de MELLO, Esplicación d’algunas palabra y dicho qu’están n’este livrito
19. Rubén LOETTI, El índio Silva – el índio de Yapeyú
20. Rubén LOETTI, Ernestina Aranda, de profesión ‘bolichera’
21. Rubén LOETTI, La Chula – una mujer que hizo pátria a su manera
22. Rubén LOETTI, La casa de los Montero – el refugio de los necesitados
23. Rubén LOETTI, Los Pescaditos, uma família em la orilla del Arroyo Yatay
24. Rubén LOETTI, Marcos Gregorio Murillo, aduanero, el terror de los
‘pasadores’
25. Aparício Silva RILLO, Contrabandista
26. Osiris Rodríguez CASTILLO, Camino de los quileros.
318

Os poemas a seguir foram encontrados na Biblioteca Municipal de Rivera “José


Artigas”, uma construção de esquina, duas quadras abaixo da sede da Intendencia.
Possui um grande salão de leitura, um pouco escuro e frio, apesar da lareira acesa
durante os dias de julho de 2005 em que lá pesquisei.

BISIO, Agustin R. Brindis agreste. Montevidéu: Martin Bianchi Altuna, 1954. 164 p.
(com glossário de termos regionais) (1894-1952)

1) (p. 167)
EPISTOLA DE LA AMISTAD
Si encuentras en tu vida un leal amigo,
Trata de ser con él, como es contigo.

Que un hermano es amigo que te han dado,


Y un amigo es hermano que has buscado.

Uno, es amigo, por obligación;


El otro, hermano por el corazón.

Entre amigos no cabe la maldad;


Hay sólo una palabra: lealtad.

No existe por lo tanto la traición;


Sólo existe el perdón.

Este se otorga por primera vez


Y por segunda, pero nunca tres.

Pues quien ofende por tercera vez,


Es pérfido, no sólo descortés.

La perfidia asesina a la amistad,


pues es daga más fina que el puñal,
que lleva bajo el poncho el criminal
y asesta por la espalda sin piedad.

El asesino en cualquier parte entierra


Del cuerpo ajeno, su servil facón;
Una traición de amigo, ¡nunca erra!
O parte el alma o corta el corazón!

También yo, tuve amigos, ¡a granel!


(salvo alguna excepción,) de mi caudal;
(p. 168) pero, ¡adiós moscas! cuando no hubo miel,
se fuero a rondar a otro panal.

Mira que rompe el saco la ambición


Y más de una cae del pedestal,
Si este no es firme y va con precaución
Y no guiado por la vanidad.
Más de un amigo nuevo encontrarás
Y cantos de sirena te hará oír;
Pero, fíjate bien adonde vas
Y medita mejor cual es el fin.

Si te resuelta bueno; sea en tu bien!


Más no trates al viejo con desdén;
Pues bien puedes llevar un tropezón
319

Y aún el viejo servirte de bastón.

De amistad nueva, no se sabe nada;


La vieja, por ser vieja, está probada.
Que experiencia no deja duda alguna;
Más vale una amistad, que una fortuna.

La fortuna es voluble y se nos va,


mas, si es sincera, queda la amistad.

II
¡Ojo! Con el amigo que en la mesa,
te baña en loas y te da promesa;
ese, es seguro, no te quepa duda,
que si te ofrece, va a pedirte ayuda.

Hay algún charlatán,


Puro salamería y actividad:
Ése es un gavilán,
(p. 169) Que hoy está aquí como mañana allá,
donde haya un ave incauta que atrapar.

Hay algún arribista,


Que piensa que esto es tierra de conquista;
Y con bravucadas de altivez,
Ya se siente un Pizarro o un Cortés.
¿Por qué no usó esos bríos allá en su tierra,
que apenas llega aquí se cree un campeón?
Allá un cero a la izquierda;
Aquí, apenas de paso, Napoleón!

Hay más de un mentiroso,


Que aunque “diga que si”, su “si” es dudoso;
Pues que aunque estás seguro que te engaña,
Piensa que el engañarte es una hazaña.
Y hay alguno como un cordero bobo;
Fíjate bien, sus patas son de lobo.

III
Si admites en tu casa a un forastero
Y le ofreces tu pan, indaga bien primero
De donde viene, hacia donde va;
Pues hoy en día,
es costumbre o manía,
que un viandante que pasa
pretenda echarte de tu propia casa
y diga como el tordo: “Fuera hornero!
Tu nido es mío, pues yo... “llegué el postrero!”
Y es bien mío, te lo pruebo;
Lo hiciste tú, pero yo. ¡puse el huevo!

(p. 170) IV
Puede tenerse en el Comercio un socio,
Pero no la amistad como negocio.
Hacían los indios confabulación,
Para dar asalto o malón;
Suele aquí todavía formarse un bando,
Para algún negociado o contrabando;
Pero en eso no reza la amistad;
que es el contrato de una sociedad.
320

Por eso sus actuantes,


No son amigos, sólo traficantes,
Que en cuanto encuentren oportunidad,
darán al traste con “su sociedad”.

La suerte es tornadiza y muy falaz,


Por eso mira bien adonde vas;
Pues hay que andar con tino,
Que una equivocación en el camino,
Puede “torcer la vida” al más sagaz,
Y ésta, mi amigo, ¡no da marcha atrás!
1950.

O poema trata da amizade, das relações entre homens. Inclui a formação do


bando do contrabandista (certo, as palavras talvez estejam associadas por rimarem)
entre as relações do lugar, tratando delas depois de falar das empreitadas dos
índios. Fala também da volatilidade do bando.

SIMÕES, Olyntho María. La sombra de los plátanos. Rivera: G.A.D.I., 1963. (1901-
1966). Publicou também “Hojas Sueltas”.

2) (p.30) UNA CARTA


Son pretextos lo que buscas
A fin de quebrar conmigo,
E inventas esas historias
Sin fundamento ni tino

¿De dónde sacaste tú


que me vieron el domingo
- después que dejé tu casa -
borracho y metiendo líos?
¿O es que ahora uno no puede
discutir con los amigos
y tomarse alguna que otra
igual que cualquier vecino?

Eso de que estuve preso


En Santana es chismerío,
Si alguna vez me llevaron
Fue en calidad de testigo

No es cierto que abandoné


Una mujer con dos hijos:
Me divorcié legalmente
Y el divorcio no es delito.

Nunca fui contrabandista


Cuando tuve un bolichito
Solo compraba en la línea
Yerba, azúcar, caña y vino

Tampoco soy “calavera”


Como dices que te han dicho.
No veo que sea jugar
Hacerse un apunte al “bicho”
321

(p. 31) Es mentira que me ven


En las pensiones tiro a tiro
Pues hace cerca de un mes,
Que en una pensión no piso.

Yo te juro que es verdad


Todo esto que te escribo,
Y si tú no lo “acreditas”
Te pongo a Dios de testigo.

Si de mí estás cansada
Decilo que me resigno
Y no procures pretextos
A fin de quebrar conmigo

Olyntho Simões trata da moral da fronteira: observe-se que vender alguns


gêneros alimentícios comprados na linha não é considerado contrabando, ou pelo
menos está sujeito às dubiedades morais. Note-se ainda a expressão línea, forma
local de chamar a fronteira, que aponta para sua tenuidade, já usada em meados do
século passado.

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3) RIVERENSE
¡Yo soy más, mucho más de Rivera
Que el Cerro del Marco!...
Soy amigo del Puente de Raca
Y lo mismo de Paso de Castro.
Me doy bien con la “Piedra Furada”,
Con la Calle Brasil tengo tratos
Y citas nocturnas;
Me saludo con todos los plátanos
Y me dicen adiós los gorriones
Que pueblan sus gajos.
En los viejos fortines en ruinas,
En mis tiempos de alegre muchacho,
Hice más de un tirito a la taba
Y jugué mis partidos al sapo...
Conocí a Juan Barullo de cerca;
Intimé con Ciriaco,
Y la negra María das Dores
Enseñóme a “benzer” el “quebranto”
Y a cortar con el filo del hacha
Los vientos más bravos...
Yo sé cantar “terços”
Y lo mismo pasar contrabando.
Llevé cuando niño,
escondida en el forro del saco
“la oración de la puerta del cielo”,
que preserva de pestes y daños.

Yo soy tan, pero tan de este pueblo


Que en los viernes santos,
Bien remonto cometa, o por yuyos
A las chacras me marcho temprano.
¡Si seré de Rivera, que el cura que
me hizo cristiano,
empleó para ello del agua,
según me contaron
322

de la “bica” que entonces ya había,


justamente en el Cerro del Marco!

Poeta urbano, Olyntho Simões tematizava constantemente a vida fronteiriça e a


influência da cultura popular (identificada como brasileira) sobre o ethos local. Este
poema, usando aqui e ali expressões em português, é um dos precursores do uso
do portunhol como língua literária.
Trata-se de um inventário de lugares e objetos elementares na formação da
paisagem. Note-se a recorrência de elementos
elementos que falam de passagens, o que
permite afirmar a importância dessa operação no imaginário do lugar: Puente de
Raca: passagem; Paso de Castro: passagem; Piedra Furada: lugar onde se supõe
moravam índios e hoje é referência paisagística; Calle Brasil: em Rivera, marca a
importância do Brasil e é palco da vida noturna; Cerro del Marco: o principal
referencial paisagístico traz em si o marco de fronteira; plátanos; pardais.
Também apresenta tipos importantes localmente,como Juan Barullo: um
arruaceiro; Ciriaco (?); María das Dores: brasileira, portanto negra e benzedeira.
Entre os costumes citados estão o jogo do osso: praticado por gauchos, é composto
por apostas ao lançamento do osso do garrote do boi; benzeduras de origem negra;
empinar pipas e colher macela
macela na Semana Santa: dois movimentos com intenções
contraditórias, o primeiro é uma marca da influência positivista (laicismo) na cidade,
pois se trata da realização de uma festival de cores e gestos em dia de discrição; a
segunda ligada à crença de que a macela
macela coberta do orvalho, colhida na madrugada
deste dia, possui propriedades curativas; e finalmente, notavelmente, o contrabando.

FIGURA 49: Rivera: fotos do busto de Olyntho Maria Simões no Paseo de los
Poetas, ao pé do Cerro del Marco. - 2006
Fonte: http://www.derivera.com.uy/index.php?option=content&task=view&id=728& Itemid= acesso em
01/08/2006

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323

4) CANTO A LA CIUDAD DE RIVERA


Tu no tienes gloriosas tradiciones
No fuiste cuna de ningún caudillo
ni fuiste sitio de ningún combate.
Jamás se supo de extranjero alguno
que haya anhelado conquistar tus llaves.
No hay para ti recordación ninguna
de la historia en sus páginas de sangre.

¡Más vale así ciudad de mis afectos!


Honor es para ti que la grandeza
brutal de las peleas, en tus calles,
tranquilas y apacibles, no haya escrito
su signo de barbarie, con la sangre de muchos corazones
y el llanto de dolor de muchas madres!

¡Más vale así ciudad de mis afectos!


¡Tú sin eso también puedes ser grande!
Tú tienes el encanto de tus plátanos,
poblados de gorriones charlatanes,
y tu Cerro del Marco, que es un puño
cuyo índice gigante
señala eternamente las estrellas,
indica eternamente lo insondable...

Tu tienes la alegría
de tus alrededores pintorescos
que revientan en flor por todas partes
y un hermoso conjunto de mujeres
llenas de gracia y gentil donaire!
Apacible ciudad de mis afectos
-oculta como un nido entre el follaje
de tu arboleda majestuosa y típica-
no te hace falta, no, para ser grande,
una saliente pagina en la historia,
recuerdo de dolor, de luto y sangre...

¡Que nunca el eco del clarín de guerra


turbe el silencio ameno de tus calles!

Esse poema, que fala de tolerância, consta aqui por ser considerado o hino
não-oficial de Rivera.

