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Sem Asas ao Amanhecer


Luciana Scotti
Dedicatória:

Dedico este livro à pessoa mais espetacular que conheço, meu muito amado
irmão Marcus Tullius

 Orelha do Livro:
 "Você tem agora em suas mãos dois sonhos: o sonho de uma editora e o de uma
escritora".
Há quase um ano atrás, O Nome da Rosa procurava-se construir de maneira
diferente, buscando idéias e vida para veicular entre seus leitores. Há quase um ano
também, uma menina-mulher procurava alguém que publicasse seu livro, escrito
com muita dificuldade.
Conheci Luciana já numa cadeira de rodas, sem poder falar. O brilho que vi
imediatamente em seus olhos foi a confirmação de que nosso encontro já estava
predestinado.
E trabalhamos duro, durante meses, uma colada à outra, para fazer vingar nossas
vontades. Para editar o extenso material que Luciana havia escrito durante 3 anos,
não podíamos depender da cartela de sinais que ela usa para soletrar suas idéias.
Além de nossos encontros quase semanais do contato físico gostoso e carinhoso,
começamos a nos comunicar pelo computador, conectadas pelas redes da Internet.
Trocamos idéias, textos, comentários, revisões e até segredos.
Assim, fui conhecendo Luciana, sua intimidade, seus pensamentos, suas emoções,
sua voz - e como falar, é exigente, inteligente e divertida, essa menina! Conheci, na
verdade, uma grande guerreira.
Para realizarmos nossos sonhos temos realmente que trabalhar muito. E devemos
também nos apoiar nos anjos e aprender a voar sob suas asas. Quero aqui
agradecer, pela editora O Nome da Rosa, os anjos que nos guiaram e tornaram
esses nossos sonhos possíveis. Um beijo no coração dos anjos Raul de Souza,
David Knobel, Paulo Roberto Sadré e Roberto de Souza. E um beijo no coração de
Maria Izabel dos Santos Souza e Márcia Knobel.
Graças aos anjos e a vocês, leitores, Luciana Scotti poderá ter um futuro.
E, sem dúvida, como uma ativa escritora."

Anticapa (capa traseira)


Comentário de Ana Maria Braga (apresentadora da televisão brasileira)
"Ao terminar a leitura deste livro, fiquei emocionada". As palavras de Luciana Scotti
confrontam a força dos fatos reais com a leveza de suas imagens poéticas. São
fantasias idealizadas por uma menina, passagens experimentadas por
uma adolescente, situações vivenciadas por uma mulher.
Identificamos um pouco das nossas expectativas e frustrações no depoimento dessa
jovem autora, que dá um verdadeiro exemplo de perseverança ao enfrentar um
acidente vascular cerebral (AVC) que mudou toda a sua vida.
Quando recebi Luciana no meu programa, ela trouxe em suas mãos projetos deste
livro que escreveu muito lentamente, por digitar com apenas um dedo da mão
esquerda. A trágica inversão de vida por que passou toda a trajetória que vem
percorrendo desde então com tamanha força de vontade, com tamanho gosto pela
vida me deixaram perplexa.
Penso que um caso como este deve nos estimular para seguirmos nosso caminho
com alegria e determinação.
Também tive uma amiga imaginária a quem recorria para fazer minhas confidências.
Ao vasculhar meus diários deparei com um pensamento que registrei em uma
passagem não muito feliz de minha vida. Quis reproduzi-lo aqui, como uma
dedicatória especial para Luciana. Aí vai:
Sinto alguma dificuldade para sustentar-me. Gostaria de ir pelo ar com grande
velocidade, correr entre as nuvens, encontrar-me com os anjos.
Você me fez voltar ao passado e esse foi um doce retorno. Que os guardiãs celestes
te conduzam rumo à felicidade! Participo desta realização com a certeza de que
muitas outras se seguirão."
Ana Maria Braga

Agradecimentos:
  Antes de tudo agradeço aos meus pais, pelo incentivo, apoio e ajuda.
Sem eles, nada seria possível.
Minha adorável amiga Luciana Knobel, obrigada por estar sempre presente,
ser companheira e solucionadora.
Fico imensamente grata ao meu querido Sérgio Preuss, meu sábio auxiliar
desde que este livro era só um sonho, e ao grande amigo Henrique Joji. Sei, por
estar sempre ao meu lado, nos momentos em que mais necessito de seu apoio.
Obrigada, minha prestativa amiga Matilde Gabriel, por vir suprindo com tanta
dedicação as limitações a que estou sujeita.
Agradeço ao Sr. Abraão Worcman, por ter sido o pai desta idéia, e ao casal
Regina e Florestan Fernandes Jr., por me incentivarem a escrever.
Agradeço também à Ana Maria Braga, por ter me aberto as primeiras portas
para eu ter este sonho realizado.
A David Knobel e Márcia Knobel que me ajudaram como puderam desde o
princípio, principalmente na concretização de meu livro, meu mais profundo carinho
e agradecimento. Ainda não os conheço pessoalmente, mas há muito tempo essas
duas pessoas maravilhosas moram no meu coração.
À minha editora e muito amiga Tula Melo, que tornou esta obra concreta e plena,
meu carinho e meu muito obrigada por tudo.
Por fim, agradeço a todas as pessoas que fizeram parte da minha vida e,
neste livro, me permitem contar um pouco de minha história. Não se preocupem,
pois aqui vocês estão como personagens, com nomes fictícios e com
suas verdadeiras identidades plenamente preservadas.
Ao meu leitor 

Aos 12 anos fiz de Juliana minha confidente querida. Ju, como gostava de chamá-
la, ouvia, sem contestar, tudo o que eu lhe contava, quase todos os dias, desde as
pequenas até as grandes aventuras que eu ia experimentando. Páginas e
mais páginas escritas, cercadas de desenhos, fotografias, bilhetes, flores secas,
rabiscos, corações. Em 1990, com 19 anos e apaixonada, parei de contar minhas
histórias para essa doce amiga: eu só tinha tempo mesmo para vivê-las. Juliana
acabou esquecida nas gavetas da memória, enquanto minha vida continuava,
esperando somente o tempo de ser feliz.
O dia 2 de maio de 1.994 poderia ter sido como todos os outros. Aliás, não houve
sinal algum de que seria diferente. Era realmente um dia como outro qualquer e não
dei grande importância à luz do Sol ou à das estrelas. Muitas, mas muitas vezes
desejei contar esse dia começando pela fórmula mágica: "Era uma vez..." Desejei
transformar tudo numa ilusão fabulosa, no feitiço desfeito pelo beijo do príncipe,
somente para poder terminar dizendo: "E Luciana foi feliz para sempre..."
Nesse dia, fui trabalhar cedinho, como sempre fazia. Na saída, peguei meu
irmão mais novo na faculdade e, à noitinha, já estava em casa. Minha mãe e eu
tínhamos combinado dar um pulo ao shopping; afinal O Dia das Mães
estava chegando. Enquanto escovava os dentes, senti uma tontura muito forte e
imediatamente entrei em convulsão. Só deu tempo de gritar "SI" Fui levada
imediatamente para o pronto-socorro e acordei quase dois meses depois.
Em coma, a gente sonha: também ouve o que se fala à nossa volta. Não, não
me lembro de ter visto o filme da minha vida passando em segundos, nem um túnel
com luz brilhante ao fundo. Mas me lembro especialmente de uma frase que chegou
de longe e foi ressoando claramente em meus ouvidos.
- Luciana, tá todo mundo lá fora te esperando...
Todo o mundo? Todo o mundo. Minha vida esperava também por mim, para
continuá-la. Continuar a vida ou outra vida?
Hoje estou tetraplégica. Não me movimento. Também não falo. Apenas o
lado esquerdo do meu corpo se mexe...pouco, muito pouco. Quase nada. Mas,
principalmente, não falo. Escrevo num computador, soletro o que antes eram idéias
ágeis e palavras afiadas. Soletro esta história, minha história: " uma vez...."
E chamo por Ju. Onde estará ela?! Agora que não sou mais criança, quem
me contará esta história? Quem me dirá que não foi bem assim que aconteceu?
Quem poderá me garantir que eu serei feliz, bem feliz?!
Pelos traços que deixei nas folhas dos cadernos engavetados, sei que posso
ter de volta minha vida, meus movimentos, e até, quem sabe, a minha própria voz.
Digo isso porque sei que escrevo ainda como uma colegial, conservando o tom
dessas histórias de adolescente escritas no diário. São histórias da minha história,
de uma adolescente encantada com a vida, que não pôde impedir que sua história
se partisse.
É verdade que não perdi a memória. Lembro-me de tudo o que me
aconteceu. O problema é justamente esse! Que sentido dar agora a esses 22 anos
preparados somente para um maravilhoso "E viveram felizes para sempre..."?  
Agora, espero por Juliana. Preciso que essa amiga confidente vá me devolvendo
uma parte de minha vida, para que eu possa ir, pouco apouco, me adaptando a este
rumo inesperado. Preciso continuar..
Aqui e ali copiei pedaços do meu antigo diário, contei as novidades, recontei
meus sonhos e encarei meu pesadelo. A Luciana Scotti falou do passado, das
pessoas e dos fato, mas eu ainda estou aprendendo a falar. Deste jeito soletrado,
engasgado, careteado, babado, vomitado. Do jeito que é possível. Perdi a voz, mas
as palavras presas no meu corpo não estão mudas. São palavras de todos os tipos:
revoltadas, esperançosas, desesperadas, amorosas, infelizes, invejosas,
agradecidas... Se elas fossem pássaros, eu diria que estão batendo asas dentro de
mim.

Parte 1

UMA VIDA ESCONDIDA


Dia 7 de março de 1996
Querida Juju,   
Sei que não preciso lhe contar minha vida de adolescente; afinal, foi você
quem ouviu todas as confissões, intercaladas de sonhos e projetos mirabolantes.
Mas preciso voltar para você e, como duas amigas que se encontram depois de
muito tempo, ficar repetindo:
- Lembra-se daquele dia? E daquele outro?
Acredito que você possa ir me ajudando a lembrar uma parte de mim que tem aí
guardada, hoje extremamente importante para eu poder me entender. A outra parte,
dos 19 aos 22 anos - a mais bonita e aquela de que tenho mais saudades -, eu
vou lhe contando devagar. Tenho tempo, muito tempo para isso agora...
Já se passaram quase dois anos do acidente, da fatalidade. Engraçado, parece
que ainda estou parada lá nos 22 anos... Parada estou mesmo, em todos os
sentidos. Foram 22 anos agitados, entre brincadeiras, amigos, colégios;
depois escolhi uma profissão e cursei uma universidade; tive alguns namorados e,
algumas vezes, me apaixonei. Essa poderia ser uma história como tantas outras,
mas não é . Simplesmente porque é a minha história.
É claro que o final feliz que imaginei para a minha história também poderia ser
confundido com muitos outros: encontrar alguém a quem amar, alguém que me
amasse, construir uma família e compartilhar minha vida, ter segurança,
carinho, conforto, tudo... Eu nunca quis pouco. Pensando assim, poderia tentar me
convencer de que perdi somente sonhos e planos para o futuro. Acontece que, se
um futuro é sempre feito de planos, quando os sonhos se desmancham no ar, o
futuro também se desfaz. E então me desespero! Que outro futuro posso
construir para mim?
Veja só em que enrascada estou metida! Imagine ficar tetraplégica e muda, em
uma época em que a vida começa a lhe sorrir e o mundo está todo para ser
descoberto! Você aprende a andar, falar, nadar, dançar... Estuda anos e anos
para construir uma carreira. Briga com Deus e com as pessoas para se tornar
independente. Faz amigos dia a dia, acreditando que nunca faltarão em uma hora de
dificuldade.
Uma noite, sonhei que encontrava uma garota igual a mim. Passeávamos juntas,
e ela me dizia:
- Está vendo, sua trouxa?! De que adiantou aprender a nadar, andar de bicicleta,
de patins, fazer uma faculdade, estudar tanto, namorar, ter sonhos? Nada!
No sonho, eu ria dessas palavras, do jeito dúbio do discurso, mas acordei
chorando. Então, me dei conta de que havia sonhado com uma verdade terrível:
será que nada valeu a pena?
Ju, você se lembra como eu queria me mover para frente neste mundo? Sempre
tive bom senso, gostava de estudar e amava estar viva. Mesmo assim, com tanta
coisa positiva, não evitei a tragédia. Poderia ter acontecido com qualquer um.
Poderia ter sido com você. Mas foi comigo!
Hoje, tenho minha vida partida em duas. Gostaria que amanhã alguém viesse
até mim e dissesse:
- Acabou o pesadelo, pode respirar aliviada, pois esse sofrimento todo foi um
equívoco...
E, como um condenado aflito que espera a forca ao raiar do dia, em vez da
morte ganharia a liberdade. Olho ao redor, durmo e acordo, e nada indica que houve
um equívoco; vivo a vida de um condenado cuja sentença é a prisão perpétua...
Lamento, amiga! Minhas comparações são assim, meus sentimentos dançam
diante de todas as portas fechadas. Vão da gargalhada ao grito de horror. Da garota
sonhadora à mulher desesperada. é claro que do ponto de vista da garota, do
ponto de vista dos sonhos, o desespero é ainda maior. Escrevo deste lugar
desesperado em que me encontro agora, para ver se os sonhos ficam resguardados
apenas como sonhos, como uma espécie de ficção. Sei que não vai ser fácil. Para a
Luciana que você conheceu, os sonhos eram, como já falei antes, o seu futuro.
Em 1984, quando comecei a escrever para você, chamei-a de Juliana, um nome
que sempre achei bonito. É verdade que agora você toma uma forma bem diferente
daqueles cadernos de capa dura. Hoje você está ganhando uma roupinha nova,
virou um arquivo do meu computador, um laptop, um presente muito bem-vindo. No
entanto, apesar de nós duas estarmos diferentes, você continua sendo minha
confidente querida, e me arrependo de tê-la abandonado. Não posso mais te
rabiscar, te desenhar ou te colorir, como fazia antes. Só posso ir soletrando
esta história. "Soletrar" quer dizer "digitar", letra por letra mesmo, pois escrevo muito
devagar e não sei como vai terminar toda esta soletração. Nem sequer imagino
como vai acabar esta história...
Como o ser humano é frágil! Em apenas um segundo tudo pode mudar. E foram
necessários poucos segundos para me ver transformada. Uma vez ouvi um homem
dizer que todo o mundo é um portador de deficiência em potencial... É evidente! Se
não fosse, eu não estaria aqui!
Tive duas paradas cardiorrespiratórias. Fiquei mais de um mês em coma.
Passei por três pneumonias, fui submetida a uma traqueotomia e a uma transfusão
de sangue. Usei guedel - um aparelho que se põe na boca e dói demais - sofri
duas cirurgias no cérebro e fiquei vários dias em UTIs. Recebi a extrema-unção.
Acho que um acidente vascular cerebral (AVC) é a pior coisa que pode ocorrer a um
ser humano. Não imagino coisa pior. Talvez ser enterrado vivo seja pior.
Mas sobrevivi. Sobrevivi porque lutei pela vida; não por esta vida, mas pelo que eu
conhecia da vida, da maravilha que sempre foi. Da vida dos versos do Gonzaguinha.
A vida podia ser bem melhor... Mas isso não impede que eu repita  que é bonita,
é bonita e é bonita!
  Vida para mim são as coisas simples: caminhar em um dia de Sol, falar ao
telefone, comer decentemente, vestir-me, tomar banho sozinha, escrever meu nome
no espelho do banheiro com o vapor da água, folhear com naturalidade uma
revista, assoprar a vela do bolo de aniversário. Olhar-me no espelho e não me odiar,
pentear o cabelo, escovar os dentes, comer um pãozinho fresquinho... e mais umas
mil coisas, que vão desde calçar os sapatos até dirigir. Você já vai entender por
que falei de coisas tão triviais. O trivial é hoje para mim algo muito raro. É que nada
disso posso fazer; nem mesmo vou ao banheiro sozinha. Quero um dia voltar a
deixar meus pés marcados na areia duma praia, ou pedir um copo de água com
a minha própria voz, ou ainda, fantasticamente, levantar-me e ir apanhá-lo.
Não morri. E não pretendo me matar. Mas a Luciana Scotti, aquela que amava a
vida, morreu no dia 2 de maio de 1994. Não entendi por que não quiseram enterrá-
la... Contraditório... Ela se foi, mas, ao escrever, estou lhe dizendo que ela está viva.
Estranho... Escrevo talvez para dizer adeus a ela. Alguém me disse que ela foi vista
brilhando no mel dos meus olhos. Não sei. Só sei que nunca mais vou ver o mundo
com o colorido que eu via, e mesmo o prêmio de consolação pode ser inatingível
para mim.
Os médicos sabiam como eu iria ficar, e é aí que reside minha maior revolta!
Acho que foi desumano. Pegaram uma pessoa que andava e colocaram-na sobre
uma cadeira de rodas, amaldiçoaram alguém que falava "pelos cotovelos" a ficar
muda; transformaram uma loira em morena, uma mulher bonita em uma feia;
substituíram um corpo escultural por outro irreconhecível; reduziram 50 quilos a
somente 33; tornaram uma mulher cheia de sonhos, com uma carreira pela frente,
em uma inútil que não tem direito a nada, a não ser a uma aposentadoria;
condenaram uma jovem que dirigia, dançava, fazia amor, a ter uma vida restrita a
sessões de fono e fisioterapia (que ela odeia); deixaram a alguém que tinha
um monte de amigos e admiradores apenas a família; impuseram a uma pessoa que
tinha uma saúde de ferro, viver cheia de remédios e vomitando... Será que isso não
é brincar de Deus? Como é que puderam optar por tudo isso sem a minha opinião?
Eu não tive escolha. Jogaram-me no mundo assim e parece que disseram:
- Te vira!
Estou me virando. Percebi que sempre me volto para o passado. A cada
segundo, imagino o que faria se fosse a mesma de antes. Antes... quando andava
buscando a felicidade que já possuía e não sabia. Agora não tenho muitas opções.
E é covardia demais me matar. E me matar de que maneira? Nem tenho como me
matar. Por que será que as pessoas se matam?
Vidinha besta esta minha agora, sem alegrias, sonhos, farras, realizações... São
dias, semanas, meses, anos, todos iguais, ociosos e monótonos. Não a monotonia
do dolce far niente, mas a monotonia do desespero.
Fico pensando nos paraplégicos... é bem verdade que perdem parte da
sensibilidade, coisa que não perdi; mas como queria ser um deles... Queria empurrar
minha própria cadeira de rodas, falar com as pessoas, ter a mesma aparência e
ser saudável, ao menos da cintura para cima. Também não tenho essa escolha.
Parece loucura minha, mas fico horas pensando nas inúmeras coisas que faria
se fosse paraplégica. Sei que para eles deve parecer uma grande tragédia. Não lhes
tiro a razão. É realmente trágico não mais dançar, andar, correr... Mas imagine
minha situação: além de todos os impedimentos dos paraplégicos, mudar de
aparência, não ter postura, não falar, não mexer os braços, não dirigir, não fazer
amigos, não trabalhar, não poder estudar....
São discriminados socialmente? Por uma sociedade que não vê que qualquer
um pode tomar um tiro hoje e ficar deficiente amanhã? Mas ser paraplégico, para
mim, é, simplesmente, o máximo. Quando eles chegam na clínica, dirigindo um
carro adaptado, logo se entrosam com todo o mundo, falam, são vaidosos,
namoram, bebem, fumam, viajam com os namorados, fazem amor, estudam,
trabalham, cantam... e me matam de inveja.
Minha mãe diz que é feio sentir inveja, então procuro outra palavra que traduza o
que sinto. Algo assim como um "queria ser você!". Por que não sentir inveja de quem
anda e fala normalmente? Vou tentar explicar... Eu e os paraplégicos temos coisas
em comum: o azar, a cadeira de rodas, a fisioterapia, a impossibilidade de andar.
Mas, dentro do azar, posso dizer que eles têm sorte. Os paraplégicos têm vida.
Existe neles uma força que a maioria das pessoas deveria ter: a força da vida. São
uns vencedores. Brigam por seus direitos, decidem, discutem, expõem suas
opiniões. São figuras ativas na sociedade, embora, não nego, sofram muito
preconceito. Agora eu? O que vejo em mim? Não sou uma pessoa que
desperta bravura. Inspiro pena. Não falo, não decido nada, não exponho idéias...
Socialmente, sou um zero à esquerda. Não tenho nenhum prazer, e muito menos a
força da vida.
Pareço um papagaio repetindo sempre que perdi os amigos, os amores, o
trabalho, a beleza, os movimentos, a fala... Mas você já imaginou o que é perder
tudo de repente? Aos 22 anos? Pode ser mil vezes pior do que você imagina. Por
isso tenho inveja dos paraplégicos, faço um balanço entre os prazeres que eles
ainda podem ter e o que não tenho mais. Quando me pergunto hoje se vale ou não a
pena viver paraplégico, respondo que vale a pena, sim. Enormemente.

Dia 19 de março de 1996


Oi, Juju!
Outro dia estava lhe falando de morte, não é? Mas a morte nem sempre é
física, sabia?
No domingo, dia 1 de maio de 1994, vi o Ayrton Senna morrer. Nem
imaginava que no dia seguinte quase seria eu a próxima vítima. Vítima de um tipo
diferente de morte, mas morte...
Na segunda, acordei, me vesti e fui trabalhar. Trabalhei o dia todo, não senti
nadinha de anormal, nenhum sinal de alerta. No fim da tarde, como já mencionei, fui
buscar meu irmão na USP, para irmos para casa. Chegando em casa, antes de sair
para o shopping com mamãe, subi até o banheiro para escovar os dentes. Senti uma
forte tontura e gritei por socorro.
Quase imediatamente entrei em convulsão. Convulsão é uma tremedeira mais
conhecida por ataque epiléptico. É uma sensação horrível! Ainda bem que nunca
mais tive convulsão - restaram os anticonvulsivantes, que tenho que suportar
pelo resto da vida. Eu tentava controlar meus movimentos, mas os músculos não
paravam de tremer. Minha família ficou apavorada. Meu pai massageava meu
coração. Meu irmão cuidava para eu não morder a língua, colocando uma escova de
dentes na minha boca. Enquanto isso, minha mãe ligava para o Resgate.
Não sei como, mas Nilza e Márcio, filho dela, apareceram, e ele me pegou no
colo. O marido da Andresa, Luís, já veio com o carro. Todos eram vizinhos com
quem tínhamos amizade. São mais que vizinhos, são queridos amigos de quem até
hoje recebo muito carinho e apoio. Nunca pensei que essas pessoas seriam tão
prestativas e que eu fosse precisar tanto delas. Eu quase não conseguia falar e,
naquela confusão, não sabia se minha família viria atrás do carro ou não. Só sei
que Márcio me pôs no carro do Luís, e fui para o Pronto-Socorro Municipal de
Santana com a Nilza. No caminho, eu pedia calma com a mão, não tinha a mínima
idéia do que estava por vir.
Agora entendo por que, em um pronto-socorro municipal, onde a fila é sempre
enorme, com tanta gente esperando para ser atendida, eu entrei logo... Colocaram-
me em uma maca e levaram-me direto para ser examinada. Na saleta do
médico, havia algumas enfermeiras que delicadamente tiraram meu relógio, minhas
pulseiras, anéis, gargantilha e brincos, e deram depois para minha mãe. Precisavam
ser delicadas para eu não me machucar, pois meu corpo trepidava.
Minha família me achou no pronto-socorro, depois de percorrer todos os
hospitais da região. Lembro-me de minha mãe, parada ao lado de minha maca, e eu
me perguntando quem estava segurando na minha mão. Com os olhos fechados e
com muito esforço, só conseguia falar mamãe e papai. Ironicamente, as primeiras
palavras que aprendi e quase as últimas antes de encerrar uma vida...
A convulsão continuava, tentaram fazer um eletrocardiograma, mas eu tremia
demais e não conseguia ajudar, por mais que tentasse.
De repente ouvi alguém dizendo:
- Sou o médico da Luciana Scotti, sou médico da família.
Eu nem imaginara que minha família havia ligado para o nosso médico e ele iria
mandar seu genro para me acompanhar.
Abri meus olhos, vi um homem moreno, de cabelos curtos, com mais ou menos
trinta anos e um porte atlético. Seu nome era Nilson. Eu só pensava:
"Quem é esse cara?" Engraçado, o doutor Nilson me lembrava um pouco um
"príncipe encantado" que tive na minha vida, daqueles que quase todas
as adolescentes imaginam encontrar um dia: Giovanni... Nossa! Como é bom sonhar
com príncipes! Que menina ou mulher já não sonhou, já não romanceou, já não
deixou vir aquele perfume de rosas tomar conta de sua imaginação noturna e
romântica?
Conheci esse cavaleiro dos sonhos em 1987, em Sorrento, quando fui passar as
férias escolares de julho na Itália. Meu pai é italiano e sempre sonhou em levar a
família toda para conhecer sua pátria: conseguiu finalmente! Giovanni, assim como
nós, passeava na quente noite de verão, debaixo de uma lua maravilhosa, e
amistosamente pediu para tirarmos uma foto sua junto de seus amigos. Isso bastou
para acender meu interesse.
Disso você se lembra, Ju! Eu te falei dele nos meus doces 15 anos!
Hoje, sob um lindo panorama, conheci cinco italianos. O mais bonito chamava-
se Giovanni. Ele foi super simpático e me achou linda. Ele era muito atraente. No
meio da conversa, olhei para seus olhos castanhos e os percebi me fitando. Ri,
e então ele abriu um lindo sorriso de marfim. De longe vinha uma música, deixando
mais romântica aquela agradável noite de verão. Fiquei empolgadíssima por ter
conhecido um homem tão interessante. Dei meu endereço e ele prometeu me
mandar cartões.
À noite, não dormi. Fiquei pensando naquele moreno encantador. Ora, não
aconteceu nada, foi só um flerte. São essas coisas inexplicáveis. Não sei se é
química atração ou, como dizem, "amor à primeira vista". E ele prometeu
me procurar um dia. Acho que nunca vou esquecê-lo...
  Pois é, não o esqueci mesmo! Ele me enviou cartões, mandou foros e acabou
vindo passar férias no Brasil, em agosto de 1990.
Nessa época, eu já havia entrado na faculdade, estava cursando Farmácia na
USE vivia também o sonho de uma recém-universitária e embarquei fácil nessa
viagem com Giovanni. Bons tempos esses de descompromisso, onde podemos cair
na imaginação livre e suave, navegar pelos pensamentos soltos, sem limites ou
impedimentos.
Eu mesma fui buscá-lo no aeroporto, com meu querido Uninho... Super ansiosa.
Será que o Giovanni era tão bonito como nas fotos? Era mais... Moreno-bronzeado,
cabelos negros e com um sorriso lindo.
No mesmo dia de sua chegada, à noite, fomos a uma lambateria. Estavam na
moda essas coisas. Trocamos muitos olhares e ele até arriscou uns passos de
lambada... Nem precisava. Quando ele pediu, em italiano, para parar, encostou o
nariz no meu e disse:
- Chega!
O oceano que sempre esteve entre nós durante anos desapareceu: passamos a
noite abraçados, assistindo a um show de capoeira. Chegando em casa, ele me deu
dois beijos doces e foi se deitar. Eu mal consegui dormir, ainda mais sabendo
que ele estava no quarto ao Lado do meu. Melhor ainda foi acordar e dar de cara
com aquele lindo italiano.
Não demorou muito para Giovanni me dizer que, se tivesse que cantar uma
canção para mim, seria Passione. A letra diz: "Te quero, te amo, te penso...".
Lindíssima. Estava na cara. Estávamos apaixonados.
Durante a semana que Giovanni esteve em Sampa, eu simplesmente não
conseguia me sentar tranqüila em um banco de faculdade e assistir às aulas. Eu
precisava ficar perto dele.
Abandonei cedo a sala de aula e voltei para casa, na ansiedade de encontrar
algo que me chamava e me deixava elétrica. Com gosto, dei de cara com ele, que
tinha acabado de acordar. Saímos para um bar, junto com a Neide, uma amiga de
faculdade. Rimos e bebemos muito. Ele disse que eu era "dolcíssima", Passamos a
tarde abraçadinhos, passeando. Numa certa hora, me puxou para bem perto, disse
que há muito tempo gostava de mim e me beijou. Senti que o chão não estava
mais sob meus pés. Finalmente! Fiquei levíssima. Acho que esperei por esse
momento, desde o dia que o conheci.
Hoje Giovanni parecia triste, disse que eu era especial e lamentou muito ter de ir
embora. Deu-me um maço de cigarros napolitanos e uma fita do Pino Daniele para
eu me lembrar sempre dos nossos momentos. Ficamos em silêncio um tempo,
só escutando as canções italianas. De repente, me perguntou:
- Quer ir embora comigo?
Tão lindo! Pena que inviável... Na hora respondi: "Sim!". Talvez porque soubesse
que era impossível. E chorei. Engraçado, não me dei conta que estava tão
envolvida...
Ele me beijou tanto, falou tanta coisa: que me ama, que queria casar comigo,
que queria muito ficar comigo, que ia ser maravilhoso quando morássemos juntos,
que ele ia trabalhar, comprar uma casa e vir me buscar. Perguntou-me como ele
iria fazer sem mim enquanto estivéssemos longe...
Adorei ouvir tudo. Duvido que aconteça, duvido que seja verdade, mas adorei
ouvir tudo.
No dia em que ele foi embora, chorei. Mais por mim, pela minha falta de sorte,
pela minha pouca independência pela falta de coragem de largar tudo e ir pra Itália
com ele...
Curti uma fossa danada depois da partida dele, dias e dias movida a cigarros
napolitanos e músicas italianas melosas...
Giovanni me ligou da Itália algumas vezes e escreveu um monte de cartas.
Minha família colocou mil empecilhos entre nós, achava que tudo era uma loucura.
Dimensionaram mal meu relacionamento com Giovanni, pois eu nem estava
disposta a lutar por ele. Lá no fundo, preferia manter tudo como uma paixão
impossível, dessas de folhetins mesmo, talvez para dar mais condimento ao
sofrimento do coração. Coisas de adolescente. Eu tinha medo de sofrer, além de
muitas desconfianças de um romance a longa distância, de promessas de férias de
verão. Não respondi mais às cartas, simplesmente "sumi do mapa".
Giovanni desapareceu logo de minha vida, mas meus planos para viver na Itália
continuaram vivos. Isso, sim, me dá arrepios! Era lá que estava o meu futuro, era lá
que eu iria construir uma família e uma carreira; ter uma casa, marido, filhos, uma
profissão... Esse foi o mais forte de meus sonhos, agora, impossível de se realizar.
Como fui atingida! Como tudo foi arrancado de mim!
Nesse ano, no ano da minha trombose, pensava em validar meu diploma na
Itália, trabalhar na minha área, ser independente, viver por lá. Eu estava tão perto de
realizar tudo isso... E veio essa onda destruir um castelo de areia que criei com tanto
cuidado: aulas de italiano às terças e quintas, pós-graduação às noites, trabalho
durante o dia. Sempre achei que conhecimento nunca era demais e
continuava freqüentando as aulas na Universidade, me aprofundando nos estudos,
sempre me aprimorando para o futuro.
Puxa, fui pega no meio do caminho! E eu, naquela maca, pensava nas aulas de
italiano no dia seguinte! E continuava a traçar os meus planos para o futuro. Minha
vida na Itália, acho que daria para ir por volta dos 25 anos... Depois da pós, depois...
Oh mia dolce vita, mia bella Italia, mio sognato futuro giammai si concretizer

Dia 5 de abril de 1996   


Amiga,   
O doutor Nilson até me fez lembrar um príncipe, mas com certeza eu não
estava num castelo encantado! É horrível ficar numa cama de hospital, sem saber
ao certo o que está acontecendo com você. Os médicos agem com uma
naturalidade absurda, como se você estivesse acostumada a ser
espetada, entubada, desinformada!
No pronto-socorro, nem me lembro como, colocaram-me uma sonda e fizeram
uma lavagem estomacal, O médico me perguntou se eu havia tomado algum
medicamento. Falei - já era um custo falar a essa altura - que havia tomado um
contraceptivo oral. Algo me dizia que o anticoncepcional tinha muito a ver com o que
estava me acontecendo, com as convulsões. Mas eu já havia digerido tudo. Na
lavagem estomacal só havia soro: o que colocavam no estômago, saía pela sonda.
A correria continuava ao meu redor: médicos, enfermeiras, um monte de
desconhecidos, e eu meio sem identidade. Pensei na minha bolsa, com três maços
de cigarros indonesianos e uma cartela de pílulas anticoncepcionais. Minha bolsa
estava com meus pais, e eles poderiam abri-la e descobrir um outro mundo da filha,
um mundo que desconheciam.
É errado mentir, e eu menti. Enganei meus pais: não sabiam que eu tomava
pílula e fumava. Deveriam estar aturdidos demais para ponderar sobre o assunto
naquele momento. E eu continuava a tremer na maca. Tremia e pensava nas
pílulas .Tremia e pensava em tremores. Eles não sabiam que eu tomava pílulas, que
eu não era mais virgem. Virgem... Tremores... Orgasmo... Eu associava tudo, minha
cabeça tremia, meus pensamentos tremiam, minha memória tremia.
Nem sempre usei pílulas e nem sempre tive tremores de orgasmo. E foi com
Cléber, meu namoradinho de adolescência, por quem fui apaixonada, que aprendi o
que era orgasmo.
Cléber me convidou para sair com ele, um sábado. Não sei por que eu estava
meio desanimada. Achava que o Cléber já havia dado tudo que tinha que dar mas
aceitei. O jeito dele no telefone me animou.
Acho que nunca me diverti tanto. Bebemos muito vinho e rimos a valer. Na
pizzaria, ele pegou na minha mão, me abraçou. Ele é lindo! Super! Fiquei
encantada.
Na hora de ir embora, os cinco minutos que o carro levou para esquentar foram
demais! O Cléber me beijou, ficamos"
muito bem. Ele é meio tímido, lindo, super carinhoso... Estamos namorando.
O Cléber continua um doce. Eu amo esse cara. Ele é meigo, carinhoso... Saímos
todo fim de semana e, durante a semana, cabulo umas aulas para namorar. Vamos
até uma pracinha, e o rapaz tímido se transforma em um homem muito envolvente.
Confio super nele.
 Ele me deu um cartão fofo, falando que sentiria muito se me perdesse e que me
adora. Fiquei radiante! O clima entre nós é suave, já rolam altas intimidades.
 Hoje consegui um orgasmo, e ainda sou virgem... Não imaginei que fosse tão
fácil e gostoso.
Estávamos namorando na pracinha. Ele veio para o meu banco, no carro, Os
dois estavam de calça jeans e nunca imaginei que fosse capaz de atingir um
orgasmo só de ficar embaixo dele, trocando carinho... Ele tem um corpo de
provocar excitação em qualquer mulher. Seus beijos são tão carinhosos, suas
palavras tão doces...
Ele tirou a camisa, como sempre, e se alojou entre minhas pernas, me beijou um
incontável número de vezes, disse que me amava, explorou meus seios. Eu sentia
seu membro cada vez mais duro, sob o jeans e entre minhas pernas.
Entre sussurros e beijos mais ardentes, começou um vaivém gostoso de quadris.
Senti que algo extremamente bom se aproximava. Comecei a suar e senti o coração
bater apressado. De repente, não queria que ele parasse. Agitava meu quadril o
mais perto possível do dele, e o mais rápido também. Senti que algo ia acontecer e
aconteceu... um breve momento que só posso traduzir como o máximo do prazer.
Esse breve momento se prolongou por uns segundos a mais, pois aquele
vaivém continuava, e cada vez que sentia seu pênis eu tremia. Cravei minhas unhas
nas suas costas e soltei um suspiro, mas ele não percebeu.
Já li que milhares de mulheres não conseguem um orgasmo, nem transando.
Nunca imaginei que teria tanta facilidade, sem ao menos ser penetrada... Depois
que isso passou, pensei que não era normal ou nunca mais fosse acontecer, mas
mesmo assim fiquei radiante.
  No apartamento dele, no sofá, à luz de velas, ambos sem camisetas e de jeans,
aconteceu de novo. Um gemido foi inevitável. Ele percebeu, me abraçou e beijou
meus cabelos. Depois aconteceu com ele. Foi o máximo! Estou me tornando mulher!
Estou amando todos os momentos que passo com o Cléber. Não quero
desanimar nunca, prefiro levar um fora e sofrer. Penso seriamente em transar com
ele.
Minha única dúvida quando penso se quero ou não me manter virgem é um dia
acontecer de me apaixonar por um homem que me despreze por eu já ter perdido a
virgindade. Mas está ficando claro que nunca irei me apaixonar por alguém
tão retrógrado.
Fui para o Guarujá nesse feriado de 7 de setembro de 1989. Ontem à noite, fui
até o apartamento do Cléber. Ele apagou a luz da sala, depois que já estava aquele
super clima. Foi ótimo! Fiquei só de calcinha, no sofá, com o Cléber me abraçando,
me enchendo de beijos. Demais! Quase transamos, só que, na hora H, falei:
"Não!" Ele (como todo homem diz) disse:
- Por que não, Lu? Vamos...
Tive de pensar duas vezes antes de falar não de novo. O bom de tudo é que ele
nunca fica bravo, é super carinhoso e nunca forçou.
  Expliquei que não queria que a minha primeira vez fosse assim. Nós tínhamos
horários, e eu não queria fazer nada corrido. Disse também que morria de medo de
ficar grávida, que, se isso acontecesse comigo, eu me matava. A primeira vez tinha
que ser especiaL. Ele entendeu. Conversamos muito sobre transar, esses dias.
Vamos transar mesmo mais cedo do que imagino. Tenho medo, mas quero estar
com ele. Cléber falou que comigo ia ser diferente, pois, apesar de não ser a primeira
vez dele, era a primeira garota de quem gostava.
Será que vou sofrer? Vou deixar rolar, e como diz o poeta:
"...seja imortal" posto que e" chama, mas infinito enquanto dure. O importante é
viver cada minuto da vida como se fosse o último...
 E foi assim que me tornei mulher. Nunca soube em que hora e momento estaria
preparada para me tornar uma mulher. Como toda adolescente, pensava, pensava,
imaginava, imaginava. Como saber? Como saber se eu estava pronta? Hoje, sei
que aconteceu na noite certa, com o homem certo, sem traumas, sem aflições.
Pensava que deveria ser mágico e maravilhoso. E foi.
Muitas perguntas eu me fiz antes de entrar de vez nesse universo desconhecido:
o universo do sexo. Questionei-me se eu amava suficientemente o Cléber, se eu
confiava nele, se eu me sentia pronta para perder para sempre a virgindade, se
eu queria saciar somente uma curiosidade ou experimentar a essência de fazer
amor... Mesmo assim eu não tinha certeza. A gente nunca tem, não é?
Como tantas meninas, menti também para os meus pais. Naquela noite de
domingo, disse que ia ao cinema e fui ao motel. A mentira me desagradava, mas eu
me sentia confiante na minha decisão. Nervosa, mas confiante. Havia chegado a
hora do meu ritual de passagem, um ritual muito íntimo, meu, que não queria dividir
com mais ninguém, a não ser com o homem que seria meu parceiro de amor.
Chegando ao quarto, fiquei tranqüila em estar com um homem que eu amava.
Quem diz que perder a virgindade é pecado não sabe como é mágico deitar ao
lado do ser amado depois de se fazer amor. É um sentimento tão aconchegante,
que abraça a alma, beija o espírito... uma sensação que nunca vou esquecer!
Sempre usamos camisinha, preocupados em nos prevenir. Inclusive me
prevenir das encrencas com meus pais, do que poderiam achar ou não.
Como os pensamentos avançam rápido, desencadeiam-se pelas palavras,
imagens, sons, gestos... Tremendo de convulsões e voando... Eu estava
acostumada a ser paparicada, paquerada, requisitada. O desinteresse que hoje
causo aos homens é pior que a morte. Lembra-me que, como mulher, hoje sou um
zero à esquerda.
Não quero falar sobre isso agora, Ju! Estou chorando... Preciso chorar agora...

