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Karapiru

Hoje, 16 de julho de 2021, soube da morte de Karapiru Awá-Guajá. Numa rede social,
Flavia Berto escreveu: “Karapiru oho iwapé”. Karapiru foi para o céu. Espero que sim,
que ele tenha alcançado fácil o caminho e chegado lá. Embora não quisesse isso.
Karapiru devia ter cerca de 70 anos de idade (nos seus documentos de identidade
encontramos uma data de nascimento imaginada no ano de 1945). Ele era um homem
forte ainda e não teria subido assim definitivamente para o céu, se o mundo dos
brancos, karaí, não estivesse se abatendo mais uma vez violentamente sobre o mundo
indígena.

Karapiru tornou-se “célebre” entre os brancos depois do filme “Serras da Desordem”,


de Anrdea Tonacci (2006). Tonacci filmou com os Awá-Guajá durante algumas vezes
diferentes até que conseguiu uma perspectiva preciosa: concentrou-se na história de
Karapiru tratando-a como emblema do modo como o Brasil “grande” – o das
commodities de soja e minério, do trem de ferro estrondoso frenético cortando a carne
da terra sem cessar, misturado ao som ufanista do carnaval de exportação e ao céu e
edificações estonteantes de Brasília – lida com as populações indígenas, verdadeiras
donas do lugar. Mas também conseguiu filmar o modo como os Awá, no caso,
representando os povos indígenas, lidam com os invasores. No filme, Karapiru sonhava
sua vida de abundância aquela vivida até o encontro fatídico com os karaí, que seria
repetido muitas vezes na vigília.

Karapiru vivia recentemente na Terra Indígena (TI) Caru, situada no noroeste do


Maranhão Esta terra participa de um mosaico de áreas protegidas: ao norte, faz
fronteira com a TI Awá, que, por sua vez é contígua à TI Alto Turiaçu, que se liga a TI
Tembé, já no estado do Pará. Ao oeste, a TI Caru ainda é contígua à Reserva Nacional do
Gurupi. Estas áreas, que naturalmente se situam nas franjas ocidentais da floresta
amazônica, se transformaram efetivamente nas últimas ilhas verdes do estado do
Maranhão, rodeadas que estão de serrarias ilegais.

A gente de Karapiru, o povo conhecido como Awá-Guajá, faz parte do conjunto de povos
tupi-gurani.
Hoje, no dia da morte de Karapiru, houve na Alemanha mais de 120 mortes por uma
inundação sem precedentes que fez também desaparecerem outras cerca de 1500
pessoas. No Canadá, acontece uma onda de calor que já matou cerca de cem pessoas.
No Brasil, estamos numa seca que faz baixar reservatórios abaixo do nível e ameaça
apagões de energia. Aqui, a covid-19 não dá trégua há dois anos e, hoje, ultrapassamos
os 540 mil mortos. Só hoje, mesmo depois que o nível de mortos se reduziu dos 4 mil
para cerca de mil por dia, morreram mais de 1400 pessoas por covid-19. Tudo isso me
leva a pensar que estamos nas bordas do fim. Ao mesmo tempo está explícito que o fim
não chega na mesma intensidade e velocidade para todos. Os povos indígenas tiveram
sua taxa de mortalidade por covid-19 cinco vezes maior que o restante da população
brasileira. Hoje, essa tragédia matou Karapiru.

Os Awá-Guajá foram vacinados. Há estatísticas que contam 1 morto em cada 25 mil


vacinados. Karapiru provou sua sorte. Mas isso é apenas uma maneira cabalística de ver
a tragédia, outros motivos estão certamente em jogo. Os Awá participaram, no último
junho, do “Levante Indígena”, o movimento politico para defesa de seus direitos, que
mesmo na pandemia, teve que ser levado adiante. Os Awá tomaram parte na luta
porque seus direitos territoriais, e sua vida, estão francamente ameaçados. Na “ponta”,
como dissemos nos territórios, os invasores estão se encorajando ainda mais, se sentem
no direto, se sentem impunes e se tornam ainda mais violentos. No Congresso, já passou
pela CCJ e está para ser votado pela plenária de maioria ruralista, um projeto de Lei,
PL490, na contramão absoluta do que diz a Constituição, pois pode, desde de rever a
titularidade de terras já demarcadas, até acabar definitivamente com o usufruto
exclusivo dos índios sobre suas terras, permitindo todo tipo de exploração por terceiros.
Ou seja, é um pacote de maldades que destrói completamente a figura da terra
indígena. No STF, estão para julgar um caso que dará jurisprudência para o que chamam
de “marco temporal” e que faz restringir a terra indígena àquela ocupada no ano de
1988, como se os índios pudessem desaparecer ou deixar de serem índios depois ou
antes de 1988... Os tempos são aqueles ditos pelo ex-ministro do meio ambiente,
investigado por crime ambiental, tempos de “passar a boiada” em cima de tudo. Nesse
cenário, os Awá tomaram parte no Levante. Participaram das reuniões e da
manifestação na cidade de Santa Inês que fechou a rodovia junto com os Guajajara. Dez
dias depois, as pessoas passaram a adoecer na TI Caru.