MENDOZA, Lalo. Mi tropilla. 1ª parte. S/e Florida, ROU, 1964.


Nascido em 20/05/1904, em Santana do Livramento, falece em 09/07/2005
(outra fonte diz ser em 1989) em Rivera. Além deste livro, publicou “Maciegas”. O
Dicionario Riverense, de Joel Salomon, afirma que Lalo era “riverense por opção”

5) (p.29) EL CONTRABANDISTA
El sol fronterizo calentón de por sí
En suelo areniento es en deveras zafau,
se lo vé en las d’entradas sobr’el Batoví
Besuquiando su agrieste pezón agrietau.

Pa lau del nasciente se arrima una tropa


De sombras barcinas, con larga culata
324

Trayendo en la punta una luna grandota


Y haciendo costau mil estreyas de plata.

P’hacelo más claro al camino y sus triyos


Encendien sus luces muchos bichos de luz,
Chiydos nocheros presientan los griyos
Y alguna curuya su aguriento chuz chuz.

Por esos soturnos el contrabandista


Al Brasil lo acoyara con el Batoví.
En lo espeso del monte no saca la vista
A su fumo jediondo y su marumby.

De güelta tropea algun guacho cursiento


O alguna lanita asigun tea la cosa
Y al bandiar, si topa un maicero angurriento
El cruce se ayeita con troncos y prosa.

Cuando l’aurora repunta la noche lerda,


S’interna el contrabandista n’el Batoví
Con catinga en las manos de fumo de cuerda
Y en la boca un juerte tufo de marumby.

Note-se a presença marcante de vocabulário regional: vocábulos indígenas,


gíria, contrações e mudança de consoantes. É mais um a usar o portunhol para
desenhar estampas locais.
"El cruce se ayeita con troncos y prosa”, verso muito eloqüente sobre a
relação do contrabandista com o espaço natural e humano, mostrando que cruzar a
fronteira é percorrer um caminho com obstáculos a serem negociados, empecilhos
de caráter natural (construir uma ponte de troncos sobre o rio) e de caráter social
(chegar a um acordo com o guarda fronteiriço).
Mostra a natureza (a grande lua, as luzes dos bichos iluminando o caminho)
como cúmplice do contrabandista (extrapolando: a região acolhendo a prática nativa
do contrabando, numa relação intrínseca). O poema aponta para características da
prática (oportunidade, adaptação, perigo) e do contrabandista (vícios, cultura
marcada pela brasilidade = tufo de marumbi = bafo de feijão ou cachaça?)
Batoví é um rio à SE de Livramento-Rivera, corre da fronteira em direção à
Tranqueras.
Elementos articulados no poema: o homem, o caminho, a fronteira: o homem
e o obstáculo em seu caminho, a caminho por haver um obstáculo, obrigado ao
movimento.
Apresenta-se outra vez a conjunção paisagem / passagem.
325

FIGURA 50: Esquema mostrando a passagem como ato perpendicular à fronteira.


Fonte: Elaboração de Adriana Dorfman, 2006.

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6) (p.100) EL MOIRONES
Son un espejo de plata
Las aguas en el Moirones;
Mucho en ellas se han mirado
Tres viejos sauces llorones.
Un entardecer de fuego
Estando el sol por entrar,
Tomé mis tres aparejos,
Y al Paso bajé a pescar

Por una picada sucia,


De aquel Yaguarí desierto,
me interné, machete en mano
y tuve en la noche un puerto.

Mientras sentado esperaba


Que surgieron los tirones,
Se abrió la tierra y narróme
La historia de los moirones

(p. 101) Sobre estas negras barrancas,


lamidas por éste cauce,
mandó un cacique arachán
clavar tres troncos de sauce

En ellos fueron atadas


Con yapecangas y elviras
Tres indiecitas cautivas
Con mucho de tarariras
A los tres días siguientes
Al morir la tardecita
Junto al Paso a lo más hondo
Bajaron las indiecitas

Cuando remonta la noche,


en las aguas sosegadas
Se ven brillar con la luna
Tres tarariras plateadas
326

Ellas son las tres indiecitas


Muertas con ilusiones,
Amarradas en los troncos,
Que dieron nombre al Moirones.

Explica toponímia: não é vocábulo de origem indígena, mas sim uma lenda
que remete ao povoamento nativo. Caracteriza o índio como cruel, insinua uma
leyenda blanca, isto é, um relato da história do lugar em que os índios eram
apresentados como cruéis e frios.

QUINTANA MORALES, Reginaldo. Un péon de estancia. Intendencia Municipal de


Rivera, Biblioteca Artigas, 2005. 52 p.

7) (p.47) PECADO (milonga)


Yo que anduve sin destino
Perdido entre los cardinales
Y fui de los Orientales
El gaucho más peregrino
Pero firme en mi camino
Hasta el fin y de seguí
Yo no canto por canta
Sino por lo que sufrí

Si alguna vuelta e pecado


Por decir la realidad
e pecado por ser macho
Y decir la verdad
Yo e golpeado muchas puertas
Y todas se me han serrado
Solamente o por ser pobre
Y al ser pobre es un pecado

Si uno pulsa una guitarra


Y se arrima a un mostrador
Tal vez por ser payador
Por ay se larga a opinar
Pero dicen que es un vago
Que no quiere trabajar
Aquel que tiene un buen sueldo
Pasa el año protestando
Y al pobre lo llaman vago
Si lo encuentran mendigando
Si el pobre va a la frontera
Pa aliviar su situación
Le pegan un manotón
Con la ley del cero kilo
Y el grande pasa tranquilo
Nadie le toca el vellón

La ley sobre el contrabando


No fue echo en la campaña
Es como tela de araña
No se si muy bien me explico
No sujeta al bicho grande
Pero enreda el bicho chico.
327

Aquí lo miran al pobre


Como carne de cogote
Lo hacen tranquear medio al trote
Y el tiene que soportar
Parece que el pobre tiene
Algún pecao que pagar
Yo no pudeo arreglar nada
Pues soy un simple cantor
Solo le pido al Señor
Que aunque no me de ni un cobre
Que nunca le falte el pan
En la mesa de los pobres.

O autor é contemporâneo, e seus versos sobre o contrabando são, além de


graciosos, sintéticos da percepção de que há grande diferença entre a aplicação da
lei sobre ricos e pobres. Faz referência ao zero kilo, uma ordenação aduaneira
resgatada de tempos em tempos: proíbe todo tipo de compra no outro lado da linha.

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O texto a seguir foi encontrado na Biblioteca Pública Municipal “Ruy Barbosa”,


em Santana do Livramento.
A primeira parte é uma transcrição do diário do Conde d’Eu; está destacada
pelo emprego de itálicos. Seguem relatos orais levantados pelo editor dos “Cadernos
de Sant’Ana”, Ivo Caggiani (que assina como “membro do Instituto de História e
Tradições do Rio Grande do Sul”, e que além disso foi muitas vezes vereador
municipal, presidente da Câmara de Vereadores). O editor dos Cadernos é autor de
vários livros sobre a história local, é um “historiador leigo”. A historiadora Ieda
Gutfreund afirma que sua obra é mais fiel às verdades locais do que aquela de
certos historiadores profissionais, preocupados em primeiro lugar em afirmar a
diferenciação entre lusos e platinos na fronteira meridional do Brasil (2006).

CAGGIANI, Ivo. “Visita de D. Pedro II”, Cadernos de Sant’Ana. no. 11, 1996. p. 6-
13.

8) (p. 6)
A 11 de outubro de 1865, procedente de Uruguaiana, chegou a
Sant’Ana do Livramento o Imperador D. Pedro II, sendo alvo dos mais
calorosos aplausos e das mais elevadas distinções.
Sant’Ana do Livramento, que enfeitara sua ruas, recebeu o sábio
monarca mostrando, com alegres fisionomias, o quanto admirava a quem
tinha a glória de ser soberano de todos os brasileiros.
Apesar de sua rápida visita, D. Pedro II teve oportunidade de
percorrer a vila, visitar escolas, teatro, etc.
No diário de viagem do Conde d’Eu, que fazia parte da comitiva do
Imperador, encontra-se a seguinte descrição dessa viagem:

9 de OUTUBRO: O terreno torna-se mais pedregoso e acidentado;


às vezes aparecem capõezinhos no fundo dos vales, que vamos deixando
à direita ou à esquerda.
Às 3 horas chegamos à casa de uma senhora de apelido Cunha,
viúva do coronel Miguel Cunha. Apresenta-se acompanhada de sete de
suas filhas e declara ter ainda mais três nos arredores,
328

(p. 7)
duas casadas e uma viúva. As sete que vemos trazem vestidos de casa de
ramagens. A casa é de uma elegância absolutamente desusada nestes
desertos; sobretudo a sala ostenta o extraordinário luxo de um piano. Este
piano torna-se como era natural, um excelente objeto de conversação com
toda essa sociedade feminina. O Imperador convida logo as meninas a
mostrar seu talento musical.
O repertório não é variado: limita-se ao “Souvenir de Baden Baden”
e a duas modinhas brasileiras. Além disso, o piano está horrivelmente
desafinado. Desculpam-se dizendo que seu mestre alemão as deixou para
regressar ao Rio Grande. Suponho que agora está lecionando, com melhor
resultado, as filhas do sr. Eufrásio.
O jantar compensa o concerto. Nada falta, nem mesmo um
esplêndido aparelho: vidros dourados e bela porcelana de beira verde, com
o nome do falecido esposo da dona da casa escrito em letras de ouro. Esta
tarde os soldados da escolta apanharam muitos ovos de ema inteiramente
amarelos, que logo foram furados e cuidadosamente acondicionados para
com eles adornarem os aposentos do Rio de Janeiro.

10 de OUTUBRO: Partida às 5 horas por uma manhã


extraordinariamente fria. Ás 4 horas chegamos a casa do sr. Machado, que
está convalescendo de tifo. A sua casa ocupa a encosta de uma espécie
de colina e que por sua forma, chamam “o Cerro Chato” e que fica
inteiramente isolada no meio de um vasto planalto, limitado por vários lados
com colinas que terminam igualmente em mesas ou terraços. É uma
formação bem singular e, apesar da total ausência de árvores, não deixa a
paisagem de ter certo encanto assim iluminada pelo sol poente e animada
por milhares de bois disseminados pela superfície verde e plana do campo.
Correm as águas desse planalto do lado de Leste diretamente para o
Ibirapuitã; ao Nascente para o Inhanduí e do lado Sul para o Quarai, cujas
nascentes não estão longe. No dizer dos vaqueanos conhecedores da
região, estende-se a vista, deste lado do Sul, até o Estado Oriental, cuja
fronteira com o Brasil é formada, com se sabe, por uma linha artificial, das
nascentes do Quarai às do Jaguarão.