Dia 18 de abril de 1996   


Querida amiga,
  Acho que não deixei muito claro essa coisa toda de mentiras entre pais e filhos,
não é?
Sabe, agora que estou de volta para minha família, inteiramente dependente
dela, fico pensando em coisas que escondemos, em vidas paralelas que levamos, e
não sei o sentido de tudo isso. É idiota tudo isso.
É certo que devemos preservar nossa privacidade. E, pensando nisso,
procurando ter mais liberdade e autonomia em nossas decisões, acho que nós,
quando adolescentes, tecemos uma rede de mentiras ao nosso redor. É estranho,
mas assim funciona com a maioria. A partir daí, tudo o que dizemos aos nossos pais
é regido por essa cartilha, cuja frase que fica martelando em nossa cabeça é:
"Cuidado para não se contradizer!".
Mas a quem estamos tentando enganar? Será que somos tão espertos assim?
Os pais são duas pessoinhas que amam de fato os filhos e procuram, à maneira
deles, o melhor para nós. Quando você se vir só, quando você concluir que as
pessoas que diziam que te amavam não te amavam tanto... sobra alguém.
Pelo menos foi assim comigo.
Quando falo em mentira, lembro-me do Lucas, e acho que sua contribuição
nessa mentira foi maior do que ele quer admitir. Parece que estou vendo ele me
dizer:
- Lu, você finge que mente, e eles fingem que acreditam.
Hoje eu não acreditaria mais nisso. A gente finge que mente, e mente mesmo, e
os pais nem sempre fingem, às vezes, eles acreditam, acreditam realmente.
Atualmente Lucas é o primeiro a dizer:
- Seus pais são pessoas simplesmente fantásticas!
Agora você me diz isso, Lucas? Agora eu sei. Só que eu gostaria de ter ouvido
isso em vez de "Lu, você finge...", ou de "Lu, suas mentiras devem conter o máximo
de realidade possível, para você não se contradizer".
Os pais já viveram tanto... Acho que sabem de coisas que não sonho saber.
Meus pais sabiam que meu relacionamento com Lucas era intenso e forte. E o ponto
forte do Lucas são seus olhos azuis...
Judeu, loirinho, adora doces, por isso é meio barrigudinho. Baixinho, quase do
meu tamanho, super simpático, inteligente, rico e sociável, engenheiro formado pela
USE As minhas amigas me alertaram, comentaram o quanto era visível a diferença
entre nós, pois Lucas era classificado como feio e nerd, tinha fama de ser bonzinho
e bobinho. Errado, descobri que ele valia ouro! Lucas foi o homem da minha vida, e
nunca vou poder saber se haveria outro para poder superar tanto envolvimento e
tanta paixão. Às vezes, fico me questionando se Lucas era realmente incrível, ou se
ele poderia ser comparado a um outro alguém, ou ainda se eu me apaixonaria tanto
ou mais por outro homem. Vinte e dois anos não foi tempo suficiente para avaliar
essa dúvida... que vai durar enquanto eu viver.
Adorei quando ele me convidou para sair no dia 6 de outubro de 1990. No nosso
primeiro encontro, me deu uma rosa vermelha; foi a primeira e a última vez que me
deu flores. No carro, começou a falar macio, até a hora do beijo de despedida. Foi
inevitável eu perguntar:
- Começamos alguma coisa?
Não estava mostrando interesse, apenas querendo saber como me comportar
dali em diante. Mas essa pergunta foi mal interpretada. Não foi raro, durante nosso
namoro, Lucas me olhar com um risinho maroto e lembrar-se da pergunta como
um sinal de interesse meu por ele, como se eu tivesse iniciado tudo. Nunca o
contradisse, pois só queria saber se aquela noite representava alguma coisa
especial ou não. Representou. Foram três anos de relacionamento, nos quais investi
muito. Dei o melhor de mim.
No começo, Lucas era muito apaixonado. Telefonava-me sempre, mostrava-se
preocupado com meu bem-estar, chegava na hora aos encontros. Fui Levando esse
namoro. No início, aos trancos e barrancos, achando que eu era muita "areia para
o caminhãozinho dele". Mas devo confessar que me encantei com esse menino.
Como ele não era um tipo "gato", imaginei que ao seu lado seria fácil encontrar a
segurança que eu tanto procurava. Daí para me apaixonar foi um pulo.
O mundo que o cercava era muito diferente daquele ao qual estava habituada.
Até davam a entender que eu era bem aceite por lá, mas era só aparência, pois virei
uma mosca branca no meio deles. Iludi-me, com certeza, mas já
estava completamente fascinada.
Lembro-me do seu aniversário, o primeiro junto dele depois de dois meses de
namoro. Fui bem recebida pelos seus amigos; mas, em compensação, seus pais
mal me olharam. Carta (namorada do irmão dele) já havia me prevenido: como eu,
ela também era católica, e não judia. E como água e óleo não se misturam, judeus e
católicos também não. É uma grande bobagem essa história de religião, mas foi o
suficiente para eu nunca ter sido aceite pelos pais de Lucas.
Durante nosso tempo de convivência, houve mil comemorações em família, mas
eu tinha que ficar de fora. Achava injusta tal situação: enquanto Lucas tinha as
portas de minha casa sempre abertas, eu não podia sequer caminhar sobre sua
calçada. Sofri e chorei muito por causa disso, principalmente amei Lucas.
Pessoalmente, não ligava para o faceto das pessoas serem judias, católicas, ricas
ou pobres... Só conseguia ver nele uma pessoa carismática (será que ele vai rir
quando ler essa palavra?). Ele me fazia muito bem, me completava. E eu? Eu
estava tão envolvida, tão apaixonada, tão certa de que ele era o homem que sempre
esperei, que estava disposta a mostrar isso: estava disposta a fazer amor.
Dizem que o homem não precisa ser bonito, basta ser charmoso. Bom, seja
como for, foi ele quem me encantou. Era interessante, calmo, sensato, transmitia
uma liberdade que eu invejava. Pouco a pouco, Lucas se tornou o máximo e
eu simplesmente não imaginava mais minha vida sem ele. Meu coração disparava
só de chegar perto dele. Sociável, simpático, risonho, meigo... Lucas se revelava um
homem carinhoso, compreensivo, preocupado em dar prazer. Não, bonito ele não
era, mas a cada dia eu ficava mais apaixonada e o achava mais lindo.
Lucas e os irmãos dividiam um apartamento. Com a freqüência e o uso, acabou
se transformando na "nossa casinha". A primeira vez em que Lucas me levou até lá,
fez um super mistério. Eu já sabia da existência do "casulo", pelos comentários na
faculdade. Diziam que mantinham um apartamentozinho só para namorar:
- Está me levando para o seu apartamento?
Lucas ficou espantado com minha pergunta no meio do caminho.
- Quero te mostrar que posso te levar a qualquer lugar, porque ao meu lado só
vai acontecer o que você quiser.
Não sei de onde vinha essa sua certeza, apesar de estar me levando para lá,
mas ele a tinha. Não sei também por que se espantou com minha pergunta.
Chegando, Lucas me deu uma linda bonequinha de pano que tenho até hoje e
que por muito tempo dormiu comigo. Desse dia em diante, era para esse
apartamento que sempre íamos.
Não foi nessa primeira visita que fizemos amor, mas a primeira vez que fizemos
foi única. Ficamos no chão da sala, tiramos toda a nossa roupa e Lucas foi até o
quarto buscar umas camisinhas. Não sei quantas vezes fizemos amor nesse
dia, nem me lembro direito dos detalhes, sei apenas que morei nas nuvens por todo
o tempo em que estive em seus braços. Lucas me transformou em uma mulher que
sentia muito prazer. Como parceiro sexual, era perfeito. Já não sei se ele era
mesmo perfeito, ou se apenas havíamos nascido um para o outro.
Vivi três anos de êxtase. Sempre foi assim: Lucas fazia a coisa certa no
momento exato. Frequentemente gozávamos juntos, sempre conversávamos muito
depois de fazermos amor. Lucas me enchia de carinhos e meu corpo pedia seu
toque, a suavidade de suas mãos e de seus afagos. Muitas vezes ele me penetrou
só porque implorei, e senti-lo dentro de mim me levava ao orgasmo. Para mim, só
posso defini-lo como perfeito. Parece loucura tamanha paixão? Não, era
simplesmente amor...
Dois meses de namoro, de paixão intensa, e Lucas iria viajar, passar três meses
nos Estados Unidos, fazendo um estágio. Eu não sabia o que seria da nossa
relação, parecia perfeita demais para terminar. Bateu um certo desespero,
não conseguia me imaginar tanto tempo longe dele. Na véspera de sua viagem,
avisei em casa que iria dormir na casa de uma amiga. Ficamos no bota-fora até o
final, depois fomos para a "nossa casinha" e dormimos juntos. Como sempre, foi
perfeito sentíamos uma necessidade mútua de fazer amor. Não consigo imaginar um
homem que faça amor melhor que Lucas. Era a primeira vez, de muitas vezes, que
dormiríamos juntos. Mas naquela noite não dormi. Fui vendo o dia clarear
devagarinho, da varanda, tendo um maço de cigarros como companhia.
Pensando que a vida era muito ingrata, e era mesmo. E eu não sabia quanto.
Voltando para casa, fiquei na minha cama, repassando os momentos
maravilhosos da madrugada. Foi aí que ele me ligou da sala de embarque, no
aeroporto, dizendo que ia morrer de saudade. Eu chorava feito louca. Chorava de
tristeza e de aflição. A voz do Lucas era entrecortada, o que aumentava ainda mais
meu desespero. Eu estava amando...
Na sua ausência, quase morta de saudade, escrevia cartas doces e
apaixonadas... Nesse começo de namoro, lembro-me de um Lucas afetuosíssimo. E
as cartas que recebia dos EUA? Eram simplesmente lindas, apaixonadas e
envolventes. Depois tudo mudou, e a balança dos nossos sentimentos começou a
pender, e muito, para o meu lado. Faria qualquer coisa por ele.
Estava se aproximando a volta do Lucas e eu queria estar com ele o quanto
antes. Meu sonho era buscá-lo no aeroporto. Mas, como os pais dele iriam, resignei-
me em esperá-lo no apartamentozinho. O irmão dele me deu as chaves e fiquei
ali aguardando, hiper nervosa e ansiosa, sabendo que Lucas estava em casa com a
família, almoçando, falando da viagem, rindo, dormindo, tomando um banho... Nem
sei quanto tempo depois de meus devaneios, tocou a campainha. Era ele: de calça
jeans e camisa preta. Estava muito sensual.
O encontro foi perfeito. A volta foi perfeita. O namoro foi perfeito. Foi tudo quase
perfeito. Quase...
Quase, porque preciso evidenciar um fato que se tornou marcante durante todo
o nosso namoro. Eu sempre colocava Lucas em primeiro plano. Se fosse eu quem
tivesse viajado, na volta eu teria corrido ao seu encontro, nunca teria sangue frio
para almoçar ou dormir antes de vê-lo. Outras situações, um monte delas,
evidenciaram, durante nosso relacionamento, que eu me expunha muito mais. Fiz de
seus amigos meus amigos, mas fui ficando contrariada, pois percebi que dividia com
eles a pouca atenção que Lucas passou a me dar com o tempo. A maioria de seus
amigos eram judeus, e havia um, Beto, que eu achava completamente irritante.
Betinho era o amigo que Lucas mais gostava, tinha um apartamento com uma
linda cobertura. Frequentemente íamos até lá, passar o domingo e tomar banho de
piscina. Eu ia porque adorava sol, e porque Lucas adorava esse programa. Só que
os dois ficavam horas falando de política ou de economia de uma maneira e com
uma tal cumplicidade que eu era tão notada quanto a água da piscina. E para piorar
a história, Betinho só se dirigia a mim para fazer piadinhas sem graça, mostrando
ser um cara desagradável. Ele tinha o dom de saber me irritar:
sabia me discriminar. Não me discriminava religiosamente, mas simplesmente não
gostava de mim e me colocava à parte, sabia me isolar.
Tentei me aproximar de Betinho várias vezes, já que Lucas prezava muito essa
amizade, mas ele se revelou um porco-espinho, arredio à minha aproximação. Se
descobria em mim ou no meu namoro com Lucas algum ponto fraco,
pronto, transformava logo esse achado numa piada de mal gosto. Betinho não era
assim só comigo, muito poucas pessoas se davam com ele.
Quando eu já estava em estado grave no hospital, espantei-me dever um outro
Betinho, amoroso e prestativo, que ia passar as noites comigo. Até hoje não entendi
o que deu nele. Até entendo uma ou outra visita, mas Betinho se mostrou muito
dedicado e não éramos amigos no passado. Nosso elo de ligação era o Lucas. Não
entendo... durante meu período hospitalar ele foi a pessoa mais amiga.
Amigos... Certamente eu tinha os meus amigos. Uma noite, numa ida ao teatro e
posteriormente a um jantar, tentei unir um casal, Bruno e Maria Helena, amigos do
Lucas, a um grupo de amigos meus. Durante o teatro, foi tudo bem. Na
cantina, Lucas, que era tão sociável com os seus amigos, quase não falou com os
meus: ficou todo o tempo batendo papo com Bruno, que também não se misturou.
Quando meus amigos se preparavam para pedir a sobremesa, Lucas já havia
pedido a conta e se mostrava aflito para ir embora.
Foi a primeira e a última vez que saímos com os meus amigos.
Depois de anos de namoro, atendendo aos meus apelos, Lucas falou que ia
passar uma tarde todinha só comigo. Eu o estava achando muito ausente, sempre
saíamos com os amigos dele. E eu tinha saudade... saudade de ter um namorado só
para mim, de não estar sempre rodeada pelo seu grupo, de passar uma tarde
simplesmente namorando. Marcamos um encontro às duas horas, do segundo
domingo de agosto de 1993. Era a possibilidade de retomarmos nosso caminho. E
foi...
Neide, uma amiga da faculdade, ia embora do Brasil, e eu fui me despedir dela.
Depois, fui para casa e esperei. Vi dar duas, três, quatro horas. Às 5 e cinco, tocou o
telefone. Era Lucas: tinha ido almoçar com Betinho e perdera a hora... Justo com
quem? Com Betinho! Olha, bem que tentei ser amiga do Beto. Abri as portas da
minha casa e do meu coração para ele. Tentei, tentei mesmo ser amiga dele. Não
adiantava. Desisti.
E desisti de continuar com Lucas. Usei toda a força dos meus pulmões. Aos
berros, dei um basta. Esse almoço com Beto foi a gota de água que faltava para
fazer transbordar tudo que já estava desgastado. Gritei tanto que a vizinha do outro
lado da rua ouviu. Gritei a falta de respeito, de consideração.
Nosso namoro tinha chegado ao final.
Na hora da discussão, Lucas tentou remediar minha decisão, mas eu estava tão
brava que não queria ouvir. Nem mas, nem meio mas. Arrependi-me dois dias
depois, mas Lucas me mostrou que nosso namoro tinha muitos outros problemas.
Hoje, vejo que foi melhor assim. Lucas não teria estrutura para agüentar o que
estava por vir. Ele não enfrentaria o AVC.

Dia 10 de maio de 1996


Oi, Ju!
Quando entrei na empresa que trabalhava antes do acidente, fiz um seguro.
Foi uma sugestão do departamento de Recursos Humanos: um seguro de vida, no
caso de morte ou invalidez permanente, e um seguro-saúde. Eu nem imaginava a
grande importância que essas coisas teriam na minha vida, provando que não dá
mesmo pra gente depender da assistência hospitalar pública deste país. Como
funcionária de uma multinacional de grande porte, o seguro-saúde empresarial
abriu-me as portas dos melhores hospitais e terminou pagando a conta
hospitalar, que não foi pequena. O pagamento do seguro de vida por invalidez, no
valor de trinta salários, será efetuado se eu estiver interditada e aposentada. A
interdição já foi providenciada, mas falta a aposentadoria. E isso vai ser uma longa
história...
Através do meu seguro-saúde, meu pai tentava minha transferência do Pronto-
Socorro Municipal de Santana. Eu sabia, todos sabiam, que se continuasse lá iria
morrer. Ali, não sabiam e não tinham condições de avaliar o que estava ocorrendo
realmente comigo. As convulsões se aceleravam...
Fui transferida de ambulância para o Hospital Santa Izabel. Sem médicos ou
para médicos, só meu pai me auxiliando com um balão de oxigênio. Um absurdo!
Sim, um absurdo ter sido transferida de hospital, em convulsão, beirando o coma,
sem nenhum médico na ambulância. Sei que bons hospitais proíbem tal prática. Se
tivesse acontecido alguma complicação, fatalmente teria morrido. Meu pai, apesar
da boa vontade e de estar terrivelmente preocupado, pouco poderia fazer no caso
de um desmaio, ou de uma parada cardiorrespiratória. E essas coisas poderiam ter
acontecido, pois meu problema era no cérebro, e o cérebro comanda todo o corpo.
Mas esse fato ainda era ignorado.
Foi ficando difícil respirar... O oxigênio me ajudava. Meu pai beirava o
desespero. Lembro-me que, na ambulância, aconteceu minha primeira babada. Era
a primeira de milhões. Em um momento qualquer, dentro da ambulância, eu babei.
Por um motivo que até hoje não entendo, a saliva escorreu para fora da minha boca.
Dizem que a flacidez da musculatura é responsável pelas babadas, mas, na época,
minha musculatura era perfeita! Papai limpou. Era o começo de uma época que
eu ainda não sabia interpretar. Atualmente vivo babando, menos do que no início, e,
por mais que tente, não consigo evitar. Além da ausência da fala, essas babadas
inoportunas ajudam as pessoas a me confundirem com uma retardada mental.
Muitas vezes tive, e terei ainda, que provar minha inteligência e minha mente sã. Já
percebi que, quanto mais tensa estou, ou quando faço esforço físico, babo mais,
mas não dá para prever.
No Hospital Santa Izabel, um enfermeiro moreno me ajudou a sair da
ambulância e me pôs em uma maca. Levaram-me para um quarto. A sonda
nasogástrica que tinham posto no pronto-socorro continuava em mim e ninguém
vinha tirar aquele troço horrível, que me incomodava profundamente. Só meses
mais tarde, me veria livre dela. Acordei do coma, tendo comigo a maldita sonda!
Tiraram minha roupa, e me vestiram um daqueles camisolões de hospital. A
convulsão continuava. Lembro-me dos médicos ficarem discutindo em volta da
cama, se perguntando o que eu teria. Fui ficando meio atordoada, senti um mal-
estar repentino e vomitei em jacto. Uma enfermeira que me acompanhava falou para
o enfermeiro moreno:
- Ela não passa desta noite.
- Não sei, não. Já vi casos assim se salvarem...
Levaram-me de maca para a UTI, enquanto me explicavam que lá eu teria
melhores cuidados. Não tomei consciência da gravidade da situação, pois achava
que só pessoas inconscientes iam para a UTL, e eu estava consciente, ainda.
Lembro-me que, quando entrei na UTI, pensei:
- Acho que vou faltar ao trabalho amanhã. Não passei muito bem hoje...
Nem por um décimo de segundo cogitei a possibilidade de nunca mais pôr os
pés na Colgate, de não trabalhar mais com Júnior. Que ingênua!
No final do ano de 1991, mandei meu currículo para um monte de empresas.
Passei o curso de Farmácia para o noturno e deixei só Legislação Farmacêutica e
uma outra matéria para o período da manhã. Tinha resolvido trabalhar e ganhar
dinheiro para minhas despesas, principalmente minhas despesas junto com Lucas,
pois, apesar de ele ser rico, dividíamos tudo.
Fiz contato com várias empresas, mas a Colgate me chamou para uma vaga,
levando em consideração a entrevista que havia feito por lá. Propuseram-me que
fizesse estágio até o final de 1994, com a possibilidade de uma efetivação,
na divisão de Saúde Bucal, na fábrica de Osasco. Comecei a estagiar em novembro
de 1992 e depois fui mesmo efetivada. Enquanto eu não iniciava o estágio, resolvi,
no departamento de Recursos Humanos, todo o tipo de assuntos burocráticos, e fiz
até exame médico.
Era uma fábrica super nova. Todos os dias, meu Uninho vermelho tinha que
cruzar a Marginal, indo de minha casa em Santana até Osasco, de lá até a USP,
onde fazia todo o resto do curso no período noturno. Quase toda a minha turma
mudou para a noite nesse ano, e, quem não tinha, estava procurando estágio.
Na Colgate, fui logo para o laboratório microbiológico, mas antes conheci meu
chefe: Clinton. No primeiro semestre de 1993, troquei de laboratório. Em fevereiro,
passaria - por ordem de Clinton - do microbiológico para o laboratório de Controle de
Qualidade Físico-Químico. Mais tarde, trabalhei com Pedro, conhecido por todos
como Júnior. Júnior viria de outra unidade da Colgate, direto para o laboratório onde
eu estava. Trabalhar com ele, que já era um antigo funcionário da Colgate, me
punha nervosa.
Mais maduro que eu, casado, pai de três filhos, bigode e uma pequena mecha
natural branca nos seus curtos cabelos negros. Era um charme, mas, por ser
casado, era "carta fora do baralho". Júnior me ensinou como funcionava o
Controle Físico-Químico e, aos poucos me ensinou quase tudo o que sei.
Continuei me esforçando profissionalmente sonhando com a efetivação, que acabou
acontecendo no final de 1993. Assim, para eu me aposentar hoje, só constam na
minha ficha quatro salários efetivos, até maio, quando fiquei doente.
Eu e Júnior nos demos muito bem, tanto que, apesar de passarmos mais de oito
horas por dia juntos, diariamente, nunca tivemos sequer o começo de uma
discussão. Hoje, Júnior é para mim uma das pessoas mais importantes na minha
vida, mas isso eu conto depois...

Dia 27 de maio de 1996


Olá, minha companheira!
Na UTI, os médicos, inclusive o doutor Nilson, me perguntaram se eu estava
com dor de cabeça. Respondi afirmativamente. Fizeram uma punção, mas não me
lembro bem disso, já estava perdendo os sentidos. Lembro-me das enfermeiras me
amarrarem nas grades da cama, porque, devido à convulsão, involuntariamente, eu
me debatia. A última imagem que vem à cabeça é de os médicos falarem que eu
devia estar com pressão alta. Logo depois entrei em estado de coma profundo,
só acordando quase dois meses depois.
É tão estranho entrar em coma. Eu não tinha consciência de que estava em um
hospital, parecia um sonho. Durante boa parte do tempo os olhos se mantêm
fechados, mas, vez ou outra, eles se abrem. No começo, sem ninguém notar - e a
gente vê coisas e pessoas, das quais pode ou não vir a se lembrar. Logo depois os
olhos se fecham e entramos no universo dos sonhos.
Comigo foi assim. Não me dei conta de que estava mal, mas o doutor Nilson, em
especial, povoou os meus sonhos. Em coma tive minha primeira parada
cardiorrespiratória. Reanimaram-me, mas disseram a meu pai que eu não iria
me salvar e não havia mais nada a fazer. Se tivesse continuado no Santa Izabel,
certamente teria morrido, mas, naquela ocasião, papai e mamãe só pensavam em
me salvar.
Muita gente soube que eu estava no hospital e se dirigiu para lá. Realmente,
notícia ruim voa. Júnior e o perfumista da Colgate logo ficaram sabendo do meu
estado e chegaram a me ver em coma. Era a última vez que eles veriam a Luciana
bonita. Poucos dias depois, eu já me transformaria no horror que sou hoje...
Sabe que até cheguei a ter um pequeno romance com esse perfumista, que, por
sinal, era muito atraente? Não foi coisa séria. Nem eu nem ele nos envolvemos. Ele
era e é amicíssimo do Júnior. Apesar de trabalhar em outra unidade da Colgate, eles
se falavam diariamente pelo telefone, estudavam e saíam juntos. Do meu canto do
laboratório, ficava ouvindo aquelas conversas, sabendo que, quando não estivesse
ouvindo, deveria ser tema de uma delas. Nessa época, eu não namorava
mais Lucas, e levava muito pouco a sério meu novo relacionamento com Cristian,
sendo várias vezes infiel...
Cristian se introduziu na minha vida mansamente. Quando fui para a Colgate,
conheci Cleusa, uma japonesa de meia idade, carrancuda, super workaholic e de
destaque nos laboratórios. Conheci também sua puxa-saco oficial, Poliana, gorda,
chata e muito invejosa de minha ascensão profissional;
Nelson, casado, apesar de ter só 28 anos, brincalhão, esperto, sempre disposto a
nos ajudar contando uma piada, muito legal e amigo; e um rapaz lindo, bronzeado,
meigo, tímido, muito carinhoso, Cristian, por quem me apaixonaria mais tarde.
Antes que eu perdesse de vez, e para sempre, as estribeiras com Poliana, ela
me falou de Cristian. Em uma tarde, em uma época em que conseguíamos ainda
travar alguma espécie de relacionamento, estávamos conversando e, por um motivo
qualquer, Cristian, que estudava farmácia junto com ela, veio à baila. Foi ela quem
me falou:
- O Cristian está sozinho e carente, O coração dele só está à espera de uma
esperta, que ocupe seu lugar nele.
Ela não estava se referindo a mim diretamente, havia feito somente um
comentário. Mas a esperta aqui se sentiu cutucada. Eu estava sozinha, sem
namorado, e, a partir daí, comecei a ver Crístian como homem, e não só como
colega. Comecei a provocá-lo com indiretas e não foi difícil conquistá-lo, já que ele
também estava sozinho.
Depois de ligar algumas vezes, convidando-me para sair, um dia deu certo: 25
de agosto de 1993. Fomos a uma leiteria cheia de casaizinhos, pedimos umas
bebidinhas e começamos a conversar. Cristian conseguiu falar quase uma hora sem
parar, e eu o olhava morrendo de vontade de "ficar" com ele. A leiteria tinha um
clima propício para isso. Quando eu estava pronta para tomar a iniciativa, ele me
beijou. E como beijava bem! Ficamos o resto da noite juntos e pode contar daí
nosso namoro, cheio de idas e voltas.
Não dei o valor que ele merecia durante o nosso namoro. Quase nunca o levava
a sério. Hoje, acho que Cristian não teve maturidade para segurar uma barra tão
pesada quanto esta que estou enfrentando. Mas não o condeno... eu também não
teria. Veja só a situação: de um lado, a vida, cheia de pessoas maravilhosas, com
quem ele poderia se relacionar, casar, ter filhos, e levar uma vida normal; do outro
lado, eu, completamente modificada, horrível, inválida e sem ao menos poder falar.
Era pedir demais para qualquer um - que dirá ele, que deve ser muito assediado.
Mas ele levou essa situação até onde deu...
Cristian era um verdadeiro companheiro: dividia comigo os problemas de
trabalho, compartilhava os mesmos projetos, tinha os mesmos gostos, mostrava-se
apaixonado, cercava-me de carinho e atenção. E ele é lindo! Tão diferente de
Lucas... O que mais eu podia querer?
No dia 26 de março de 1994, tivemos um encontro muito especial. Fui com ele
para um motel super aconchegante. Fui eu que sugeri. Já estava tomando pílulas.
Lucas foi o único homem que me levou a tomar pílulas. Se Cristian usufruiu
essa liberdade foi por coincidência. Isso mesmo! Eu traía Cristian com Lucas. Mas
eu não tomava isso como uma traição... Se Lucas queria se encontrar comigo,
mesmo sem estarmos mais namorando, eu não pensava duas vezes, nem uma, eu
simplesmente ia ao seu encontro. Mas eu e Cristian chegamos a fazer um teste anti-
HIV, só para podermos fazer amor despreocupados. Só assim me sentia à vontade.
Tomamos um vinho delicioso, bem devagar, entre namoros e aconchegos.
Cristian estava especialmente desejável naquela noite. Seus beijos e seus carinhos
eram, realmente, o máximo. Pela primeira vez, achei que, mesmo longe de Lucas,
era possível ser feliz. Foi divino fazermos amor, mas havia uma tristeza no ar.
Aquele encontro tinha um pouco de despedida, pois, no dia 1 de abril, Cristian iria
viajar, passar férias na Europa.
A vida nos pregou uma peça. Era a última vez que fazíamos amor. Na realidade,
nosso encontro tinha muito mais de despedida do que podíamos imaginar. Depois
que tudo acabou, olhei para o seu rosto e me dei conta de que gostava dele
de verdade. Uma prova disso, era minha presença ali, naquele quarto. Mas era tarde
demais para revelar o meu amor, depois de tudo o que aprontei. Dali a quatro dias,
Cristian iria para a Europa. Na volta, eu estaria em coma profundo. Nunca
mais poderia mostrar que, daquela vez, estava falando a verdade.
Tarde demais...
Nessa noite tive a certeza de estar apaixonada por Cristian e vivi, de faceto
quatro dias seguidos de amor. Um amor que me abria um horizonte novo. No meu
passado, basicamente, só havia lugar para Lucas, a quem entreguei os melhores
anos da minha juventude. Foi difícil esquecê-lo, mas meu coração parecia ouvir
Cristian dizer:
- Sempre estive ao seu lado e você nunca me levou a sério.
Nunca pude mostrar-lhe como age uma Luciana Scotti apaixonada. Tive muito
pouco tempo para mostrar apreço, afeto, ternura... Espero que Cristian se lembre
daqueles quatro dias, que foram únicos. Nada demais aconteceu, mas foram um
marco na minha vida.
Os dias se passaram, Cristian viajou de férias, e pertíssimo da sua volta sofri a
trombose. Comprei uma roupa nova para recepcioná-lo, esperava ser uma boa
namorada dali pra frente. Em vez disso, quem o recepcionou? Uma
namorada muda, careca e tetraplégica. Nunca mais poderia dizer-lhe:
Eu te amo!  Sinto muito, Cristian, mas fique certo, sinto mais por mim.
Caio também estava viajando, tinha ido a trabalho para Miami, e nem suspeitava
de que eu estava em coma. Eu e ele nos dávamos super bem, éramos capazes de
ficar horas conversando Se ele estava, estava tudo bem; se não, eu ficava perdida.
Caio era o técnico de escovas de dentes da Colgate, uns 26 anos, muito extrovertido
e super dinâmico. Com o tempo, foram surgindo entre nós muitas afinidades.
Gostávamos de dançar, e juntos dançávamos divinamente; gostávamos dos
mesmos tipos de roupas, de pessoas, de trabalhos, de lugares. Fazíamos
os mesmos tipos de comentários; enfim, nos dávamos perfeitamente bem. Éramos
como almas gêmeas. Nasceu entre nós uma amizade muito especial. Pena que
despertou a inveja de muita gente.
Caio não é um tipo que chame a atenção de cara, mas eu o achava o máximo.
Sempre vaidoso, desses que possuem mil camisas, e cada uma combinando com
um par de meias. Estatura mediana, não é nem gordo nem esquelético.
Cabelo castanho-escuro, com duas fortes entradas. Olhos grandes e castanhos.
Todo mundo fazia mil comentários a respeito dele, diziam que ele era vaidoso, só
dava valor às aparências, mas a gente se dava bem e ignorei essas bobagens.
Nem por um segundo fiquei balançada por ele enquanto estava com Lucas. Em
primeiro lugar, porque eu estava muito apaixonada. Em segundo, porque essas
afinidades, de que falei há pouco, só fomos descobrindo lentamente.
Passamos o carnaval de 94 juntos. Eu, Cristian, que então era meu namorado,
Caio e mais umas 15 pessoas. Esse era, aliás, um dom que eu tinha: conseguia
agitar, toda semana, uma turma para dançar, viajar, beber, conversar, ou fazer o
que tínhamos vontade. Essa característica havia se acentuado mais enquanto
convivi com Lucas. Ele também era assim. E vivia me explicando que isso era um
perfil de liderança. Gostava de vê-lo diante de seus amigos, organizando jantares,
festas, passeios, reuniões... Os amigos do Lucas não faziam nada sem ele. Sempre
tínhamos compromissos sociais. Acho que incorporei esse traço da sua
personalidade. Gostava de reunir a turma. A verdade é que, depois que fiquei
doente, eles nunca mais saíram todos juntos.
Nesse carnaval, minha paixão pelo Cristian sumiu momentaneamente. Com
certeza essa viagem não veio para nos unir. A presença de Caio mudou tudo: ele
fazia as coisas que eu esperava. Além disso, havia os meus amigos, minha turma,
o que exigia a minha participação em todas as atividades.
Na terça, fomos para uma praia distante. Fez um tempo excelente, O Sol, tão
querido, brilhou amigavelmente. Quando voltamos, fui tomar banho pensando na
minha relação com Caio, em como é ramos parecidos, como suas atitudes me
agradavam, e, principalmente, como é ramos amigos. Saí do banho e fui para uma
rede, perto do quarto. Caio sentou-se comigo na rede e passou o braço pela minha
cintura. Não me lembro quem falou o quê, só me lembro que nos olhamos e nos
beijamos. Ninguém viu. Caio me arrastou pela mão para as ruas vizinhas, onde
pudemos ficar mais à vontade.
Estávamos enrolados desde o carnaval...