Essa imagem de fim não me leva ao céu dos Awá, que é certamente um bom lugar. Me
leva direto à sabedoria Guarani (Apapokuva), tupi-guarani, como os Awá-Guajá. Há mais
de cem anos, o etnólogo alemão, batizado Nimendaju, por estes Guarani, publicou as
“As Lendas de Criação e Destruição do Mundo”. A monografia sobre esses que o
batizaram foi um comentário aos mitos que o autor ouviu quando acompanhava alguns
bandos que atravessavam do Paraguai ao litoral de São Paulo em busca da “terra sem
mal” Yvy Mara’ey. Eles diziam que a destruição do mundo começaria inevitavelmente,
ela estava na espreita uma vez que era uma espécie de acontecimento já em curso desde
o começo. A destruição apapokuva começa pelo oeste com um incêndio e um
desmoronamento da Terra e segue mais ao leste onde há a grande enchente que
termina de destruir a Terra imperfeita. Mais tarde, já na década de 1970, Pierre Clastres
escutou os Mbyá Guarani e o autor reverbera as falas sagradas dos sábios. Eles agora é
que comentam seus próprios mitos e explicam que a Terra sucumbe porque está, ela
mesma, cansada, exausta, muitos corpos estão pesando no corpo dela, e ela ruirá.

Os Awá-Guajá também compartilham da sabedoria tupi-guarani nos seus mitos e em


modos de viver. Eles também provaram uma grande marcha do oeste para o leste há
cerca de duzentos anos, quando saíram de uma região da margem esquerda do Rio
Tocantins e seguiram para a região do vale do rio Pindaré no Maranhão, onde habitam
até hoje. No novo lugar, eles se deixaram ver pelos karaí, apenas muito recentemente
(a partir da década de 1970), só depois que as rodovias e a estrada de ferro da Vale
começaram a cortar sua Terra-território. Desde então, os Awá-Guajá tentam escapar do
assédio destes invasores e sobretudo das suas doenças, inamuhun, seu fedor de morte
e a tosse-catarro que estes invasores carregam consigo e que contaminam e matam os
Awá, especialmente vulneráveis às doenças, porque têm pouco tempo de exposição aos
seus vírus e bactérias e baixa imunidade contra eles.

Além de driblar estas doenças dos invasores, Karapiru foi um dos Awá-Guajá que
escapou das suas armas de fogo. Em 1978, Karapiru e seu grupo familiar foi assaltado
na sua própria casa. Os invasores queriam expulsar os Awá das terras que grilavam. Eles
armaram uma emboscada, atiraram sobre todos os Awá que encontraram no seu
acampamento na mata e atearam fogo nas casas. Temos registro que foram mortas
quatro pessoas nessa emboscada. Mas pode ser que tenham sido mais. Karapiru salvou-
se atirando-se ao rio com seu filho de colo. Karapiru correu para dentro da mata. Fugiu
por muito tempo, andando sozinho, porque o filho não resistiu à marcha, sem o leite e
o colo maternos, faleceu. Caminhando sozinho e fugindo dos brancos, Karapiru chegou
ao sertão da Bahia, onde foi reencontrado pelos indigenistas do departamento de índios
isolados da Funai, cerca de 10 anos depois. Esta saga de Karapiru está reencenada com
maestria, pelos Awá, inclusive por Karapiru e pelo grande diretor, também falecido,
Andrea Tonacci, no referido filme “Serras da Desordem”.

Depois de reencontrado pelo pessoal da Funai, Karapiru reencontrou um dos filhos.