11 de OUTUBRO: Lindíssima estrada. Passa-se o Ibirapuitã não lon-

(p. 8)
ge de suas nascentes. Depois sobe-se a uma altura onde se encontra uma
das pirâmides de tijolos, com revestimento de cal, que assinalam, de
espaço a espaço a fronteira. Gosa-se dali uma vista pitoresca e muito
original sobre uma série de vales arborizados e de colinas de encostas
escarpadas, que quase todas terminam em pequenos planaltos. No meio
desta região atormentada aparece Sant’Ana na direção S.E. na forma de
uma massa branca, hoje um pouco envolta em bruma. Muito perto dessa
pirâmide, ou marco de fronteira, encontra-se ao mesmo tempo as
nascentes do Ibirapuitã, do Santa Maria e do Cuñapirú, afluente do Rio
Negro (grande rio que atravessa todo o Estado Oriental e se vai lançar no
Uruguai muito abaixo de Paisandu). Forma fronteira neste sitio a crista da
coxilha ou linha de divisão das águas, as quais vão, como se vê, do lado
brasileiro para o Ibicuí pelo Ibirapuitã e pelo Santa Maria, e do lado
Oriental, que entre parenteses, é aqui o do sudoeste, para o Rio Negro,
pelo Cuñapiru.
A verdadeira estrada para ir para Sant’Ana segue também a coxilha,
e portanto atravessa mais de uma vez a fronteira. Mas o Imperador não
pode sair do Império; portanto, depois de termos contemplado as duas
faces da pirâmide, temos de tornar a descer, por caminhos de cobras, para
um dos vales, com as suas encostas pedregosas e arborizadas, as
casinhas no fundo, cercadas de chácaras esmeradamente cultivadas. Mais
329

facilmente podia eu imaginar que estava num canto da velha Europa do


que na Província do Rio Grande do Sul.
Tornamos a subir para Sant’Ana. Vem ao encontro do Imperador a
Guarda Nacional a cavalo, na força de cerca de 200 homens, depois à
entrada da vila, a Câmara Municipal; mais adiante, um grupo de meninas
com fitas das cores nacionais; algumas pronunciaram falas em prosa ou
em verso. Visita à igreja; “Deus in cujus manu Sunt Corda regum”; etc. etc.
Por fim, tomamos posse dos nossos aposentos na Câmara Municipal; os
lavatórios estão adornados com o “Bard of Avon’s perfume”, e todo o
edificio está perfumado com anis. São 9 horas e meia. Depois de um
período de espera doloroso para os estômagos acabamos por ter um
copioso almoço com manteiga da terra, delícia que desde Porto Alegre não
tornáramos a conhecer. De tarde fizemos uma consenciosa visita à Vila.
(p.9)
A vila de Sant’Ana do Livramento está assente num contraforte da
coxilha. Tem aspecto quase europeu: as casas são disseminadas pelo
meio de jardins verdejantes onde crescem árvores da Europa, como o
choupo e a acácia (agora em flor), que em outras partes do Brasil são
desconhecidas. As sebes estão cobertas de rosinhas. Os pessegueiros e
os marmeleiros começam a formar frutos. Em compensação não há
laranjeiras. A população é, pelo que me dizem, de 2.000 almas, de que o
elemento brasileiro não representa senão aproximadamente a metade,
sendo o mais orientais, argentinos e europeus. Entre estes parecem-me
predominar os italianos. As lojas têm bustos do rei Victor Manuel, de
porcelana de cores, e o bilhar da terra tem a tabuleta “Hotel à la Garibaldi”.
Na praça, há em frente da igreja, um teatro de exterior monumental.
Da última casa da vila à cumiada, e portanto à fronteira, a distância é
de apenas cem passos. Imediatamente do outro lado fica uma casa sobre a
qual se vê flutuar a bandeira oriental.
Entretemos nosso ócio com uma coleção da Tribuna de Buenos
Aires. Está cheia, principalmente, de correspondência de Uruguaiana
acerca da chegada do Imperador, da rendição, etc. Digam o que disserem
no Rio de Janeiro, essas correspondências são extremamente corteses.
Uma das coisas que mais parecem ter impressionado nossos aliados é a
simplicidade de maneiras e do trajo do Imperador: esperavam
provavelmente ver manto de púrpura e de arminhos. Decididamente, a
coluna paraguaia da margem direita do Paraná era uma invenção, porque o
general Mitre (Don Emilio) entendeu poder sair do Rosário no dia 21 com
as tropas de seu comando e marchar para Concórdia. Continuamos a
ignorar o efetivo destas tropas.

12 de OUTUBRO: Dia de repouso... pelo menos parcial. Visitas às


escolas; de tarde passeio ao alto, onde está o marco da fronteira. Este
marco, como a maior parte dos outros, foi assente numa das raras
coincidências das fronteiras com um ponto culminante do terreno. Por
quase todas as partes, as colinas, sempre cilíndricas e de largos cimos
planos, elevam-se irregularmente, ora de um lado, ora de outro da linha de
divisão de águas. No conjunto a paisagem é do lado oriental muito menos
acidentada e arborizada que do lado
(p. 10) brasileiro.
No sopé do mesmo coroado pelo marco há um posto de soldados
orientais, que está portanto, a cem passos da vila e mais alto do que ela.
Este traçado de fronteira, de que resulta dominar o território
estrangeiro completamente a vila de Sant’Ana, é evidentemente
desvantajoso. Para remediar este inconveniente, pensou-se há anos, em
transportar esta parte da fronteira para o curso do Cuñapiru, no fundo do
vale adjacente. Em troca dessa faixa de terreno que nos cederiam os
orientais, receberiam eles outra mais extensa, porém sem importância
estratégica, entre as nascentes do Quaraí. Chegou-se a projetar um tratado
nesse sentido; porém sobreveio uma mudança de governo em Montevidéu,
330

e o novo governo recusou-se a concluir o tratado. Poder-se-ia talvez


aproveitar a atual aliança íntima para novamente tratar desse assunto, que
poderia combina-se com a questão da lagoa Mirim à navegação com
bandeira oriental instantemente solicita.
Convém notar, aliás que quase todos os estrangeiros, desta zona do
norte do Estado Oriental, são brasileiros. É este um grande mal, em
primeiro lugar porque são braços que o Brasil perde, para irem trabalhar
em terra estrangeira; mas sobretudo porque esses estrangeiros se filiam
com paixão nos partidos em que anda dividida a República Oriental
(atualmente no Partido “Colorado”) e conseguem com seus clamores
arrastar o governo a intervir nestas dissensões, como infelizmente se viu
no ano passado. Se perguntardes a esses filhos do Brasil por que motivo
deixam a paz de sua terra natal para virem meter-se num Estado entregue
a contínuas desordens, responderão que no Estado Oriental o terreno é
mais favorável à criação de gado. Nisto não creio; com exceção de um
pequeno número de vales arborizados do lado brasileiro, que não passam
de fato isolado, é idêntico o aspecto do solo dos dois lados da fronteira. O
que atrai esses emigrantes é o ser tudo mais barato do lado de lá, por ser o
regime aduaneiro dos nossos vizinhos menos restritivo que o nosso.
A povoação oriental mais próxima de Sant’Ana do Livramento é
Tacuarembó; mas não a pudemos ver.
(p. 11) 13 de OUTUBRO: Partida às 5 horas.
Como na véspera, há espesso nevoeiro que completa o aspecto europeu
da região.
Os espíritos prudentes, imaginando estarem na fronteira bandos de
“Blancos” que poderiam querer apoderar-se do Imperador (não sei para
que) conseguem que a escolta, que desde Uruguaiana fora reduzida a 60
homens, seja dobrada, com a Guarda Nacional de Sant’Ana.
Afastando-nos gradualmente da fronteira; atravessamos muitas
torrentes arenosas e pantanosas que vão engrossar o Santa Maria. Por fim
acampamos do outro lado da Restinga, curso de água mais importante que
os outros, e diante da casa de um espanhol chamado Zarratea, que tem
uma venda bem sortida. Arreios, livros, chapéus, fazendas de toda espécie,
porcelana, que sei eu? Tudo há neste brilhante estabelecimento, que com
surpresa se encontra assim perdido no meio do deserto. Suponho eu que
na sua propriedade entra por grande parte, o contrabando.
A lembrança de que estamos em casa de um europeu, que pode
estar animado de sentimentos “blancos”, suscita novos terrores. Deixam-se
fica selados os cavalos da escolta e dispõem-se guardas avançados em
todas as direções. Quanto a mim, declaro que os “blancos” não me tiraram
o sono.
Sobre a permanência de Dom Pedro II em Sant’Ana do Livramento,
em outubro de 1865, a tradição guardou diversos fatos pitorescos que
merecem ser aqui registrados.
Naqueles dias, uma grande seca assolava Sant’Ana do Livrmento,
fazendo que escasseasse a água até para o consumo da população que se
abastecia de poços ou de cacimbas. Em conseqüência daquela estiagem,
a água estava sendo transportada em pipas puxadas a boi, de lugares
distantes.
O presidente da Câmara de vereadores (que naqueles recuados
anos administrava o município), em virtude da existência do grande número
de casas cobertas de capim e temendo o perigo de algum incêndio (que
não poderia ser debelado), fez publicar um edital comunicando a proibição
do uso de foguetes para solenizar a chegada de S.M. o Imperador.
O Código de Postura a esse respeito dizia:
“É proibido lançar ao ar foguetes de qualquer espécie, sem
(p.12)
licença do Presidente da Câmara, que a não concederá senão para ter
lugar na Praça da Igreja e de dia, não sendo este ventoso. Os
331

contraventores pagarão a multa de quatro mil réis, e indenizarão o dano


causado”.
Como era natural, a prudente medida do vereador-presidente
Domingos Gomes Martins não foi bem recebida. As maiores manifestações
de júbilo na época, eram exteriorizadas através do estrugir de foguetes. E a
visita do Imperador do Brasil foi um acontecimento tão importante, tão
significativo que por muitos e muitos anos constituiu-se em motivo de justo
orgulho para os santanenses.
Eis que um forte aguaceiro caiu sobre a vila, como uma dádiva do
céu. Em conseqüência desse fato, um novo edital foi afixado à porta da
Casa da Câmara, o que encheu a todos de indizível satisfação. O
documento dizia:
“Mediante haver chovido, o cidadão Domingos Gomes Martins,
Vereador-Presidente da Câmara, comunica à população que podem deitar
foguetes ao ar.”
O presidente da Câmara, Domingos Gomes Martins, figura influente
na comunidade santanense e tronco de tradicional família deste município,
era um homem de poucas letras. Nas grande solenidades, vestia-se a rigor,
mas mandara adaptar em sua cartola um barbicacho, o que lhe dava um
aspecto peculiar.
Como autoridade máxima no município, convidou o Imperador e sua
comitiva para um almoço em sua residência, uma das melhores da vila.
O ágape transcorria num silêncio absoluto, pois nem o anfitrião, nem
seus colegas vereadores, e outras autoridades presentes, animavam-se a
dirigir a palavra à S. Majestade.
Dom Pedro II foi quem tomou a iniciativa, dizendo que estava muito
satisfeito de visitar Sant’Ana do Livramento. Referiu-se ao clima muito
saudável e, servindo-se de água, disse que era a melhor que havia bebido
durante sua viagem ao Sul. A certa altura, o monarca afirmou: “Se me
fosse possível viria residir em Sant’Ana...”
O Presidente da Câmara animou-se, desinibiu-se e, sorridente, assim
se manifestou: “Seria uma honra pra nossa terra! Venha, Majestade!
Venha!”
Dom Pedro, ante tanta ingenuidade daquele homem simples e
(p.13)
bem intencionado, respondeu, entabolando o diálogo: ”Lamentavelmente
não é possível. A Câmara jamais daria licença...”
Domingos Gomes Martins, num euforismo total, saiu-se com esta: “Se
é por isso Majestade, não há o menos problema. Aqui estão todos os
vereadores e pela Câmara eu respondo. A licença está concedida!”
Talvez o mais difícil para Dom Pedro II, nessa visita, tenha sido
encontrar a maneira como explicar aos nossos vereadores que a Câmara,
a que ele se referia, não era a de Sant’Ana do Livramento...

Vários assuntos interessantes surgem dessas páginas. Os fatos narrados e


as descrições de paisagem servem para uma reflexão sobre o que é um diário de
campo, peça de escritura que inclui desde as impressões pessoais até um desejo de
registro da paisagem e observações geopolíticas.
O relato das manobras a que se sujeita o Imperador por obedecer à lei do
Brasil, não deixando o território nacional e, consequentemente, enveredando por
“caminhos de cobras” ao invés de simplesmente seguir a estrada que liga Quaraí à
Livramento, dentro da lógica do lugar – serpenteando de um lado a outro da fronteira
– é bastante curioso. No Apêndice E desta tese apresentam-se fotos desse
caminho, agora secundário.
Note-se ainda os dados sobre a composição da população, de nacionalidade
bastante heterogênea, assim como a posição do Conde d’Eu quanto a presença de
332

brasileiros em terras uruguaias, entendida com “fuga de braços” – ainda que o autor
reconheça serem interesses econômicos os que movem a ocupação daquelas terras
por brasileiros. Por fim, a descrição da venda do espanhol Zarratea, com indicação
de contrabando, interessa por dar testemunho das mercadorias de luxo que
chegavam através do comércio ilegal.
O caso relatado por Ivo Caggiani, sobre a confusão de escalas políticas
causada pela ingenuidade e excessivo centramento do presidente da Câmara
Municipal é cômico e revelador da importância do lugar na formação do
pensamento.