Dia 6 de junho de 1996


Bom dia, amiga!
No Santa Izabel, os médicos providenciaram um teste toxicológico.
Precisavam confirmar que eu não usava drogas. Logicamente esse teste deu
negativo.
Patrícia já havia sido avisada de que eu estava no hospital, e já havia avisado
também nossos amigos mais íntimos. Chegou chorando, lamentando meu azar. Ao
contrário dos médicos, ela logo suspeitou da pílula anticoncepcional, pois tinha
certeza de que eu não ingeria drogas. Assim como eu, ela sabia que a pílula tinha
algo a ver com o que estava acontecendo.
Preciso dizer que a Pat é uma amiga muito especial. Nossa amizade nasceu na
faculdade. Muito bonita, judia, moderna, jovem e inteligente. Nossas vidas eram
cheias de coincidências. Com ela, sentia-me à vontade para falar de Lucas e de
nossos problemas. Pelo faceto de ser judia, entendia muito bem a discriminação da
família dele em relação a mim.
Engraçado como a gente acaba se embrenhando pela vida de quem ama. A
certa altura, tomei a religião de Lucas como minha, já que eu era católica só por
causa do batizado e da primeira comunhão. Interessava-me por palavras em
hebraico, datas bíblicas e seus porquês, os alimentos, as vestimentas, os nomes de
cada utensílio... Até grudei no meu carro um adesivo com a bandeira de Israel e
cheguei a usar, como pingente, uma estrela de Davi. Não adiantou muito eu
me mostrar aberta às tradições, só Lucas parecia dar valor, pois sua família
permaneceu sempre fria e impessoal comigo.
Quero comentar aqui essa visão que a maior parte das pessoas tem dos judeus.
Meus amigos judeus que me perdoem, em especial a Pat e o Sr. Isaac, dono das
lojas Casa das Cuecas. Do meu ponto de vista, foi barbaridade o modo como os
judeus morreram, no passado. No presente, porém, a fachada de coitadinhos não
deveria mais ser usada. Não serve mais. Existem milhões de artigos, filmes e livros
que nos lembram, a toda a hora, a loucura da perseguição nazista. Os judeus
não nos deixam esquecer, e nem devemos mesmo esquecer essa tragédia.
Acontece que agora pagam, de forma mais subtil, na mesma moeda: o preconceito.
Basta viver no meio deles, como vivi, para perceber. São unidos e fechados,
formando uma elite que abomina qualquer influência externa. Sofri na pele
esse preconceito, sei o que estou dizendo.
Sei também que tudo o que digo só pode valer para a família de Lucas, e não
para todos os judeus. Sei que estou generalizando. É, parece que me tornei
também preconceituosa... Será? Acho que não! Meus amigos judeus podem ficar
tranqüilos e ter a certeza de que nem penso neles quando falo assim. Apesar de
toda a discriminação que sofri, não sinto raiva dos judeus. Reconheço a coragem
desse povo, sofrido, com muito apego às raízes e tradições. Por algum tempo eu me
esforcei para ser uma judia. Por algum tempo eu me apaixonei por um judeu. Todos
os meus esforços foram inúteis:
nem meu namoro terminou bem, nem adotei o judaísmo como minha religião.
Meu namoro com Lucas realmente trouxe à tona um monte de questionamentos
e decisões, mesmo que para nada tenham servido. Um faceto, porém, trouxe a
morte de meu futuro, sem que eu pudesse imaginar. Durante meu namoro com
Lucas, tomei, sem saber, a decisão mais insensata de toda a minha vida:
decidi ir a uma médica e começar a tomar pílulas anticoncepcionais. Lucas deixava
bem claro que detestava camisinhas, por isso apostei que o uso de um
contraceptivo iria deixá-lo radiante. Apostei nisso e digo que decidi por nós dois. Era
eu quem tomava as pílulas, mas elas evitavam filhos para os dois, garantiam a
tranqüilidade dos dois.
Hoje sei que o risco era todo meu: tomando ou não tomando a pílula. Menti, sofri
preconceito, frustrações... Estou desiludida. Acabei muda e tetraplégica, e isso não
faz sentido. Acho então que ter feito tudo por amor é a única explicação possível.
Sei que, na verdade, o que procuro é uma justificativa para tão grande tragédia, uma
medida dessa injustiça. Como nada pode explicar o que ocorreu, a amargura acaba
transbordando.
Lucas era, para mim, simplesmente o máximo. Em nome desse amor, fiz n
coisas. Por isso me sinto no direito de perguntar onde ele vai achar alguém que
tenha gostado tanto dele. Às vezes não tenho dúvidas de que minha vida de hoje é
o reflexo de uma atitude de jovem apaixonada. Mas será que uma paixão pode ser a
única causa de tanta desgraça? Como já disse, Lucas é alguém de quem gostei
muito. Todas as vezes que penso nisso, acabo tendo por ele um certo desprezo. É
duro pensar que ele atribui tudo ao azar. Para ele, o faceto de eu estar tetraplégica é
simplesmente um azar, não tem nada a ver com amor.
Um dia falei para a Pat que queria tomar pílulas, que eu e Lucas queríamos dar
adeus às camisinhas. Na maior boa-fé, ela me falou de uma médica ginecologista, a
doutora Gilda, indicada por uma amiga sua. A própria Pat nunca tinha se consultado
com ela, mas as indicações diziam que era boa médica. Marcamos duas consultas,
e fomos juntas, no meu carro, ao consultório.
Gilda é loira, alta, bonita, chique, de meia-idade. É formada pela USP e tem um
consultório muito alinhado. De saída, elogiou minha sensatez e disse que a pílula
que estava receitando era fraquinha. Era também uma das mais caras, e tudo isso
me deixou muito tranqüila. Ela disse ainda que essa pílula era segura desde o
primeiro dia de uso. Não fez mais nenhuma recomendação, só falou que eu podia
parar e voltar a usar quando fosse necessário. Saí de lá satisfeita. A partir daí,
passei a tomar pílulas, em 1991, e ela ficou sendo minha médica. É preciso que
fique claro que mostrei que era fumante, pois a acompanhei em um cigarro.
No final do primeiro semestre de 1993, comecei a ter dores de cabeça que,
apesar de desaparecerem com aspirinas, estavam ficando cada vez mais
freqüentes. Decidi marcar uma consulta com a Gilda, queixei-me de dores de
cabeça, mas ela não deu a devida importância à minha reclamação. Hoje, mais que
raiva da Gilda, tenho raiva de mim mesma, que dei chance para essa desgraça, o
AVC, acabar com a minha vida. De certo modo, Lucas tem razão. Posso admitir que
foi um grande azar. Mas também devo reconhecer que dei chance para
isso acontecer...
Será que um AVC, aparentemente, não tem alerta? Não é verdade. Para nós,
leigos, ele vem repentino como o próprio nome diz: um acidente. Parece que não dá
para prever, tão repentino quanto um acidente de carro, um tiro, um
mergulho errado... Mas um bom ginecologista não pode partir do pressuposto de
que uma trombose nunca vai ocorrer com uma de suas pacientes. A Gilda pensou
assim.
A ignorante de uma vizinha minha já veio várias vezes perguntar o nome da
pílula que eu tomava, como se isso bastasse para livrar a filha dela de uma
trombose. Como explicar que o AVC não aconteceu com jovens que tomavam
a mesma pílula e também fumavam? E os que tomavam outros anticoncepcionais e
também tiveram um AVC?
Acontece que tomar pílulas, fumar e sentir dores de cabeça são indícios que
devem ser levados muito a sério. Com todos esses sintomas, acho que seria
possível evitar uma trombose: suspensão da pílula, medicamentos, até um
exame prévio de ressonância eletromagnética. E o trombo teria se diluído, e eu
continuaria a andar por aí... Que ódio da Gilda! Até quando teremos médicos
irresponsáveis?!

Dia 11 de junho de 1996


Doce amiga,
Aos poucos ia chegando a hora da metamorfose. Inconscientemente, eu ia
dando adeus ao meu corpo bem-feito, aos meus traços delicados, à minha pele de
pêssego (hoje parece uma lixa), aos meus longos cabelos loiros, às
minhas pegadas, à minha voz (que nunca mais ninguém ouvirá), aos
meus movimentos, à dança (tão querida!), ao meu querido Uninho e a mais um
milhão de coisas. Só tenho fato para recordar, a todo o instante. Por isso repito,
reconto, relembro as coisas que tinha.
Muita gente deu o maior apoio aos meus pais enquanto eu estava no hospital,
Nilza foi uma dessas pessoas e Luciano também sempre estava por perto. Lu é um
grande amigo até hoje, e nos conhecemos não muito antes do acidente.
Um dia saí com Cristian e ele passou mal da gastrite.
Fomos para a casa dele, que estava vazia, mas não aconteceu nada de mais Intimo,
ele estava realmente mal. Liguei para Priscila, para vir me buscar, quando estivesse
passando para ir até a casa do namorado. Conheci Priscila no colegial e, durante
muito tempo, fomos as melhores amigas do mundo. Minha amizade com a Priscila é
joinha. Com ela não tenho segredos, conto absolutamente tudo. Só não sei como ela
me agüenta. Adoro essa garota. Sinto-me bem ao seu lado e vê-la sorrir já é motivo
bastante para me fazer sorrir também. Gosto tanto da companhia dela, valorizo seus
conselhos, me sinto absolutamente à vontade para falar de mim, me divirto se
ela conta fato engraçados, defendo-a em qualquer circunstância, gosto muito da
família dela como se fosse uma segunda família. É mesmo uma amiga de ouro,
verdadeira, presente, que nunca vai me faltar. Minha amizade com Priscila era
sólida como uma rocha, parecia que nada poderia destruí-la. Até cheguei a brigar
com minha mãe, dizendo que Priscila é que era amiga de verdade, e minha mãe
sempre repetia:
- Amiga de verdade é a sua mãe.
Mas eu achava Priscila o máximo. Engano meu. Acho que minha mãe tinha
razão.
O namorado da Priscila era um homem mais velho que a gente uns vinte anos, e
com quem ela ameaça hoje se casar. No começo, fui radicalmente contra, mas hoje
não importa. Apesar da diferença de idade, ele é muito legal, e sempre me
tratou super bem. Atualmente, acho-o encantador. Um presente da vida para
Priscila. No começo desse namoro, minha mentalidade de criança mimada não me
deixava compreender. Mas a verdade é que, às vésperas do meu AVC, já o achava
extremamente simpático, e hoje, sempre que tem oportunidade, ele se lembra de
mim.
Nessa noite, em que Cristian passou mal, íamos a uma festa cubana, na casa de
um amigo do namorado da Priscila. Priscila me pegou no apartamento do Cristian,
deu-lhe o endereço da festa, e ele anotou, prometendo que iria para lá mais tarde.
Do apartamento do Cristian fomos para a casa do namorado dela, que mora
sozinho; de lá, fomos para a casa do amigo dele: Luciano.
Estatura mediana, 32 anos, cabelo castanho-escuro e curto, usa óculos, uma
figura e tanto, e muito bem apresentável. Logo ele falou:
- Saudações proletárias, companheiros!
Luciano nos acolheu super bem, fez a gente se sentir em casa. Lu é advogado,
totalmente contra o capitalismo - imagine que na sua casa nem existe TV -, fã do
Miró, intelectualíssimo, e dono de um possante BMW. Claro que esse super carro e
sua posição financeira despertavam meu interesse, mas não era só isso. Era por ele
ter tudo isso e ainda morar sozinho. Por tudo isso ser fruto de seu trabalho. O
que mostrava que ele era e é competentíssimo.
No dia da festa, conheci a parte de cima da sua casa. Ao lado da sua cama de
casal tinha um porta-retratos sem foto. Isso deixava claro que ele estava sem
namorada.
Encantou-se com os meus cabelos. Preparou para nós um drinque cubano e
dançou comigo uma música caliente. Eu já nem queria que Cristian aparecesse a
essa altura do campeonato, pois estava realmente empolgada. No auge da festa, no
entanto, chegou meu namorado. Fiquei fria e distante, até fisicamente, pois só tinha
olhos para Lu. Depois que Cristian chegou, a festa, para mim, tinha perdido a graça,
e fomos embora rapidinho.
No dia seguinte ao da festa, falei com Priscila, contei-lhe que estava
interessadíssima pelo Luciano, e ela me deu a boa notícia: ele havia pedido o
número de meu telefone para o namorado dela! Lu não demorou muito a Ligar.
Conversamos um pouco e ele me convidou para ir ao Jazz Festival. Estava com os
convites de um amigo que não poderia ir naquele dia. Topei na hora! Fui convidada
de novo e fui também no outro dia, com um primo dele e a mulher. Nunca ouvi tanto
jazz em toda a minha vida e adorei ser companhia daquele homem interessante.
Cristian sabia que eu estava saindo com Luciano, porque um amigo dele era, ou
é, estagiário do Lu. E as coisas ficaram assim. Sem nenhum tipo de cobrança.
Luciano me falava de um milhão de ex-namoradas, de sua descendência judaica
e de seus clientes judeus. Tinha medo de que alguém se aproximasse dele só por
interesse. Com certeza esse não era o meu caso. Ficava fascinada com seus casos
na justiça, com suas estratégias para ganhá-los. Isso fez com que, em primeiro
lugar, eu me interessasse por ele; em seguida, apaixonei-me pelo seu jeito. O faceto
de ele ser advogado, intelectual, bem-sucedido e mais velho despertava meu
interesse. Só de uma coisa eu não gostava: do bilhão de ex-namoradas que ele
tinha e não fazia questão de esconder.
O clima entre a gente ia ficando mais quente. Arrumava-me com gosto, cada vez
que ia sair com ele. Além de tudo, ele se dava bem com a minha família.
Lembro-me dele, por diversas vezes, segurando minha mão, em um restaurante
qualquer, enquanto conversávamos. Uma noite, não resisti aos seus encantos e
"ficamos" juntos. Nosso relacionamento foi curto, porém intenso. Pelo menos para
mim. Tanto é verdade que cheguei a fazer amor com Lu. Uma noite fomos para sua
casa, abrimos um champanhe francês e nos dirigimos para um corredor retangular,
na parte de cima da casa, de onde se via a Lua. Ali mesmo, no chão, fizemos amor.
Ou melhor, eu fiz amor e Luciano transou comigo. Fazer amor era o tipo de coisa
que eu só conseguia fazer apaixonada. Hoje, nem assim... Também tive que dar
adeus a esse assunto...
Gostei mesmo do Luciano, mas, em se tratando de fazer amor, não pode e não
deve ser comparado ao Lucas, que para mim é imbatível. Foi gostoso, mas
transamos de camisinha, porque eu só tomava pílulas se realmente soubesse que
iria me encontrar com Lucas, mesmo estando de namoro com Cristian também.
Era tão gostoso ficar aninhada nos braços do Lu, na cama de casal do seu
quarto, olhando a luz da rua pela persiana; e depois sair para comer pizza... Esse
relacionamento durou uns dois meses. Uma noite fui tomar sorvete de damasco com
ele. Uma delícia! Aí dei a entender que não queria mais namorar. Por dois motivos: a
balança dos sentimentos do nosso namoro começava a pender para o meu lado, e
Lucas já havia servido de experiência. Achava também que, para o Lu, eu só
estava ajudando a engordar a sua lista do bilhão de namoradas, o que era uma
pena! Era melhor cair fora desse relacionamento, antes de estar perdidamente
envolvida e voltar a sofrer. Ao mesmo tempo, parecia que a vida, inconscientemente,
me dizia:
- Aproveite sua liberdade agora, porque depois... não vai dar.
É, não dá mais mesmo!
Luciano disse-me naquela noite que estava se apaixonando e que veio no carro
pensando, enquanto ia me buscar:
"Hoje quero fazer amor de verdade com a Luciana."
Era a primeira vez que ele usava o termo "fazer amor". Tarde de mais. Enquanto
esse tempo todo eu me entregava e realmente fazia amor, para ele tudo não
passava de uma transa. Tive certeza de que nosso relacionamento era desigual. Saí
da vida do Luciano. Falando de meus namorados aqui, devo estar dando a
impressão de que eu era muito livre, de que tinha liberdade para fazer o que
quisesse da minha vida. Não é verdade. Agia muitas vezes escondida. De maneira
nenhuma culpo minha família pelo que houve comigo. Muito pelo contrário. Só tenho
que agradecer todo o amparo que me deram, tanto que até me faltam as palavras.
Sou responsável por tudo o que fiz.
Além disso, em toda essa tragédia, a única responsável, clinicamente falando,
foi a Gilda. Só ela poderia ter me alertado sobre o risco de um AVC. Ela tinha a
minha credibilidade e, apesar de eu ser fumante, tomar pílulas de terceira geração e
estar sentindo dores de cabeça, não me alertou para a possibilidade de uma
trombose. Será que ela clinica sem saber desse risco? E é um risco tão destruidor
que me restou uma pergunta que insiste em retornar: será que esse AVC não
poderia ter sido evitado? Será que se a Gilda tivesse me avisado nada disso teria
acontecido?
Meus pais me vigiaram como puderam. Eu tinha - e tenho - abertura para falar
de qualquer assunto com eles: drogas, sexo, trabalho, namorados, etc. Quero dizer
com isso que o excesso de zelo, uma super vigilância, não é a melhor política.
Quando alguém quer mesmo fazer o que é proibido, faz. Não tem vigilância que dê
jeito.
Tenho uma prima que levou a filha a um ginecologista, para que ela começasse
a tomar pílulas anticoncepcionais com o acompanhamento de um médico. Liberal
demais? Talvez. Pensando bem, até tomar remédio com acompanhamento médico,
eu fiz. Quando decidi tomar anticoncepcionais, tratei primeiro de procurar um
ginecologista, para só então me medicar. Se surgissem efeitos colaterais, alguma
dúvida ou um imprevisto, eu estaria assessorada. Mas nada disso adiantou.
Sempre ouvi, durante minha vida toda, que o certo seria agir assim. Certo para
quê? Para ganhar uma trombose e nunca mais andar e falar? Certo para não ser
levada em consideração por ser um caso raro? Isso não quer dizer que todo o
mundo que tomar pílulas e fumar vai ter um AVC. Sou um caso raro, repito. Mas a
pílula e o fumo, junto com dores de cabeça, por exemplo... É melhor as mulheres
ficarem alertas, é melhor prevenir que remediar. No meu caso, não dá mais para
remediar.
Eu tive bom senso, procurei fazer a coisa certa, mas não fui respeitada pela
médica! Algumas pessoas podem tomar pílulas; outras, não! Quanto a curtir a vida?
O que é que há de errado em curtir a vida? Em fazer amor com quem se ama?
Em estar apaixonada? Do meu ponto de vista, tudo certo. Também acho certo tomar
precauções. Mas o faceto é que eu mentia, e nesse esquema de mentiras eu ia
levando a vida. Fui levada pela surpresa...

Dia 21 de Julho de 1996


Juju, minha linda!
  Não só os amigos, mas também alguns parentes, mesmo os mais distantes,
foram até o hospital ver o que estava acontecendo comigo. Entre eles, uma prima,
que indicou o neurologista metido a Deus que iria fazer da minha vida algo pior que
a morte: Dr. Décio.
Eu acho que havia chegado a minha hora de morrer. As últimas badaladas
avisavam que meu tempo estava terminando por aqui. Mas não me deixaram ir...
E com que direito um médico transforma uma pessoa em um farrapo humano e
ainda diz que a salvou? Uma mulher que tinha dignidade, personalidade, vaidade,
privacidade, identidade, orgulho, amor próprio, e agora vive para constatar que não
tem mais nada disso e para lutar pelas migalhas da vida. As pessoas costumavam
me cumprimentar nos lugares, minha opinião era requisitada, minha palavra era
levada a sério. Como era vaidosa, como me cuidava... Passava horas diante de
um espelho. Recordo-me também de ser geniosa, falante, alegre, impulsiva. Quando
sinto que ninguém mais faz questão de me cumprimentar, de saber minha opinião,
sofro. Hoje, quando me vejo em um espelho, com o cabelo feio, dentes amarelos,
pele ressecada, corpo disforme, também sofro. Entregue à mudez, deixo a tristeza
no meu silêncio.
Se queriam transformar vida em simples existência, céu em abismo, beleza em
feiúra, pois bem, conseguiram. Os médicos que "trataram" de mim foram de um
requinte de maldade sem igual... deram-me a sobrevivência, mas me deixaram
perder a vida. Não foram capazes de conservar em mim um tantinho das coisas que
me mantinham viva, salvaram somente uma coisa - que não ajuda quase em nada e
causa muito mais dor do que causaria se a tivesse perdido também: a consciência.
Na verdade não foi o doutor Décio que foi chamado, e sim o doutor Clóvis, que
vim a conhecer depois. Doutor Clóvis estava viajando e o bip dele estava com o
doutor Décio. Então...
Meus pais deixaram claro para o doutor Décio que não tinham recursos e que
tudo estava sendo conseguido através do meu seguro-saúde.
- O seguro dela nos paga o suficiente - ele respondeu. Então, começou a me
assistir.
Enquanto isso era como se estivesse dormindo. Passei um dia no Hospital Santa
Izabel. Depois fui levada de ambulância para o Hospital Aibert Einstein. Eu e toda a
aparelhagem que me mantinha viva. Meu pai foi obrigado a assinar um termo
de responsabilidade, pois era arriscado me transferir.
No Einstein, fui identificada através de uma pulseirinha, de plástico, contendo
meu nome. Uma das primeiras coisas que fiz foi um exame de ressonância
eletromagnética, para descobrir o que vinha praticamente me tirando a vida.
Descobriram uma destruidora trombose cerebral, e logo fui preparada para uma
cirurgia. Uma artéria, a artéria basilar do cérebro, entupiu e causou a convulsão e o
coma. A pressão intracraniana subiu e era preciso fazer uma operação para drenar o
líquido encefálico e fazer a pressão cair.
Meu pai autorizou a cirurgia. Ele e minha família me queriam de volta e não
sabiam como eu iria ficar. Acho que se eles soubessem, do ponto de vista humano,
teriam impedido.
Ontem mesmo eu disse para minha mãe:
- Sabia que é uma maldade me manterem viva?
- Nós te amamos, Luciana. Seja do jeito que for - respondeu ela.
E eu sei disso. Sei que fizeram de tudo para me salvar. E agora não há nada que
se possa fazer. Como diz o ditado: "O que não tem remédio, remediado está".
A cirurgia ia ser feita no cérebro, e então aconteceu uma das coisas mais
trágicas da minha vida: raparam meus lindos e longos cabelos. Eu gostava tanto dos
meus cabelos! Eu era aquele tipo de garota que mantinha sempre o cabelo
longo, não por algum motivo especial, só porque o adorava mesmo. Tanto que tinha
medo de cortá-lo, repicá-lo, pintá-lo, fazer permanente, reflexos... Cuidei, cuidei...
até que entrei em coma e uma besta qualquer veio e o rapou! Quando visto
uma roupa esquecida na gaveta e junto com ela vem um fio de cabelo, loiro,
comprido, antigo, que eventualmente caiu e ficou preso ali, me vem as lágrimas nos
olhos. Se pelo menos esse cabelo de agora fosse parecido com o que eu adorei por
22 anos... Se pelo menos pensassem que eu preferia ter morrido com o meu
cabelo... Ninguém pensou.
Tem gente que fala:
- Besteira, cabelo cresce de novo!
É, mas igual àquele, nunca mais. Dava tudo para ter morrido com meu cabelo;
no entanto, esse golpe de misericórdia me foi negado. Aliás, o que aconteceu
merecia ser pesquisado: meu novo cabelo nasceu castanho-escuro, quase preto,
bem diferente do original, que era quase loiro. No meu período em coma, tomei
muita cortisona, e atribuo a isso talvez meu atual cabelo que, definitivamente, não é
o natural. Tem gente que acha que é falta de sol, mas nunca tomei sol no inverno
e jamais meu cabelo escureceu.
  Descobri a oitava maravilha do mundo: o clube de esportes da USP? O
CEPE-USP Frequentemente cabulo aula para ir lá. Sol e piscina! Existe apelo
maior?
  Durante uma fase em que cursava a Universidade, eu me transformei na
garota CEPE-USP. Na piscina do Centro Desportivo, falavam que eu tinha o corpo
mais bonito das freqüentadoras, e isso fazia de mim uma garota bronzeada e mais
alegre. Mesmo depois, com o tempo mais escasso, não abandonei o CEPE-USP e,
sempre que fazia sol, corria para lá nos fins de semana. Só abandonei mesmo
quando fiquei doente. Dói ver meu irmão como freqüentador, eu impossibilitada de ir.
Mesmo que dessem um jeito de me levar, não quero ir. Quero que o CEPE-USP e
seus freqüentadores se lembrem de mim como eu era e não assim, neste estado.
Bom, mas o que interessa é que raparam meu cabelo e fui para a cirurgia.
Continuei desacordada.
Na cirurgia havia outro Deus presente: doutor Pacheco. Ele não estava muito
preocupado com o nível de vida que iria me dar, só com a vida que ia dar, sem
adjetivos. É isso que quero defender... É maldade dar toda a consciência a
uma pessoa e deixá-la, como os médicos diziam que eu teria, com uma vida
vegetativa.
Juliana, você já viu um neurologista falando? Chega a ser inquietante:
- Não sei... ainda é cedo para afirmar... seria precipitado fazer um prognóstico...
Vamos esperar...
Eles nunca se comprometem, não sabem ao certo de nada e, quando sabem,
erram. Veja meu caso, por exemplo. Adiaram meu prognóstico ao máximo. Quando,
finalmente, se manifestaram, "pintaram o diabo mais feio do que ele era Segundo
eles, entre mim e um vegetal não haveria nenhuma diferença: eu entenderia tudo,
teria toda a consciência, mas não me comunicaria nem me mexeria". Se era esse o
prognóstico - consciente, mas com uma vida vegetativa -, era ou não maldade me
deixarem assim? E sentir-se transformada num vegetal lúcido não é um motivo
de revolta?
  Cada palavra, cada objeto, cada canção é motivo de sobra para me lembrar
da vida que tinha e concluir que isto não é vida. Por isso, senhores médicos, antes
de darem vida a alguém, ponham a mão na consciência e se perguntem:
"Que qualidade de vida esse indivíduo vai ter?". Às vezes não vale a pena, nem para
o indivíduo em questão, nem para os que o rodeiam. Depois de anos em uma
faculdade de medicina, será que não há lugar para bom senso? É com experiência
que falo isso. Que qualidade de vida eu tenho? Que qualidade de vida eu teria se o
prognóstico tivesse se realizado?
Se me perguntarem qual o critério para salvar uma pessoa, respondo de
imediato:
- É fácil, é só o médico se pôr no lugar dela. Não faça aquilo que não gostaria
que fizessem com você.
Uma vez vi um médico na TV dizendo:
- Toda vez que você for fazer uma cirurgia, ponha na mesa de operação sua
família e pense se você a realizaria...
É bem isso, mas conheço muitos médicos que só pensam em quanto a cirurgia
vai custar, em quanto vão lucrar.
Minha família vinha me ver todos os dias, mesmo eu estando em coma. Minha
mãe ficava horas me ninando, conversando comigo, cantando, fazendo palavras
cruzadas em voz alta, e eu, aparentemente, inerte. Aparentemente, pois via-
se através de uma máquina que, ao sentir uma voz familiar, meus batimentos
cardíacos subiam. O coração devia sofrer uma descarga de adrenalina e entrava em
taquicardia, inconscientemente. Impossibilitada de devolver o carinho que recebia
com palavras, gestos ou olhares, devolvia com o coração...
Nessa altura dos acontecimentos, Caio e Cristian já haviam chegado de viagem
e tomado conhecimento da trágica novidade.
A seu modo, eles lamentaram muito meu estado. Podiam ter lamentado bem
mais, pois era pior que a própria morte.
Nessas horas, sempre tem gente que diz:
- E, por acaso, você sabe o que é a morte?
Bem, eu estive bem perto dela. Estou falando de duas paradas
cardiorrespiratórias e quase dois meses em coma. Repito, não me lembro de ter
visto o túnel, nem um clarão do outro lado, como se costuma dizer, mas também não
me lembro de sofrimento, só de paz. Sofrimento conheci em vida, depois
que acordei, e não gostei.
Durante a cirurgia, colocaram no meu cérebro um dreno, que não adiantou. A
pressão intracraniana continuou a aumentar. O dreno não serviu de nada, só para
deixar cicatrizes no meu crânio. Fui levada novamente à sala de cirurgia. Dessa vez,
doutor Pacheco colocou no meu cérebro uma válvula que sai do lado direito de
minha cabeça, percorre superficialmente quase todo o meu corpo e vai pelo
lado direito até o baixo abdome. Tocando na minha pele pode-se sentir algo plástico,
cilíndrico e duro, por baixo da epiderme, e que vai me acompanhar pelo resto da
vida. Essa válvula, que mora na minha cabeça, percorre grande parte do meu corpo,
e vai até a barriga, não influi em nada nas minhas sensações. É como uma veia, é
um tubinho que desce, por baixo da pele, pelo meu pescoço, passa por baixo do
seio, e vai até perto da altura do umbigo. Lateralmente.
Tenho uma grande cicatriz, por baixo dos cabelos, na cabeça, e uma incisão no
final do caninho. Na cabeça é onde a válvula começa, e no final da barriga, onde
termina; mas eu olho para a cicatriz perto do umbigo, sinto o tubinho percorrendo
todo o meu corpo e me pergunto que malabarismos o doutor Pacheco fez para eu
ter o estranho tubinho por debaixo da pele, sem cortes, percorrendo quase todo o
meu corpo.
Depois das cirurgias, começou mais de um longo mês em UTIs, onde eu só
dormia. Dormia e sonhava. Sonhos são aparentemente sem nexo. Quem nunca
sonhou? E em coma e igual. Lembro-me de algumas pessoas, fato e imagens.
Em um dos sonhos, eu estava com Lucas e passava mal. Sem como nem
porquê - essas coisas que só acontecem em sonhos mesmo -, ele ligava
desesperado para o médico e pedia ajuda. Engraçado, fez no sonho o que em três
anos de namoro nunca me mostrou... Queria que por um segundo Lucas perdesse a
razão e demonstrasse preocupação e atenção por mim, queria que um dia ele
atenuasse minha carência... Bem tipo novela mexicana...
Lucas morava no meu subconsciente e até em coma pensei nele. Isso para mim
tem uma importância sem igual. Mostra que, mesmo namorando outro homem e
quase morrendo, dei um jeito de me lembrar dele. Ele foi o grande amor de minha
vida. Nunca consegui esquecê-lo. Já havia gostado do Luciano e realmente me
apaixonado pelo Cristian, mas Lucas habitava fundo minha alma, meu coração, todo
o meu ser. Era uma coisa incrustada. Eu não podia eliminá-lo, porque ele estava em
mim. Custei a entender essa verdade...
Às vezes fico falando para mim mesma:
- Onde será que ele vai achar outra garota inteligente, bonita, aberta ao
judaísmo, que se dê bem com ele na cama, e que goste dele como eu gostei?
Onde?
É para chorar... Essa garota não existe mais. Não sou eu, ela nem está mais
neste mundo...
Quando comecei a trabalhar, em 1991, comprei para Lucas um bonito chaveiro
com meu primeiro salário, e só depois de muito custo ele o usou. Esse descuido era
também revelado toda vez que íamos a uma festa, onde eu me sentia posta de lado,
ou mesmo quando fazíamos amor, e eu sempre falava:
- Amo você!
Mas os "eu também" eram escassos e raros. Isso me deixava descontente, mas
não o suficiente para terminar nosso relacionamento. Eu, tola, achava que Lucas
tinha dificuldade para demonstrar seus sentimentos. Nunca cogitei a possibilidade
de ele não ser louco por mim, como eu era por ele.
Toda sexta-feira eu saía do trabalho cantando, pronta para vê-lo, mas ele
sempre chegava tarde da noite, pois não abdicava da sua sauna no clube. Quando
ele chegava, eu já estava com sono, tinha perdido o pique.
Frequentemente brigávamos, mas nem assim ele abandonava a sauna ou o jogo
de squash. Marcava repetidas vezes comigo um horário e chegava, por um motivo
qualquer, horas mais tarde. Assim levamos quase três anos de namoro, até o dia em
que explodi.
Durante meu namoro com Lucas, sempre me perguntava:
- Se ele realmente gosta de mim, por que não ficamos juntos?
Lucas se mostrava apático, não tinha a minha clareza de raciocínio. Claro que
eu gostava de ficar com ele, em muita coisa ele me complementava. Mas havia
entre nós os seus inseparáveis amigos, e esses não podiam ser ignorados. Havia
o descaso dele, minha possessividade e, mais forte que tudo isso, o cordão invisível
da religião, que insistia em nos separar. Lucas não era forte a ponto de ignorar tudo
isso e fazer valer o coração.
Há agora a trombose cerebral. Ninguém sabia que ela viria, só Gilda poderia
suspeitar; mas, de qualquer forma, Lucas nem por sonho teria estrutura para segurar
uma barra tão pesada. Justo quem? Lucas? Que nem sabe o que fazer se
eu espirro! E pensar que é ramos tão íntimos... Se existe uma pessoa que conheço
até pelo avesso, essa pessoa é o Lucas. Mas depois do AVC, ele continuou a viver e
eu fui arrancada da vida... Nós nos separamos. Hoje não temos nada em comum.