Aquele filho tinha também se salvado da emboscada, mas desde lá, os dois não sabiam
absolutamente mais nada um do outro. O filho, que era ainda criança na época da
emboscada, havia sido levado a viver com aqueles outros karaí, amigáveis, no posto da
Funai. Tornou-se um homem adulto assim, criado por gente mais ou menos do tipo
daquela que matou seus parentes. Não passava pela cabeça de nenhum deles
reencontrarem-se. Até que Sidney Possuelo, coordenador do departamento da Funai,
desconfiando que aquele andarilho solitário pudesse ser um Avá Canoeiro ou um Awá-
Guajá, dado as palavras tupi que reconhecia e o lugar em que o encontrara, mandou
chamar Xiramuku (Benvindo Guajá). Este vivia e trabalhava ainda no posto da aldeia do
Cocal, na TI Alto Turiaçu. Xiramuku desembarcou em Brasília para ir reconhecer a língua
daquele “desconhecido”. Xiramuku, então, não apenas reconheceu a língua falada pelo
estranho como sendo a sua própria, a língua guajá, como reconheceu o homem como
seu próprio pai.

Karapiru foi viver no lugar onde vivia o filho, junto com outros parentes antigos na TI
Alto Turiaçu, originalmente demarcada para os Ka’apor, outro povo tupi-guarani. Não
se demorou muito lá e foi viver em companhia de outras famílias na Terra Indígena Caru.
Naquela época, ainda não havia sido demarcada a Terra Indígena Awá, e os brancos
continuavam ameaçando e invadindo a Terra-território dos Awá (como fazem até hoje).
Na TI Caru, habitada primeiramente por aldeias Tenetehara-Guajajara, Karapiru
encontrou esposas e teve filhos. Lá, ele era renomado como bom caçador, mas não
chegou a ter família numerosa. Naquela aldeia não encontrava outros homens de sua
geração, aqueles com quem tivesse tido uma relação de maior proximidade, de quem
pudesse ser verdadeiramente companheiro, frequentemente ele ia à mata, andar-caçar,
sozinho. Não tinha mulheres a quem pudesse chamar propriamente de irmã ou mãe.
Assim, era um tanto solitário, um tanto retirado. Parece que Karapiru nunca pode deixar
de ser um tanto estrangeiro. Também, apesar de ter certa fama entre os brancos, por
causa da sua história excepcional, ele não fazia questão alguma da companhia, ou dos
bens, deles. Não gostava de ir ao povoado, que fica a dois km da aldeia, na outra margem
do rio Caru, em torno da parada do trem da Vale, que passa muitas vezes por dia e
durante a noite. Só frequentava a cidade um tanto obrigado, por motivos de saúde, por
exemplo. Mas ele era inquestionavelmente uma pessoa muito simpática. Jamais
arrogante ou raivoso. O sorriso sempre amigável, generoso para todos os que se
aproximavam dele.

Me lembro especialmente de duas pequenas passagens que tive com ele na aldeia
Tiracambu. Uma vez, notei que ele passou a vir ao posto com frequência. Ao anoitecer,
ele vinha tomar um remédio. Perguntei por que ele tomava aquilo. Ele me contou que
sentia muitas dores na coluna porque tinha tomado um tiro dos brancos. Me espantei.
Como teria acontecido isso? Quando? Até que pude entender que ele se referia ao
acontecido naquela vez, há mais de 30 anos. Mas para mim, ele contava como se tivesse
acontecido ontem... Isso me leva a entender a tragédia que aconteceu a ele como a
verdade do mito: ela não tem propriamente um passado. Aquele mau encontro, aquele
encontro fatídico (criminoso) era sentido todos dias como um presente, revivido
continuamente. Isso, todavia, não tirava dele sua aparente felicidade de viver e sua
cortesia para com os outros. Tanto que, de outra vez, o vi se orgulhando em criar um
par de bem-te-vis. Estes frenquentavam todos os dias a sua casa e se empoleiravam nas
proximidades da sua rede de dormir. Ele sorria alimentando-os com qualquer sobra
mastigada. Eles agradeciam isso lhe fazendo companhia constante.

Não fui certamente amiga de Karapiru, mas sou certamente uma pessoa que o admira
muito. Me indigna profundamente que esta doença o tenha vitimado. E que esteja mais
uma vez ameaçando todos os Awá-Guajá. Kamairu, um grande cantor, um sábio
contador de histórias, da mesma aldeia, Tiracambu, na TI Caru, está, neste momento,
também hospitalizado com covid-19. Espero muito que ele consiga escapar, uma vez
mais, ainda...
Renata Otto
*Doutoranda antropologia social UnB

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