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Na Livraria La Biblioteca, adquirimos alguns livros e um álbum de fotografias


antigas de Rivera. Alguns achados merecem ser transcritos, podem mesmo ser
classificados de antológicos.

BLANCHET, Ever María. Desde la Frontera. Tríptico de Riveli. Montevideo: Signos,


1991. 131 p.

9) (p.5)
DESDE LA FRONTERA

A la memoria de mi padre
A mi madre
A mis hermanos.
1979
1
Palabra
dame otra vez
la antigua facultad
de ser memoria.

2
En la memoria no quiero perder nada
Ni el silencio mortal de la cuchilla
Bordeando la llanura en las orillas
De mis ojos de niño, la mirada.

Me acompañan naranjas y membrillos


Agresiones, disputas, los asados
Entre los Blancos y los Colorados
En el rumos de leña y de cuchillos.

Bisio y Simoes vienen ordenados


A la memoria en versos enlazados.

Juntos y segregados, como una antigua fratría


Viviendo la poesía despiadada
Cruzando una frontera que no separa nada
Encuentro allí a mi patria.

(p. 6) 3
Para pensar mis paraísos pienso en ti
Entonces vienen lentamente las praderas
Las formas de los ojos, las caderas
333

La voz del viento que sopla en Rivelí.


No tengo el muelle ni el río de Rimbaud
Ni los mundos, de Benedetti o Borges, ni sus arcas
Como Alberti o Neruda, no tengo mar ni barca
Tengo un paisaje urbano que nació en Cuaró.

El viento norte trae una tempestad


Serena, que me alegra la mirada
Pasa rasante pero no rompe nada
Será distinta más tarde la ciudad.
La arcilla pinta el rojo de las calles
Ladrillos ocres y granates en los valles.
4
Mi libertad primera fue aquel día
Era un retazo azul de cielo
Que veía desde el coche o desde el suelo
Hacía apenas ocho meses que vivía.

Los hombros de mi padre, no sus quejas


Fuero luego, mi libertad segunda
Paseando por las calles con la bunda
Montado a un elefante, prendido a sus orejas.

Después, mi libertad fueron piernas y ojos


(p.7) Que llenos de coraje me llevaron lejos.

Mi libertad ahora son los otros, una constitución


Todo lo compartido, cumplir con lo acordado
El respeto a los otros es sagrado
Ser todavía más libre será mi vocación.

5
Evocando en fragmentos simbolistas
De mármol y granito revestidos
En las altas vitrinas los vestidos
Con la hermosa expresión de escalinatas.

Me dieron los principios de aprendiz


De estética, ese arte de lo bello
Sencillamente observando aquellos
Sobrios salones de “Casa Siñeriz”.

La arquitectura que sobresaliera


Entre las bajas casas alineadas
La iglesia de pequeñas campanas elevadas
Fue la armonía del centro de Rivera.

No olvido la tristeza de aquel día


Desde el Cerro Marconi, la iglesia no existía.

6
La memoria de la ciudad creada
Para acabar antiguas veleidades
Terminó por unir las dos ciudades
Será las dos culturas, talvez no será nada.

(p.8) Si la lengua, la identidad extensa


Nos da la nación del pensamiento
Los que somos de Rivera y Livramento
Hemos creado ya, una nación inmensa.
334

Embajadores del censo y del consenso


De vasto entendimiento razonado
Contenciosos y atritos olvidados
Somos un fondo de recursos, pienso.
Talvez somos los cónsules del arte
De hacer de la frontera un estandarte.

7
Siempre encuentra un lugar para el olvido
La geografía neutral del sacrificio
Donde nunca existió ni hombre ni oficio
En esos páramos de agua yo he soñado.

En España, en Marruecos o en Santana


Una playa, un arroyo, una laguna
Me han dado más misterios que la luna
En la tarde, en la noche en la mañana.

Cada momento está lleno de encanto


Con su luz, con su música y su espanto.

En la desigualdad del poderío


La planta y el animal se acosan
Se consumen, se suman y reposan
Para aumentar la fuerza con su brío.

(p.9) 8
En Santana, de noche, una encerrona
Nadie sabe qué hacer. ¿Que ha sucedido?
Al día siguiente igual o parecido
Una ciudad que muere y se abandona.

En tu asfalto de plomo he caminado


Buscando a dos mujeres que me amaron
Después de seducirme se ocultaron
Desesperadamente ilusionado.

Allí el día es tan claro que te ciega


Y la noche es tan noche que se niega.

Talvez solo buscaba descubrirte


Encontrarme contigo y no con ellas
Ciudad mujer, extraña y bella
Comprendo que es difícil seducirte.

9
En el único lugar que me enseñaron
Algo real que luego descubrí
Donde otros se esforzaran yo aprendí
En el mismo lugar que me educaron.

Fueron maestras en una amable escuela


Allí al teatro, inclusive, me alentaron
Haciendo lo imposible me formaron
Las descendientes de José Varela.

Para Nubia y Aurora toda mi gratitud


(p.10) por dedicarme parte de su juventud.
335

Volvería con gusto yo a la escuela


a la ilusión por el conocimiento
a los misterios del descubrimiento
y en recreo a ser novio de la Quela.

10
¿Dónde empieza la vida, dónde cesa?
Esa frontera fina que me temo
Equilibrio al griego, extremo a extremo
Dionisio con Apolo en una mesa.
De repente la puerta está cerrada
La que fuera dinámica, sosiega
O es una puritana que se entrega
Fingiéndose una vieja inmaculada.

Rivelí se transforma en un santuario


Inhabitable, falso, funerario.

Cuando eso ocurre yo me siento aparte


Marginado, en la ciudad mezquina
Muere la vida, en la plaza y en la esquina
Los traficantes cruzan sin mirarte.

11
De la naturaleza antojadiza
Son los cielos y son las estaciones
Siento la primavera con sus emociones
He llorado el verano que agoniza.

(p.11) En Rivelí son siempre diferentes


Las cuatro partes del año encadenadas
Los días son paredes encendidas
O son lluvias o heladas persistentes.

Se respira el olor y el poderío


De humedad o sequía en los caminos
De pedregosas tierras de los vinos
Arcillosa materia del estío.

Llegan naranjas y llegan las heladas


O el calor de sandías desfachatadas.

12
Hay vergüenzas en el paraíso, la ironía
En la cuesta del Cerro del Estado
Un barrio miserable, escondido y tapado
Un cantegril que llaman “La alegría”.

Allí viven gurises con dolores


Diarreas, tifus y otras enfermedades
Son los descuidos o nuestras maldades
Tuve amigos allí, los lustradores.

Volveré a caminar por “La alegría”.


Ojala ya no encuentre aquella gente
Durmiendo amontonados, los parientes
En el barrio más triste, la ironía.

Iré de todos modos, cuando pueda


Espero que hayan hecho las veredas.
336

(p.12) 13
¿Hijo de quién, de quiénes, los parientes
De donde las cenizas se juntaron
Y para darme forma se agruparon
Siendo presente, este señor sonriente?

¿De tanta lejanía habrán soñado


Aquellos que ordenaron la escalera
Que llegado el final allí estuviera
Este hombre memorioso y aniñado?

Bueno, aquí estoy, ¿soy yo lo que esperaban


Todas las noches juntas que pasaban
Unos y otros afanosamente
Fornicando, hasta encontrarme entre los otros?

¿Qué os parezco, soy uno de vosotros


Quién es ese del fondo sonriente?

14
Me despertaban los tiros
Y no eran juegos de niño
Agarrado del revólver aparecía Don Coitiño
Entrando a lo de Perroni por el bar “Los barrilitos”.

Las noches de Rivelí las vivieron esos hombres


Paseando harina o café, el aceite o la madera
De Rivera a Livramento, de Livramento a Rivera
La perfecta tradición, las ancestrales costumbres.

En mis noches aparecen Perroni y el Gordo Tito


(p.13) Alberto Winche y la barra, de aquel bar “Los barrilitos”.

Vivieron la poesía pura, de putas y contrabando


De todo hicieron exceso, todos ellos eran fuertes.
El infarto y la cirrosis los llevaran a la muerte
Hombres jóvenes y alegres anochecieron temprano.

15
Ensoñarme debe ser algo así como asombrarme
Talvez, obligarme a soñar enajenado
Ensueño al sueño, despierto enamorado
Soñarme en mí. A mí abandonarme.

¿Quién podrá recordar lo cotidiano


A quien le importa eso acaso
Tan sólo recordarlo no sería el fracaso
Quién podría olvidar lo cotidiano?

Vivir es sólo sueño. Yo soñado


En una fiesta de triunfos esperados.

La ensoñación activa es el coraje


Alienación sublime. El absoluto
A veces imposible. Siempre diminuto.
El constante alimento de este viaje.

16
De las sierras de Gauna y sus colinas
337

Mis recuerdos me llevan al pasado


Allí vivieron Charrúas acosados
Yo nací en una casa de Curtina.

(p.14) Mi abuela de los indios descendía


Silenciosa y discreta como un puma
Descifraba misterios con la luna
Unas brasas y el mate hacían el día.

Aquellos indios todavía me excitan


Nombrándolos me cercan y me habitan

Ceibos en flor y montes de Pitanga


Los siento míos, como si allí naciera
Yo soy urbano, me crié en Rivera
La frontera de Asensio y de Ipiranga.

17
Siempre estaré en el límite cambiante
Caminaré a lo largo de fronteras
Como un demente condenado a las riberas
Viajando hasta tocar el horizonte.
El mundo es vasto y uno en todas partes
Idénticos los códigos usados
Signos y formas de siempre utilizados
Son finitas las memoriosas artes.

Volveré otra vez con los que fuimos


Aquellos que recorren el poniente
Observando los signos del presente
Regresaré, talvez otros partimos.

¿Siempre caminaré a lo largo de fronteras


como un demente condenado a las riberas?

(p.15) 18
Si pudiera soñar con el futuro
Un viejo escribidor me sucediera
Hablando con su dulce compañera
Frente al mar más azul y más oscuro.

Ella niña y yo niño, viendo lejos


Como unos locos delgados y morenos
Se besaban ansiosos y serenos
Siendo nosotros, aquellos mismos viejos.

El futuro se fue, duro, indomable


Sólo queda el pasado interminable.

Ahora podremos hacer los que queremos


Darle vida a la muerte entrometida
Darle muerte a la vida tan deseada
Ahora vamos a hacer lo que podemos.

19
Soy sólo lo que queda
La otra forma
El nuevo de lo viejo desprendido
Ni envejecer ni obedecer por gusto
Ni a disgusto y menos consentido.
338

Soy lo después, ni todos


Los que fuimos
Seré lo que no soy en el presente
Siendo conmigo en forma y en deseo
Seré feliz conmigo, consecuente.

(p.16) Si así no soy


No fuera yo posible, creo
Ni necesario fuera ser
De otra manera a mí no me deseo.

20
Yo no puedo olvidar lo que he vivido
Sueño con flores y bronces amarillos
La ceniza de luz llena de brillos
El futuro hizo ya su recorrido.

Las flores y el recuerdo son trofeos


De hombres y mujeres que no quieren
Pasar así, sabiendo que se mueren
Dejando su abandono y sus deseos.