Dia 25 de Julho de 1996


Boa tarde, garota!
Nem o que Gustavo me falou apagou Lucas de minha mente. Eis o motivo de
eu me lembrar dele até em coma. No sábado, dia 9 de abril de 1994, fui a uma
danceteria fina de São Paulo. Lá encontrei um amigo do Lucas, o Gustavo,
igualmente judeu. Era também muito amigo do Betinho, que eu tanto odiava.
Gustavo não era bonito, mas muito simpático. A sua última namorada tinha sido
católica. Mais um caso entre judeus e católicos que não teve final feliz. Sei que até
deve haver judeus e gois que são felizes juntos, só quero mostrar que os casos que
não dão certo são em número infinitas vezes maior. E o caso de Bruno e de Maria
Helena, por exemplo, ele judeu, ela católica, que hoje não estão mais juntos.
Também Vítor (irmão do Lucas) e Carla, eu e Lucas, Raquel (judia) e seu bonito ex-
namorado católico... Coincidência? Eu realmente creio que não.
Maria Helena ficou dois anos sem vir, sem telefonar, sem dar notícias. Hoje ela e
a irmã se fazem presentes na minha vida. Tenho saudades de combinar um cinema
no shopping com ela e Bruno, ou um churrasco no sítio, uma viagem, um jantar,
um teatro...
Falando de Bruno e de Lucas, Maria Helena exprimiu em palavras uma dura
constatação:
- Eles não casaram com a gente porque não quiseram.
Ao ouvir aquilo, caí no choro. Gostei tanto do Lucas, apostei tanto nesse
namoro... Uma carreira que prometia ser brilhante, sonhos, um futuro azul, com
casamento, filhos... coisas que toda jovem almeja. Será que um dia Lucas vai
ver isso?
Maria Helena arrematou diante de minha tristeza:
- Tenho certeza que, mesmo velhinhos, eles vão perceber as mulheres que
fomos.
Mas, voltando, quando vi Gustavo na danceteria, sorrimos e fui até sua mesa. Eu
gostava daquela aproximação. Era um jeito de eu estar perto do Lucas e também de
lhe provocar ciúmes. Fiquei muito emocionada ao falar com ele. Gustavo me abriu
os olhos. Falou que era claro, para quem via meu namoro com Lucas, que existia
um relacionamento desigual: só se via amor da minha parte. Falou também das
fraquezas do Lucas, de como ele era dependente, monetária e emocionalmente, do
pai.
Gustavo conhecia bem o amigo, quase tão bem quanto eu. Mas "o pior cego é
aquele que não quer ver ... e eu não queria. Até seus amigos inseparáveis viam que
esse relacionamento era desigual. Era óbvio que eu gostava muito mais dele do que
ele de mim. Minha família tentou, por diversas vezes, me alertar, mas uma mulher
apaixonada não dá ouvidos a nada... Tarde demais.
Em um outro sonho que tive, ainda em coma, Bia se insinuava para Lucas, e os
dois ficavam juntos. Também sem explicação, eu assistia a tudo e me sentia muito
magoada e indignada com ambos. Eu e Bia éramos muito amigas, e nosso fim foi
trágico. O meu e o dela. Ambas separadas da vida. Ambas mortas. Vivíamos cada
minuto da vida como se fosse o último. Até que foi. No momento certo, vou falar de
sua morte. Sua morte que veio completar a minha.
Bia sempre foi muito diferente daquela que se dizia minha melhor amiga, a
Priscila. Bia jamais me abandonou, nem eu estando tetraplégica e muda.
Acabaram as aulas. Acabou tudo. Vamos pra faculdade agora. E as
amizades? Não quero perdê-las. Adoro minhas amigas, principalmente a Bia. Nossa
turma não pode se separar.
Ah, caramba! Não quero que cada uma vá prum lado, que encontre outras amigas
que se tornem mais importantes que nós, que, quando nos encontrarmos, embora
possamos parecer estranhas, fique apenas uma obrigação: manter uma amizade do
passado só por aparência.
  Lu,
  Eu não sei o que escrever, mas eu peço que você nunca me esqueça porque
nunca te esquecerei. Beijos,
  Bia.
  No meu aniversário de 1993, Bia veio com um amigo. Era a primeira vez, em
muitos anos, que nos víamos, apesar de nunca termos perdido o contacto. Ela
estava magra, cabelos ondulados e loiros, olhos cor-de-mel; havia se transformado
numa mulher muito bonita.
Nosso encontro, após anos, foi muito caloroso. Choramos quando nos vimos e
relembramos o tempo de ginásio. Também o amigo dela foi afável comigo. Seu pai,
que era garçom em um restaurante aonde íamos sempre e amigo de meu pai,
sempre me dava notícias dela, o que ajudou a estreitarmos os laços. Bia era uma
ótima companhia, estava sempre disposta a me acompanhar nos programas. Em
pouco tempo me transformei em sua amiga íntima.
Eu tinha centenas de amigos. Assisti passivamente ao afastamento de cada um
deles. Foram se distanciando, um por um. Não posso dizer que não sofri, já que não
fazia mais parte de suas vidas. Não guardo rancor dessas pessoas, mas Priscila é a
responsável pela maior decepção que um amigo pode dar. Eu acreditei que é nas
horas difíceis que vemos os verdadeiros amigos. As outras centenas de amigos que
me cercavam eram colegas, paqueras, vizinhos, parentes distantes... pessoas
que gostavam de mim, que me conheciam pouco e se deixavam fascinar pelo que
eu aparentava. Achei que a amizade de Priscila estava presa ao que eu era, não às
aparências.
A casca caiu. Uma trombose cerebral mostra que somos mais do que aquilo que
externamos e que a casca é frágil. Ela pode se modificar totalmente, até ficarmos
irreconhecíveis. Tudo em mim mudou, da cabeça aos pés. Agora todo o meu
corpo está paralisado, restaram apenas as contrações involuntárias que tenho nos
músculos da face, como se fossem um tique nervoso, e os gritos estridentes que
substituem minha antiga risada gostosa.
Indiferente a tudo isso, Bia fazia parte da meia dúzia de amigos que me restaram
(meia dúzia é um saldo bastante otimista...). Como se não bastassem os que já
foram embora com suas próprias pernas, uma amiga me foi arrancada, tão
de súbito, tão tragicamente, que nem pude lhe agradecer...
Além de sonhar com Lucas e com Bia, sonhei também com meus pais durante o
coma. Foi um outro sonho maluco. Eles iam até o hospital me ver, saíam de lá, iam
ao restaurante do amigo de meu pai e almoçavam. Comiam pombas assadas,
servidas pelo pai da Bia. Não me pergunte de onde tirei isso, só sei que me lembro
assim.
Estado de coma é um estado interessante. Não se está nem dormindo, nem
acordada. Lembro-me de fato e pessoas. Muito cuidado com o que se fala perto de
uma pessoa em coma, ela pode ouvir e se lembrar, como eu ouvi e me lembro de
um monte de coisas. Ainda não estava em coma, mas não foi é tico terem me
deixado ouvir a frase: "Ela não passa dessa noite". Nunca me esqueci desse
comentário.
Já em coma, lembro-me da Gilda, no momento exato em que estava
cumprimentando meu pai. Doutor Décio chamou-a ao meu lado e lhe disse:
- Olha o que você fez!
E ela respondeu:
- Mas isso é raro!
Verdade, é raro. Mas é tão destruidor que merece a maior atenção. Não se pode
arriscar e ver se o raio cai duas vezes no mesmo lugar ou não! Tive certeza de que
a pílula tinha mais a ver com meu atual estado do que eu imaginava
naquela ocasião. Tive também de assistir ao desmoronamento, em uma fração de
segundo, de todo o esquema, meu e de Lucas, para ludibriar meus pais. E, desse
esquema, Gilda, queira ou não queira, fazia parte. Não posso ter certeza, mas acho
que essas mentiras nunca viriam à tona não fosse o AVC. Não me vanglorio disso,
só quero mostrar que meu azar vai além do meu estado físico, estou moralmente
destruída. Frases do tipo: "A vida é minha", "Sei o que estou fazendo", "Eu me
cuido" ou "Minha cabeça é meu guia" perderam totalmente o sentido para
mim, diante da realidade que me cerca.
Azar, puro azar... uma trombose cerebral, na minha idade e nas minhas
condições é um caso em um milhão, e eu fui injustamente a escolhida. Quanta gente
mata, rouba, estupra e continua ilesa? Eu não fiz nada disso, e fui punida. É
isso que chamam de justiça divina? É por isso que acho que a Gilda foi negligente e
imprudente. Não podemos dar chance ao azar, e ela deu. Em coma, eu vi a Gilda, e
uma força maior me empurrou de novo ao meu sono.
Também em coma, lembro-me nitidamente da irmã do Caio. E de suas palavras:
- Está todo o mundo lá fora te esperando... Caio está lá fora, aguardando...
Era mentira, ninguém espera uma tetraplégica, muda e careca. Mas, nem de
longe, eu suspeitava das minhas atuais condições. Só ouvi aquelas palavras e
imaginei minha vida parada, esperando por mim para continuá-la. Aquelas
palavras me deram força. Ninguém podia suspeitar de que eu estava vendo e
ouvindo, mas dessa frase acho que nunca vou me esquecer. Quem sabe, se não
tivesse ouvido, meu fim teria sido outro...
Uma vez combinei com Caio irmos a uma danceteria. Levei Bia, que ficou
abismada ao ver que nós dois estávamos juntos. Caio me pagou uma vodca, dançou
comigo n vezes e ficou do meu lado a noite toda. A uma certa altura da noite, ele me
falou:
- Eu te amo.
Quantas vezes ouvi e disse essa frase! Mas tratava-se de um amor muito frágil.
Mas que amor sobrevive a uma trombose? Em maio de 1994, eu estava com
Cristian e com Caio, erroneamente com os dois, e ambos juravam o seu amor.
Hoje estou sem ninguém.
Sei de alguns casos que mostram a fragilidade do amor, O mais recente, entre
tantos, é o de um jovem que conheci, António. Casado, pai de dois filhos, jovem e
forte. Tudo devia ir bem, até o dia em que ele sofreu um assalto, levou um tiro e
ficou tetraplégico. Pergunte-me onde está a mulher dele. Sei lá! Só sei que na atual
situação em que ele se encontra, assim como eu, ele só pode contar com a família.
Duvido que ele tenha se casado sem amor, mas, como eu disse antes, se o amor é
frágil, não sobrevive a grandes tragédias. Amor, amor puro e sólido, eu tenho na
minha família.
Lucas, a essa altura dos acontecimentos, já havia se dirigido ao hospital, e
também lamentava muito o meu estado. Mas sua atitude não se comparava à de
Cristian, que não saía de lá. Eu tinha feito planos de esperar Cristian no aeroporto.
Em vez disso, esperei-o no hospital, em coma.
Houve também um acontecimento super forte durante meu coma. Gracita, uma
amiga nossa, espetacular, católica fervorosa, levou uma santa à minha presença.
Aqui, quero dizer que Gracita deu um grande suporte a meus pais, ajudando
a cuidar de mim  diversas vezes, mesmo depois que saí do coma.
Extremamente prestativa e sensibilizada com o meu azar, ela se tornou muito
importante na minha vida. Sempre que minha mãe não podia estar presente, ela se
desdobrava em cuidados para substituí-la. Sei que, durante o coma, ela esteve
presente, mas não me lembro.... Lembro-me da santa...
Veja só, durante meu namoro com Lucas, tentei ser uma judia. Digo que tentei
ser uma judia de razão. Mas ser católica parece que está incrustado no meu
coração. Um dos primeiros gestos que aprendi a fazer na vida foi o sinal da cruz. E,
em coma, percebi pelo tacto que, diante de mim, havia uma santa. Tive uma reação
surpreendente. Abri os olhos, e meu coração, no monitor, disparou. Isso mostra o
que está enraizado nas profundezas do meu ser. Não foi uma estrela de Daví que
me emocionou, e sim uma santa.
Ainda em coma, recebi a extrema-unção, sacramento para poucos. Eu,
realmente, sustentava a vida por um fio.

Dia 29 de julho de 1996


Boa noite, Juju!
  Eu ainda permanecia em coma, alheia a tudo o que se passava, quando
senti uma dor horrível. Foi uma dor tão forte que, por alguns momentos, me
arrancou do meu estado de inércia. Dei, involuntariamente, uma super mordida na
minha língua, quase dividindo-a em duas com os dentes. Nesse momento, acordei
do meu sono profundo, mas voltei a ele em seguida. Esvaí-me em sangue, que
passou da minha boca para o camisolão, manchando tudo.
Não sei quanto tempo se passou na UTI até que alguma enfermeira notasse.
Quando repararam, fui novamente para a sala de cirurgia fazer uma transfusão de
sangue e dar pontos na língua. Tenho a cicatriz até hoje. Essas
mordidas involuntárias são o resultado de uma disfunção neurológica. É impossível
controlar esses movimentos. Muitas vezes, durante um dia, dou nítida impressão de
estar mascando chicletes. Na verdade, estou mordendo o nada, ou só tentando não
babar e engolir a saliva. Coisa impossível, sem dar antes umas mastigadas no vazio.
Aprendi com minha fonoaudióloga que minha língua está, aos poucos,
recolhendo a saliva. Coisa que uma língua ágil faz em segundos e de uma só vez.
Sou incapaz desse movimento e, toda vez que engulo a saliva, preciso antes
mastigar o nada. Às vezes, durante a noite, eu ranjo os dentes. Tudo é involuntário.
Antes, esse ranger de dentes, que recebe o nome de "trismo", era mais freqüente,
hoje diminuiu bastante. O trismo e as babadas vão me acompanhar pela vida toda.
Ficar tetraplégica e muda é terrível, mas é só a ponta do iceberg. Para evitar
mordidas perigosas e involuntárias na língua, desde que me operaram pela primeira
vez, me colocaram uma guedel. A mordida só foi possível porque ela se deslocou.
Então o trismo entrou em ação, e a lesão na língua foi inevitável. Segundo os
médicos eu usaria guedel para sempre. Mais uma previsão errada dos
neurologistas. Segundo eles ainda, seria impossível eu ter controle sobre meus
dentes, mordendo sempre minha língua. Hoje não uso mais guedel, lembro-me
vagamente, principalmente quando estava em coma, de que colocavam algo duro na
minha boca, com força, que ficava preso nas orelhas, por um cordão, mais
parecendo um cabresto, e chegava até a porta da garganta. Não é uma
lembrança agradável, mas ficou.
Apesar de hoje eu não usar mais guedel, dou pequenas mordidas involuntárias
na minha bochecha direita. Nada que tire sangue, apenas incomoda. É tão freqüente
morder a bochecha, e sempre no mesmo lugar, que se criou até um calo.
Essas mordidas ocorrem mais, cerca de três vezes ao dia, estimuladas pela
presença de algum alimento. Por quê? Não sei. Será que alguém saberia me dizer?
O alimento nunca é mastigado. Com sorte ele é partido. Sempre engulo sem
mastigar. Por quê? É fácil entender... Quando comemos, sem que nós percebamos,
a língua leva a comida até os dentes e a mantém lá até acabarmos de mastigar. Mas
a minha língua quase não se mexe, O alimento fica zanzando na boca sem destino.
Às vezes ele cai em um dente, e então aproveito para parti-lo. Levaria horas para
mastigar uma só refeição. Isso é inviável, tanto pelo tempo quanto pelo trabalho. E
pensar que comer era tão fácil! No começo me enervava engolir sem mastigar.
Atualmente, não vejo solução. Deixo o trabalho mecânico para o estômago. Até pedi
ajuda para a fono. Ela, com boa vontade, tentou me ajudar. Mas o quadro é esse,
quase nada se pode fazer.
Quando mordi a língua no hospital, sei que mamãe, Xango, Cristian e Júnior
doaram sangue. Mesmo em coma, lembrei vagamente do Xango.
Namorei o Xango, mas, hoje, somos quase dois irmãos. Brigamos a valer,
mas ele é uma pessoa em quem posso confiar. Sei como lidar com ele. Conhecê-lo
foi uma das melhores coisas que aconteceram no colégio.
  Todo mundo ficou sabendo do meu estado: amigas, amigos, vizinhos, parentes,
paqueras, ex-namorados e namorados. Até gente de quem eu não gostava como
Ane Marie e Betinho. Todos. Um dia, na sala de espera da UTI, se juntaram umas
150 pessoas. É verdade! Foi o que me disseram.
No curso de Farmácia eu me tornei muito íntima da Ane Marie. Dessa intimidade
restou hoje um profundo ódio. Na época era como ter eu mesma por companhia. Por
ela ter um caráter extremamente fraco, logo adotou traços da minha personalidade,
faceto que até chamou a atenção da Pat. Fumava, quando eu fumava, cabulava
aula, quando eu cabulava, para ir ao CEP‰. Até arranjou um judeu amigo do Lucas
para namorar, e também terminou na mesma época que eu. Sei que eu não era
má influência, mas Ane Marie tinha mesmo uma personalidade muito fraca e logo
tomava emprestados até os defeitos de outra pessoa. Ela também foi à mesma
médica que eu e começou a tomar as mesmas pílulas.
Nessa época estava voltando do Japão, depois de dois anos por lá, o meu
grande amigo, Héricles. Era uma amizade especial, que preservei com cuidado
desde o colégio. Agora ele ia fazer o segundo ano de Arquitetura na USP. Fui
buscá-lo no aeroporto e, em um dos primeiros dias da sua volta ao Brasil, levei Ane
Marie para conhecê-lo. Foi aí que fiz uma grande besteira: apresentar os dois. Como
ele morava muito perto da USP, e por sermos grandes amigos, eu e Ane Marie
íamos, frequentemente, até a casa dele.
Logo começaram a namorar. De certo modo, posso dizer que permiti esse
namoro, pois não teria dificuldade de namorar Héricles. Mas preferi cultivar essa
amizade. Afinal, fui eu quem apresentou os dois; se tivesse interesse, não o
teria feito. Participei de uma parte desse namoro, mas logo Ane Marie despertaria
meu ódio, proibindo meu melhor amigo, por ciúmes, de me cumprimentar. Não foi
raro ter de passar reto por ele na faculdade, pois ele ia sempre procurar Ane Marie.
Namoraram quase três anos. Fiquei muito magoada e repetia sempre:
- Namorado é hoje, não é amanhã; marido e mulher são hoje, não são amanhã;
mas amigo é para sempre.
Não sei se eu estava tão certa. Até na minha formatura tive de passar reto por
ele. Achava, e acho, que Ane Marie não merecia tantos sacrifícios, além de Héricles
não ser bem quisto pela família dela. A louca e neurótica da mãe dela não permitia
esse namoro, até o dia em que ela consentiu, e o romance acabou. Para mim ficava
claro o contraste: a nobreza do caráter do Héricles, diante da falta de personalidade
da Ane Marie. Espalhou-se a notícia de que iam se casar.
Felizmente isso não chegou a acontecer. Nunca vou perdoar Ane Marie por balançar
uma das minhas amizades mais caras.

Dia 4 de agosto de 1996


Oi, menina!
  Os médicos chamaram meus pais em uma sala e descreveram um prognóstico
pior do que aquele que apresento agora. Sem dar esperanças, descreveram uma
vida vegetativa, alimentação através de sonda, tetraplegia, ausência de fala, olhar
sem foco, respiração através de uma traqueotomia, fraldas e hipertonia. Superei a
previsão deles todos.
Era uma visão muito feia essa que meus pais teriam de fazer da sua filha
querida. Acertadamente, seria melhor vê-la morta do que sofrendo. Digo isso mesmo
estando melhor do que me descreveram.
Minha mãe se desesperou, chorou, vomitou e sua pressão foi à lua. Meu pai
quase teve um ataque cardíaco. Na sala de espera do hospital, teve sua primeira
angina. Ele foi tratado e agora usa sempre no bolso um vasodilatador sublingual.
Ainda bem, porque outras anginas viriam a acontecer, e com o vasodilatador ele se
preveniu.
No meu atual estado, não tenho uma vida vegetativa, mas quase. Consigo até
me comunicar através da escrita, como estou fazendo agora. Saio de vez em
quando de casa, vejo TV, leio livros e revistas, vejo cinema, teatro, shows e vídeos.
Faço fisioterapias, hipoterapias (físio no cavalo), hidroterapias (físio na água),
fonoaudiologia, psicologia e fazia terapia ocupacional; e é só.
Para uma moça que trabalhava, dirigia e saía todo fim de semana, isso é muito
pouco. Se você acha muito, tente listar tudo o que faz... a diferença é enorme!
Também estava no meu prognóstico comer através de sonda. Durante todo o
período de hospital, ela ficava presa no nariz e ia, pelo esôfago abaixo, até o
estômago. Sempre que vomitava, ela saía. Alguma enfermeira colocava de novo, e
como doía! Usando um arame e xilocaína, a sonda era introduzida no nariz e eu a
engolia até o estômago.
Tetraplegia... Se pensarmos como os fisioterapeutas, não sou tetraplégica.
Tenho, na verdade, uma tetraparesia: lesão nos movimentos. Mas, se pensarmos
em alguém que não mexe braços e pernas, sou tetraplégica. Na visão dos
físios, geralmente um tetra, como são chamados os tetraplégicos, fala, apresenta
perda de parte da sensibilidade, quase não se mexe do pescoço para baixo, tem
uma lesão na coluna cervical e não sabe a hora de ir ao banheiro - usa fraldas. Eu
não me encaixo nessa visão: não falo, tenho sensibilidade normal, me mexo mais
que um tetra - o que me permite hoje "catar milho" no computador e até levar comida
à boca -, não tenho lesões na coluna - e sim no cérebro - e peço que me levem ao
banheiro.
Não andar me incomoda, principalmente quando me vejo na cadeira de rodas.
Antigamente eu chorava, hoje já estou calejada. Mas não falar incomoda muito. Vivo
chorando por ter perdido esse sentido. Queria muitas vezes dizer "Ai meu
pé!", perguntar "Que horas são?" - já que não consigo nem ver o relógio e falar ao
telefone, conversar com meus amigos e com minha família, cantar, mexer a língua e
os lábios para comer e beijar - nem que fossem só beijos no rosto -"
cumprimentar, argumentar, comentar, discutir. Mas nada disso eu posso.
É incrível como falar faz falta. Sinto essa falta a cada minuto. O faceto de não
andar é coisa que a gente até esquece, menos quando precisa se locomover, é
claro. Mas não falar, isso não dá para esquecer. Dizer um "Oi", explicar um mal-
entendido, perguntar "Que dia é hoje?", comentar coisas sem importância, jogar
conversa fora, tirar uma dúvida. São coisas que fazemos, a cada momento, sem
perceber. Só se percebe quando não se tem a fala. Isso causa tanta frustração... é
por esses motivos que gostaria de ser uma tetra de verdade, mas falar. Os poucos
movimentos que tenho não me adiantam de nada, ou de quase nada. Eu os trocaria
pela minha antiga fala, e acho que com lucro...
Disseram que jamais meus olhos entrariam em foco. O que é isso? Explico
detalhadamente essas coisas porque também não sabia, e se não as tivesse
vivenciado jamais saberia. Lembro-me do dedo indicador do doutor Décio indo,
diante dos meus olhos, da esquerda para a direita. Simplesmente não conseguia
acompanhá-lo com o olhar, apesar de suas ordens incisivas. Isso são olhos fora de
foco. Eles vêem, mas não direcionam o olhar. Eu seria assim.
Hoje, aparentemente possuo olhos absolutamente normais. E os meus olhos
cor-de-mel são as únicas duas estrelas que ainda teimam em brilhar no horror da
minha fisionomia. Com certeza a Luciana de antes ficou aí, como uma menina
dos olhos. Seriam totalmente normais, a não ser por uns pequenos problemas, que
com o tempo percebi. Leio com um décimo da velocidade com que eu lia antes da
trombose. Vejo cores e objetos, tudo normal, mas de vez em quando dobrado. Antes
era mais, hoje é menos. Antigamente, via duas Televisões. Atualmente, isso não
acontece. Mas, em algumas posições, vejo em dobro. Não sei se isso vai sumir com
o tempo, ou se é uma seqüela.
Não conseguia respirar sem a ajuda de aparelhos. Foi então que me fizeram
uma traqueotomia. Segundo os médicos, ela seria eterna, mas hoje só sobrou uma
horrível cicatriz. Impossibilitada de respirar com o nariz, respirava pela traquéia. Era
nojento de se ver. Uma abertura de metal dentro da traquéia. E funcionava também
como uma abertura a uma série de infecções oportunistas. Pela traqueotomia tive
as infecções que causaram as pneumonias, além de outras infecções menores. A
tráqueo - como é chamada - juntava muita secreção, que atrapalhava a respiração.
Constantemente uma enfermeira tinha que sugar, aspirar esse excesso, usando
uma máquina, um aspirador - que nada tem a ver com um aspirador de pó. É
uma máquina com um motorzinho e um tubinho de plástico transparente. O tubinho,
quando ligado, suga, puxa a secreção.
Uma enfermeira ligava o aspirador que ficava perto da minha cama e
introduzia parte do tubinho na abertura da traqueotomia. E o aparelho ia sugando
catarro, sangue, de dentro da minha traquéia. Doer? Era um pouco dolorido
sim, mas, mais que isso, dava aflição. Pelo tubinho transparente eu via meu sangue
sendo aspirado, e ia sentindo algo na minha traquéia me machucando. Mas aí
comecei a sentir o que era falta de opção. Era isso ou não conseguir respirar.
Eu ainda estava em coma quando sofri minha segunda parada
cardiorrespiratória. E ela aconteceu, simplesmente, por falta de ar. Eu respirava pela
abertura da traqueotomia, e duas enfermeiras, na pressa de irem embora e me
trocando uma fralda, me viraram e taparam a tráqueo. Fiquei sem oxigênio e o
coração parou. Nessa hora eu ainda estava em coma, mas abri os olhos. Lembro-
me de ver um monte de gente, de branco, ao meu redor. Eu fazia uma força danada
para puxar o ar, mas quase não conseguia, depois disso, apaguei. Vou guardar
para sempre essa lembrança terrível.
Fui levada às pressas para a emergência, onde me reanimaram. Teimosamente,
voltei à vida, tendo em mente a maravilha que eu tinha. Não sobrevivi para viver
tetraplégica e muda, lutando para andar de muletas e falar tropegamente. Que
fazer?
Quando saí do coma, já respirava pelo nariz, mas tinha ainda a traqueotomia.
Fraldas, não uso mais, mas já usei muito. Não posso esquecer a emoção, após
meses, de usar uma calcinha. Logo quando cheguei do hospital, não sentia vontade
de ir ao banheiro. Usei fraldas, fraldas e mais fraldas. Hoje urino praticamente a
cada 24 horas, mas já fiquei 48 horas sem precisar ir ao banheiro. Isso é muito bom:
incomodar pouco meus pais e meu irmão, para me transportarem até o
vaso sanitário.
Hoje, se quero ir ao banheiro, alguém me leva, tira a minha roupa e coloca-me
em uma cadeira higiênica. Vergonha? Privacidade? Esqueça! Faz tempo que não
sei o que são essas coisas. Para mim, são luxos do passado. De um passado
não muito distante, mas tão perdido! Hoje não me Limpo sozinha. Também não
tomo banho nem me visto sozinha. Dói na alma. Até choro escondida, mas tenho
que esquecer o que é privacidade...
Não entendo direito a diferença entre os espasmos e a hipertonia. Só sei que
devo ter os dois. Em dois anos de fisioterapias, já ouvi muita coisa e aprendi muito,
mas não sei como diferenciá-los. Pela minha atrevida ignorância, só posso tentar
explicar como espasmos e hipertonia se manifestam no corpo. Frequentemente
tenho movimentos involuntários. Acho que isso são espasmos. Associado a isso,
tenho dificuldade em relaxar os músculos, algo fora do normal. Talvez isso seja
a hipertonia. Se me pedem para levantar as duas pernas do chão, sentada, eu
levanto. Pouco, mas levanto. Agora, se me pedem que baixe, é inútil, não baixa.
Também sinto um medo constante de cair da cadeira de rodas, da cama, ou do
cavalo nas sessões de físio. Não, não é medo, é pavor, pânico, horror mesmo! Só
estou bem na minha cama hospitalar, com as duas proteções laterais levantadas.
É lá que fico a maior parte do tempo. Esse medo medonho é aparente... é como um
susto, eu solto um som, fico ofegante, sinto o coração disparar e mexo os braços
rápida e involuntariamente. Não sei onde a hipertonia e os espasmos entram, só
estou contando o que se passa comigo.
O medo é totalmente irracional. Racionalmente, sei que não vou cair da cadeira
ou de qualquer outro lugar, mas é mais forte que eu. Não consigo evitar. Às vezes,
penso:
"Preciso ser forte. Que besteira! Não vou cair... nem se eu quisesse... não me
mexo. Cair como? É psicológico!"
Mas não adianta pensar, ser racional. Não sei o que aconteceu com meu
cérebro ou o que permitiram acontecer. Só sei que essa sensação não é normal.
Cama de solteiro, sem grade, nem pensar. Eu admiro se alguém consegue relaxar,
até dormir, em uma cama de solteiro! Isso, agora, não é para mim.
Um grande AVC faz coisas estranhas no cérebro. Esse medo vive comigo, e não
tem remédio, reza brava, chazinho ou terapia que dê jeito. Às vezes, na fisioterapia,
a terapeuta fala:
- Luciana, respira fundo, puxa o ar pelo nariz, solta pela boca, relaxa.
É inútil, nem respirar fundo eu consigo, e, mesmo que conseguisse, duvido que o
medo passe. De noite, geralmente os movimentos involuntários que entendo como
espasmos me atacam. Um braço ou uma perna começam a se
mexer involuntariamente. Tomo um calmante e consigo dormir. Mas deram, no meu
prognóstico, uma hipertonia com contorção aparente. Isto é, braços e pernas como
que dando um nó. Essa hipertonia eu não tenho mais. Muita gente olha e me
acha "normal", sem suspeitar dos movimentos involuntários e dos medos constantes
que meu cérebro me faz passar.
Como se fosse pouco, tenho ainda uns movimentos involuntários e inoportunos
sempre que alguém que não é da minha família se aproxima. Eu sei que deve ser
horrível e estranho para uma pessoa ver alguém em uma cadeira de rodas, alguém
que não fala, e que se contorce inteira ao ouvir um cumprimento. Mas eu não
consigo evitar!
Foi isso que me tornei: uma estranha para mim mesma.

Dia 13 de agosto de 1996


Juliana, minha doce companheira,
Eu ainda dormia nas profundezas do coma, quando meus pais contrataram
uma enfermeira para passar as noites comigo. Não me lembro do nome dela, mas
lembro-me de tê-la visto em uns flashes. Tenho certeza de que ela tinha curvas bem
definidas e abundantes, do tipo boazuda, cabelos curtos, e sem gestos de afeto para
comigo. Ela passava as noites no hospital, exclusivamente para ganhar uns trocados
e fazer seu trabalho.
Foi fazendo seu ofício que ela pecou. Uma noite, o soro se desprendeu do meu
corpo e ficou 14 horas vazando. Ela não percebeu. Fiquei em coma, e em um
período crítico, sem medicação. Quando mamãe chegou, de manhã, como fazia
sempre, me encontrou toda molhada. E indagou o que era aquilo.
- Ela deve ter feito xixi - foi o que a enfermeira respondeu.
Que xixi, que nada! Olhando com atenção, mamãe percebeu que eu tinha
passado a noite inteira sem soro. Depois desse incidente, não me lembro mais dela.
No coma, e durante todo o tempo que passei no hospital, um médico em
especial me cercou de carinho e atenção. O pai da Pat trabalha na UTI do Einstein e
sempre que me via perguntava docemente:
- Se você quer que a Pat venha te ver, abra os olhos.
Eu saía do meu coma e abria os olhos. E, em pouco tempo, a Pat vinha me ver.
Depois, mais tarde, quando recobrei a consciência, ele me emprestou um
walkman. Sempre foi muito afetuoso comigo e nos encontrávamos nos corredores
do hospital, quando eu estava indo ou voltando de maca de algum exame.
Posteriormente, quiseram me transferir para um hospital inferior, mas ele
não deixou:
- Ela só deixa este hospital quando tiver alta!
O pai da Pat foi um anjo bom que encontrei no meio de tanta desgraça. É um
médico com vocação. Realmente, encontrei poucos como ele até hoje. Comigo ele
foi especial. No meio de tanta dor posso me lembrar dele com ternura.
Eu, realmente, encarava tudo aquilo que estava vivendo como se fosse um
sonho ruim. Quando saí do coma, não caí na realidade, e achei que tudo só podia
ser um pesadelo. Longo e cheio de detalhes, mas um pesadelo. Eu podia jurar que,
na verdade, estava em casa, na minha cama, dormindo. Logo, não era possível
receber alta e ir para casa. Eu já estava lá. Na hora desse encontro, eu acordaria, e
o sonho ruim acabaria. Esperei ansiosamente a alta.
Não pensei muito mais no assunto, já que, na minha concepção, podia ser tudo,
menos o que era: a realidade. Quando cheguei em casa, esperei o sonho acabar,
mas não acabou. Até hoje, mais de dois anos depois, espero ansiosa por me ver de
novo em frente do espelho, namoradeira, independente, com longos cabelos loiros
soltos ao vento... mas, no fundo, eu sei, nunca mais.
O que senti, de repente, mudando totalmente? Ficando feia, muda, sem
movimentos? Guardando na memória uma última imagem do espelho e tendo a
certeza de que essa visão vai morar para sempre na lembrança? Desespero,
saudade, tristeza, azar, imprudência, abandono... Será que essas palavras traduzem
minha revolta? Na verdade, ainda bem que pensei na hipótese de tudo ser um
pesadelo, porque assim fui caindo na realidade devagarinho. Já imaginou se me
desse conta da situação assim que saísse do coma? Certamente entraria
em desespero, mas sem fala e sem movimentos como é que ia extravasar? Acho
que ficaria maluca!
Não me lembro de quase nada da UTI. Minhas primeiras lembranças, em sã
consciência, são de um quarto, no décimo andar, com TV, frigobar, uma poltrona,
banheiro e uma bonita vista do lado direito. Nem sei como fui parar lá. Na
minha memória só existe esse quarto... e mamãe ao meu lado.
Mamãe chegava toda manhã para passar o dia todo comigo, e à noite alguém
vinha buscá-la. Não sei o exato momento em que saí do coma, essa melhora foi
gradativa. Não se pode dizer que reencontrei meus pais. Acredito que sempre eles
estiveram comigo. Sempre que mamãe chegava, eu chorava. Ela cantava:
- De repente me deu uma estranha vontade de estar com você...
Mas eu lembro que morri de saudades do meu irmão. Como dois irmãos, a gente
vivia brigando. Mas, ao acordar do coma, experimentei um amor fraterno como
nunca senti. Meu irmão, Marcus, cansado de me visitar como quem visita um
vegetal, e já revoltado com os "não sei dos médicos, quando ele perguntava como
ela vai ficar?", esperou ansiosamente eu melhorar.
Nosso encontro foi emocionante. É inacreditável como era grande minha
carência, facilmente me emocionava. Por um lado, até hoje me emociono com
pequenas coisas, um gesto, uma cena triste, uma palavra amiga. Estou meio
abobada, involuntariamente. Por outro lado, perdi completamente o medo, mesmo
estando 100 por cento indefesa. Sou incapaz de fazer um gesto ou emitir uma
palavra que me defenda, mas sou inexplicavelmente corajosa. Assisto a filmes que
antes me apavoravam como quem vê uma comédia. Nem a morte me assusta, ou
melhor, até me inspira simpatia. Só uma coisa me mete pavor, pânico, horror: cair. É
incontrolável, mas esse medo é tão constante quanto a necessidade de respirar.
Quando vi meu irmão, caí no choro. Ele, cansado de me ver como um vegetal,
falou:
- Poxa! Ela está melhor! É minha irmã de volta!
No mês que passei em coma, como em um passe de mágica, Marcus mudou,
transformou-se, encorpou. O cabelo dele era desigual, sempre que saíamos, eu o
prendia com gel. Agora, era fio reto. Marcus estava aprendendo a dirigir, eu
estava ensinando. Mas ele tinha se transformado em um super motorista.
Só uma coisa me entristecia: a sua faculdade. Ele viu que, com meu AVC, anos de
estudo foram embora e desanimou. Mais tarde ele recobrou o antigo interesse,
dizendo uma verdade:
- Estudar é um risco, mas quase tudo é .
Mamãe passava os dias inteiros comigo. Aos poucos fomos nos dando conta de
que, além de não falar, eu não sugava, não sabia usar um canudo, não assoprava,
nem respirava pela boca. Terrível. Sem posse de nenhum movimento, eu só dizia
sim e não, e mesmo isso só com os olhos. Olhos abertos queria dizer "sim". Olhos
fechados significava "não".
Um dia, minha mãe precisava sair para ir ao médico e havia pedido à Gracita
para ficar comigo. Mas ela não chegava. Minha mãe então me perguntou:
- Luciana, você sabe o telefone da Gracita?
- Sim (abri os olhos).
- Mas e agora? Só abrindo e fechando os olhos, como você vai transmitir o
número de um telefone?
Eu sofria de um mal chamado Looked-in Syndrome (presa dentro de si mesma).
Eu estava presa dentro de um corpo, meu corpo. Entre as coisas estarem na minha
cabeça até eu externar isso, havia uma grande distância. Ainda tenho a sensação
de estar presa dentro de mim mesma, apesar de não estar mais classificada nesse
tipo de síndrome. Nada como a liberdade de falar.
Para eu passar para mamãe o número do telefone da Gracita, ela foi me
perguntando se o primeiro número era 0, ou 1, ou 2... A cada número correto, era só
eu abrir os olhos para confirmar o sim . Mamãe discou e era realmente da casa
da Gracita. Isso provava que minha consciência estava sã, mas presa.
Depois, no hospital mesmo, aprendi a dizer "sim" e "não" com a cabeça. Mais
tarde, usaram o mesmo método dos números com o alfabeto. Quando comecei a
movimentar um dos braços, passei a mostrar as letras em uma cartolina. E esse
método precário segue até hoje.
Já imaginou passar mais de dois anos soletrando tudo de importante que se tem
que dizer? Como me tornei lenta! As coisas de fundamental importância eu
transmito. Importantes, porque no mundo da pressa sou mais lerda que uma
tartaruga.
Uma simples frase parece que demora séculos para ser construída. Em uma
situação de pressa ou em uma discussão, mesmo que se tenha algo de fundamental
a dizer, é inútil tentar, O ouvinte tem que ter muita atenção, para ver e guardar as
letras que foram apontadas; paciência, para ouvir um texto soletrado, e tempo de
sobra. Ou seja, situação rara.
O silêncio é meu companheiro. Jogar conversa fora é coisa do passado. Dizer
que estou muda não diz toda a verdade, os mudos se comunicam muito mais que
eu. Mudez, nesse sentido, é quase não se comunicar, com raríssimas exceções.
Mais um dia no meu quarto de hospital passaria igual se não fosse a pergunta de
mamãe:
- Minha filha, você tomava pílula?
Fiz que sim, e achei graça. Cada vez eu achava meu pesadelo mais maluco.
Ela respondeu:
- É para chorar, Luciana! Ela te deixou assim.
A pílula é um anticoncepcional com aprovação médica, muita gente toma e não
acontece nada. O faceto é que eu não podia tomar e não tinha condições de avaliar
isso. Na verdade, sem saber, dei todas as condições para um
AVC, desgraçadamente, se manifestar. Entre essas condições, sem dúvida, a pílula
foi a mais importante. Veja. Copiei logo abaixo um recorte do jornal O Estado de S.
Paulo, do dia 5 de junho de 1996. Infelizmente essa informação me chegou
tarde demais:
  MULHER CORRE RISCO MAIOR DE DERRAME    WASHINGTON -
As mulheres e as jovens são mais susceptíveis que os homens a um acidente
vascular cerebral "AC -, nos finais de semana e nos dias festivos, segundo
um estudo publicado na revista mensal norte-americana Stroke, de junho". A
pesquisa, feita pela Associação Norte Americana do Coração, usou como base uma
população da Finlândia e estabelece que as mulheres e as jovens são mais
vulneráveis a um AVC durante períodos de relativa inatividade, O estudo analisou "a
síndrome do AC dos feriados vinculada ao consumo de álcool mais elevado nesses
dias, e a um aumento da atividade física, sobretudo entre as mulheres
finlandesas, normalmente mais sedentárias que os homens". Outros fatores que
aumentam o risco de AVC são o tabagismo e o uso de contraceptivos orais. O
estudo foi feito com 723 homens e mulheres entre 16 e 60 anos.
  É bom esclarecer que derrame é um AVC mais comum que a trombose. E
esses dados da reportagem retratam direitinho a vida que eu levava.
Meu AVC não pode ser atribuído ao acaso, é diferente de estar na rua, levar um
tiro e ficar tetraplégica. E, se ele não se deve totalmente ao acaso, alguém tem de
ser responsabilizado. Até hoje, mesmo sem meus pais me acusarem, sinto que toda
a culpa recai sobre mim; e, quando eles dizem que não foi erro médico, sinto-me
diretamente acusada, como se falassem: "Quem semeia vento, colhe tempestades".
Será que fui eu que errei? Acho que errei do ponto de vista farmacêutico. Ou
passou por mim despercebido o grande risco que eu corria, ou essa informação foi
dada em uma aula entre tantas cabuladas para ir ao CEPE-USP. Mas também
para isso eu pagava à Gilda, para nunca correr riscos de sida, sífilis, gonorréia, AVC,
endometriose... e me faltou informação, sofri um AVC, e cá estou.
Como farmacêutica, eu até podia me automedicar, mas desconfiei dos meus
conhecimentos e procurei uma médica para me orientar. Negligência, imprudência,
irresponsabilidade. Só restou muita raiva e dor ao ver minha vida destruída. A
médica imponente devia ter me alertado de que contraceptivos orais, cigarro, álcool,
vida sedentária seguida de vida agitada, colocavam-me em um grupo de risco. Um
AVC podia acontecer, e aconteceu.
Eu, que fugia duma gravidez indesejada, de sida, de uma endometriose, acabei
encontrando coisa muito pior.
Lucas... se eu sou culpada, totalmente ou não, ele também não pode se isentar.
Sinto-me como se estivesse dez vezes grávida e o filho fosse só meu. As
conseqüências são só minhas, isso ele não pode dividir. Eu é que fiquei tetraplégica
e muda. Mas é muito cômodo agir como se não houvesse nada que o
comprometesse, e não tenho nada que o obrigue. Talvez isso lhe pese na
consciência, mas a quem serviria de consolo? Eu entendo... é muito sério a gente
ser responsável por uma vida, ainda mais uma vida destruída como é meu caso.
Mas, por que tive que ficar com as conseqüências e assumir sozinha o peso dessa
responsabilidade? Não estávamos mais namorando, é verdade. Mas nos víamos,
fazíamos amor e eu ainda tomava pílulas.
Eu não era uma coitadinha, forçada a tomar contraceptivos pelo namorado.
Tenho minha parcela de "culpa", se é que podemos chamar assim, pois ninguém
quer ficar como fiquei. Eu assumo. Fiquei neste estado lamentável e ainda
sou obrigada a ouvir minha família dizer:
- Você estragou sua vida e a nossa... Nós tínhamos tantos sonhos com você,
cabeça-de-vento...
Ou:
- Será que a Luciana mente? Imagina... Eu não tenho culpa se você está assim,
mas quem sabe se você não procurou isso?
Eu entendo, menti para eles, fiz pouco caso da confiança que depositaram em
mim. Mas estou "segurando a peteca". A Gilda deve estar com a vida feliz, não havia
como provar cientificamente sua irresponsabilidade. Nesse país nada se prova,
justiça então...
E você Lucas? Você não acha uma barra pesada demais para eu segurar
sozinha?
Hoje, não passo um dia sem me lembrar da Gilda. Eu, com esta saúde
problemática, sem movimento e sem fala, lembro-me que a procurei com a
finalidade de evitar tragédias como esta. Eu me sentia segura de estar sendo
assistida por uma médica.
Mas ela não foi responsável, sofri o AVC, e tudo que eu tenho agora para tentar
fazer justiça são palavras, palavras soletradas...
E ela? Imagino que ela nem pense em mim...

Dia 17 de agosto de 1996


Boa tarde, amiga!
  Sabe que Cristian não saía do hospital, sempre ia me visitar? Quando acordei
do coma, tinha Lucas no coração. Mas quando vi Cristian, sua constância, sua
preocupação, seu carinho, me dei conta do homem maravilhoso que eu tinha a
meu lado. Seu amor, aparentemente, tinha sobrevivido até a um AVC.
Merecia, no mínimo, reciprocidade. Só me lembrava da última vez que tínhamos
feito amor, antes de suas férias. E só me vinham lembranças agradáveis.
Além de tudo, acordei do coma super carente. Socialmente, não era e não sou
ninguém: não falo, não beijo, não abraço, não pego na mão, não bebo, não fumo,
não danço, não faço amor e até minha risada assusta. Mesmo assim tinha um
namorado. A carência era tanta que fiquei ainda mais apaixonada. Mesmo tendo
pouquíssima noção do que me havia acontecido, supondo vagamente que, mesmo
que tudo fosse real, seria questão de meses para eu voltar à ativa; mesmo sentindo
pouco a realidade, eu achava o máximo a dedicação do Cristian. Já não me achava
tão bonita, simpática, afetuosa para ter um namorado atraente, charmoso e
carinhoso. Eu tinha e tenho medo do futuro. Aquela era a última chance de eu ter
alguém na vida. Hoje estou só. Não culpo ninguém, afinal, quantas chances eu tive
de ser feliz?
Quando eu já estava consciente, colocaram-me durante uma hora na
poltrona. Lembro-me de papai e de Júnior. Havia mais algumas pessoas. Chorei o
tempo todo, com a sensação de que eu ia cair. Todo o mundo me segurava, mas
não adiantava: eu tinha e tenho sempre a impressão de que vou cair. Quando vejo
alguém caindo na TV, dou um pulo na cama. Basta abaixar uma das duas proteções
laterais para que eu fique apavorada, como se algo fosse me empurrar. Como já
disse, esse medo é irracional. Sei, racionalmente, que nem tenho movimentos para
me locomover um centímetro, mas o pavor continua até hoje, só que não
choro mais.
Começaram as visitas, e algumas eram bem freqüentes, como a mãe do Wilson,
um colega de colegial que tinha tentado me namorar, me convidava para sair de vez
em quando, tinha, algumas vezes, tentado me dar um beijo na boca e fazia festa no
telefone quando eu ligava. Enfim, era um paquera.
A mãe do Wilson, de quem não me lembro o nome, vinha me ver quase todos os
dias. Eu nunca tinha visto aquela senhora antes de ir para o hospital. Não há nada
que me lembre dela. Ao dar entrada no hospital, ela se aproximou de mim e,
quando saí do Einstein, sumiu. Hoje, dois anos depois, não temos nenhum contacto.
Ela vinha sozinha, com o Wilson e a namorada, com o marido, ou com uma amiga. A
amiga, mais velha que ela, segurava nos meus pés tortos e ajudava a rezar.
Havia uma enfermeira, no Einstein, que agia como um anjo bom. Quando eu
estava com alguma dor ou com algum incômodo, Linda parecia adivinhar e surgia
pela porta do quarto. Ela passava delicadamente a sonda nasogástrica e, como
por milagre, eu não sentia dor alguma. Foi com ela que vislumbrei, pela primeira vez,
minha imagem em um espelho depois de todo esse percurso. Não me apavorei,
apesar de não ter me reconhecido, lembre-se de que eu achava tudo um pesadelo.
Um dia, fiz um exame que me deixava insegura, uma cintilografia, e ela fez questão
de ficar comigo durante todo o exame. Quando as aftas me incomodavam, ela surgia
com um remédio que tornava a dor mais amena. Escreveu um trabalho sobre mim,
para apresentar na faculdade, e me ensinou o sim e o não com a cabeça, que me
acompanham até hoje...
Linda se desdobrava em carinhos e beijinhos comigo. Carente como eu estava,
achava tudo o que ela fazia o máximo. Ela dizia que íamos escrever um livro juntas
e que nunca ia me abandonar. Toda manhã, vinha me dizer bom dia e me dar
um beijo.
Loira, com cabelos lisos até o ombro e uma franja, não muito magra, cheirosa, e
com um rosto que me inspirava só simpatia. Um dia, Linda foi transferida de andar, e
fiquei muito triste. Mas ela vinha sempre me ver, deixou seu novo telefone e me
ensinou um sinal para eu fazer se quisesse que alguém a chamasse. Perto de eu ter
alta do hospital, ela me apresentou a Vera, sua super amiga. A Vera não era
enfermeira do Einstein, mas era enfermeira de profissão.
Quando tive alta, meu pai se viu forçado pelo Lucas a contratar pelo menos uma
delas, pois ele achava que eu precisava de uma enfermeira-padrão. Elas iam todos
os dias em casa, me davam comida e banho, e passavam algum tempo comigo.
No segundo dia, já em casa, elas me apresentaram a uma auxiliar de enfermagem
que cuidou de mim por dois anos, a Stéphanie. Depois eu falo sobre ela.
Linda e Vera me apresentaram também a uma fonoaudióloga. Tive algumas
sessões em casa, com a estagiária dessa fono, Celina. Ela era oriental, jovem e
moderninha. Tinha um pouco do meu antigo jeito.
Suas sessões de fonoaudiologia eram ridículas. Ela colava em uma folha de
sulfite recortes de um shampoo, um carrinho e um sapato. Depois escrevia embaixo
os nomes e me perguntava qual era a fotografia que correspondia a um nome sem a
letra h. Ridículo! Parecia que eu tinha desaprendido a escrever. Ela também trazia
recortes de jornal e lia para mim. E eu pensava:
"Quero falar! Não ouvir notícia de jornal."
Ela encheu meu quarto com bilhetinhos: "Engula a saliva ""Não chore" e "Olhe
para o lado esquerdo", pois olho sempre para o lado direito.
Por outro lado, suas tarefas de casa eram impossíveis de serem feitas. Ela
escrevia, em uma folha de sulfite, um monte de sílabas e vogais para eu articular
sozinha. Se pudesse, não ia precisar de fono, sairia falando...
Descobrimos que, quando se tem um caso como o meu na família, é preciso
muito cuidado onde se gasta o dinheiro, pois parece um saco sem fundo:
fonoaudiólogas, fisioterapeutas, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiras,
médicos, remédios, cadeira de rodas... Temos a sensação de que o que cada um
quer é o seu quinhão. Desgraça alheia ou não, não é problema deles. São
profissionais. Portanto, se não se pode fugir a esse mercado, é preciso ser esperto e
ver o retorno. Não víamos retorno com a Celina. Ela foi despedida.
Fugindo também do excesso de despesas e das explorações, meu pai fez uma
reunião com Linda, Veta e Stéphanie. Ficamos com Stéphanie, que passou a vir de
segunda a sábado por seis horas diárias. Linda e Vera, mais caras, foram
dispensadas.
Não encarei aquela reunião como um adeus, pois, por diversas vezes, Linda
havia jurado não me abandonar. Mais uma decepção da vida que tive que superar.
Ambas sumiram, nunca deram sequer um telefonema para saber da minha saúde.
Nem preciso julgá-las. Suas próprias atitudes falam por elas.
Ainda no hospital, eu necessitava de alguém que dormisse sempre comigo. Por
muito tempo, mamãe dormiu, depois contratamos uma enfermeira para fazê-lo. Alice
me acompanhou até o final de 1994, dormindo na cama ao lado da minha, até
em casa. Ela era bastante afetuosa comigo e, de vez em quando, ainda me liga no
meu aniversário. Com a traqueotomia, era um sufoco chamá-la durante a noite, pois
eu não emitia nenhum som. Depois, sem a tráqueo, fazia uns "hã", na forma de
som, que serviam para chamá-la. Ela vinha e me virava, pois até hoje não rolo na
cama. Sempre acordo e com os meus "hã", chamo alguém para me virar... toda
noite.
Alice gostava muito de bater papo com outra enfermeira do hospital. Na época
em que eu não emitia som algum, rezava para que ela olhasse para mim, mas, se
ela estava entretida com suas conversas, eu passava despercebida. Então eu
chorava. Um choro sem som e sem lágrimas que não chamava a atenção
de ninguém. Nem que eu quisesse... tudo isso só para me virar na cama. Que
decadência!
Ela é baixinha, cabelos curtos e crespos, mulata, e depois que engravidou ficou
parecendo uma bolinha. Alice ficou grávida de gêmeos, brigou com o marido... Ela
me contava tudo.
Ficamos amigas. Coisa fácil, pois era, e ainda sou, extremamente carente.
Não carente de afeto, pois todo o amor do mundo tenho da minha família, mas
carente de convívio social...
Antes de contratarmos Alice, nos fins de semana, dormiam comigo Cristian,
Nelson e Beto. Pasmem! Com 150 amigos, era justamente Betinho quem dormia ao
lado da minha cama e de madrugada me virava. Isso reforçava a hipótese de
estar vivendo um pesadelo. De repente, gente de quem eu não gostava, ou que, por
algum motivo, não gostava de mim, agora se desmanchava em sorrisos... Beto, Ane
Marie, Poliana... A presença dessas pessoas só me fez lembrar que, de
verdade, estava doente. Na época, achei tudo estranho. Não entendia que agora
não oferecia perigo nem para uma mosca. Achei engraçado e acreditei que só podia
ser mesmo um sonho ruim.
A idéia do pesadelo se reforçou quando vi Héricles e Ane Marie entrando no meu
quarto de hospital. Eu pensava:
"Eles não estavam sem me cumprimentar? O que é que eles estão fazendo aqui?
Ah, é sonho! Tudo pode acontecer num sonho..."
Só agora vejo a gravidade da situação. Mas recebia bem essa proximidade. Não
por Ane Marie, de quem não gosto até hoje, mas por ter de volta meu amigo
Héricles. Algumas vezes ele aparecia só. Em uma dessas vezes - ele não sabia qual
o tamanho da lesão no meu cérebro - ele me perguntou:
- Você lembra que já fazia um tempo que a gente não se falava?
Ele queria ver até onde minha consciência estava sã. Todo o mundo, de um jeito
ou de outro, veio até mim, também, buscando essa prova. Eu percebia essas
perguntas aparentemente feitas ao acaso, mas que na realidade buscavam mais da
minha mente do que simples respostas. Percebia, não me ofendia e me sentia
aliviada de ter uma consciência que correspondia a todas as expectativas.
Eu e Héricles tínhamos muito do que nos lembrar... Anos e mais anos de uma
gostosa amizade. De posse de uma mente tão lúcida quanto era antes do AVC,
provei que tinha o fio de minha história nas mãos.

Dia 23 de agosto de 1996


Oi, minha caladinha.
Você já está cansada de ouvir minha vidinha de hospital? Eu fiquei mais ainda de
ficar por lá... Tudo parecia uma eternidade.
Toda manhã aparecia no quarto do hospital uma auxiliar de enfermagem muito
boazinha: Andreia. Ela era responsável pela higiene dos pacientes e me dava um
banho de leito, passava perfume e escovava meus dentes. Banho de leito é um
nome bonito para o popular banho-de-gato. Como o nome diz, é um banho na cama.
Não tem nada parecido com um bom banho... e mais uma "passação" de panos
úmidos. De maio até meados de julho não vi um chuveiro, só depois, em casa.
De tarde, apareciam no meu quarto Bruna e Mônica, duas auxiliares de
enfermagem muito atenciosas. Elas injetavam os remédios na minha sonda, e lá iam
eles para o estômago. Também faziam o controle, a medição diária da pressão
arterial e dos batimentos cardíacos. Nunca tive problema com a pressão.
Consta que tanto nos paraplégicos quanto nos tetraplégicos ela pode cair... a minha
nunca oscilou.
No hospital pude perceber muito bem uma coisa: as auxiliares de enfermagem
eram mais atenciosas e bastante carinhosas com os pacientes. Mais que aquelas
que tinham feito uma faculdade para isso: as enfermeiras.
Comecei a ficar com muita dor devido aos remédios. Uma tarde eu estava com
Gracita e, ao ver Bruna e Mônica, caí no berreiro. Berreiro é modo de falar, porque
meu choro era sem som. Sempre associava as visitas da Bruna e da Mônica com
dor de estômago e frequentemente chorava. Descobriram, então, que eu estava com
gastrite! Além dos meus remédios, ainda comecei a tomar um para o estômago.
Era complicado diagnosticar uma dor, porque eu não falava, não reclamava, não
me mexia... só fazia sim e não com os olhos. Assim descobriram a gastrite e
também uma bursite... e mais remédios. De vez em quando, tinha que tirar
uma radiografia, e apareciam no quarto três jovens rapazes que me divertiam muito.
Se estivesse como antes, não teria dificuldade em conquistar um deles, mas percebi
que agora não chamava nenhuma atenção. Hoje, quando vejo um rapaz
atraente, logo penso:
"Ah, se eu estivesse boa!"
Também na parte da manhã, sempre vinha uma mocinha fazer limpeza no
quarto. Pelas suas visitas diárias e pela sua simplicidade, acabou se tornando minha
amiga, minha e de mamãe.
Durante meu tempo de hospital, fiquei muito íntima da ressonância
eletromagnética. Foi através dela que diagnosticaram minha trombose. Um dia,
estava no meu quarto do hospital e chegaram os dois enfermeiros que sempre
me transportavam pelos corredores do hospital, o seu Milton e seu Sílvio. Eles me
tiraram da cama, me puseram em uma maca, me cobriram jeitosamente e me
transportaram até a sala de ressonância. A ressonância eletromagnética é feita em
um aparelho grande e branco, com um túnel no meio. Através desse túnel, introduz-
se a pessoa deitada. Diziam que esse exame não doía e era verdade, mas,
enquanto estivesse no túnel, teria que permanecer imóvel apesar dos barulhos
horríveis que a máquina soltava.
Mamãe, que nunca me deixava, ficou perto da abertura pedindo calma. Estava
calma e não fiquei com medo do túnel, mas era muito difícil controlar meus
movimentos involuntários, ou melhor, é quase impossível. Espasmos, hipertonia?
Ficar imóvel como? Só havia um jeito para eu ficar sem me mexer: dormindo. Após
uma tentativa frustrada, resolveram me sedar. Deram-me uma injeção na veia do
meu braço. Um líquido claro foi para o meu sangue e Logo dormi. Não vi mais nada.
Quando acordei, eu já estava na maca, indo para o quarto. Sentia algo pinicar
minhas costas, mas, na época, eu não tinha movimento algum, nem para fazer
entender que tinha algo estranho nas costas. Queria avisar, falar, mas isso está
muito além do que sou capaz. Pensei em emitir um som... mas como, se a
traqueotomia não deixava? Eu ainda não me comunicava, só fazia sim e não com os
olhos. Então fiquei bem quietinha na maca. Cedo ou tarde íamos descobrir o que me
beliscava.
Quando cheguei ao quarto, e me passaram para a cama, vimos sangue no lençol
da maca e uma agulha nas minhas costas. Era isso, uma agulha, grande, francesa,
esquecida displicentemente na maca. A médica que aplicou a sedação ainda veio se
desculpar, mas ficamos muito bravos. Podia ter sido pior.
Já estava consciente, no meu quarto, no décimo andar, quando vi um tio que veio
do Nordeste. Disse que veio me ver Não gostava muito desse tio e hoje gosto
menos ainda. Ficou muito claro que ele veio mais fazer turismo, não
se sensibilizando diante do choque emocional que eu e minha família
enfrentávamos. Meu tio usou e abusou da boa vontade e da educação do meu
perturbado irmão, diante da situação, fazendo-o de guia turístico por São Paulo. Que
coisa mais fora de hora!
Suas filhas, quando souberam o que me aconteceu, disseram:
- O que aconteceu com ela foi pouco!
Não imaginei que despertasse tanta inveja...
Quando ele foi me ver, não me emocionei, mesmo sendo fácil eu chorar. Sua
visita durou uns 5 minutos e não me transmitiu nenhum conforto. Fica difícil crer que
ele se deslocou do Nordeste até aqui, para fazer uma visita de 5 minutos... Que
coisa mais sem propósito!
No próprio hospital, tomei contato com a fisioterapia. Não gosto das sessões de
físio. Não gostava no Einstein, em casa, e agora, que faço fisioterapia na Fundação
Selma, continuo abominando. Os físios, de modo geral, tratam-me como uma idiota
porque não falo. No fundo, vivem da desgraça alheia e repetem a todo momento:
-Muito bom, Luciana!
Por um movimento besta qualquer, então, desmancham-se em elogios, como se
eu não tivesse senso crítico. Sei que não fiz absolutamente nada de importante. É
claro que toda regra tem sua exceção. Até nas sessões de físio encontrei bons e
raros profissionais. Aprendi muito com eles. Achei uns profissionais que se acham
tão bons a ponto de selecionar seus próprios pacientes. Entendi aí que o terapeuta
que pode, não me tem como sua paciente: não falo, tenho uma tetraparesia,
sou emotiva, cheia de espasmos, não sou rica, para pagar as caras sessões, e
morro de medo de cair. Um caso curioso, porém dispensável.
Sei que jamais adotaria como profissão a fisioterapia. Ainda bem que nem todos
pensam assim. Afinal, a terapeuta tenta recuperar meus movimentos perdidos.
Mesmo assim, há dias em que penso:
"Céus, minha vida está nas mãos desses profissionais!"
Escolhi Farmácia para todo dia de manhã ficar feliz por fazer algo que me
agradasse durante o dia. Também aí fui bastante punida. Quase todo dia acordo
para fazer algo de que não gosto: fisioterapia. Se não fizer, não só deixo de
progredir como também atrofio.
Às vezes acordo com um tremendo mau humor e penso:
"Fisioterapia? De novo? Que saco..."
Nesses dias, mal falo com meus pais, e só meu querido irmão arranca de mim
algum sorriso. Minha mãe troca minha roupa... e eu de cara fechada. Sinto raiva de
tudo: do novo dia que está nascendo, da minha situação, das goteiras que
- literalmente - não largam do meu pé, dos meus poucos gestos vagarosos e
imprecisos e por ter de deixar a minha cama quentinha, o mundo dos sonhos, e cair
na cruel realidade da fisioterapia!
No trajeto até a Fundação Selma, vou, de fato, muda. Com certeza, mesmo que
tivesse fala, não trocaria uma palavra com meu pai, que vai guiando e tentando, em
vão, me animar. Meu mau humor é incrível. E se expresso alguma palavra,
sou azeda, amarga... Não raro, minha mãe me acorda com um bom-dia e eu logo
penso: "Bom dia por quê?".
Mas sempre na Fundação Selma tudo desaparece. As terapeutas, além de
tentarem pôr em ordem o meu físico, cuidam, de propósito ou não, do meu psíquico.
Elas são gentis, doces, educadas, prestativas. Também existem alguns
homens, embora em menor número, e eles são divertidos e legais.
Uma vez ouvi de um paciente que ele adorava fazer terapia. Ele estava
conversando com outro paciente. Pensei: "Argh! Eu odeio!", O outro paciente
perguntou:
- Do que você gosta mais?  
- Do carinho - respondeu o primeiro.
Percebi muito isso depois de ter me tornado uma deficiente: o carinho que
algumas pessoas têm conosco. Claro! As pessoas agem de diferentes formas ao
depararem com uma cadeira de rodas. Tem de tudo: gente que me olha com
pena (tudo bem!); que torce o nariz ao me ver como se eu fosse portadora de
alguma doença contagiosa (que ódio!); que se dirige a mim como se eu tivesse uma
idade mental de 5 anos (ridículo!); que fala comigo de igual para igual
(quase esqueço como é ser tratada com naturalidade!); e as pessoas que, além de
se comportarem normalmente, sem me olharem como se eu fosse um bichinho
verde de anteninhas, ainda dão um sorriso especial, um gesto doce, uma palavra
amiga.
Alguns fisioterapeutas da Fundação Selma são assim. Isso move muitos de nós,
nem pela terapia em si, mas por esse convívio generoso. Eu mesma, quantas vezes,
fui à fisioterapia, fonoaudiologia, só pelo prazer de socialmente ser bem tratada, com
naturalidade, com carinho, por uma pessoa fora do meu círculo familiar. E essas
pessoas acabam se tornando grandes amigos!
Como é gostoso fazer amigos mesmo muda e numa cadeira de rodas! É claro
que hoje não faço amigos com a mesma agilidade de antes; mas os amigos de
agora não vão sair correndo se uma nova tragédia acontecer. E uma amizade com
uma base sólida.
De qualquer forma, eu e, com certeza, os demais deficientes aceitamos bem
esse modo de agir doce, porém não apelativo. E nós, deficientes, somos carentes.
Mente quem diz que não. Pense comigo: na verdade todo o mundo gosta de
ser bem tratado, mas isso é extremamente difícil para quem vive numa cadeira de
rodas... e mesmo ser tratado normalmente é raro. Além disso nossas limitações nos
privam de várias atividades sociais, até de contactos físicos como de vez em quando
dar um abraço. Lembro-me que li em algum lugar que, para se viver feliz, são
necessários seis abraços por dia...
Bem, isso fica complicado numa cadeira de rodas! Tudo isso mais a dor pessoal de
cada um que vive assim nos tornam carentes. E carência casa bem com carinho.
É isso. Dão carinho. Mas esse modo de agir dos terapeutas, até o presente
momento, não despertou em mim o pensamento: "Que legal! Vou fazer terapia"  
Talvez eu associe isso ainda às tapotagens noturnas e diárias, que me enchiam o
saco. Tapotagem é um monte de tapas nas costas que se dá para desprender
catarro dos pulmões. Meu pulmão era muito frágil. Todo dia fazia inalação e na hora
da tapotagem eu pensava: "Lá vem a hora da surra..."
Durante o tempo em que fiquei em coma, meu pé ficou eqüino. Para entender o
que é pé eqüino, é preciso imaginar um pé são, normal. Os pés fazem 90 graus com
nosso corpo. O meu pé, quando acordei do coma, estava parecendo pé de bailarina.
Não faz 90 graus com o corpo, faz mais. E o calcanhar nunca encosta no chão.
Quando saí do hospital, fui com papai até a Associação de Assistência à
Criança Defeituosa (AACD), e fizemos uma goteira, uma espécie de bota para os
pés. Tínhamos esperança de que a goteira corrigisse meu pé eqüino - o esquerdo -,
e era necessário usá-la sempre, até dormir com ela. A goteira forçava o tornozelo,
deixando-o vermelho, e doía. Ficamos com medo de que provocasse escaras, umas
feridas comuns nas pessoas inválidas, principalmente naquelas que perderam
parte da sensibilidade. As escaras começam com uma vermelhidão na pele, tornam-
se fundas na carne e quase incuráveis. Além de as goteiras favorecerem as escaras,
são quentes, pesadas e seu uso é inviável. Conclusão: não usei e também o pé
direito, de tanto tempo deitada, ficou eqüino. Agora, com os pés tortos, só fico em pé
de novo se fizer uma cirurgia.
Quando, na fisioterapia, forçam um músculo perto do pé, ocorre o clonus. Uma
hiper atividade, uma "tremedeira" da perna, como se eu estivesse nervosa e batesse
o pé no chão. O clonus acontece porque o calcanhar nunca encosta no chão. Tudo é
involuntário e sem controle. É normal sair da terapeuta com as pernas tremendo. Me
sinto ridícula...
Estou a poucos dias de uma cirurgia. Um médico ortopedista vai operar meus
pés. Depois disso, um mês de gesso e, posteriormente, muita goteira. O médico
disse que, com certeza, eu vou ficar em pé. Eu acredito nele. Ficar em pé não é
andar. Na fisioterapia existem aparelhos que põem a gente de pé. Não posso usá-
los por causa dos pés eqüinos. Mas isso está prestes a mudar. Essa cirurgia me dá
esperanças de poder voltar a andar. E ainda um médico fisiatra disse que, se
essa cirurgia tivesse sido feita há mais tempo, eu já estaria andando. Só vendo para
crer...