La ilusión es un puente entre dos nadas


Lleno de signos, de gestos y pisadas.

Siempre corremos hacia el otro lado


Buscando algo seguro, lo que luce
Sabiendo que esa euforia nos conduce
A la nada que nadie ha desvelado.

21
Los días se hacen más cortos
Me sobrecogen las disminuciones
Antiguos bienes y desilusiones
El otoño abrirá para nosotros.

(p.17) Volverá la nostalgia con su intento


De ver mis ojos húmedos y tiernos
Son iguales y duros y serenos
La adolescencia fue hace mucho tiempo.

Dios juega temerario con todo lo que nombra


A algunos los despoja. A mí eso no me asombra.

Aunque me sobrecojan las disminuciones


Si lo que te abandona te acompaña
Nada desaparece, es sólo una artimaña
Porque fui siempre colmado de ambiciones.

22
Antes a mis muertes despedía
En una cama o el hospital
Veinticuatro horas de velorio eran algo normal.
Después la sepultura, al otro día.

Más tarde no se fueron de ese modo


Alguien los trajo muertos y tapados
Los cajones clavados y lacrados
El entierro era breve y vigilado.
339

No ganaron la muerte en las batallas


Ceñidos de cuchillos y enseñando agallas.

Con el sabre en la mano, allá en Rivera


He soñado la muerte que me mate
En el bello paisaje de un combate
Para ir a descansar a Presidente Viera.

(p.18) 23
En la piscina Apolo, pasaba yo los días
Allí escribí los versos del amor
De aquellos que se escriben con dolor
No recuerdo por qué, pero sufría.

El último verano disfruté


Los ojos embrujados de una musa
Los versos dedicados a la intrusa
Al fin del verano los quemé.

Los bosques de eucaliptos perfumaban


El agua que a la hidráulica venía
El aire que allí se humedecía
Veía a mis amores que llegaban.

Aquel balneario adolescente ya no existe


Me queda la mirada del día en que te fuiste.

24
La milonga de mi padre
Aquí me pongo a cantar
en esta chacra de Oriente
solía decir mi padre
sin dejar el aguardiente.

Y les voy a improvisar


una milonga de aquellas
en la que recuerdo a todos
incluyendo aquí a la Yeya.

(p.19) Mis parientes me acompañan


a donde quiera que vaya
Numuca va por el agua
mi suegra la tengo a raya.

También me sigue de cerca


mi hijo con la pelota
es un chiquilín terrible
y es ahijado de la Lota.

No quisiera que se fuera


mi tío Buenaventura,
fue siempre un viejo borracho
pero era una hermosura.
Llega también con sus pájaros
dentro de la pajarera
el tío más loco que tengo
y al que llaman Calavera.

Pero veo aquí a mi lado


340

sentado con doña Juana


a mi buen amigo Oriente
que se escapó de la aduana.

Ya no puedo cantar más


porque ha llegado el maestro
que es don Esmérito Blanco
y éste sí que es hombre diestro.

(p.20) 25
Estos días te recuerdo como fuiste
Caminando en el borde de la noche
Lleno de alcohol a veces un reproche
Con los ojos de nácar y algo triste

No pude oír de ti ni maldición ni queja.


Solo te vi pasar, amargo y ebrio
Me dejaste la intriga y el misterio
Como alguien que sonríe y que se aleja.

Así te fuiste humilde y desolado


Sin haber tu secreto revelado.

¿Serás acaso lo que no se devela


El silencio que todo lo hace duda
Una certeza sin palabras, muda
Como un pájaro enorme que no vuela?

26
La imagino pequeña como es realmente
Serena y presurosa tejiendo los abrigos
O entre dulces y aromas de membrillo o de hijos
La imagino en la cama pensando largamente

La recuerdo atareada, feliz, algo impaciente


Recibiendo a parientes, afligida
El dolor de los otros oscurecía su vida
Ella nunca fue avara, floja o indiferente.

La veo en los deberes, ordenando las viandas


(p.21) Algunas eran gratis como otras encomiendas.
La evoco en los insomnios de noches desveladas
Madre amable y pequeña como una medicina
Perfumada en marcela y yuyos de Curtina
El sueño o el alivio vienen con su llegada.

27
Me tenía que ir a cualquier parte
No sabía que el azar riguroso, lo había decidido
Yo no tenía ni pasaje ni vestidos
Mi hermano Oriente me pagó el embarque.

Sin retorno, la penúltima partida


Me fui en silencio, sin que nadie lo supiera
Me ayudaron amigos de Rivera
No preguntaron si aquello era una huída.

Uno de ellos era amigo de mi padre


Hombres de un tiempo de fidelidades
Me vio llegar. Me abrazó, dijo – compadre.
341

Me ayudó tanto su gesto, y su confianza...


Iglesias me cruzó en la aduana, sin dificultades
Empezaba otra vida. Otra esperanza.

28
Dios debe ser un gesto erótico
Y el Diablo la impotencia
Es lo que me delata la evidencia
Aquello que fecunda no es despótico.

(p.22) Padre. Miro sin pena, sin rencores


El mármol de la tumba decadente
Vengo de lejos, desde otro continente,
A pedirte que acepte mis amores

Hijo de un tiempo sin presente


Fuimos amigos. A veces enemigos
No hubo distancia. Has estado conmigo
Vengo a reconocer que he sido yo el ausente.

29
La fiesta más pagana y verdadera
Ebrios de alcohol y de éter extenuados
Salíamos de los bailes ya cansados
Confundiendo Santana con Rivera.
Fueron locos y muchos carnavales
El corso de colores decadentes
Las fiestas en los clubes, los ambientes
Tanto el centro como en los arrabales.
¿Quién no recuerda un baile de burdel
“El apagón”, “La gorda”, “Dionisio Modernel”?
Desde el club Uruguay una escapada
Un beso robado, allá en el Caixeral
Se convertía en amores en el Comercial
Al fin del carnaval estaba embarazada.

(p.23) 30
Pagano en mis costumbres y sin credos
Tuve el ángel más bueno que existiera
Por mí rezaba, sin que se lo pidiera
Conocía mis peligros, mis enredos.

La música y la Iglesia eran sua historia


La armonía perfecta de su vida
En las horas de ocio iba enseguida
A hacer cambio en la línea divisoria.

En el cielo no sé, pero en Rivera


Hubo un ángel que no era de madera.

Descubrimos a Mozart ya a Beethoven


Enseñó piano por suerte y por fortuna
Su alimento era el agua, la sal, una aceituna
Con Olga Doninelli, vieja y joven.

31
Decíme un animal, del burro al oso
Cuyo nombre con a comienza
Para que sea más fácil, es una bestia inmensa
342

Le preguntó Simoes a Veloso.

Sentados como niños en un banco


Veloso enumeraba los bichos, entre sueños
Aperiá, águla y anguila, avestruz, ardilla eran pequeños
Una noche en la plaza Río Branco.
- Pero mirá que sos bien abombado
No sabés nada. Me tenés cansado. –

(p.24) Dijo Simoes al fin en un desplante


- No sabés ni el nombre de los bichos.
Te dije que era grande. No un pichicho
¿Cuál animal es un gigante, si no es el alefante?

32
El pan sabroso, más rico que comí,
De harina parda, olorosa y salada
Era el pan que comía la brigada
Hecho en los hornos a leña de Don Drí

Entre otras cosas aquel cincuentainueve


Nos trajo gustos y olores olvidados
Músicas y canciones de soldados
En paz y guerra que todavía nos llueve.

Catástrofes antiguas retornaron


Tan necesarias como un arcaico rito
Ofrendas que se entregan con un grito
De vanos muertos que se crucificaron.

En esta paz nos queda el ejercicio


De aprender en el vano sacrificio.

33
La salida de trenes. La llegada
Solidarios los hombres de Rivera
Los camiones de piedra. La cantera
A barrenos partida y desgranada.

(p.25) Las soluciones no sólo son de Estado.


Mujeres y hombres responsables, se entregaron
A rehacer la vía. Ellos triunfaron.
Eran unidos, serenos y dotados.

Hombres sudados llegaban por las vías.


Esperaban amantes, hijos, madres,
El andén era fiesta aquellas tarde.
La vida era más vida en esos días.

Hoy volvería a escaparme en las brigadas


Para reconstruir las vías destrozadas.

34
Recuerdo al coronel de la estación
Precipitado en gestos y discursos
Dirigiendo el ejército y recursos
Convirtiendo el caos en reconstrucción.

Guerrero de la paz, con la intuición


Como un sabio romano de la guerra
343

Se aventuró sobre la vía férrea.


Cercando la catástrofe de la inundación.

Hizo del trabajo una aventura


Con el viejo equilibrio de la desmesura.

Metieron la natura en sus carriles


Trabajando duro pero sin pretensiones
En batallas sin premios sin condecoraciones
Augusto Moratorio y las brigadas civiles.

(p.26) 35
Duro, sectario, sobrehumano
Nicómano en mi griego pensamiento
De la república, Rivera y Livramento
Me ayudaste a no ser un puritano.

En el ágora del patio te escuchaba


A veces la pasión equivocada
La verdadera historia nunca perdonó nada
Tu honesta voluntad me adoctrinaba.

El universo cambia, hay formas diferentes


Creíamos en el determinismo, por costumbre
La materia no se comporta igual. La incertidumbre
Hoy existen modernos referentes.

Yo tuve un patio que el olvido no niega.


La casa de mi abuelo en mi Rivera griega.

36
Los gustos del azúcar y las frutas
Del cacao y la nata son las trufas
El gluten se levanta en las estufas
Los hornos y las artes y batutas.

He vivido en ciudades muy golosas


De Cataluña y la exquisita Francia
En las calles se huele la fragancia
De confituras, tartas y otras cosas.

(p.27) Nada me hará olvidar aquel deleite


Del sublime y meloso “Mocotó con leite”

37
Ni vieja ni muchacha, mi madrina
No hubieron hombres en su piel de seda
Corría por el patio o la vereda
Como una mariposa danzarina.

Al sueño me llevaba de mano


Con narraciones llenas de misterios
De hombres lobos y vida y cementerios
Mezclando el portugués y el castellano.

Ella fue amable, hasta cuando se fue


Se llevó la pureza de aliento de café.

Volviendo de jugar a la pelota


Dijo, -Te vas a quedar sin tu madrina –
344

Su mirada era verde y cristalina


Aquella misma tarde se murió la Lota.
38
Entre azúcar y nata, el chantillí
En la mesa batía el artesano
El bizcochuelo con su propia mano
(p. 28) Nació el sublime postre “Rivelí”

Los Fagundez aún están allí


Haciendo deliciosos cañoncitos
Las bombas, las milhojas, los coquitos
Pero el rey es el postre “Rivelí”.

El horno es el arte del secreto


No les doy la receta, soy discreto.

Por la dulzura que les sale de las manos


Porque la risa y la confitería
Son la armonía de la coquetería
Gracias a los Fagundez Metropolitanos.

39
Pocos hombres he visto tan valientes
Si otros se divertían, él estaba contento
Su nombre no lo sé, lo llamaban Momento
Era negro, era feo, era demente.

Asustaba, alegraba y espantaba


Levantando una silla con los diente
Por unas pocas copas de aguardiente
La gente lo aplaudía y se alejaba.

Lo encerraban a sabla y a garrote


Formando un ruedo iba la policía
Ni entre dos, ni entre tres, no se atrevían
A Momento no lo agarran del cogote.

No sé dónde estarás Negro Momento


Saber que vives me dejaría contento.

(p.29) 40
En busca del milagro, por las vías
Llegaban en los trenes de ilusiones
Ocupaban hoteles y pensiones
Buscando al químico Federico Díaz.

Jóvenes de ambos sexos y mayores


Nunca llegaron tantos a Rivera
Eran vivos y muertos, calaveras
Formaban grupos en la plaza Flores.