Dia 27 de agosto de 1996


Olá, menina!
Um dia a guedel saiu, e mamãe, para evitar que eu mordesse a língua, no seu
amor inconsciente de mãe, colocou rapidamente o dedo entre meus dentes.
Apliquei-lhe, involuntariamente, uma super mordida. Tão forte que criou calo de
sangue no seu dedo, e ela teve de fazer curativo. Doeu mais em mim do que nela,
pode ter certeza. Eu não queria machucá-la. Para que serve um cérebro que não faz
o que a gente manda? Eu não tinha mais controle sobre meu próprio cérebro! E
essa descoberta vinha dia a dia...
Semanas mais tarde, com a ajuda da fisioterapeuta, e sob os olhares atentos de
minha mãe, resolveram deixar minha boca livre. Tínhamos medo de que eu
mordesse a língua, mas a retirada da guedel e de um outro aparelhinho
representaria um avanço. Os médicos eram contra. Mas, corajosamente, tiramos.
Incrível... não mordi a língua, e nunca mais tirei sangue dela. Só tenho a cicatriz, que
não me deixa esquecer desse tempo.
Comecei a engolir gelatina de uva e água, de colherzinha pela boca. O resto dos
alimentos ia pela sonda. Dos 50 quilos que tinha, fiquei com 33. A alimentação
através de sonda, apesar dos cuidados da nutricionista, não era suficiente.
Engraçado é que eu não sentia fome. Tinha a impressão que poderia passar meses
sem comida. Reeduquei meu cérebro. Durante meses, perto do almoço ou do jantar,
pensava comigo mesma:
"Luciana, você deve estar sentindo fome."
Com o tempo essa sensação voltou. Hoje, dois anos depois, tenho de novo 50
quilos e sinto fome normalmente.
Cristian vinha me ver sempre. E ele me dava muito carinho, apesar de, agora, eu
ser completamente inerte. Em um dia, estavam na minha frente, no meu quarto de
hospital, Cristian e Lucas. Cristian me deu um beijo na boca. Se é que se pode
chamar aquela tentativa de beijo. Meus lábios não se abriram, meus olhos não se
fecharam e além do mais minha língua permaneceu imóvel. E pensar que eu
gostava tanto de beijar... Lucas assistiu àquela cena. Antigamente, se a Luciana
Scotti desse um beijo na boca de um namorado na frente de um ex, isso significaria:
"Olha o que você perdeu!". Agora, aquilo, que nem era um beijo, queria dizer: "Olha
do que você se livrou!".
Essa descoberta veio aos poucos. A descoberta de que minha vida era outra.
Recentemente me dei conta de que nunca mais vou ter marido, filhos, não vou mais
fazer amor, beijar, beber, dançar, nadar, andar de bicicleta, paquerar,
namorar, dirigir, ter uma carreira, fumar, andar de patins... e talvez nunca mais ande
nem fale. Desesperador, não é?
Dos meus superiores da Colgate, ainda vi Clinton uma vez. Ele veio me ver
em casa, logo que saí do hospital. Também foi me ver no hospital, quando eu estava
em coma. Clinton coordenava todo o pessoal: eu, Cristian, Júnior, Cleusa, a
insuportável Poliana... Loiro, super bonito, alto, de olhos azuis, bronzeado e
Engenheiro Químico, super inteligente. Em todo o período que fiquei por lá ele
nunca me lançou sequer um olhar mais atrevido, o que foi uma pena.
Não posso me esquecer do Júnior... esse não me abandona. Se é que isso é
possível, agora somos mais amigos do que antes. Ele sempre é pontual, marcando
presença quase toda a semana, dando-me forças para superar as intempéries da
vida.
Antes ele vinha e me trazia um agradinho: bala, biscoito, sorvete... Agora ele
está momentaneamente sem o carro. Suas visitas que eram semanais, ficaram
quinzenais, e agora ele só pode me presentear com sua presença. Atualmente ele
vê quão triste é minha sina: essa de depender dos outros. Enquanto ele espera uma
carona, eu espero um copo de água, um prato de comida, um cobertor, e todo o
resto.
Uma vez eu disse ao Júnior que meu corpo era igual ao de antigamente. Mais por
vaidade, do que pela intenção de pregar uma mentira. Tenho certeza de que quem
já me teve nos braços nem tem dúvida de que meu corpo é outro. Essa certeza
está estampada no rosto do Cléber, do Lucas, do Lu e do Cristian.
Quem também veio me ver no hospital foi Helena, do RH da Colgate. A Helena é
uma pessoa muito legal e delicada. Ela me emprestou um rádio. Habituada a ouvir
som no meu Uninho, seguindo o mesmo costume, passei a ouvir FMs dançantes,
sem me dar conta da dura realidade que me cercava.
Hoje, meu irmão diz que a rádio que eu ouço é "rádio de velho". Não é bem
isso, só me adaptei à cruel situação a que estou entregue. Na verdade, não troquei
de estação de rádio; ela é que mudou de estilo, como se tivesse se adaptado a mim.
Se não tivesse sofrido o AVC, não teria eleito essa rádio como a minha
predileta. Como é que vou ouvir canções que me dão vontade de sair pulando, se
nem posso dar um passo?! Passei a ouvir baladas românticas, que não liberam
tanta adrenalina, como o dancing-music, que eu adorava muito. Mas ainda
sinto vontade de cantar... E hoje canto dentro de mim minha doce canção italiana,
Eros Ramazzotti-Esodi...     lo da qui non posso andarmene-diceva  I miei piecli sono
troppo stanchi epoi  Questa terra é Ia mia terra, vecli lã   Quel ciliegio l ho piantato
proprio   E fra qualche mesefiorird   Come un segno di speranza rifiorirá
Uma noite eu estava vendo TV com mamãe e caí no choro. TV mostrava um
cantor cantando uma música da qual eu sabia a letra de cor. Deu-me uma vontade
louca de cantarolar aquela canção tão conhecida. A letra da música estava na minha
mente, queria pô-la para fora, mas eu estava presa. Presa dentro de mim mesma.
Pode existir agonia maior? Chorei. Aprendi a cantar com cérebro, mas ainda fecho
os olhos e me vejo cantando. E canto mesmo Quase sem querer, do Legião Urbana
Tenho andado distraído, impaciente e indeciso  E ainda estou confuso, mas agora é
diferente...
Quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria  Era provar pra
todo mundo Que eu não precisava provar nada pra ninguém...  mas não sou mais
tão criança aponto de saber tudo Me delicio com Querem o meu sangue, dos Titãs:
Dizem que guardam um bom lugar pra mim no céu Logo que eu for pro beleléu A
minha vida só eu sei como guiar Pois ninguém vai me ouvir se eu chorar Mas
enquanto o Sol puder arder Eu não vou querer meus olhos escurecer Pois se eles
querem o meu sangue Verão o meu sangue só no fim E se eles querem o meu
corpo Só se eu estiver morto, só assim. Essas são minhas melodias internas...
Canto direitinho, apaixonada ainda pela vida...

Dia 6 de setembro de 1996


Querida Juju,
Acabei de fazer uma cirurgia para meus pés ficarem de novo retos, a 90 graus.
Voltei do hospital hoje. Dor... estou sentindo muitas dores, mal consigo escrever. E
eu que achava que já havia sofrido muito... Fiquei dois dias internada e agora estou
com um gesso que vai da ponta do pé até o joelho. E tudo isso para ter a remota
possibilidade de um dia, talvez, voltar a andar. Será que tanta dor e sacrifício vão
ser recompensados?
Quando acordei do pós-operatório, pensei que fosse morrer. Foram quatro horas
de operação. Faltou-me o ar. Colocaram uma máscara de oxigênio. A traquéia doía
muito, porque fui entubada, mas meus pés doíam muito mais.
Quando subi para o quarto, ainda estava grogue da anestesia geral. Lá estavam
Stéphanie, que ficou comigo todo o tempo, e toda a minha família, que já estava
apreensiva com a demora. A noite foi terrível. Sentia muitas dores e acordava para
vomitar. Stéphanie sempre comigo, até durante a noite.
Como já disse, ela é uma auxiliar de enfermagem, que me foi apresentada
pela Vera e pela Linda, no segundo dia após eu ter recebido alta do Einstein. Alta,
forte, morena, cabelos ralos e curtos, mais corpulenta que magra e uma voz macia.
No começo, não gostei dela e sempre fazia careta quando me perguntavam se ela
havia me agradado. Acho que, na verdade, não gostava de nada que me lembrasse
que agora era tetra e muda.
Muitas vezes Stéphanie saiu de casa chorando. Ela não se conformava ao me
ver, tão jovem e bonita, submetida a tudo aquilo. Meu mundo encolhera, chegara às
dimensões de um quarto, de uma cama. Ela ainda se comove ao me ver falante
e feliz, em uma foto ou em um vídeo. Antes eu também ficava emocionada ao me
ver como antigamente, hoje sei que emoções não levam a fiada, só me desgastam.
Atualmente, não existem palavras que possam agradecer todo o zelo,
dedicação, carinho e cuidado que ela teve por mim. Stéphanie foi mais que uma
segunda mãe. Inúmeras vezes ela se pôs no meu lugar e viu quão desesperador é
ficar sem se mexer, sem falar, adquirir outra aparência, dependendo de tudo e todos
e quase nunca sendo ouvida. Desde que conheço Stéphanie, ela sempre me ouviu,
mesmo soletrando, e nunca me disse:
- Não posso ouvir, porque estou com pressa. - Uma frase tão frequentemente
ouvida por quem só se comunica expressando-se por uma letra de cada vez.
Durante dois anos, seis horas por dia, de segunda a sábado, ela conviveu
comigo. Conversávamos sobre tudo... Eu a cativei e ela a mim. Tornamo-nos muito
amigas. De vez em quando a gente discutia, mais pela convivência, que
por qualquer outro motivo. No final dos seus dias de trabalho conosco, seu salário já
estava muito defasado, pois pagávamos abaixo do mercado. Mesmo assim, ela
continuou me respeitando e fazendo minhas vontades. Permitindo, por exemplo, que
eu escolhesse minha roupa após cada banho e nunca me empurrando qualquer
uma.
Stéphanie deveria chegar às nove horas. Nove, dez, onze, às vezes até meio-
dia. Ela se atrasava, mas vinha. Chegava, dava um beijo e dizia bom dia.
No começo do nosso convívio, eu falava com ela o estritamente necessário, só
piscando. Mas a Stéphanie sempre se dirigia a mim com carinho. Um dia, ela estava
usando uma malha de botões, e um botão caiu e ficou numa dobra da malha.
Eu vi e tentei avisar. Avisar como? Sem falar e sem me mexer, foi aquela novela!
Depois de uns 15 minutos ela entendeu. Riu gostoso do meu esforço, que consistia
num par de olhos esbugalhados, fixados no botão caído e num monte de "hã", "hã"
aflitos! Parecia que ela trazia um escorpião na blusa!
Agradeceu, me deu um beijo e começou aí nossa amizade. Na verdade,
"baixei a guarda". Eu vivia com raiva do mundo, mas aprendi a aceitar o carinho das
pessoas. Aprendi com Stéphanie. A mesma que me dava banho e dizia:
- Se você acertar o que esqueci de fazer, te dou uma caixa de chocolate.
Eu pensava, pensava e fazia não com a cabeça, desistindo. Ela dava uma dica:
- Esqueci de fazer uma coisa que você sempre cobra e hoje esqueceu de me
avisar...
Com um olhar esperto, como dizendo "Ah, já sei!", e já com movimento no braço,
eu levava o dedo indicador ao dente, e ela dizia:
- Acertou! Esqueci de escovar seus dentes!
E na manhã seguinte, lá vinha Stéphanie com o chocolate. Assim, ela trazia um
pouco de graça a uma convivência que seria monótona. Ela me conhecia tão bem!
Conhecia todos os meus sinais em código, além de muitas vezes
simplesmente adivinhar o que eu queria. Ela me perguntava por exemplo:
- De que cor você quer o vestido?
Eu pensava: vermelho. Então eu procurava algo vermelho no quarto e apontava.
Stéphanie imediatamente dizia:
- Ah, vermelho!
Ou então eu apontava para a axila, e ela perguntava:
- Desodorante?
Se eu abria a boca, queria dizer água. Se eu passava a mão no rosto, perfume.
Esses e muitos outros sinais foram sendo criados durante nossa convivência para
agilizar a comunicação.
Com o passar dos anos, Stéphanie começou a chegar tarde todo dia, dava um
beijo de bom-dia e dizia:
- Hoje só vim te dar banho. Tenho que voltar correndo para casa.
Durante o banho, ela me contava entre lágrimas, do glaucoma avançado do pai.
- Ele não enxerga quase nada e deixei ele em casa sozinho. Tenho que voltar,
dar almoço para ele e pingar colírio no olho dele.
O tempo foi passando. Stéphanie era o alicerce forte de sua casa, assim como eu
fui o da minha, até ter o AVC... Surgiram alguns problemas familiares e ela se viu
obrigada a me deixar. Mas não me abandonou. Frequentemente ela vem me ver e
aproveita para me dar um banho. Sempre que preciso, como agora na cirurgia, e
sem que eu peça, ela se propõe a ficar comigo e a me cobrir de conforto. Assim é
Stéphanie, uma coisa boa no meio de tantas ruins... Um anjo da terra...

Dia 17 de setembro de 1996


Boa tarde, Juliana!
  Eu dizia que nunca minha pressão oscilava. Voltei da cirurgia, fui fazer terapia
na Fundação Selma, fiquei em pé e, de repente, tudo escureceu. Minha pressão caiu
muito, fiquei tonta, e logo me puseram deitada com as pernas para cima. Muito
tempo deitada dá nisso. Mais uma prova de que a terapia é essencial.
Estou ficando em pé todo dia, nem que sejam só 10 minutos, e passo quase o
dia inteiro sentada, como agora, só que escrever na cama é mais cômodo.
Atualmente, luto contra o fluxo sanguíneo que me "foge" da cabeça quando fico de
pé. O coração se habituou a bombear o sangue na horizontal, ou seja, deitada;
quando fico na vertical, o sangue "escapa" do cérebro. Preciso desses exercícios
porque quero um dia voltar a andar, mantenho essa esperança. Assim como
mantenho também o desejo de voltar a falar.
Quem tem tráqueo geralmente não fala, pois todo o ar sai pela traquéia. Ainda
no meu quarto de hospital, no Einstein, a tráqueo foi diminuindo, quer dizer, foram-
se efetuando as trocas de abertura da minha traquéia por anéis menores, e o buraco
da traqueotomia ia fechando. Eram 9 e foi decrescendo até chegar ao 1. Hoje restou
uma cicatriz horrível bem na base do pescoço, no conhecido gogó.
Entendo que, junto com meus movimentos, foi embora meu poder articulatório.
Como dizer vogais, dar um beijo, comer, ou dar um sorriso? Meu problema motor é
muito grande, nunca vai chegar perto do que era. A parte do cérebro que
alguns dizem ser responsável pela fala está intacta. Por outro lado, sabemos que é
impossível falar sem mexer a língua. É o meu caso.
No início, achava que algo, um não-sei-quê tecnológico, resolveria meu
problema, e explico por quê. Um dia, estava em casa, comendo, rindo e engasguei.
Tossia muito. Imediatamente, meu irmão bateu nas minhas costas. Desengasguei e
falei:
- Obrigada!
Nem sabia mais como se falava a palavra obrigada, mas falei! Super nítido, igual
a como se escreve... nada parecido com os sons distorcidos que a fono, com muito
esforço, arranca de mim. Como é possível alguém que é muda dizer, de
repente, obrigada? Desafio médicos e fonos a me darem uma
explicação convincente. Minha mudez foi traída por uma palavra.
Tudo o que se passa comigo procuro entender e, assim, já aprendi muito. Logo
eu, que nem sabia o que era uma sonda. Mas essa história do obrigada é um lance
que até hoje constitui mistério para mim. Foi tão rápido, mas, naqueles segundos,
eu podia ter falado qualquer coisa, e a primeira coisa que me veio à cabeça foi uma
palavra de agradecimento.
Por isso acho que temos que estudar mais e mais e descobrir como é possível
despertar a fala de um cérebro que sofreu um AVC. Que tem um cerebelo quase
totalmente destruído, mas que em uma confusão da respiração - engasgando, rindo,
e tossindo - conseguiu nitidamente emitir uma palavra. Pode ter sido uma
coincidência instantânea de sinapses, mas temos de descobrir como isso foi
possível. Afinal, nem mexo direito a língua. Como foi possível dizer obrigada? Como
utilizar 70 por cento do cérebro que está inativo? Ainda estamos engatinhando,
principalmente quando o assunto é cérebro...
Também notei que, além de não falar, minha risada gostosa tinha se
transformado em um grito estridente, horrível e assustador. No hospital não me
apavorei, porque achava mesmo que tudo era um sonho. Pouco a pouco fui
percebendo que ria diferente das outras pessoas: todo mundo ri "para fora", o ar sai
da boca em uma risada normal, e eu rio "para dentro", o ar entra na minha boca. O
som? É pior que o de uma gralha histérica! Essa é até uma parte cômica,
convenhamos, do riso, meu riso.
Meu irmão percebeu isso, e toda vez que a gente vai ao shopping ele começa a
contar piadas, eu rio, todo o mundo olha assustado e então eu rio mais ainda, mais
alto, sem parar. E quanto mais eu gargalho, mais as pessoas olham... e quanto mais
olham, mais eu gargalho... Meu irmão se diverte com isso, e rimos juntos pelo
shopping.
Um dia fui ao cinema ver Romeu e Julieta. Era uma versão nova, mas é lógico
que ambos morreram no final. Nisso, ouvimos alguém chorando. Caio, que estava
conosco, observou em alto som:
- Ué?! Já viu Romeu e Julieta com final feliz?
Pra quê? Comecei a rir no silêncio do cinema, todos olharam com aquela cara
de "O que é isso?", então ri mais e mais...
Ainda não me sinto à vontade com minha risada, procuro evitá-la racionalmente
pois, com um som tão feio, rir em público me mata de vergonha. Continuo rindo das
mesmas situações e fato, por isso hoje ainda evito tudo o que me leve ao riso:
shows de humoristas, comédias de teatro e filmes de humor. Quando vou ao
cinema, escolho antes o filme. Se é engraçado, não vou.
O melhor programa que fiz depois da trombose foi ter ido com Marcus e Héricles
ao Simba Safári, onde pude rir à vontade, sem sair do carro.
Foi uma tarde de domingo, bem ensolarada. Já de cara eu estava animada com
o passeio. Eu me imaginava dentro do carro do Héricles, com meu engraçado irmão,
absolutamente livre para rir como quisesse. Eles me enchiam de cuidados e diziam:
- Olha lá, Lu. Que engraçadinho aquele macaco!
O macaco engraçadinho veio no vidro do carro, na minha frente, e começou a
fazer graça. Eu ria com meu riso de hiena ferida. O macaco ouviu aquele som e
começou a guinchar, como se quisesse dialogar comigo. Héricles e meu irmão
caíam na risada e eu ria com mais força ainda. E os macaquinhos vieram todos para
cima do nosso carro. Foram instantes mágicos, pois eu me sentia conversando com
eles, brincando. Eu e os bichinhos nos entendemos ali, rimos, fizemos caretas,
sem medo, numa aproximação total. Senti que estava próxima a essência da
comunicação. Da comunicação primária, primitiva.
O riso vazava do nosso carro e chegava aos ouvidos dos passageiros do carro
ao lado, que olhavam assustados procurando a origem daqueles uivos. Ri da cara
assustada das pessoas ao ouvirem meu riso, ri da reação das pessoas diante do
desconhecido.
No começo achei, ingenuamente que, quando voltasse a falar, teria de novo
minha risada. Hoje sei que, se voltar a falar, nunca mais vou rir como antigamente.
Já vi gente com lesão cerebral rir feio, mas sou páreo duro para se vencer
um campeonato. Só não entendo por que... ainda. Sou persistente...

Dia 7 de outubro de 1996


Juliana, minha amiga!
  Tenho um tio que simplesmente adoro! Ele tem problemas cardíacos, é oito anos
mais velho que meu pai e irmão dele. Meu tio é muito engraçado, e lembro-me que,
antes de ter o AVC, dei gostosas gargalhadas com ele.
Eu estava no hospital, consciente, comunicando-me só com "sim e não", na
cama hospitalar, de tráqueo, sem andar, sem falar, de sonda, cabelos rapados,
vendo um pequeno pedaço do mundo pela janela e totalmente irreconhecível.
Estava nessas condições, quando vi meu tio querido diante de mim, naquele quarto.
Chorei. Pela primeira vez, depois da trombose, com lágrimas. Meu tio, que sempre
me fez rir, acabou sendo o responsável pela volta das minhas Lágrimas. E foi bom
chorar com lágrimas, me molhar com elas. Choro seco é estranho, é engasgado,
parece que fica pela metade...
Nesse mesmo dia, fui transferida de andar e de quarto. Criei laços de amizade
com aquele pessoal que fazia serviços no meu quarto, no décimo andar,
diariamente. Fiquei bastante tempo no hospital e me habituei com eles; e eles
comigo. Lamentei ficar longe da Bruna, da Mônica, da Andreia... que se tornaram
íntimas e torciam pela minha melhora.
Fizemos uma pequena mudança. Mamãe recolheu coisas como: termômetro,
cremes, gazes, escova de dentes. Despedimo-nos de todos e fomos para o quinto
andar. Foi a última vez que o seu Sílvio e o seu Milton me emprestavam suas
pernas.
O quinto andar era frio e impessoal. Não conhecíamos as enfermeiras, as
auxiliares, os fisioterapeutas... Mas seria por pouco tempo, a alta se aproximava. Na
minha concepção, o fim do pesadelo estava perto. Na verdade, estava
apenas começando. Ainda recebi algumas visitas amigáveis do pessoal do décimo
andar.
Mesmo no quinto andar, fazia constantemente fisioterapia. Ela havia entrado na
minha vida para nunca mais sair, mas eu não sabia. Alguns amigos assistiam sem
cerimônia às sessões de fisioterapia. Entre eles, lembro-me do meu irmão e do
Lucas.
Um dia entrou um terapeuta no meu quarto, e logo pensei:
"Esse cara é gay!". Olhei para Lucas, e ele para mim, e caímos na risada. Eu
conhecia Lucas tão bem e sabia que ele tinha pensado a mesma coisa, tão rápido
quanto eu. Por poucos minutos rimos da nossa gostosa cumplicidade. Por um
momento, e nunca mais. O Lucas, por quem me apaixonei e namorei três anos,
morreu junto com a garota que ele namorou, em maio de 94. Ele não existe mais.
Procuro o cara que demonstrava carinho e atração por mim, mas não o encontro
mais.
Olho para minha imagem refletida no espelho. Como quero despertar interesse,
carinho e atenção? Despertar pena talvez seja mais humano. Lucas e todos os
meus ex-namorados só me tratam com igual atração nos meus sonhos...
Quarta-feira, dia 6 de abril de 1994, foi o último dia em que fiz amor de verdade e
guardo lembranças garantidamente boas, pois me vi nos braços de um homem que,
como amante, nunca me decepcionou: Lucas. Acho que essa é a evidência
mais forte. Apesar de não namorá-lo mais, de estar tentando viver outro
relacionamento, era só Lucas me chamar que eu ia. E ele me chamava.
Nosso encontro foi cheio de coincidências: foi em um dia 6 que começamos a
namorar, e em um dia 6 ele me teve pela última vez. Fiquei fazendo comentários
fúnebres, imaginando como seria meu enterro... não pensava que, em menos de um
mês, quase perderia a vida, de verdade. Apesar de estar envolvida com Cristian,
como me sentia bem e feliz em fazer amor ou só de estar perto do Lucas!... Pena
que ele nunca falou em voltarmos a namorar.
Pensando no AVC, ainda bem que nunca mais esse assunto veio à pauta. Seria
uma barra pesada demais para Lucas segurar e, para mim, seria uma decepção.
Talvez já fosse tarde demais.
Talvez tenha sido melhor assim. Hoje, aparentemente, somos amigos. Exceto
por um pensamento que me assola e não me deixa à vontade diante de Lucas: acho
que ele tem mais a ver com o que aconteceu comigo do que aparenta.
O que ele demonstra? Nada. Nem parece que um conjunto de fatores me levou
à trombose. Nem parece que a pílula foi um deles. Nem parece que Lucas, de certo
modo, incentivou essa decisão. Nem parece que ele me estimulou a mentir.
Tudo aconteceu para mim como se fosse pouco ficar tetraplégica e muda.
Atualmente, ele vem me ver uma vez por mês. Daqui a um tempo suas visitas
serão semestrais ou anuais. Será que é assim tão fácil continuar com a própria vida
e de vez em quando visitar a ex-namorada, tetraplégica e muda? Ou será que,
embora não demonstre, ele sofre com isso?
Você pode estar pensando: com tamanha desgraça, o que o tal Lucas pode
fazer? Pensando na minha atual situação, realmente, ele não pode me tirar dessa. E
sei que, se pudesse, ele o faria. Não peço muito, só um pouco mais
de companheirismo.
Uma noite, meu pai e Héricles estavam comigo no quarto do quinto andar, e
precisei ser trocada. Duas enfermeiras vieram trocar minha fralda, enquanto o meu
pai e Héricles ficaram esperando do lado de fora do quarto. Na manipulação, senti
que as enfermeiras forçavam sem querer a saída da tráqueo, que estava folgada
porque tinha sido diminuída naquele dia. Era a traqueotomia de número 1. Eu sentia
que estava saindo, mas como é que ia avisar? Saiu. As enfermeiras tentavam
colocá-la de novo, sem sucesso. Meu pai e Héricles entraram no quarto, e viram,
exposto, um buraco nojento na minha traquéia.
Um médico da UTI lindo, por sinal - veio em meu socorro. Ele ligou para a
médica responsável pelas trocas de traqueotomia, e decidiram tirar de vez. Eu ia
voltar a ficar com a traquéia fechada. O médico fez um curativo, que deu origem a
essa cicatriz horrível que carrego comigo. Mas fiquei tão feliz!... Acho que nunca
senti tamanha felicidade. De faceto. isso significava que eu ia sem tráqueo para
casa, mas, para mim, representava o fim próximo de um pesadelo simplesmente
monstruoso: minha vida.

Dia 9 de outubro de 1996


Querida amiga,
Parecia que eu ia receber alta. Logo iria para casa. Para mim, nada me tirava
da cabeça que eu iria brevemente acordar e pôr um fim naquele sonho mau. Estava
elétrica e radiante.
É bem verdade que dei entrada no Einstein inconsciente, cheia de aparelhos e
beirando a morte; agora eu tinha sobrevivido, é faceto. Mas ganhei de presente uma
vida de sofrimentos, frustrações e renúncias. Era isso ou a morte. O que você
escolheria? O que você acha menos penoso? Por que temer um fim inevitável?
Cedo ou tarde todos nós vamos morrer. Eu temia muito a morte na adolescência e
cheguei a registrar esse temor:
  Ontem morreu uma irmã de mamãe, Tia Emilia.
Que vida ingrata, não? Ela era frágil, cheia de fé em Deus e preocupada com as
pessoas. Viveu com problemas de saúde, desde que nasceu até ontem.
Sentirei saudade... sentia-me feliz com ela e sabia que ela me adorava.
Dificilmente sorria, mas muitas vezes a vi chorar. Foi uma sofredora... Estou
inconsolável...
Já chorei um monte, O que acontece com quem morre? Para onde vão? Onde
ficam? Sei que a única certeza da vida é a morte, mas ninguém a aceita. Descobri
que tenho medo de morrer... Por que Deus leva embora as pessoas que amamos?
Por que não nos ajuda a viver mais e mais, com alegria e saúde? Por quê?
O futuro me angustia porque ele contém a minha morte. Uma vez que o homem
nasceu, já é bastante velho para morrer. Não se possui realmente senão aquilo que
se pode esperar. Eu já estou morta, uma vez que devo morrer.
Hoje não temo mais a morte, ela tornou-se uma idéia simplesmente natural para
mim. Talvez por ter estado diante dela, talvez por achar que muito sofrimento não
vale a pena.
Mesmo nessas condições tão precárias, eu ia receber alta. Certamente eu não
estava ganhando nada com essas experiências médicas, pelo menos achava isso.
Mas na minha ilusão eu estava feliz. Minha alta representava o fim de um pesadelo
com fraldas, sonda, fisioterapia, enfermeiras, médicos, exames, traqueotomia,
inalações, raios X... Nem imaginava que esse pesadelo, de faceto, estava só
começando.
No dia planejado para eu receber alta, nem dormi à noite, de tanta emoção.
Papai e mamãe apareceram cedo. Mamãe me colocou uma camisolinha de flanela,
de manga comprida, xadrez, vermelha e azul. Finalmente demos adeus aos
camisolões de hospital. A camisola xadrez era comprida, para não mostrar a fralda.
Alguns médicos vieram se despedir, eram muitos, uns 13.
Eu, sem filar, somente ria amigavelmente. A única coisa que me importava é que
logo iria para casa. Naquela época eu não pensava direito no horror em que os
médicos tinham transformado minha vida.
As coisas estavam nesse pé, quando o doutor Décio ligou.
Ele e o doutor Clóvis tinham decidido que eu passaria mais um dia no hospital. A
alta tinha sido adiada por um dia.
Caí no choro. Desesperadamente eu queria pôr um fim naquele sonho
monstruoso. Na minha teoria, eu estava dormindo em casa e, logicamente,
precisava estar lá para acordar. Lá eu acordaria e aquele sonho ruim ia chegar ao
fim. Mas não teve jeito, por mais que eu chorasse. Outro dia no hospital ia
ser inevitável. Se pudesse, gritaria, xingaria, espernearia, mas, como não podia
fazer essas coisas, traduzia toda minha raiva em pranto. Coisa que faço até hoje.
Na minha doce ignorância, queria voltar ao meu mundo o mais cedo possível e
pensava que um dia de hospital não representaria uma melhora. Troquei de roupa e
voltei aos tão familiares camisolões. A alta ficou para o dia seguinte.
Um novo dia chegou, e novamente papai e mamãe vieram cedo. Pus de novo a
camisola xadrez. Chegou a hora de pagar ao hospital... Meu seguro-saúde, que foi
introduzido pela Colgate, pagou todas as despesas do hospital. Quando
vejo propaganda de planos de saúde na TV, penso em como o seguro que eu tinha
me deixou satisfeita. Sem ironia.
Mas o seguro-saúde não pagou os médicos. O seguro até tentou realizar o
pagamento deles, mas eles fizeram um orçamento baseado em milhares de dólares,
acima de qualquer tabela. A seguradora se recusou e não pagou. Minha família, que
nunca foi de posses, viu-se em uma cilada... pagar aos médicos como? Saí dessa
situação como caloteira. Os médicos nunca foram pagos. Minha família havia
deixado claro que o pagamento deles estava nas mãos do meu seguro-saúde.
A seguradora se recusou e minha família não tinha infra-estrutura para arcar com
essa despesa.
Meses depois de eu ter recebido alta e estar em casa, alguns médicos que
trataram de mim no Einstein entraram com uma ação contra meus pais. Se nós
tivéssemos a quantia que eles pediram, teríamos pago, mas de onde arrumar?
Definitivamente, nós não tínhamos dinheiro, nem propriedades, portanto, essa ação
durou mais alguns meses e não deu em nada. Cretinice.
Enfim, o seguro fez uma proposta de pagamento, muito inferior à exorbitância
que eles tinham pedido. Os médicos não aceitaram e acabaram ficando sem um
tostão. O seguro pagou a conta do hospital, e não foi barato.
Bom, mas no dia da alta, criou-se um dilema: como eu iria embora para casa?
Lucas me fazia uma perfeita tetraplégica, muda e doente, recém-saída de um
hospital. Insistiu muito para eu voltar para casa de ambulância. Quanto a mim,
queria parecer o mais normal possível. Só tinha uma certeza: já estava cheia de
hospital. Queria sair de lá de carro. Mesmo sem fala, consegui impor minha vontade
e saí do hospital de carro. Voltei no carro do Héricles, pois Lucas era incapaz desse
gesto. Também estavam a Linda e a Vera, que foram para minha casa seguindo
Héricles no carro delas.
Assim, deixei a minha vida de hospital, que começou no dia 2 de maio e acabou
no dia 14 de julho de 1994. Esperei ansiosamente o fim daquele pesadelo, que
nunca veio.
Nada era sonho, nunca foi sonho...

Segunda Parte

UMA VIDA PARTIDA

Dia 15 de outubro de 1996


Querida Ju,
Chegando em casa, fiquei tão feliz! Aquele era meu lugar, que me viu saindo,
chegando, recebendo namorados, dando festas, telefonando, comendo, bebendo,
rindo, brigando... Minha casa, meu cantinho. Chorei de felicidade quando entrei e
também chorei ao ver meu carro: meu querido Uninho. Companheiro de tantas
farras! Quantas vezes fui passear e dançar com a Bia!
Quantos namorados carreguei lá dentro! Quantas vezes dirigi tendo Lucas ou
Cristian ao meu lado! Da faculdade ao CEPE-USP, aos cursos e ao trabalho, ele me
carregou fielmente. Um carro, vermelho, lindo, exatamente como o deixei... Um
simples objeto? Aquele bem material lembrava um pedaço de mim. Aquilo que eu
gostava de recordar, e sabia que não existiria mais. Olhei para meu Uninho e vi que
nem dirigi-lo podia. Tão perto e tão longe.
Fui carregada para o sofá da sala, e mamãe fez um espaguete. Animei-me com
o antigo aroma do molho. Eu ainda comia através de sonda, mas arrisquei umas
garfadas daquela delícia. Qual não foi minha surpresa ao perceber que eu
não conseguia nem engolir os pedaços pequenos de massa que me
eram oferecidos. Aprendi que com água ficava mais fácil. E assim foi. Comi
macarrão com muita água. Hoje já consigo engolir pedaços pequenos de espaguete,
mas mastigar está além das minhas capacidades.
Sonho com uma picanha mal passada. É um desejo simples, mas acho que
nunca mais vou a uma churrascaria matar minha vontade. Engolir carne, além de
indigesto, não tem sabor... Fico imaginando uma deliciosa picanha, do jeitinho que
gosto, mal passada, suculenta, sangrenta... Hum... Comer prazerosamente...
As vizinhas logo vieram me ver, animadas, as mesmas que se reuniram para
promover, posteriormente, um bingo numa igreja vizinha para angariar fundos e
ajudar no meu tratamento. Depois fui carregada para a parte de cima da casa, para
meu cantinho.
Meu quarto estava irreconhecível, assim como a dona. No lugar do carpete, um
plástico laranja cobria tudo, protegendo meus pulmões do pó. A minha cama não era
mais a mesma. Era uma cama hospitalar super alta, para ser mais fácil mexerem
comigo, me trocarem ou me virarem de noite.
No meu criado-mudo existia um inalador (eu fazia inalações diárias; hoje não
faço mais). Do lado da cama, um suporte para a alimentação por sonda e eventuais
soros. Na cozinha, uma porção de latinhas de comida líquida, que o marido da
Gracita deu. Também havia uma paupérrima cadeira de rodas e um aspirador de
traqueotomia que nunca foi usado. Tive de ir me adaptando a esse novo cenário.
A cama, o suporte, o inalador, o aspirador e a cadeira de rodas foram doações
da Colgate.
A Colgate é realmente uma ótima empresa, desde que você se encaixe num
modelo capitalista e não cause problemas sociais. Aliás, como todas as empresas, é
claro. A empresa oferece almoços, festas, sorteios, cursos, coquetéis e prêmios.
Também me deu a oportunidade de conhecer muita gente inteligente. Mas uma
tragédia aconteceu, e ninguém está livre disso. O RH (Recursos Humanos) da
Colgate disse um dia para meu pai:
- A Colgate não é mãe da sua filha.
Essa frase traduz bem o comportamento que a empresa adotou diante do meu
AVC.
Recentemente, conheci um rapaz tetraplégico, do tipo que não se move, mas
fala: António. Já o mencionei antes. Ele está empregado na mesma empresa em
que trabalhava antes de ficar tetraplégico. Ainda contrataram um ajudante para ele.
Acredito que seja difícil eu sonhar com essa possibilidade. Quando cheguei em
casa, nos primeiros dias, senti uma grande saudade do meu trabalho, mas já estava
ficando claro que voltar a trabalhar seria um obstáculo quase intransponível.
Pouco tempo depois que entrei na Colgate, procurei fazer pós-graduação, pois
tinha acabado a faculdade e odiava ficar parada. Um amigo recomendou-me a
Fundação Vanzolini. Era particular, com um curso de dois anos e matérias optativas.
Direcionei meu curso para Controle de Qualidade e ISO 9000.
Na Colgate, fui falar com meu chefe, Clinton, porque a empresa, de hábito,
pagava integralmente cursos de pós-graduação. Para a Colgate não seria nada, mas
para mim seria um grande alívio financeiro. Clinton pareceu empolgado, mas era
uma decisão que não dependia dele. Quem tinha que aceitar minha proposta, e
pagar minha pós-graduação em troca do meu aperfeiçoamento na área em que eu
atuava, era o chefe dele, Flavino.
Preenchi um requerimento de bolsa de estudos e aguardei ansiosa uma
resposta. A notícia veio alguns dias depois: o pedido foi indeferido. Decidi fazer a
pós-graduação por conta própria.
Desde os 22 anos, a empresa força a minha aposentadoria. Agora, com 25 anos,
ainda não estou aposentada, mas é uma coisa que está próxima. Primeiro a
companhia quis me tirar o seguro-saúde. Hoje, depois da insistência do meu pai,
consegui um seguro muito inferior ao que tinha, e é graças a ele que minhas
fisioterapias são pagas. Realmente meus pais não têm condições financeiras pra
arcar com despesas médicas, terapêuticas e laboratoriais. Depois que for desligada
desse seguro-saúde, onde vão aceitar uma tetraplégica muda num dos tantos
planos de saúde que existem? Estou convencida de que seguros são feitos para
pessoas saudáveis. Eu, desfilando de cadeira de rodas, sou mais malvista que as
pessoas idosas. Estar ainda ligada à Colgate é um porto seguro, pois ainda tenho
garantidas as fisioterapias, hospitais, exames e médicos. E depois? Perco tudo
isso...
Para a Colgate, sem dúvida, eu os deixo em posição desconfortável. Ansiosa por
livrar-se o quanto antes desse estorvo, impôs uma condição: só paga meu seguro de
vida se eu estiver aposentada e interditada. Hoje estou interditada, mas a interdição,
na verdade, nada tem a ver com a Colgate. Nesse processo jurídico, estabeleceu-se
que eu não respondo mais pelos meus direitos civis. É difícil de entender? Nem
tanto.
Eu não assino nada, não tenho conta em banco, praticamente não respondo
por mim. Existe uma pessoa que controla tudo que é meu, um curador. No caso, eu
não poderia ter um curador melhor, meu curador é meu pai. Nem eu mesma teria
tamanho zelo para com meus bens. Mas a interdição foi feita para facilitar, devido
aos meus limites físicos. Como o Governo me paga mensalmente uma coisa
chamada licença-saúde, eu não preciso ir receber isso pessoalmente pois meu pai,
que é meu curador, recebe essa quantia, vai ao banco depositar, faz tudo por mim.
Eu ainda sou funcionária da Colgate, apesar de não trabalhar mais e não
receber um tostão da empresa. Ela não pode me demitir, pois eu era uma
funcionária ativa que ficou doente. Quando acontece uma situação assim, o
trabalhador, ausente do trabalho, recebe a licença-saúde do Governo até voltar a
trabalhar ou até ser aposentado. No meu caso, vou ser aposentada e só então me
desligarei totalmente da Colgate. A partir disso, vou receber do Governo uma
aposentadoria mensal, como todo aposentado. Eu ainda sou uma funcionária da
Colgate e, nessa condição, tenho um seguro-saúde empresarial
comumente conhecido por plano de saúde, além do seguro de vida que fiz ao entrar
lá. O seguro de vida deveria ser pago em caso de morte ou, como é meu caso,
invalidez permanente. Mas até a data de hoje o pagamento desse seguro não foi
efetuado. A Colgate disse várias vezes ao meu pai que eu só receberia o seguro de
vida se eu estivesse interditada e aposentada. Um dia a Colgate nos entregou uma
carta da seguradora confirmando essa condição.
Não entendo. Outros seguros de vida são pagos sem essas exigências. Estou
interditada, mas evito me aposentar para não perder o seguro-saúde e,
consequentemente, o pagamento das terapias que me sustentam psíquica e
fisicamente. Sem isso, como pagá-las? Estou preocupada porque perco o seguro-
saúde empresarial, que me foi tão útil e ainda paga parte da fisioterapia. A terapia
tornou-se vital, pois, além de representar uma remota esperança de voltar a andar,
não me deixa atrofiar. Sem movimento, os músculos se atrofiam; também os
tendões, os nervos e até os ossos. Vejo-me numa cilada:
Quando for aposentada, quem vai pagar as terapias, se minha família gastou até
o que não tinha comigo?
Também logo conheci a Previdência Social, o INSS. Fui fazer uma visita médica
e fiquei surpresa ao ser atendida por um médico que era pai de uma amiga de
faculdade. Recebi um ano de prazo para voltar lá e depois, eventualmente,
ser aposentada. Voltei ao INSS mais duas vezes. Sempre recebendo um ano de
licença-saúde. Ainda não me aposentei, mas vou voltar em julho de 1997.
Meu primeiro dia em casa passou rápido, com muita gente à minha volta e uma
certa confusão para todos se adaptarem ao meu retorno.
À noite, deitada na nova cama, mas sentindo o aroma de meu quarto, percebi
que o pesadelo não se desfez e caí numa profunda depressão. Não era sonho, era
realidade mesmo. Minha casa não era a mesma, estava pronta para me receber de
uma maneira diferente da costumeira. Eu estava diferente.

Dia 16 de outubro de 1996


Bom dia, amigona!
No dia seguinte à volta para casa, comi uma sopa de batatas e vomitei. Com
a comida, veio junto o tubinho que estava preso no nariz e ia até o estômago: a
sonda. Lembrei da dor que senti cada vez que tiveram de repô-la. Diante
daquela situação, olhei para meus pais e balancei a cabeça desesperada e
negativamente. Sem fala, era o máximo que eu podia fazer. Queria dizer:
- Outra sonda, não! Pelo amor de Deus, chega desse treco!
Meus pais, comovidos com minha dor, consentiram em não por uma nova sonda,
mas levantaram uma questão: e os remédios?
Com a sonda, os comprimidos eram diluídos, injetados no tubinho e iam direto
para o estômago, deixando minha língua Livre do contacto com os comprimidos.
Aliás, essa foi a única vantagem que achei na sonda. Experimentamos então, diluir
os comprimidos no leite e tentar com uma seringa. Tortura pura. A solução foi
comprar um triturador de comprimidos: também conhecido por "almofariz". Três
vezes ao dia, mamãe transformava aqueles horríveis comprimidos em pó e
misturava-o a um delicioso creme de chocolate que ela fazia. Comi creme com
remédio, diariamente, três vezes ao dia. Até enjoei, por um tempo, de creme de
chocolate.
Minha mãe é uma ótima cozinheira. Daquelas que atraem o mundo com o aroma
de seus temperos. Minha mãe é minha...
Ainda me lembro da minha mãe fazendo um ditado de mil palavras quando eu
estava aprendendo a escrever. E descendo comigo a rua de casa, para pegar um
ônibus, de manhãzinha, para ir à escola... Dói profundamente, no meu coração,
olhar, hoje, para as centenas de apostilas, dezenas de cadernos e livros, milhares
de exercícios e provas que guardei. Poderia estar escrito numa delas que eu teria
que sofrer esta e tantas outras dores. E poderia poupar minha mãe desta dor...
Mamãe sempre foi muito companheira, muito amiga... eu nem suspeitava
quanto.
Lembro-me das doces manhãs da minha adolescência, das sextas-feiras:
mamãe saía cedinho para ir à feira. Cedinho mesmo, lá pelas seis da manhã, o que
mostra a disposição dessa guerreira. Nunca foi acomodada, nunca deixou seus
afazeres para a última hora, O que devia ser feito, ela fazia logo.
Enquanto ela saía para a feira, eu ficava dormindo e só acordava com o barulho
do carrinho de feira avançando no quintal. Eu curtia uns momentos de preguiça na
cama e levantava ao ouvir sua voz ao lado da minha cama:
- Ciana, trouxe pastel quentinho do jeito que você gosta. Vai, levanta!
Mamãe era assim... Não era melada, não distribuía beijinhos, mas vivia
demonstrando que sua família não lhe saía do pensamento e do foco de sua vida.
Enquanto eu comia o pastel, na cozinha, ela dizia:
- Vi um brinquinho na feira, na banca da Mercedes, que é uma graça. Comprei
pra você. - E tirando o brinco da bolsa: - Você gostou?
Eu via e fazia que sim com a cabeça, sem dar muita importância, sem pensar
muito no seu jeito ímpar de mostrar amor. Durante 22 anos foi assim. Eu mantinha
um relacionamento bem afetuoso com meu pai, cheio de beijos e abraços, e
esse relacionamento distante com minha mãe. As vezes, eu e ela brigávamos feio,
e, no calor da discussão, eu gritava:
- Você tem inveja de mim! Eu não preciso de você! Você é quem precisa de mim!
Nossa, quanta bobagem eu disse. Como a gente fala besteiras na hora dos
enfrentamentos... Ah, é? Eu não precisava dela? Sei... Com meu AVC minha mãe
mostrou o que ela sempre foi e eu não estava disposta a ver: uma
pessoa simplesmente incrível.
Hoje ela me chama de "chuchu", me faz companhia no meu silêncio, me enche
de beijinhos, fala por mim, me defende, me alimenta... cuida de mim 25 horas por
dia. Não existem palavras no mundo que traduzam o que essa mulher
representa para mim. Somos mais que mãe e filha. Nosso grau de intimidade é tão
grande que ela sabe que algo está errado comigo só de bater o olho, e pergunta:
- Tudo bem, Chuchu?
Sobre minha mãe eu poderia escrever um livro todo, e nem assim eu transmitiria
a dimensão do nosso amor.
Quando voltei para casa, eu me propunha a comer tudo o que me viesse pela
frente, principalmente as delícias que mamãe fazia. Algumas coisas se tornaram
difíceis de engolir, mas eu aprendi a evitá-las com o tempo. Os remédios?
Definitivamente, foram um obstáculo que superei com o passar dos anos. Eu
tomava quatro comprimidos fortes. Um pior que o outro. Tinha até um que deixava a
língua dormente. Hoje tomo três, mais fracos.
Uma vez, mamãe sugeriu que eu tentasse engolir os comprimidos inteiros. Como
não mexo a língua, os remédios eram colocados bem no fundo da boca, perto da
garganta... Um gole de água e, um a um, engoli os quatro comprimidos. Foi assim,
e continuo a tomar remédio dessa forma até hoje. Frequentemente, acontece de eu
engasgar. Até com saliva eu engasgo. É uma coisa que geralmente ocorre com
líquidos. Já reparei que não posso inspirar quando estou engolindo água, leite,
suco, sopa... Mas não consigo prender a respiração, então, uma inspiração é
inevitável, engasgo e vem um acesso de tosse. Até já esqueci o que é beber sem
tossir.
Viu como estou diferente? Em mutação, minha querida amiga...

Dia 19 de outubro de 1996


Oi (apenas oi).
Nos primeiros meses da minha volta do hospital, minha casa ainda ficava
cheia de gente. Muitos queriam me ver, por mórbida curiosidade; já os mais
chegados pareciam querer me impedir de tomar contacto com minha nova realidade,
me poupar de sofrimentos talvez. Vizinhos, parentes, Cléber, amigos da Colgate,
Pat, amigos do meu irmão, do Cristian, Héricles, Lucas, colegas de faculdade...
Tanta gente! Pessoas que até me deixaram surpresa com sua presença. E eu
repetia comigo mesma:
"É incrível como notícia ruim se espalha."
Walter foi uma das pessoas que me surpreendeu com sua visita. Foi meu
namorado quando eu tinha 14 anos e se tornou inesquecível.
O Walter (um carinha de 17 anos, musculoso, de São José dos Campos, que a
Verônica estava paquerando) começou a dançar com uma garota no baile, e,
quando dei por mim, estava morta de ciúmes.
Depois ele veio e tirou a Verônica para dançar. Mal consegui disfarçar minha
inveja.
Daqui apouco, lá veio ele e finalmente me tirou para dançar - Dançar música
lenta com o Walter é ótimo. Ele é super atraente. Abraça com um jeito
confortabilíssimo... flutuei nas nuvens e quase desmaiei. Depois que paramos
de dançar, ele me olhou e falou que eu era a garota que melhor dançava.
Acho que estou gostando do Walter. É isso aí. Não sei como.
A Verônica já foi embora, mas antes que deixasse o chalé falei que estava
gostando do paquera dela e... Tudo bem, ela me deu a maior força.
Fui alguns dias para São Paulo e senti muita falta do Walter. Voltei hoje para
Caraguá. Acabei de vê-lo: lindo, atraente... Só que ele está namorando. Mas o
namoro dele vai mais ou menos. Tenho muitas chances.
O olhar dele é um mel lindo, e ele é o dobro. Já faz um mês que ele me deu a
sua correntinha. Eu não tiro de jeito nenhum. Se um dia ele me pedir em namoro, eu
aceito correndo.
O Ano Novo foi lindo. Fomos eu e a turma toda para a praia. O Walter foi sem a
namorada e jogou champanhe em mim. Encontrei um carinha de 20 anos, que me
pediu em namoro, mas eu dei o maior fora nele. Eu gosto do Walter.
Ontem à noite eu estava vindo para casa sozinha com Walter, conversando. Na
conversa, eu perguntei de quem ele gostava, pois ele não está mais namorando.
Lógico que foi uma indireta que deu certo. Ele olhou para mim e disse:
- Luciana, sua bobinha.
Paramos no meio do caminho e nos beijamos. Ai, ai...
Ele hoje apareceu de manhã, para irmos à praia. De tarde, para irmos jogar vôlei
com a turma. E, daqui apouco, vem me buscar para irmos aos prédios, onde está o
pessoal.
Ficamos juntos, conversamos, nos beijamos e nos abraçamos. O Walter é uma
gracinha; eu adoro ele e ele diz que me adora. Acredito nisso.
 Esses namoros adolescentes são a melhor coisa do mundo! Tudo tão simples,
um mundo tão assentado nas nuvens... Creio que brigamos só uma vez. As brigas
eram sempre bobas, tão inocentes quanto os namoros dessa idade. Um dia, à
tarde, fomos todos a um jogo de vôlei. Walter sempre jogava, mas, como eu não
gostava, ficava só assistindo. Binho, um amigo nosso, ficou ao meu lado na platéia,
conversando comigo, e Walter ficou morto de ciúmes.
Fui embora antes de o jogo acabar e, à noite, fui até o chalé dele, pois a gente ia
telefonar para a Verônica. Era aniversário dela. Mal chego lá, encontro um amigo do
Walter. Ao cumprimentá-lo, Walter sai do chalé e me vê conversando com seu
amigo. Ele ficou furioso e nem me disse um simples oi. Depois de telefonarmos,
fomos para a praia, onde o pessoal fazia fogueira e tocava violão. Ficamos um
tempão em pé. Até que perguntei:
- Walter, eu te fiz alguma coisa?
- Não!
E de novo o silêncio. Ele se sentou, e eu chorei de raiva. Quando ele percebeu,
me puxou e começou a afagar meus cabelos. Eu encostei no braço dele e chorei
mais ainda. Ele começou a explicar seus motivos.
Depois de tudo dito, nos abraçamos e uma emoção super forte me invadiu. Ele
disse que me amava. Nós nos beijamos, e uma linda Lua refletia um mar de prata.
No final, não passamos mais do que cinco minutos brigados. Fazer as pazes foi uma
prova do afeto que temos um pelo outro.
Só sei que quando esse meu namoro acabar, devido à distância, vou sempre me
lembrar de uma das fases mais gostosas da minha vida.
 Foi um namoro de verão, de verão adolescente, com Sol, com estrelas, com
beijos e afagos, com gosto de céu e de sal... Um céu azul, sem nuvens pra gente se
preocupar.
Azul.... Lembro-me de que Lucas me pediu um dia a pedra que havia me dado,
romanticamente, num Dia dos Namorados. No Dia dos Namorados de 1991, eu
queria dar o mundo de presente para Lucas. Em vez disso, dei uma camisa de seda
e um jeans de marca. Saímos e, na "nossa casinha", trocamos os presentes.
Primeiro ele me deu um papel com a frase de uma canção em inglês:
- Espero que você não se incomode de eu pôr em palavras quão maravilhosa é a
vida se você está no mundo.
Chorei ao ler.... Depois ele me deu um topázio azul, da cor dos olhos dele. Não
tinha muita utilidade, mas, apaixonada como estava, achava tudo o máximo. Há dois
meses, ele pediu a pedra de volta, dizendo que ia mandar fazer uma
gargantilha com ela. E fez, O colar, realmente, é uma bonita jóia, e numa data mais
importante eu o coloco. Recebi educadamente o cordão. Mas que valor ele adquiria
perto do que eu tinha, durante anos, esperado? Quase nenhum. Desde que ganhei
a pedra, esperei, ansiosamente, vê-la transformada pelo Lucas, numa gargantilha.
Esse gesto afetuoso nunca veio. Se eu não tivesse tido o AVC, certamente nunca o
teria ganho. Representava um prêmio de consolação, não o amor que esperei tanto
tempo. Seria melhor não tê-lo.
Nunca expus minhas idéias, meus sentimentos reais... Hoje percebo como deixei
passar coisas, driblei sentimentos e emoções, evitei deparar com mágoas e
dissabores. No mundo que a gente vive, parece que todos são assim. Nada fica
muito claro, tudo pode ser adiado...
No fundo, bem no fundinho mesmo, durante todo o tempo em que convivi com
Lucas, eu poderia ter desconfiado que existia algo de errado nesse relacionamento,
que minha família tinha razão, que eu estava dando muito mais amor que
recebendo. Quero hoje acreditar que em algum lugar do meu ser habitava essa
desconfiança, mas eu nem pensava nisso, nem poderia imaginar algum tipo de
desigualdade em nossos laços afetivos. Eu não queria imaginar. E se eu sabia
disso... eu não queria admitir.
Com muita coisa na vida, a gente age assim. Como se estivéssemos nos
defendendo de nós mesmos, dos nossos próprios pensamentos. Somos capazes de
convivermos anos e anos com uma pessoa qualquer e deixar nos enganar por
aparências, palavras, gestos. Nós nos iludimos, nos machucamos; mas algumas
vezes podemos evitar isso. Deveríamos mergulhar profundamente no âmago do
outro ser. Seja ele um namorado, um marido, uma amiga, um colega, sei lá... Isso
nos pouparia decepções, muitas vezes dolorosas.
Eu nem sempre pensei assim e vejo que é absolutamente verdadeira e sábia a
conhecida frase: "O essencial é invisível aos olhos, é preciso buscar com o coração".
Hoje me olho no espelho, lembro-me de como as pessoas se encantavam pelo o
que eu demonstrava ser e tenho certeza de que essa casca que ostentamos não
passa disto: uma casca frágil, uma folha seca que pode se despedaçar. É preciso ir
além. Observando mais atentamente as pessoas, procuro ir mais profundo que
as aparências e reflito muito sobre todos que se aproximam de mim. Eu nem sempre
refletia, ia deixando a vida seguir seu fluxo e não me preocupava se eu estava me
iludindo ou não, se eu estava me mascarando ou não para os outros.
Quantas decepções, quanta dor teria sido evitada. Não me refiro apenas ao
Lucas, mas quantas vezes deixamos de olhar o outro, quantas vezes nos
enganamos com o próximo e pensamos: "Que decepção! Fulano se revelou uma
pessoa que eu não conhecia!".
Quem sou eu para dizer como evitar isso? Hoje, apenas uma essência, porque a
casca se foi, se desmanchou no ar... Mas tenho certeza de que a alma é mais
verdadeira que as imagens que carregamos, que as atitudes são mais sinceras
que as palavras, muitas vezes enganosas. A reflexão nos leva ao caminho da
autenticidade.
Se falo assim, é porque só com este livro tive a oportunidade de mostrar tudo o
que fui obrigada a calar, mas não a pensar. Eu me sinto falando o que, por anos,
carreguei entalado na garganta. Essa é também a minha voz do passado. Enfim, e a
que preço, minha verdadeira voz é quem fala. Porque, se o corpo está mudo, as
palavras não estão. É por isso que acredito que elas se farão ouvir. Como o
"obrigada", que ultrapassou o AVC, saiu pela boca afora e ecoou no ar.
Dia 20 de outubro de 1996
Boa tarde, Juju!
Durante algum tempo tomei consciência de que todo o caos instalado na
minha família, aparentemente, só tinha uma culpada: eu. Criou-se então uma
situação antipática muito subtil. Se era difícil para a família aceitar uma
gravidez indesejada, caí numa situação muito pior. Eu fumava e tomava pílulas
escondida dos meus pais. Vida dupla? Talvez. Mas não vejo como tal. Só sei que
tive uma convulsão e fui parar num hospital. Pronto, todo o meu esquema de
mentiras foi por água abaixo, e meus pais descobriram tudo na minha bolsa.
Sempre fui firme nas decisões. Sempre confiei em mim. É exatamente por isso
que me pergunto por que não confiei mais em meus conhecimentos de
farmacêutica. Sinto-me ainda culpada por isso. Todo o mundo vivia repetindo:
- Não tome medicamento sem antes consultar um médico.
Como farmacêutica, sei que essa frase é verdadeira; também, como uma pessoa
instruída, eu sabia disso. É claro que sabia também que há médicos e médicos. O
cigarro e a pílula anticoncepcional, juntos, provocaram a trombose, e nem por meio
segundo fui alertada. Devia ter confiado menos na médica e mais em mim.
Quádruplo azar: muda, tetraplégica, desmascarada e ainda carrego o peso de
saber que foi a pílula um dos fortes fatores do meu acidente. Tem gente que diz que
é o único.
Comecei a pensar... De faceto. Desestruturei minha família, o que já foi um
enorme castigo. Faz parte do meu caráter pensar muito no meu pai, na minha mãe e
no meu irmão, e não ter, absolutamente, nenhum apego ao dinheiro. Não sou uma
super filha, mas sou do tipo mão-aberta. Acho que o dinheiro só possui uma
finalidade: gastar.
Quando me vi trabalhando na Colgate, por exemplo, me dei por satisfeita.
Comprei poucas coisas, mas tudo que o dinheiro permitia. Doces, compras de
supermercado, consultas médicas, remédios, frutas, pagava algumas contas da
casa... esses pequenos agradinhos que fazem nosso dia-a-dia mais gostoso. Estava
pensando em pagar um plano de saúde para meus pais. As coisas estavam assim,
quando tive a trombose.
Depois que saí do hospital, pensava nos agrados que costumava fazer, mas me
dei conta de que não tinha mais dinheiro, não trabalhava. E não era só isso. E as
enormes despesas que eu dava?
E dou? E o sustento da casa? Tudo nas costas de um homem com problemas
cardíacos e com mais de 60 anos. E eu inerte. Quer prejuízo maior que minha
saúde, que era tão perfeita? E o trabalho que dou, tendo, muitas vezes que ser
carregada pelos meus próprios pais? E que moral tenho hoje com eles,
após descobrirem que eu tomava pílulas e depois de ter tido um AVC?
Quando vejo meu pai, hoje também meu curador, tenho vontade muitas vezes
de falar em alto e bom som:
- Te amo, meu doce pai italiano!
Eu era a "queridinha do papai", como as filhas geralmente são. Ele morria de
zelo ou ciúmes, sei lá. Mas consigo fechar os olhos e vê-lo como antigamente, me
olhando feio se eu me demorava ao telefone com algum rapaz, se eu chegava tarde,
se eu bebia além da conta. E hoje tenho, claramente, a certeza de que aquelas
broncas e repreensões eram manifestação de sua vontade de querer algo melhor
para mim.
Lembro-me que chegava de madrugada, rezando para que ninguém estivesse
acordado. Antes de entrar na sala, eu olhava a janela e não via luz, então eu abria a
porta e... Lá estava ele, na poltrona, sentado, me esperando! Como um cão
de guarda, vendo a que horas eu chegava, com quem, como...
Outras vezes eu entrava na sala e não via ninguém. Então eu tirava os sapatos e
subia para o meu quarto no escuro. Quando eu chegava no topo da escada,
escutava:
- Luciana?
Agora, quantas vezes ouço meu pai dizer:
- Devia ter repreendido mais, ter sido mais enérgico, enquanto era tempo.
Será verdade? Seria possível mais zelo e cuidado? Mais repreensão evitaria o
AVC? Ninguém nunca terá essa resposta... Meu pai foi perfeito, mas acho hoje que
ele sofre duplamente: por me ver assim e por se culpar por não ter evitado.
Com o AVC minha vida se quebrou em duas, e todos que me cercam viraram
dois: um antes AVC e um pós. Ninguém, sem exceção, se comporta igual, e meu pai
não foge à regra. Não sou mais aquela menina, a sua menina, geniosa, teimosa, que
a todo o instante precisava de um freio; mas vou ser sempre uma menina, que
precisa muito mais dele agora, e ele sabe disso.
Meu pai me ajuda como pode e durmo toda noite feliz por estar sempre junto a
mim e sossegada por ter o melhor curador do mundo.
Se todo o esforço que vocês, meus pais, fizeram foi em vão, lamento
profundamente. Mas, acreditem, a maior prejudicada fui eu mesma. Tudo isso devo,
em grande parte, à Gilda, que nem soube, ou não quis exercer direito sua profissão.
Concordo. Como ela poderia imaginar que isso aconteceria comigo? Mas não posso
perdoá-la por não ter me alertado do risco de uma trombose cerebral. Um AVC não
é bobagem, não. Por muito pouco não perdi a vida e agora não consigo nem
assoprar uma vela. A Gilda continua ganhando dinheiro e pondo outros pacientes
em risco. Não me sai da cabeça o seu comentário na UTI, ao lado dos neurologistas:
- Mas isso é raro!
Raro, sim, mas plenamente possível e verdadeiro. Eu tive minha vida, meu bem
mais precioso, destruída. É isso que chamam de justiça? Ter chegado a essas
conclusões diminui meu sentimento de culpa e também me dá a certeza de que fiz o
que era possível, além de mostrar que agi dentro do bom senso. Não tomei
medicamento sem conselho médico.
E a resposta a tudo isso foi só uma: amor... E isso me fez sentir mais culpada.
Meus pais e meu irmão me cobrem de carinhos. Antigamente me sentia
péssima. Eu mesma, sozinha, refleti muito sobre o assunto e me libertei da culpa,
mas não totalmente. Acho que tenho minha parcela de culpa, mas quantas jovens
tomam pílulas e fumam sem os pais saberem?
Erro médico, sim. Mas um erro médico subtil, de diagnóstico. Primeiro por ter me
dado pílulas de "terceira geração", sendo que eu fumava... e a Gilda sabia disso.
Segundo, por não ter me alertado para o risco de um AVC... e ele veio rápido.
Terceiro, porque, mesmo com queixas de dores de cabeça, ela não me alertou para
o faceto de que eu fazia parte de um grupo de risco e poderia vir a ter uma
trombose. Esses erros são imperdoáveis, apesar de menos grosseiros que uma
anestesia mal aplicada.
Outro médico errou. O do Pronto-Socorro Municipal de Santana, o primeiro
hospital para onde fui levada, ainda consciente mas em convulsão. Em vez de terem
me encaminhado sozinha com meu pai na ambulância ao Santa Izabel, deviam
ter corrido comigo para o Einstein, onde eu teria sido entubada, salvando meu
cérebro de lesões mais graves. Ouvi também de um novo neurologista que minhas
seqüelas poderiam ter sido bem menores se tivessem usado um anticoagulante até
cinco dias após a convulsão. Stéphanie depois confirmou e disse:
- Até eu, auxiliar de enfermagem, sei isso. Os médicos não sabiam?
Prefiro crer que não.
Hoje sou a expressão de vários erros, os meus próprios e os dos médicos. No
entanto, sirvo ao menos de alerta para os milhares de jovens mulheres que se
encontram nas minhas condições anteriores.