El cáncer consumía aquellas gentes


Errantes, extranjeros, sin parientes.

Fuimos un campo de concentración


Un desencuentro de vivos y de muertos
Que velamos dormidos y despiertos
Los recordaré siempre en la vieja estación.
345

41
Milonga del loco Sena.
Se meten con mi memoria
que se antoja lejana
Les voy a contar la historia
que recordé esta mañana.

Era loco y era manso


fue mi amigo el loco Sena
se ganaba enemistades
y bebía que daba pena.

(p.30) Era manso y era loco,


fue mi amigo el loco Sena.
Se rodeaba de cariño
y sufría que era una pena.

Le pegaron unos tiros


en una noche cualquiera
en la cara le quedaron
los plomos como zafiros.

Un orgullo es llevar puesto


Lo que no pudo matarle
Y esa enorme valentía
Nadie ha podido sacarle.

Seguirá libre, insolente


Viviendo como él quería
Sin respetar casia nadie
Metiéndose con la gente.

Me gustaría saber
Que mi amigo, el loco Sena
Sigue con buena salud
Y que ya no tiene penas.

42
A la línea llegaron los marcianos
Una mañana en plena primavera
Eso sólo pudo pasar allá en Rivera.
Se lo creyeron hasta los ancianos

(p.31) El loco Eula despertó sin un cruceiro


Durmió una borrachera aborrecida
Las bromas que te juega la bebida
Levantó la cabeza y se encontró al lucero.

Eufórico hacia el cielo sacudía, las manos


Dando la bienvenida a los marcianos,

Un satélite que es como un avión


Decía a los demás en la frontera
El parque se llenó hasta la bandera
Hasta la tarde duró aquella función.

43
En los bailes de Dija, en la cocina
Una mujer espléndida alta y gruesa
Hacía los gustos, como una francesa,
346

Su nombre era María Celestina.

El arroz era arroz de sueltos granos


Las papas en su forma, bien cocidas
De carne o de pescado eran comidas
Apetecibles hasta en los veranos.

Un lechón que se come sin cuchillo


Una tortilla, un pato, un pejerrey
Como un chino cocina su chop suey
Celestina les daba gusto y brillo.

De los bailes no puedo decir nada...


Guardo el secreto. Pero era muy zafada...

(p.32) 44
A todas las señoras de la noche
Muertas en el olvido. Vieja o niña
A todas ellas recuerdo en la Santiña.
Recibiendo agresiones y reproches.

¡Cuánto consuelo y cuántas comprensiones!


Tuvieron esas musas del dinero
Que dieron más de lo que recibieron
A tímidos, discretos, solitarios varones.

Ellas dieron placer. Juego de niñas


Permitieron el goce de la desmesura
Su lenguaje eran signos de ternura
Celebro en el amor a las Santiñas.
Dios, que de amores lo comprende todo
A ellas les dará cariño, de uno u otro modo.
45
Para mí fuiste un patio lleno de claridades
Un jardín religioso de fina arena blanca
Fuiste también impulso, como el de una palanca
Donde escuché la música, con sus frivolidades.

La alegría se extendió como un día soleado


Principio y claridad de soluciones
Contigo aprendía las canciones
Alegre y divertido era estar a tu lado.

Nombre que significa el final de la noche


(p. 33) Persona sin foscor y sin reproche.

Escribo hoy estos versos de manãna


Porque son para ti flaca querida
Porque el amor nos dio la misma herida
Recuerdo adolescencia que Alba era mi hermana.

46
No todo el mundo tiene
La suerte de haber vivido aquí
En este valle alfombra
De helechos y crestas y ventanas
De frutas y morenas y mañanas
Alegres y serenas, Rivelí.

Volverá siempre, siempre


347

A beber agua fresca de la bica


Y volveré al final
Hecho cenizas
Para quedarme aquí definitivamente
Viviendo enfrente de lo de Caíca.

Rabonero incurable, en este viaje


A la muerte, esa mística señora
Lo digo hoy, podrán verlo mañana
Le voy a hacer la última rabona
Me quedaré en el cerro a mirar el paisaje
No voy a entrar ni a la segunda hora.

(p. 34) 47
Gracias memoria
Que descansen mis muertos

Regresaré, en mis idas y venidas.


Seguiremos hablando de la vida.
1979 - 1981.

Esse longo poema, cujo propósito é construir a memória, tematiza a fronteira


como objeto central do cotidiano, e a descreve como “una frontera que no separa
nada (...) mi patria”. A fronteira, que geralmente permite a passagem mas às vezes a
proibe – o que se identifica em outros textos rivelienses como dobradiça ou bisagra
(BENTANCOR-ROSÉS, 2002, p.18) – é aqui representado como uma mulher
fingida, uma puritana que se entrega, trazendo mais uma vez os ecos da moral
dupla: “De repente la puerta está cerrada / La que fuera dinámica, sosiega / O es
una puritana que se entrega / Fingiéndose una vieja inmaculada. / Rivelí se
transforma en un santuario / Inhabitable, falso, funerario. Cuando eso ocurre yo me
siento aparte / Marginado, en la ciudad mezquina / Muere la vida, en la plaza y en la
esquina / Los traficantes cruzan sin mirarte.” A condição periférica é, na seção 17,
ambiguamente identificada como liberdade e condenação.
Ao portunhol é atribuida a capacidade de aglutinar a população: “la lengua, la
identidad extensa (...) la nación del pensamiento / los que somos de Rivera y
Livramento / Hemos creado ya, una nación inmensa.” A questão da língua é,
entretanto ambígua, na medida em que o poema foi escrito em espanhol.
O repertório de personagens inclui os loucos, os negros, as virgens, as
musas, os antepassados, as cozinheiras e os símbolos locais: as melancias, o
postre Rivelí, o carnaval e o contrabando. Este aparece como desmesura e perfeita
tradição “Las noche de Rivelí las vivieron esos hombres / Paseando harina o café, el
aceite o la madera / De Rivera a Livramento, de Livramento a Rivera / La perfecta
tradición, las ancestrales costumbres. (...) Vivieron la poesía pura, de putas y
contrabando / De todo hicieron exceso, todos ellos eran fuertes. / El infarto y la
cirrosis los llevaran a la muerte / Hombres jóvenes y alegres anochecieron
temprano.”
348

MARÍN, Mirtha Garat de; ALVEZ, Delia Cazarré de. La mirada del Tiempo.
Montevidéu: Asociación de Literatura Femenina Hispánica, 1991. 197 p.

Este livro, que se apresenta como um intermediário entre a História e a


estória, apresenta ainda um inventário dos artistas locais tem como epígrafe a
pergunta “Rivera, ¿qué pasiones, qué voces, qué silencios, acunaron tu origen?” e
responde a questão com uma postura historiográfica nacionalista, como mostram os
trechos abaixo.

----------

10) (p.25) Sobre os acontecimentos dos séculos XVI e XVII:


El mapa se dislocaba de manera caprichosa.
Cediendo ante una urdidumbre tenaz, España modificó la línea
demarcatoria perdiendo de hecho y de derecho vastas zonas del
Virreynato; entre ellas los actuales estados de Río Grande y de Santa
Catarina.
Y se le fueron escapando tierras simbióticamente identificadas con
las nuestras.
El avance usurpador de Portugal se consagró con el Tratado de
Madrid en 1756.
Poderoso, tomaba lo que quería, frente a una España “dilettante” y
empobrecida.

Note-se a curiosa visão de Portugal esperta e ofensiva conquistando terras


simbioticamente “uruguaias”.

----------

11) (p.44) O contrabando é apresentado como um fator de atraso ao


desenvolvimento de Rivera no século XIX:
Durante un par de décadas, este lugar en el que el brote de vida
parecía afirmarse, entró en una marcada involución por una serie de
factores negativos:
Se sumaban el contrabando, las faenas clandestinas, los
malhechores y asesinos de aquí y de afuera, el desgarrón final de las
luchas fratricidas...
-----------
12) (p.45) Aparício Saravia surge como um herói regional e nacional:
...Aparicio Saravia “aguarda en la puerta de la historia”.
Saravia: modelo de caudillo de fines de siglo, al que Gálvez de fine
en breves trazos: “...En la marcha se multiplica; anima a los que se
regazan; indica los caminos; cuida de los heridos y de enfermos; dicta
notas y cartas, y se preocupa del alimento y del vestido.
Es el jefe y conductor de sus hombres. No tiene mucho espíritu
militar, ni fuerte sentido de la disciplina y de la jerarquía...”
Pero es un caudillo.
Un caudillo genial. (...)
Aparicio Saravia: la historia uruguaya le reservó un sitial, porque en
instancias oscuras y caóticas, supo ser el reivindicador de las libertades y
la democracia.

------------
349

13) (p.141 e ss) Coloca a defesa do espanhol como uma luta política:
El D.P.U. (Dialecto Portugués Español) ocupó y ocupa a lingüistas,
académicos de letras, docentes.
Existen estudios y propuestas que señalan orientaciones para
enfrentar la complexa realidad del habla fronteriza
El idioma nacional es nuestro acervo social. Significa tradición,
historia, identidad, la expresión más rigurosa de soberanía.
*
Es el vehículo masivo de comunicación y de cultura . Refleja una
concepción del mundo y sus valores; un modo de ser, de sentir y de vivir,
ligado al origen metafísico de nuestra comunidad espiritual”.
De ahí, la imperiosa necesidad de salvaguardarlo. De promover y
expandir por todas las vías imaginables, el uso culto del español regional.
De propiciar una toma de conciencia a nivel individual y colectivo, partiendo
de una cuidada enseñanza de la lengua (...).

-----------

14) (p.145) O artigo da lingüista Graciela Elisedo, inserido no livro supra, trata do
falar em Rivera e desenha cenários futuros.
En efecto: de acuerdo con los datos con que contamos, se ha
desarrollado en RIVERA una forma oral “de contacto”, con marcada
preponderancia del portugués. Dicha preponderancia sólo puede ser
resultado, como dijimos, de factores extra lingüísticos, entre los que se
habría que considerar como relevantes en este caso, una mayoría
demográfica, sumada a una hegemonía económica (fuentes de trabajo,
comercios, medios de comunicación de masas, etc.) del Brasil.
Ahora bien: se puede hacer una proyección teórica a respecto de
tal estado de cosas, y sintetizarla, según nuestro interés, en dos
posibilidades fundamentales.
1) La forma oral de contacto deviene dialecto propiamente dicho
(lengua independiente); y en la medida en que se instale como lengua
materna de ciertas capas sociales – es decir como medio privilegiado de
comunicación y reproducción social de determinados grupos – se
transforma en una nueva lengua “criolla” (créole), y tiende a reemplazar,
progresivamente, a las dos lenguas impuestas en la comunidad bilingüe en
cuestión. Toda lengua en estas condiciones, es, por supuesto, susceptible
de extenderse, desarrollarse, enriquecerse, y pasar a todas las capas
sociales de la comunidad, transformándola en unilingüe.
2) La hegemonía socio-cultural y económica de la lengua
portuguesa se traduce en una “infiltración” cultural y por ende lingüística,
inevitable e irreversible. Desde este punto de vista, la lengua portuguesa
puede reemplazar al dialecto “de contacto” e incluso al español, en la zona,
ampliando simplemente su área de dominación.

*
Es muy clara esta RECOMENDACIÓN LINGÜÍSTICA: para un lingüista la lengua es ante todo un
medio de comunicación, una herramienta (que puede servir aunque se le haya saltado la pintura o
esté oxidada), que tiene una función determinada. Si esta función no está clara, la herramienta pierde
vigencia. En el caso del español es necesario que aparezca para los riverenses como el ÚNICO
MEDIO DE COMUNICAR CON OTROS (los demás uruguayos por ejemplo; o los hispanohablantes
de cotidiana afluencia a ese lugar).[n.no original].
350

Na Confeitaria Metropolitana, onde se fabricam os postres Riveli (rótulo no


apêndice E) foi adquirido um livro de poesia de Chito de Mello, autointitulado
defensor do bagazo, ou seja, dos pobres e desqualificados da fronteira.

MELLO, Chito de. Rompidioma. Rivera: Aragó, 2005. 63 p.

15) (p.5)
“LA FRONTERA DE LA PAZ”

Han apodáo a esta zona


Será porque las “persona”
Aquí no luchan jamás.

Ta “tudo bon” dicen muchos


Y se quedan bien “cayado”
Unos fuman, “importado”
Y otros ni siquiera puchos.

Rivera
Linda frontera
Para vivir
Soy uruguayo
que no me “cayo”
Y con “el bagayo”
He de subsistir.

Que somos todos iguales


Y ‘hermanos’, dicen los curas
Pero hasta en las sepulturas
Hay diferencias sociales.

Y aunque parezca que nó


“Me mamo” como un estanciero
Yo con un “Véio Barrero”
Y él con ”guisque” de’l “frishó”.

Rivera... etc... etc...

Nesse poema o poeta popular Chito de Mello exemplifica tanto o portunhol quanto o senso
comum fronteiriço, onde a diferença social aparece como mais relevante que a nacional e o
contrabando como prática comum a todas classes sociais. Além disso, em “La Frontera de la Paz”,
questiona-se o sentido dessa expressão um pouco piegas ou grandiloqüente.

-------------

16) (p.15)
“ROMPIDIOMA”
A Jony de Mello
Me han criticado
En varios “lado”
Porque he cantado
“Abrasileráo”
Que’s “erejía”
Pronunciar “sía”
O que’n Bahia
Fuí “batizáo”
Querido hermano
Montevideano
No soy “bayano”
351

“Tás engañáo”
Soy de Rivera
De la Frontera
Donde cualquiera
Habla entreveráo

Soy fronterizo
Medio mestizo
“Sin compromiso”
Desde gurí
Tengo “mi doma”
No canto “en broma”
Soy “rompidioma”
Y “no toy ni aí”

Si dices: “jónca”,
“Talónpa, “bronca”
Y andas “en miónca”
De “sol a sol”
No hallo, “defeto”
Que algún sujeto
Diga: “epitétos”
En portuñol
Yo canto a todo
El que “de algún modo”
“Codo con codo”
Sabe luchar
Canto al obrero
Que’l año entero
Por “el puchero”
Va a trabajar

Soy fronterizo... etc... etc...

Con “Los Farrapo”


Iguales “trapos”
Hicimo “sapo”
A algún “imperial”
Y hoy esta herencia
De independencia
Nos da conciencia
Internacional
De “Livramento”
Copio su “asento”
Pero “no miento”
Mi credencial
Soy: de “La Sesta”
“Duro de cresta”
Producto désta
Banda Oriental

Soy... etc... etc...

Este es “el suelo”


De mis abuelos
Por eso es que lo...
... quiero nombrar
Tomo “una pura”
Por la cultura
Y “la mistura”
352

Déste lugar
De “tanto en tanto”
Mi voz “levanto”
Con este canto
De integración
Buen “cashacero”
Y “bagayero”
De “profesión”

Nesses versos, Chito de Mello usa freqüentemente o alberre, a inversão da ordem das
sílabas (alberre = al revés); várias expressões do portunhol são empregadas para dar o efeito da
linguagem fronteiriça. A ela associa-se a negação de um abrasileiramento, acusação atribuída ao
centro cultural e político, Montevidéu. Da mesma forma, assume um internacionalismo, a defesa do
trabalhador e dos “vagabundo” (“guitarreiro, cachaceiro e contrabandista “profissional”). O estilo
mostra sua hesitação no emprego excessivo de aspas.

-------------

17) (p.19)
NÁUN VÉIN QUE NÁUN TÉIN
A “Betito Araújo
Muchos me dicen que yo soy “bayano”
Por “ese yeito” tan particular
De hablar que tengo, “aguántate” hermano
Que’n pocas “palavra”, te voy a esplicar.

Soy de Rivera y soy “bién uruguayo”


No me cambiés “la nacionalidad”
No adulo “rico”, vivo de’l “bagayo”
Y canto mis “verso” por la libertad

No “tomo “Shôpe” ni ando “me gavando”


Como “esos fresco” en “La Sarandí”
Tomo “cashaza” y “toy namorando”
“conuna” “barbada” de “la Manduví”

No “ando de farra” con los “estanciero”


Ellos, “que vayan a tomar n’el clú”
Que yo “me’mpedo” con; “los bagayero”
“Nún rancho” “cerquita” de’l Cuñapirú

Soy “rompidioma” mas no soy “lambeta”


Que’sto le quede ¡“bien claro” señor!
Si “toy pelado”, “caio ná pileta”
Y con “La Bagacera” es donde “toy” mejor

No tomo... etc... etc.

Esses versos cansam por sua excessiva pontuação, mas são dignos de nota
pela reivindicação da nacionalidade uruguaia, com liberdade de contrabando. Chito
de Mello, em sua prática rompidioma, mistura maiúsculas e minúsculas, introduz o
“sh” na língua portuguesa, troca b por v – como um hispanohablante – e não
concorda em número artigos e substantivos.

-------------
353

18) (p. 53)


ESPLICACIÓN DE ALGUNAS PALAVRA Y DICHO QUE’STAN NE’STE
LIVRITO
Aflôsha: aflojá, pará, “no jodas”
Albérre: Al revés. Ej.: Casa = saca
Aparecer: sobresalir, “lucirse”
Bagayero: que “bagayéa” (quilero)
Bagáyo: pequeño contrabando
Barbada: mujer
Cabuloso: complicado, lleno de “no me toques”
Cashaza; aguardiente, caña brasilera
Duénte: enfermo
El bagazo: los amigos, el pueblo, “la bagacera”
Escuyambo: desorden, confusión
Feyáun: poroto
Fofoquera: chismosa, enredadora
Frésco: que les gusta llamar la atención, “aparecer”
Fûmo: fuimos
Jodido: gran, grande “báita”
Linguisa: chorizo
Marimbo: barrilete con “roncador”
Mistura: mezcla, entrevero
Muñata: boniato
Ônde: donde
Porquêra: algo mal hecho, sin valor
Quiría: quería
Rompidioma: que habla mal (riverense)
Rudía: rodilla
Sêmo: somos
Shôpe: chop, cerveza de 1 litro
Trushémo: trajimos
Yéito: modo, manera, forma

Esse glossário mostra que a obra de Chito de Mello, posiciona-se em prol do


bagazo mas continua desejando tradução. As declarações de solidariedade política
com esse grupo (el bagazo, que supomos ser tanto a chusma, o populacho como o
bando de amigos, a rede pessoal do autor) mostram uma identidade forte. Há um
conflito incompleto com a posição da lingüísta (apresentada no item 16): por uma
lado há divergência quanto à importância de preservar a integridade da língua
espanhola, por outro há consenso quanto à importância manutenção da
nacionalidade uruguaia.

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Em Paso de los Libres, visitei a Biblioteca Popular Sarmiento, onde tive


acesso a outras obras, em edições muito mais precárias do que as encontradas em
Livramento e Rivera. De novo o interesse era buscar as “estampas locais”.

LOETTI, Rubén. La pluma y el sentimiento.

Livro de crônicas centradas em personagens locais de Paso de los Libres.


Listamos as que seguem.

19) (p.37)
EL INDIO SILVA – EL INDIO DE YAPEYÚ
Como todo pueblo de frontera, el comercio internacional era muy
fluido y por lo tanto, era visitado por gente de variadas clases, mansas y
peligrosas, que llegaban a Yapeyú con el propósito de comerciar, pero
como casi todos los viajeros andaban “calzados” con una “cuarenta y
trapo”, porque llevaban plata encima, se armaba cada trifulca con las
autoridades, de Dios y Maria Santísima.
Las mercaderías arribaban siempre por el río, en gigantescas balsas
de 40 ó 50 metros de largo. También lo hacían por chalanas, botes y toda
clase de embarcaciones, generalmente guiadas por brasileños de torsos
desnudos, bombachas gauchas y chancletas. Los negocios se realizaban
cara a cara y sin papel, a la vera del río. Todo de palabra, “meta y
ponga”.(...)
(p.38) “Fue dueño de dos animales muy especiales; de una yegua,
que cuando tenía hambre, pasaba a nado el Río Uruguay para comer
pastos en San Marcos, Brasil, y de un perro, que entendía solo el idioma
portugués. Si lo llamaban en castellano, no hacía caso.

Cena que se passa no imediato pós-guerra.

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20) (p.45)
ERNESTINA ARANDA – DE PROFESIÓN “BOLICHERA”
Doña Ernestina, es una antigua vecina de Paso de los Libres, que en
su juventud, tuvo que tirar su vergüenza a la calle y caminar por ella, para
conseguir el pan que alimente sus hijos.
Comenzó comprando harina, grasa, aceite y jabón, para ir a vender a
Uruguayana. Pero primero había que pasar la frontera y el río Uruguay, para
después conseguir el cliente en Brasil, cosa que no era nada sencillo.
Además había que luchar contra otros elementos como: la lluvia, el calor y el
frío.
El primero problema a superar, era la aduana; después aparecía otro
escollo; donde vender la mercadería “exportada”, y antes que llegue la
noche. Entonces no quedaba otra, que salir a ofrecer los productos puerta
por puerta por todo el pueblo de Uruguayana, con el peligro cierto que algún
brasilero la asaltare y la dejare sin nada.
Pero allí no terminaba la operación, después de comerciar los
productos argentinos en Uruguayana, con esa misma plata había que
comprar los productos brasileños, como el azúcar, la carne y el café, para
traer a vender en Paso de los Libres.
Todo ese trámite, llevaba la mayor parte del día, y para que “La
Calesita” le dejara la ganancia suficiente, era necesario hacer la vuelta
completa. Entonces, otro elemento importante entraba a tallar en el camino
de las “bolicheras”; la noche.
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Y la noche siempre era peligrosa, mas cuando había que “gatear” por
el paso, mojándose en el rocío, donde se podía apretar con la mano una
víbora o una araña.
A veces había días que “la guardia estaba linda”. En la jerga
“bolichera”, significaba que la revisación era “bastante liviana”, en-
(p.46) tonces se podía llegar a realizar tres o cuatro viajes entre el amanecer
y el atardecer.
Las “bolicheras” o “pasadoras”, eran una casta de ciudadanas que se
sentían discriminadas, por el hecho de realizar el contrabando “hormiga” y su
delito consistía en no pagar impuestos, para que le quede “algo de plata”
para poder dar algo de comer a sus hijos. Lo extraño era que, os que las
discriminaban, eran las mismas personas que le compraban las mercaderías
por las que ellas eran infractoras.
Doña Ernestina, fue una de esas sacrificadas mujeres “bolicheras”,
que ejercían esa tarea, empujadas por la necesidad. Por otra parte, era una
actividad muy dura, dado que se pasaban la jornada entera disparando con
sus pesadas cargas por las dos orillas del Río Uruguay. La brasilera y la
argentina.
Siempre con los nervios de punta, siempre expectante, esas mujeres
“bolicheras” se pasaban esperando un descuido de las autoridades, para
“colarse” o escaparse del control. Ya sea bajo la lluvia o bajo el sol y con
hambre mordiéndole la panza, porque casi nunca tenían tiempo suficiente
para comer.
El ingenio, en algún momento, era necesario tener; la audacia, en
todo momento. Algunas mercaderías eran más fáciles de disimular, como la
harina, que adoptaba la forma del cuerpo. Otras, en cambio, eran envasadas
en francos de vidrio como el Nescafé, eran mucho más incómodas para
transportar. Doña Ernestina y sus compañeras, usaban amplios calzones
confeccionados con bolsas de harina o azúcar, con muchos bolsillos, donde
acondicionaban una cantidad importante de mercaderias. Todo disimulado
bajo enormes polleras acampanadas.
Muchas veces eran rechazadas al ingresar y con todo ese
cargamento volvían hasta la orilla donde empezaba el Puente Internacional,
para descolgarse a la playa, desde una altura de varios metros, e intentar
entrar en la ciudad por la Laguna Mansa o el Parque de Vialidad.
Si las sorprendía la noche, chapaleaban barro bordeando el monte y
el río, y a veces, conseguían entrar a Libres por atrás de la Radio LT-12,
cuando estaba en el lugar que hoy ocupa la Terminal de Ómnibus.
La “bolichera”, es una figura que hoy casi ya no existe. Doña
Ernestina Aranda, está retirada de esa actividad, pero fue una mujer que se
sintió discriminada por practicar el “contrabando hormiga”. Pero ¿quién
discrimina al que practica el “contrabando elefante”?..
Ahora yo pregunto, ¿el que compra a una “bolichera” que hace
“contrabando hormiga”, no es solidariamente responsable?..
El que nunca endulzó con azúcar brasileña, que tire la primera
piedra.

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21) (p.65) LA CHULA – UNA MUJER QUE HIZO PATRIA A SU MANERA


Era uma prostituta que trabalhava num rancho na beira do rio Uruguai, e que
organizava a clientela – militares das guarnições fronteiriças – segundo os gêneros
alimentícios – muitas vezes de contrabando – com que lhe pagariam.

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22) (p. 83) LA CASA DE LOS MONTERO – EL REFUGIO DE LOS NECESITADOS


Nesta casa dava-se comida, guarida e conselho aos necessitados. Era
também um lugar de importância política, pois todos por ali passavam. Doña Victoria
Montero era uma espécie de Evita local, ou de Madre Teresa.

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23) (p.87)
LOS “PESCADITOS” – UNA FAMILIA DE LA ORILLA DEL ARROYO
YATAY
Los “Pescaditos”, fue el nombre que se le dio a una numerosa familia
de color de Paso de los Libres, que vivó, se multiplicó y desarrolló su
actividad, en las orillas del arroyo Yatay.” Vieram para Libres na
expectativa de trabalho farto ligado à construção da Ponte Internacional.
Allí, algunos de ellos, tuvieron la posibilidad de ganarse la vida,
como aguateros, una figura ya desaparecida, que antiguamente, recorría
todas las grandes construcciones, con un balde de agua y un jarro de
aluminio, para dar de beber a los obreros. (...)
Terminado el puente, “los Pescaditos” se trasladaron al borde del
arroyo Yatay y empezaron a levantar sus casitas de paja y barro, formando
un pequeño villorrio. Se dedicaron a la caza y la pesca para subsistir y ya
nunca más abandonaron esos lugares, ni esa manera de hacerse la
comida de todos los días. En alguna oportunidad, los hombres fabricaron
ladrillos y las mujeres, hicieron de “bolicheras”, pero eso nunca fue su
fuerte.

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24) (p.133)
MARCOS GREGORIO MURILLO – ADUANERO – EL TERROR DE LOS
“PASADORES”
Cuentan os viejos habitantes del pueblo, que Marcos Gregorio Murillo,
fue un agente aduanero, que dejó su marca en a historia de Paso de los
Libres y hoy es considerado un verdadero personaje.
Llegó a nuestro pueblo procedente de Gualeguaychú, integrando el
cuerpo de guardacostas (policía aduanera), cuando el Puente Internacional
aún no existía.
En el lugar, que en la actualidad está Prefectura, funcionaba el
puerto. La aduana, desarrollaba su actividad, en una casilla de madera que
estaba plantada en la curva del paredón, cerca de un centenario árbol de
mora blanca, que brindaba sombra a los que allí trabajaban. El Río de los
Pájaros, era la ruta azul de las distintas jangadas de tablones y rollizos, que
llegaban a la desembocadura del Arroyo Yatay, donde los aduaneros
verificaban, y los camiones de Juan Antonio Danuzzo y el “Nene” Niveyro,
acarreaban para el aserradero de Osvaldo Padoan.
El guardacostas Murillo, recorría la zona a caballo persiguiendo
contrabandistas y luciendo su uniforme marrón terroso, que se componía
de: gorra con visera, chaquetilla, brech (pantalón ajustado, como los que
usaban los policías de Canadá), botas negras de caña alta y polainas
grises.
Cuando se inauguró el Puente Internaciona, Marcos Gregorio
Murillo pasó a integrar el cuerpo de aduaneros que operaba bajo el alero,
por donde pasaban como hormigas, los vecinos de Libres y
(p.134) Uruguayana. En ese lugar, este agente del estado, empezó a escribir su
propia historia, con hechos que lo llevó a convertirse en una figura
destacada, que aún muchos libreños recuerdan.
Siempre manifestó que para él, no existía “hijos ni entenados”, y
hay quienes aseguran que no tenía amigos; apenas conocidos o
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compañeros. Cuando estaba en función, se transformaba y cumplía su


función a rajatabla, así se tratare de un pariente cercano, un humilde
“pasador” o un funcionario de alto rango.
Aún hoy, se siguen contando historias, nacidas por su proceder
bajo el alero de la aduana. Para los bien nacidos, el guarda Murillo era un
celoso guardián de la renta fiscal; para el resto, fue un agente sin
escrúpulo.
No solo los “Pasadores” argentinos lo sufrieron a Murillo, también
los porteños y turistas de distintos países, y por supuesto, os vecinos de
Uruguayaza, tal es así, que la prensa brasilera, a grandes titulares, lo
llamaban “la mosca blanca”, por no decirle “la oveja negra” de los
aduaneros argentinos. Otro periódico de tirada nacional, lo bautizó “El
Cachorro da Ponte”, o sea “El Perro del puente”.
En esa época, el actor y director argentino, Hugo del Carril, hacía
sucesos en el país con una película titulada “El Último Perro”. Cuando esta
obra llegó al Cine Teatro Opera de Paso de los Libres, alguien, con pintura
y pincel, deformó las carteleras que promocionaban la cinta, de modo que
el título, quedare de la siguiente manera: “Murillo, El Último Perro”.
Contrariando con aquel apelativo, este singular guarda aduanero,
siempre conseguía que los alimentos secuestrados, sean donados al
Hospital “San José” y al Colegio de las Hermanas.
Muchos comerciantes argentinos también “aportaron” lo suyo.
Cada vez que llegaba una inspección del estado, se acercaban a la aduana
a pedir el translado del guarda Murillo. Nunca lo consiguieron, al contrario,
puesto que a su legajo, fue incorporada las felicitaciones del Presidente
Péron, por “excelente desempeño de sus funciones”.
Murillo desarrollaba muchas técnicas para atrapar contrabandistas.
Dicen que con un alambre, golpeaba los tanques de los automóviles para
saber se venían vacíos o con “algo” adentro. Con el nudillo tocaba las
puertas, y si el sonido no le gustaba, la hacia desarmar. Se fijaba en os
bulones o tuercas, si estaban “movidos”, y si la soldadura era reciente.
Aseguran que para esas cosas tenía un ojo mágico o clínico.
Por ese entonces, la aduana de Paso de los Libres, ya se perfilaba
para ser una de las más importantes de Sudamerica, pero eran muy pocos
los que se daban cuenta. Yo conocí a muchos de os aduaneros que
hicieron su carearen la institución, como Rafael Acosta Camara, el “Negro”
Herrera, Torcuato Queirolo, Isidoro Salinas, Ramón da Silva, el “Negro”
Aroma, Edmundo Castillo, y tres mujeres “bien toras”: Secundina Biassini,
la famosa Miguel Bonpland y doña Laura Plazaola.
(p.136) Después cambiaron os tiempos y las aduanas fueron otras, muy
distintas a
las que pregona nuestra Constitución. Los hombres fueron pasando
y las aduanas siguieron quedando; con otras tecnologías, otras normas,
otros códigos, que terminaron dejándonos otro país.
Las historias de don Marcos Gregorio Murillo, “El Cachorro da Ponte”,
o “El Último Perro”, seguirán por siempre, de generación en generación,
hayan sido ciertas o pocas creíbles.
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Os dois poemas abaixo pertencem ao cancioneiro da fronteira e freqüentam o


imaginário da região e foram citados por vários informantes. Ambos coincidem no
movimento de folclorizar o contrabando e de justificá-lo como uma estratégia de
sobrevivência.

RILLO, Aparício Silva. Contrabando.

25)
Vai o barco de farinha
cruzando o velho Uruguai.
Vaqueano dessas cruzadas
vem na popa um índio moço
manejando o varejão.

Vem atento e vem pensando:


Vou deixar do contrabando,
não e vida pra um cristão.
Hoje eu vim porque o menino
deu sumiço na chupeta
e aquele piá trompeta
saiu louco de chorão...

Sorri o moço da popa


porque no bolso da roupa
traz o bico pro piá.

Ouve um tiro, de repente,


vindo da banda de lá!
Foi o tiro de sinal.

Já no mais o tiroteio
se acendeu no macegal,
pipocando seco e feio

como entrechoque de guampas


no entrevero do rodeio
no dia em que se dá sal.

Mala suerte!
O barco vinha chegando,
e a cargo do contrabando
com mais dez braças de rio,
tinha subido a picada,
da picada pra carreta,
e daí pro caminhão.

Ouve um grito de: - Lã fresca,


o Nico se lastimou!
Mas ninguém botou tenência
no sentido deste grito,
porque a coisa vinha preta
sob o tendal de balaços
que a guarda ajena estendeu.

Cada bala que cruzava


debochava de assobio!
359

Quando o barco deu no porto


no lado de cá do rio,
o pessoal ganhou o mato,
na picada se sumiu.
O barco ficou sozinho
na madrugada e no rio.

Digo mal: ficou o Nico


sobre um saco de farinha
que um balaço espedaçou.
Tinha um lenço maragato
na brancura da farinha
onde o índio se apoiou.

Foi quando a manhã surgiu,


mostrando o sangue do Nico
pingando dentro do rio ...

Menino, cala esta boca,


não demora chega o Nico,
vai-te trazer outro bico
que é pra tu não chorar mais.

Veio a manhã, veio a tarde,


veio a boieira luzir.
Veio a noite grande e morta,
A china veio pra porta,
E nada do Nico vir!

Veio um dia,
mais um dia,
veio outro dia depois

Ao pé de uma lamparina
vela em silencio uma china
que de chorar se cansou.

Numa cama de pelego


choraminga sem sossego
um piazito babão.

Choraminga! Choraminga!
... porque o pai não trouxe o bico,
e o que tinha se extraviou ...

CASTILLO, Osiris Rodríguez. Camino de los quileros. 1963.

26)
Hay un camino en mi tierra
del pobre que va por pan,
camino de los quileros
por la sierra de Aceguá.
Tal vez, sin ser tan baqueano
cualquiera lo ha de encontrar,
pues tiene el pecho de piedra
pero el corazón de pan.

Gurisit'e pierna flaca


360

Barriguita de melón
Donde hay tanta vaca gorda
No hay ni charque para vos.
Tu bisabuelo hizo patria,
tu abuelo fue servidor,
tu padre carneó una oveja
y está preso por ladrón.

Toma café con fariña


y andá guapeando por ahí.
Mañana mate cocido;
pasado, Dios proveerá.
Mañana busco el camino
del pobre que va por pan
Si no me para una bala
pasando te traigo más.

Yerba, caña, rapadura,


un rollo'e naco, nomás;
los pobres contrabandeamos
a gatas pa' remediar.
¡Que gaucho es el tal camino!
Pero duro de pelar.
Camino de los quileros
por la Sierra de Aceguá.

Contrabando, de A.S. Rillo repete o motivo declinado em Contrabandista,


de João Simões Lopes Netto, representando o contrabandista como uma pessoa
dedicada à família.

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