Dia 22 de outubro de 1996


Juliana,
Em casa, logo me dei conta de que estava vivendo minha tragédia pessoal.
Nunca mais iria ver a imagem que o espelho disse, por 22 anos, que era a minha.
Nunca mais iria dançar alegremente. Comecei a pensar e vi que tinha um monte
de verbos que me deram adeus: nadar, dirigir, paquerar, transar, beijar, trabalhar,
falar, andar, cantar...
Caí em desespero. Não em um momento de desespero. Não em um desespero
do qual se entra e sai. No desespero em que vivo.
Pior ainda. Ele vive em mim. Só em sonho me vejo rindo, falando e andando como
eu era. Descobri um infinito prazer em dormir; durmo o máximo que posso.
Enquanto estou dormindo, estou feliz.
É trágico acordar e voltar à dura realidade. No começo, eu acordava e pensava:
"Será que estou mesmo tetraplégica e muda?"
Então eu tentava me levantar da cama. Inútil! Hoje não tento mais, mas me
pergunto:
"Não terá sido traição de mais do destino?"
Durante um longo período, um mau humor tomou conta de mim, principalmente
quando acordava. Um novo dia nascia, contrariando minha vontade, mostrando que
a vida continuava, e com ela minha esperança em dias melhores. Demorei muito
a aceitar isso. Durante muito tempo me zanguei ao ver o Sol brilhar teimosamente
todas as manhãs. Hoje não me zango mais.
Quando tentava driblar meu desespero, eu ainda namorava Cristian, apesar de
achar que não estava mais aos pés dos carinhos dele. Lamentava e lamento
infinitamente a hora em que ele se despediu de mim e foi viajar. Uma outra mulher
estaria esperando por ele. Ele voltou e encontrou uma jovem careca, de fraldas,
tetra, sem vida social e sem fala. Eu me perguntava quanto tempo levaria para ele
se dar conta de que a mulher que estava naquela cama não era a mesma que um
dia fez amor com ele.
Pensando na minha situação, achava que tinha direito a um pouco de felicidade
e certamente eu era feliz com Cristian.
Lógico que estava brava com a vida, por me ter me tornado uma tetraplégica,
mas esquecia tudo ao lado dele. Cristian representava muita coisa: era meu último
elo forte com a vida de antes. Ele me dava uma tremenda vontade de melhorar,
pois eu achava um absurdo ter um namorado e nem poder abraçá-lo.
Isso me impedia de cair em depressão, pois, apesar de estar totalmente
modificada, ainda tinha um relacionamento satisfatório. Era minha última e
derradeira esperança de fazer minha vida um pouquinho parecida com o que eu
sonhei durante anos. Um elo de amor, pois aquele jovem bonito realmente gostou de
mim. Não o suficiente, para lidar com todas as limitações que eu agora possuía. Mas
não o culpo. Como eu, ele gostava mais de si mesmo.
Durante um breve período fui feliz nesse sentido. Eu amava e era amada. Meus
olhos brilhavam quando ele vinha me ver, não cabia em mim de felicidade. Feliz?
Cristian é minha última lembrança dessa sensação de felicidade.
É verdade, eu gostava mais do Cristian estando tetraplégica. Ele era a luz no
meu sombrio destino. Eu já estava me envolvendo antes de ele sair de férias. Mas
o destino não esperou. Deixou-me muda, sem cabelos, com fraldas, sem
movimentos, sem vida social e completamente apaixonada.
Quando meus pais souberam que eu ia permanecer tetraplégica, disseram ao
Cristian:
- Afaste-se. Essa dor é nossa.
Ele não quis, mas isso não tardaria a acontecer. Só lamento o modo como
acabou o nosso namoro.
Cristian vinha me ver às segundas. Se antes eu era programa de sábado à noite,
agora meu namorado me reservava as segundas. Logo de início, aprendi a ser
tolerante e agradecida. Aliás, uma coisa não posso negar: ficar como estou trouxe-
me um grande crescimento interior. Se era briguenta, fútil e esnobe, ganhei doses
de tolerância, paciência, humildade e resignação. Passo meses comigo mesma e vi
que aprendo muito em observar. E como dizem: "A palavra é de prata, e o silêncio,
de ouro.
  Apesar desse crescimento interior, frequentemente sou confundida com uma
louca, retardada mental, ou analfabeta. Já me perguntaram o que é uma alface,
quanto era dois mais dois, se eu sabia quem era meu pai, onde estavam o teto e o
chão, se uma bola verde era vermelha... E, como eu carrego uma cartolina com
letras para me comunicar, é comum alguém indagar:
- Como é? Está aprendendo as letras do alfabeto?
A Luciana de antigamente diria o que eu até chego a pensar:
- Não, seu burro! Isso é um método de comunicação!
Mas, lenta e pacientemente, acabo escrevendo:   S-O-U A-L-F-A-B-E-T-I-Z-A-
D-A E A-T-É F-O-R-M-A-D-A.
Eu não escondia do Lucas que estava apaixonada pelo Cristian. Minha vida
agora era só verdade. Pus uma foto do Cristian num porta-retratos e deixava-a em
exposição, com orgulho, coisa que nunca fiz com as fotos do Lucas.
Um dia fomos para a praia. Ficamos no chalé oferecido pelo marido da Gracita.
Eu, papai, mamãe, a inesquecível Bia, Cristian e Héricles. Foi aí que me dei conta
de que, por mais força que fizesse, o meu mundo era outro: o triste mundo
dos deficientes.
Cristian dirigia, cantava e punha a mão na minha coxa. E eu ia, inerte, do seu
lado. Bia ia atrás segurando minha cabeça! Meus amigos jogavam, bebiam,
fumavam e riam. Eu, do lado de uma mesa, na cadeira de rodas e de fraldas,
estava mais preocupada com meus engasgos com a saliva do que com a conversa
deles. Na praia, eles exibiam saúde, e eu, cicatrizes. Aos poucos, tomei consciência
do abismo que nos dividia.
Eu já havia tido um sinal de alerta de que deveria me afastar de Cristian ainda no
hospital. O sinal veio claro pela mãe de Cristian, que sempre foi encantadora
comigo. Mais que isso, ela não poupava elogios quando falava comigo. Só que
ela morreu para mim quando fiquei doente. Como muitas pessoas, nunca se
interessou por mim de verdade, pelo meu interior, que é a única coisa que continua
exatamente igual ou, diria eu, muito melhor que antes. Quando caí doente, ela
chegou ao Hospital Einstein antes da minha família; mas, percebendo o estrago que
a trombose deixara, foi bastante esperta para nunca me visitar em casa. Sei, por
instinto, que ela se esforçou, depois do AVC, para manter Cristian longe de mim.
O que iria inevitavelmente acontecer, mais cedo ou mais tarde.
É incrível o que uma trombose cerebral faz... hoje não temos nenhum contato.
Descobri que muitas pessoas não fazem senão passar por nossas vidas. Agora, que
vivo parada, é possível vê-las passando.
Mais de dois anos depois, quase não recebo visitas, exceto das raras pessoas
que gostam de mim de verdade. Essas se demoram mais. No começo, minha casa
era cheia de gente, depois se esvaziou e as visitas se restringiram aos finais
de semana. Atualmente, passo muitos fins de semana só, a escrever...
Como agora não sou atraente, não falo e estou completamente indefesa, é
normal deparar com gente de quem não gosto. Gente que se aproxima mais por
curiosidade e certamente pensa: Bem feito!"". Foi assim com gente da faculdade que
veio me ver, com minhas primas que morriam de inveja de mim, com a Poliana, que
agora se faz de amiguinha, e até com gente do colégio. Foi preciso eu desenvolver
muito "sangue de barata". Essas pessoas matam a curiosidade e raramente voltam.
Eugênia é um caso à parte. Hoje não tenho palavras para agradecer tanto
aconchego. Gosto muito dela.
Caio foi muitas vezes ao hospital, era carinhoso comigo e até fez uma
campanha, para arrecadar fundos para meu tratamento. Acho que ele esperava um
milagre, como ainda espero. Em setembro de 94, vendo que isso não ia
acontecer, ele só queria uma desculpa para cair fora. E dei essa desculpa. Eu
estava namorando Caio e Cristian, mas namorar dois era muita pretensão na minha
situação. Um já era de mais.
Sem querer, um dia mamãe comentou do meu namoro com Cristian, e isso foi
mais que suficiente para Caio se distanciar. Para ele, esse romance, meu e do
Cristian, tinha acabado no Carnaval... Tinha acabado no momento em que ficamos
enrolados no carnaval...
Caio foi se distanciando pouco a pouco, e assim acabou nosso romance.
Ninguém nunca tocou no assunto. E acabou sem explicações. De vez em quando,
ele vem me ver. Mais por obrigação que por afeto. Acho que ele procurou a Eugênia,
que parece que gosta muito dele. A partir daí eles recomeçaram o estranho
relacionamento que sempre tiveram, que não é amizade nem namoro. Aliás, a se ver
pelo nosso, a vida de Caio é feita de estranhos relacionamentos! Eugênia é uma
"amiga" inseparável do Caio. Antes eu jurava que era só amizade, mas hoje tenho
certeza de que "existe mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã
filosofia".  
Eugênia é moderna e simpática, tem um corpo super bem-feitinho, um sorriso
super branco, que se destaca no seu corpo negro. E acho que ela é
apaixonadíssima pelo Caio. Ela é, hoje, uma das poucas pessoas com quem posso
contar. Entendo que ela deve lamentar meu azar. Mais que isso, vejo que ela chega
a se imaginar na minha situação. Suas visitas são freqüentes, o que atualmente
muito me comove, pois é difícil ter amigos fiéis depois de um AVC.
Ela me ensinou a lidar com o preconceito. Ela, porque é negra, e eu, porque
ando de cadeira de rodas. E pensar que eu andava por aí de "nariz empinado"...
Aliás, me espantei ao ver que despertava preconceito e pensei:
"Como é que é essa história?! Agora as pessoas evitam minha presença?!"
Era exatamente isso, uma situação nova para mim. As pessoas têm realmente
muitos preconceitos, por cor, raça, deficiência... Tudo muito enrustido, mas têm.
Quando saí do hospital e fui para casa, não estava consciente do estrago que a
trombose cerebral tinha provocado. A verdade era que eu, se antes era um perigo,
cercada de homens, agora nem uma mosquinha me temia.
Em geral, aprecio suas visitas, menos as inúmeras vezes em que ela aparece
com Caio a tiracolo, o que me dá mais depressão do que a trombose já por si só me
legou, se é que isso é possível. é que, quando Eugênia aparece junto com Caio, é
como se eu não fosse mais mulher. Se você entender como "mulher" não um ser
humano só do sexo feminino, mas alguém que tem um homem, é vaidosa, falante,
faz charminho, lê revistas femininas, é independente, ou pelo menos tenta ser, e
tantas outras coisas. E, não sou mesmo... mas não gosto de me lembrar disso.
É assim. Quando não se fala, perde-se a personalidade. Quanta gente que não
era querida veio me ver...
Um que se tornou muito próximo foi Héricles. Esse japonês bonito não escondia,
em outras épocas, sua atração por mim. Agora, ele não vai além de um ótimo,
excelente amigo. Na verdade, é o que ele sempre foi. Héricles foi essencial para a
minha adaptação, para eu me acostumar a viver assim. Primeiro, ele me trouxe do
hospital. Também foi o primeiro a me levar ao shopping, ao cinema, ao teatro.
Fomos ver um show. Levou-me à praia, à piscina. Comemos um pedaço de pizza,
um sunday, e até um pouco de churrasco...
Ele e Ane Marie - que não me inspira nenhuma simpatia - namoraram contra a
vontade da mãe dela durante anos. Como você deve se lembrar, quando a mãe
resolveu não mais colocar empecilhos logo o namoro acabou. Ela veio me ver em
casa, uma única vez... depois não voltou mais.
Não se pode negar que eu e Héricles daríamos uma linda história de amor: a
tetraplégica e seu fiel apaixonado ou o amor que sobreviveu a uma tragédia. Mas a
realidade é tão diferente... Primeiro, porque a palavra namoro saiu do meu dicionário
quando Cristian saiu da minha vida. Saíram o verbo e o substantivo. Segundo,
porque entre mim e Héricles existe algo mais forte que muitos namoros: uma intensa
e sólida amizade.
Héricles arrumou, recentemente, uma namorada e transformou as visitas
semanais em mensais, por enquanto... Faz meses que me promete um cinema ou
um passeio. Ele ainda me faz grandes favores. De todo o modo, já vi muitos
romances dele acabarem...
Conheci um garoto que está na minha classe, e ficamos muito amigos. O nome
dele é Héricles, e é o japonês mais lindo e inteligente que já vi.
Bem, na festa. Héricles me chamou para dançar. Disse que gostava de mim e
que queria namorar comigo. Eu olhei para meu grande amigo e disse que ia fazer de
conta que ele não me havia dito nada.
Héricles é um barato! Não é nada absurdo agente trocar presente no Dia dos
Namorados assim como trocamos no Natal Batemos um papo como sempre. Uma
relação muito amiga. Pouca gente entende, vê só amor, e não amizade. Para o
inferno com elas! Poderia escrever muitas páginas sobre o Héricles, mas não
precisa. Entre a gente, tudo é assim...
Mas eu não entendo. Ao mesmo tempo em que ele, espetacularmente, conserta
meu computador sem cobrar absolutamente nada, pergunta:
- Quer sair amanhã?
Faço que sim com a cabeça.
- Então eu telefono amanhã.
E não liga. Não passa aqui. Não dá satisfação. Vê lá se alguém marcava um
compromisso comigo, antes do AVC, e não me dava satisfação. O que mudou? A
verdade é que perdi a beleza, a saúde, a fala... e também o respeito.
Não é só o Héricles. Caí num esquecimento total. Dos amigos que eu tinha, uns
poucos vêm, de vez em quando, me ver. Sair comigo? Raras vezes. Caso alguém
não queira ir, ou mude de idéia depois de combinar tudo, não recebo explicação.
Acho que aprendi errado. Eu jurava que é nas horas de dificuldade que vemos os
verdadeiros amigos. Bom, das duas, uma: ou eu não tinha amigos verdadeiros, ou
uma trombose é uma prova dura demais para qualquer amizade. Se você jura para
si mesma que, por ser bonita, sociável, namoradeira, simpática, cheia de amigos,
nunca ficará sozinha, é bom saber que existem acasos capazes de determinar uma
solidão inesperada e, junto com ela, muita decepção.
Sobrou muito pouca gente que ainda se lembra de mim.
Júnior também veio me ver durante muito tempo, semanalmente. Só não vem
agora, porque está sem carro. Espero que ele não termine como os demais, que
vieram, vieram, vieram me ver e depois foram deixando de vir. Cansaram... e
seguiram suas vidas normalmente, como se eu nunca tivesse participado delas.
Penso que qualquer um na minha situação se sentiria como me sinto:
abandonada. Não esqueço fácil que os amigos, outrora tão queridos, somem
durante meses, até mesmo anos. De repente aparecem, e me cobrem de beijinhos e
presentes, e voltam a desaparecer. É difícil aceitar essas ausências
pacificamente, como se não representassem nada, como se não sentisse a falta dos
amigos, como se eu tivesse outros compromissos que não o de recebê-los.
Todos têm uma desculpa. O trabalho. O namorado. Os estudos. Mas ninguém
assume que é só questão de prioridade. Quando saí do hospital, eu era novidade:
todos queriam ver a amiga que ficou tetraplégica e muda. Dois anos depois, é
comum sumirem e reaparecerem, como se eu pudesse não sentir sua ausência,
como se não morassem mais do lado esquerdo do peito. Dentro do coração...
Penso no Júnior. Trabalhando, estudando, sem carro, casado, com três filhos,
mas não me esquece. E os velhos amigos, aqueles amigos do para sempre, para o
que der e vier? Ocupados demais? E os que só vieram me ver uma ou duas
vezes assim que saí do hospital? E aqueles que nunca vieram? Amigos das boas
horas?
Se eu tivesse outra rotina, com certeza sentiria menos saudades. Mas, da
maneira como vivo, meu único convívio social são as visitas que eles me fazem e
que vão escasseando, escasseando... Hoje estou quase só. Meu pai, minha fono, a
mãe da Bia, todos repetem que esse é o caminho natural da vida. Que remédio,
senão entender e aceitar?
Duas vezes na semana, Marta - a japonesinha do Einstein - vinha em casa me
fazer fisioterapia. Eu não gostava e não gosto de físio, mas a necessidade ensinou-
me a levá-la com afinco.
Aprendi, com a observação, que o lado esquerdo do meu corpo era e é muito
melhor que o lado direito. Enquanto mexo facilmente a mão esquerda, por exemplo,
faço uma força danada para mexer a mão direita... e não consigo.
No inverno, eu tenho um pé quente e outro frio.

Dia 26 de outubro de 1996


Olá, minha linda!
É, o meu lado esquerdo tem muito mais movimento que o direito. Tanto é
assim que uso o braço esquerdo para quase tudo: comer, escrever, digitar, ver
papéis, pegar coisas, mexer no cabelo, coçar onde alcanço, mexer em
controles remotos, tentar abraçar... Quando cheguei do hospital, além de ter perdido
a postura, não tinha nenhum movimento. Parecia uma maria-mole, flácida, amorfa.
Aos poucos, desenvolvi o lado esquerdo, e eu não era canhota! O lado direito
continua como veio do Einstein, visivelmente inferior ao lado esquerdo.
Agora entendo por que fazemos naturalmente muitos movimentos com quase
nenhum esforço. Um lado do meu corpo me obedece bem mais que outro. Faço um
esforço sobre-humano para mexer o lado direito com muito menos resultado.
Comparando as duas metades do meu corpo, entendo o que me aconteceu, O
meu cerebelo esquerdo foi quase totalmente destruído e, como a informação é
cruzada, o meu lado direito quase não se mexe.
Isso pode se refletir na minha face. O lado direito do meu rosto não sorri, não
chora, a língua não mexe, a sobrancelha não levanta... O lado esquerdo mexe mais,
mas muito pouco, quando comparado ao que era. Por exemplo, não dou um sorriso
voluntariamente. Se agora mesmo quiser dar um sorriso, não consigo. Mas se
alguém entrar no quarto, e me contar uma piada, vou sorrir espontaneamente. Por
isso acho que a trombose cerebral facilitou uma certa naturalidade. Nada de sorrir
para ser simpática, mesmo porque não consigo, só se a pessoa realmente me
agrada. Nesse aspecto, melhorei muito, sou mais autêntica e fiel a mim mesma... E
aos outros também.
Depois da desastrosa Celina, aquela que queria me ensinar a "escrever",
pegamos outra fono, a Rosa. Era uma jovem senhora, muito religiosa e com quem
eu me dava muito bem. Gostei do trabalho dela porque reaprendi a fazer bolinhas na
água com um canudo, apagar uma vela, mexer a língua, prender a respiração,
exercícios que tinham realmente uma função. Ela passava um rolinho gelado no
meu rosto e escovava minha língua, para "acordar" os músculos. Stéphanie
olhava tudo atentamente e, de vez em quando, vestia a personalidade de
fonoaudióloga.
As amigas mais presentes na minha nova vida eram a Pat - apesar de morar
longe - e a Bia. Na presença das duas, eu ria, chorava, desabafava, falava do
Cristian, vomitava, tomava banho, comia... Tantas vezes chorei ao ver Bia
arrumada para sair, sentia saudades das nossas saídas. Ela me dizia docemente:
Você ainda vai dançar muito comigo...
Ela não cansava de me dar palavras de otimismo. Hoje sei que não vamos
mais dançar, porque ela não está mais entre nós e porque já vou achar muito se
conseguir dar uns passos de muletas. Que dirá dançar...
Descobri, no meio do caminho, quem me fez horas de companhia: a TV.
Durante meses, tive a TV como praticamente um anestésico. Passava a maior parte
do tempo deitadinha na minha cama hospitalar, vendo programas. Todos. Dos mais
inúteis aos raros que trazem algo de interessante. O que é lamentável. Ver uma
pessoa tão dinâmica, parada. Isso foi muito comum até Nicolas me dar um laptop e
eu começar a passar horas escrevendo. Do Nicolas falo depois.
Minha vida deu marcha à ré. Mas isso é dizer pouco. É algo diferente. Talvez
seja mais parecido com a sensação de estar quase ganhando o jogo e se ver
obrigada a andar várias "casas" para trás. Não cai na casa" do desemprego (fique
duas rodadas sem jogar), nem na casa de uma reprovação (volte 5 casas). Não! A
casa do AVC elimina você do jogo. O resultado da jogada determina se você pode
começar de novo ou não, mas não há garantia nenhuma. Na verdade, voltei a entrar
no jogo.
Jogada nele, como um bebê quando vem ao mundo. Com uma diferença
crucial: não sou uma criança. Não existe a expectativa de sentar-me aos seis
meses, andar com um ano, falar, correr, etc. Este começo é outro.
Lutava para conseguir escrever de novo, o que só aconteceu em meados de
1995. Toda manhã, eu acordava cedinho e, enquanto esperava Stéphanie chegar,
fazia uns exercícios de caligrafia, conseguidos por mamãe com uma amiga do
Nordeste: Margarida, que me ajudou muito. Nessa época, Andresa me deu uma
caneta com meu nome. Eu olhava aquele objeto tão familiar, pensava na incrível
distância que nos separava e repetia para mim mesma:
"Água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura..."
A pedra dura era o meu corpo, que havia desaprendido a escrever. A água
mole era a minha vontade de assinar meu nome, votar, estudar...
No final de 94, houve eleições. Eu queria ter votado, mas não conseguia nem
fazer um X. Neste ano, houve novas eleições. Já consigo escrever, e nem precisava,
pois o voto foi eletrônico, mas não votei. De 94 até hoje aprendi a ver alguns
problemas que não via. Voto num colégio cheio de escadas. Isso nunca tinha sido
empecilho, mas, quando se anda de cadeira de rodas, é . Como não falo, é comum
duvidarem da minha inteligência. E se não me deixassem votar? Vencidos esses
problemas, tinha mais um. Todo o mundo sabe que depois que a gente vota assina
o nome. Pois bem, às vezes, na hora em que vou assinar meu nome, me dá um
espasmo super forte, travam-se os movimentos, a letra fica ilegível. O que eu
ia fazer depois de já ter votado?
Denise é a telefonista da Colgate com quem eu me dava bem na época em
que trabalhava lá. Ela ainda vem me ver. Logo que voltei para casa, ela veio com a
família e trouxe um rapaz. Era namorado da filha dela. Um rapaz jovem que
também teve problemas de movimento e de fala. Ele entrou na minha casa andando,
fortalecendo minhas esperanças de melhora. Hoje tenho certeza de que minha lesão
cerebral foi muito maior que a dele, O Zeca parecia absolutamente normal, menos
quando mostrava sua fala trôpega. Quando o escutei falar, não pude evitar um
pensamento:
"Vou falar assim?"
Hoje eu ficaria muito feliz em simplesmente falar, independentemente do jeito.

Dia 1 de novembro de 1996


Minha querida Ju,
Apesar de ter me apegado muito à Marta e de ter progredido muito, resolvemos
trocar de fisioterapeuta. A Marta era extremamente competente e carinhosa, mas
era muito cara. No começo, minha família submeteu-se a tudo:
enfermeiras exploradoras, fisioterapeutas careiros, fonoaudiólogos sem utilidade...
Mas, passado o choque de ter um acidente na família, o bom senso volta, retomam-
se "os pés no chão", e colocam-se as despesas numa balança.
Fui apresentada a um rapaz charmoso e simpático que iria cuidar de mim.
Paulinho era amigo de um amigo do Cristian. Vinha no fim da tarde tratar de mim por
uma hora e foi o primeiro a levantar a hipótese:
- Pode ser que ela volte a andar de bengalas.
Achei que aquela idéia era assustadora. Hoje, aceito qualquer uma: muletas,
bengalas, andador... Contanto que eu consiga ir sozinha a um banheiro.
Paulinho se deu bem comigo. Aprendi, então, que é necessário uma relação
de simpatia entre fisioterapeuta e paciente. Também o ouvi dizer para meus pais
que ia me deixar 90 por cento boa. Fortificaram-se as esperanças. Por isso eu me
aplicava bastante e achava Paulinho o máximo. Não faltava motivação.
Pensando agora no Paulinho, eu o considero um profissional medíocre. Ele
adorava estalar meus ossos. Acontece que aprendi que um bom fisioterapeuta não
provoca estalos. Paulinho queria que eu movimentasse o lado direito do meu corpo
igual ao lado esquerdo. Como terapeuta, ele não viu a brutal diferença que existia.
Nem eu sabia... aprendi com a observação. Pouco progredi em equilíbrio e
movimento. Noventa por cento boa? Cinqüenta estava bom...
Ele falou em me fazer voltar a andar até o final de 1994. Não foi em 94, nem
em 95, e certamente não será em 96. Quem sabe em 97? Hoje acho que "o futuro a
Deus pertence".... Mesmo.
O maior erro do Paulinho foi no uso do FES, em que ele se dizia experiente.
FES deve ser uma sigla em inglês para estimulação elétrica, vulgo choque. É assim
mesmo, parece inacreditável: você paga para tomar choque! Com esse estímulo, os
músculos se mexem. Você consegue andar, pedalar, enfim, fazer o movimento que
o físio quiser. Até comprei um FES pequenino. Era um aparelho com elétrodos, que
são grudados na pele, e com um botão que regula a intensidade da
estimulação elétrica.
Todo mundo sabe que choque dói. Principalmente para quem tem a
sensibilidade normal, como é meu caso. Paulinho colocava aquele botãozinho no
máximo... A finalidade do FES é "ensinar" o cérebro, através de estímulos elétricos,
a realizar movimentos perdidos. Grosso modo, é isso. Mas o objetivo do FES não é
provocar dor. E eu as sentia. Mais tarde, comecei a fazer fisioterapia fora de casa,
onde Paulinho tinha uma clínica. Lá havia um aparelho com eletrodos que
produziam choques fortíssimos. Eu apertava forte a mão da minha mãe e ia
sofrendo dores fortes. Um único pensamento fazia-me suportar tudo:
"Se esses choques me deixarem boa, tudo bem."
Não deixaram. Só me transmitiram um grande trauma quanto à estimulação
elétrica. Basta ouvir a palavra "choque", para eu sentir dor. Continuei com esse
tratamento sádico até que conheci a Fundação Selma, onde estou até hoje.
Foi o simpático namorado da Priscila quem indicou a Fundação. Ele contou
que era uma clínica de fisioterapia para deficientes. Lá se tratava de todo o tipo de
acidentes: tiros, mergulhos, atropelamentos, derrames...
A Cecília era uma garota que teve algum tipo de acidente e ficou paralítica.
Por ser filha de um rico empresário, teve uma clínica montada só para ela. Comecei
a fazer fisioterapia na Fundação Selma e dei adeus ao Paulinho.
Durante muito tempo, tratei essa clínica como "A casa dos monstros". Eu me
incluía entre eles, é claro. E é realmente um horror... cada caso!
Tem o Luís. Ele deve ter uns 22 anos. Devia ser um jovem interessante,
levando-se em conta como esses acidentes nos transformam... Luís é a vítima de
um racha desastroso. Ele treme muito, não anda, não fala e eu, sinceramente, não
sei até onde vai a consciência dele. Como eu, ou pior, vive babando. Usa sonda e é
branco como papel, pois dizem que a mãe tem vergonha de sair com ele! É só pele
e osso e carrega uma cicatriz de traqueotomia, como a minha. Consigo ficar
horas olhando para ele, tentando adivinhar se sabe o que se passa com ele. Luís
não cumprimenta ninguém, olha o nada e vive mordendo a própria mão. Quem será
que sofre mais: eu, consciente, ou ele, aparentemente inconsciente?
O Ricardo é muito novo. Sinto pena da juventude que ele transmite. Tem só 16
anos e é completamente tetraplégico. Foi só dar um mergulho em São Sebastião e
ficou tetra. Perdeu muito da sensibilidade, mas fala. Ele morre de frio e chega todo
"empacotado". O frio que sentimos, pois também sinto, é pela falta de movimentos,
mas o meu é suportável. Ele vem todo encapuzado, mas, mesmo assim, tremendo.
O pior caso que vi até hoje é o de uma moça que devia ser muito bonita e
vaidosa. Deve ter uns 24 anos. Foi fazer uma cirurgia plástica no nariz, teve uma
complicação com a anestesia e seu fim foi trágico. Não sei exatamente o
que aconteceu, mas ela está inconsciente, sem movimentos, sem fala e toda
entronchada. Para se ter uma idéia, ela põe os dois pés num pedal da cadeira e as
pernas adquirem a forma de "tesoura".
Recentemente, nas minhas idas à fisioterapia, tenho encontrado António.
Dizem até que ele está namorando e que está sempre viajando. Penso muito nele.
Um tetraplégico que praticamente não se mexe e usa a boca para fazer funcionar
o computador e guiar a cadeira de rodas. Falam que o caso dele é pior que o meu
mas, dependendo do ponto de vista, isso não é verdade. O caso dele pode ser mais
difícil de reabilitar que o meu. Concordo. Mas a mágica da reabilitação, em ambos
os casos, é muito remota.
Bom, uma vez que temos a vida toda pela frente, é melhor estarmos
adaptados. Por um lado, ele sai ganhando: faz amigos, fala ao telefone, dá ordens,
tem emprego, é presidente de uma associação. É mais fácil quando se pode falar.
Garanto que ninguém vai testá-lo perguntando quanto é dois mais dois.
Por outro lado, tenho uma grande vantagem: meu braço esquerdo é capaz de se
movimentar. Isso me permite algumas atividades como estar agora escrevendo no
computador, por exemplo. Mas são atividades solitárias. Descobri que a fala é que
faz nossos laços sociais. Sendo muda e tetraplégica, não posso sequer me
comunicar por gestos. De todo o modo, essa pequena agilidade com o braço
esquerdo permite-me ainda comer sozinha, folhear uma revista, segurar um copo...
E, enquanto António assopra as velas de seu bolo de aniversário, eu coço a cabeça.
Espero que minha melhora não pare nisso.
Foi na Fundação que conheci Nicolas. Ele não é paraplégico. Nem tetra. Na
verdade, ele é tetraparético, como eu, só que com muito mais movimentos. Ele
come sozinho todo dia. Sai sozinho do carro. Acho que ele se vira na cama e
até empurra a própria cadeira; coisas que eu não faço. Mais importante: ele fala,
meio trôpego, mas fala. Logo que me viu na Fundação, ele me cumprimentou
normalmente, coisa que não acontece quando não se fala. Aliás, eu tive que me
habituar a isso. As pessoas raramente cumprimentam quem não fala. Por exemplo,
na Fundação Selma, a cada seis semanas aparece um grupo de estagiários. De
fisioterapia, é claro. Na hora em que eu chego, eles são gentis, como os terapeutas
em geral são.
Mas, se eles saem mais cedo, e eu estou numa sala especial fazendo físio, a grande
maioria é capaz de entrar na sala, dizer tchau para a terapeuta, virar as costas e
sair. Como se eu não fosse gostar de um cumprimento. Como se eu não
fosse gente. Como se não fosse digna de um tchau. Como se não entendesse...
Realmente não sou capaz de responder, mas daí a ser ignorada?...
Agora, imagine! Se nem os estagiários de fisioterapia, com quem convivo, me
cumprimentam, o que direi das centenas de pessoas que encontro por aí? A fala
dá identidade, algo que não tenho mais. A falta de cumprimentos não é tudo. É
comum alguém fazer uma pergunta, displicentemente, e, no minuto seguinte,
lembrar-se de que você não fala. Então "fica o dito pelo não dito".
Quantas perguntas ficaram no ar?
Quando comecei a escrever, escrevi uma carta para Nicolas contando um
pouco da minha vida. Ficamos tão amigos que um dia Nicolas perguntou:
- Quer namorar comigo?
O que eu respondi? Nada. Não respondi. Acho uma coisa completamente
sem propósito.
No natal de 95, ele e algumas outras pessoas me deram o laptop. Este em
que escrevo. Além de ser um tremendo passatempo é um aparelho que auxiliou
muito na minha comunicação, que é praticamente a escrita. Ajudou-me com Nicolas,
que não entende o alfabeto da cartolina que eu carrego.

Dia 4 de novembro de 1996


Minha companheira
Tia Bianca veio da Espanha me ver, a caminho do Nordeste. Queria abraçá-
la e relembrar os velhos namorados da Paraíba. Sem falar e sem me mexer, só
chorei, sentadinha na cadeira de rodas. Tinha e tenho receio de me mostrar, pois
estou irreconhecível. Já encontrei amigos e ex-namorados que passam por mim até
sem olhar. Eles simplesmente não crêem que naquela cadeira se encontra a metida
da Luciana Scotti. Experimentei essa sensação quando vi Tia Bianca. Senti
vergonha de não ser eu mesma.
De vez em quando, Poliana, que me transmitia falsidade e me causava
desconforto, vinha me ver. E eu, indefesa. Com muita dificuldade para expressar
meus pensamentos não via bem aquela aproximação. Foi assim, até que encheu a
paciência e a proibi de aparecer. Poliana se fazia de amiga, coisa que nunca fomos.
Mas, num dia, sem querer, deu-me uma informação preciosa. Contando as
novidades da Colgate, disse:
- Cristian está meio namorando com uma tal de Mônica. A garota é meio
novinha e telefona lá no laboratório, atrás dele, com freqüência.
Acho que até hoje ela não sabe que essa notícia foi terrível, caiu como uma
bomba. Mantive a moral até Poliana ir embora. Depois fiz o que podia: chorei. Tinha
vontade de telefonar para Cristian e ouvir, pelo menos, uma explicação...
Mas sem fala e sem movimento, como era possível? Não tinha outro remédio a não
ser esperar ansiosamente Cristian aparecer.
Desabafei com Alice, que ficou com pena de mim e levantou a hipótese de
Poliana estar mentindo... Mas a notícia me foi dada tão displicentemente que era
impossível ser mentira. Poliana, e muita gente mais, não sabe até hoje que eu e
Cristian é ramos namorados. Ela me contou que eu estava sendo traída como quem
conta uma bobagem qualquer.
Nunca mais vou esquecer a minha primeira sensação de impotência feminina.
Eu já não fazia as coisas acontecerem, só esperava que elas se realizassem. Sei
que a autopiedade é piegas e não leva a nada, mas não consegui evitar de pensar:
"Sou uma coitada!"
Era verdade naquele momento. A perda de Cristian era um tombo dolorido na
realidade. Eu queria tanto ouvir uma explicação. Queria falar. Queria falar e chorava.
Mas que satisfação eu esperava afinal ouvir? Qual teria sido minha reação? Será
que eu entenderia? Hoje sei que bastaria ele ter me dito que apenas atendia ao
chamado da vida.
Até Cristian aparecer não consegui dormir. Pensei dez vezes no que fazer.
Decidi terminar tudo, mesmo porque esse fim era inevitável. Era exigir muita
maturidade e muito amor de um cara jovem e bonito de apenas 23 anos.
Amadurecimento que eu nem tinha nem conseguia ver. Era melhor que eu tomasse
a iniciativa e acabasse o namoro. Foi a coisa mais sensata que fiz... antes que a
vida o fizesse. Alguma coisa eu ainda fazia acontecer.
A traição não me incomodava tanto. Quem era eu para querer fidelidade de
alguém? O que achava e acho um absurdo era a infidelidade se manifestar num
momento tão delicado... quer dizer que enquanto eu quase morria, ficava
tetraplégica e muda, meu namorado tratou de me substituir por alguém perfeita?
Belo apoio!
Na noite em que minhas vizinhas organizaram o bingo para me ajudar
financeiramente, Cristian apareceu. Dei chance para ele se explicar, coisa que não
adiantou. Eu gostava muito dele e foi difícil tomar a iniciativa de dar um basta
naquilo em que nosso romance havia se transformado. Não pude berrar a plenos
pulmões. Dessa vez, nenhum vizinho ouviu a gritaria.
Enfim, a última palavra foi minha. Soletrei, letra a letra, o fim do nosso namoro, que,
na realidade, já havia acabado.
Na verdade, Cristian sentiria muito, muito mais se me perdesse numa outra
situação. Nem lembro exatamente o que eu disse, mas recordo bem umas palavras
do Cristian antes de sair do meu quarto:
- Posso te visitar de vez em quando?
Pensei duas vezes antes de responder, depois balancei afirmativamente a
cabeça. E posso quase jurar que ele foi embora aliviado.
Por um longo tempo, alimentei muita raiva por Cristian. Realmente, amor e
ódio andam de mãos dadas. Só me acalmei, mesmo, quando a minha psicóloga pôs
na minha frente uma antiga foto minha, na qual estava saudável e de longos cabelos
loiros, e me perguntou:
- O que essa menina teria feito se o namorado tivesse tido uma trombose?
Olhei bem para a minha cara de sapeca na foto e não tive dúvidas. Se a
situação fosse inversa, logo, logo eu arrumaria um substituto para Cristian. Entendi
que era uma atitude normal, inevitável, vital.
Quando Cristian saiu da minha vida, dei adeus, definitivamente, a algum tipo
de relacionamento amoroso que eventualmente pudesse travar. Quero ter na
lembrança namoros "completos", e não situações que me constranjam. A
vida continua, é verdade. Mas está acima da minha capacidade admitir um romance
sem andar, sem falar, sem abraçar, sem fazer amor... Andar e falar são hoje minhas
necessidades mais imediatas, e é nelas que me concentro.
Apesar de eu ter sensibilidade normal, exatamente igual à que possuía antes
do AVC, pus um obstáculo na busca de uma sexualidade próxima do normal. é que
esse "próxima do normal" se encontra a milhões de anos-luz do que conheço
como sexualidade, e meu obstáculo é minha cabeça. Eu abomino qualquer remoto
pensamento que traga à minha cabeça uma imagem minha, como estou, namorando
ou tentando uma relação sexual. Em vez disso, preferi me imaginar fazendo amor
como eu era. Eu deparei com o ridículo da situação e sufoquei tais desejos. Hoje,
tais pensamentos encontram um campo minado no meu cérebro e não frutificam.
Posteriormente, houve uma festa em uma danceteria que eu freqüentava
antes do AVC, para arrecadar fundo para meu tratamento. Cristian não deu as caras
nessa festa. Viver assim só tem uma definição, não é uma provação, nem uma
comprovação de força e fé, é apenas uma existência de lembranças e frustrações.
Eu via aquela pista de dança que era tão minha. Vi Bia, Caio e meu irmão
dançarem prazerosamente. Vi meus amigos beberem e se divertirem. Ouvia a
música, que me dava vontade de sair pulando. Vi jovens desconhecidos paquerando
e olhei para mim.
O que vi, então?
Uma garota que era atraente e charmosa, tinha namorado, carreira, um corpo
bem torneado, que se relacionava bem com as pessoas, gostava de dançar, de
nadar, de andar de bicicleta, de se vestir, de namorar, de dirigir e agora estava sem
falar e sem andar... Percebi que não era e não tinha mais nada, e que tudo que
gostava de fazer não dava mais. E chorei. Chorei quase todo o tempo que fiquei na
festa. Eu não ligava mais para as pessoas, tudo bem que vissem meu pranto.
Segurei forte a mão de Lucas, que estava lá, mas duvido que ele tenha
entendido um terço do meu sofrimento. Meu irmão me olhava com dó. Caio veio
falar comigo, todo suado de tanto dançar... Eu só chorava... Até que Betinho nos
levou, eu e minha mãe, para casa.
Nunca mais fui a danceterias. Para quê? Para passar vontade e cair em
depressão? Neste meu novo início a vida adquiriu um preto-e-branco; hoje procuro
colori-la com outras cores...
Por mais absurdo que possa parecer, a irmã do Betinho arranjou uma outra
festa para arrumarem fundos para o meu tratamento. Além de não ter mais ganho,
tinha um gasto extraordinário: enfermeiras, terapias - incluindo físio, fono, psico,
terapia ocupacional, hipoterapia e hidroterapia -, cadeira de rodas, fraldas... Outras
pessoas também se mobilizaram para obter algum dinheiro. Além da festa, Beto
- pasme! - doou uma TV. Héricles, que trabalhava em uma gráfica fez uma rifa, e
meus amigos ajudaram minha família a vender.
Meu aniversário, em 3 de outubro de 1994, ainda foi cheio de gente. A
vizinhança, gente da Colgate, Gustavo, Lucas, o surpreendente Betinho, a
inesquecível Bia... entre outros. Percebi que, apesar de ser o meu aniversário e
de estar toda arrumada, não provocava sensação, como em outras épocas. Essa
observação se confirmou no aniversário seguinte. Isso foi uma das coisas mais
difíceis: entender que passei rapidamente de garota atraente e sedutora, para
musa inspiradora... de pena.
Eu não entendia isso em 94. Por isso escolhi uma roupa bem decotada, não
me importando com as cicatrizes e não vendo que meu corpo já não era o mesmo.
Eu mal ficava sentada numa poltrona, tombando para os lados. A bonita roupa
decotada ficava ridícula e, a cada 5 minutos, alguém vinha arrumar... Fazia charme
como podia... Só depois reparei que já não me olhavam como mulher.

Dia 5 de novembro de 1996


Querida Juju,
No começo morria de vergonha de sair de casa, e ainda me sinto um pouco
uma extraterrestre... Todos me olham aonde quer que eu vá. Vivo dizendo que, se
ganhasse um centavo por pessoa que me olhasse, já estaria rica. É muito estranho
ver-se numa cadeira de rodas e perceber centenas de olhos em cima de você.
No começo, voltava para casa chorando. Até me acostumar com essa situação,
aconteceu de tudo. Um dia, fui a uma feira do Mundo Mix, com Caio, Eugênia e meu
irmão. Uma adolescente chegou perto e perguntou:
- Por que ela está na cadeira de rodas?
Ora! Parecia-me que a resposta era óbvia. Perguntas idiotas merecem
respostas imbecis. Acho que meu irmão se enfezou, porque respondeu:
- Porque ela é mais esperta que você, que fica andando. Ela gosta de ficar
sentada.
Não pude segurar o riso. Mas nem sempre me dá vontade de rir.
Esse tipo de cena é comum. As crianças, por exemplo, param, olham, viram
para trás e até apontam. Como é que eu me sinto? No começo, muito constrangida,
com muita vergonha. Vergonha de tudo: das goteiras, da cadeira de rodas, da
cartolina com o alfabeto, da minha risada, de comer em público, da ausência de fala
e movimentos. Héricles e meu irmão, alheios a tudo isso, levaram-me a um monte
de lugares. Eles me propiciavam o maior bem-estar possível.
Meu amigo oriental me foi de grande valia no momento, sem dúvida, mais
difícil da minha vida. O que Héricles fez por mim, até uns meses atrás, foi
realmente excepcional. Eu dizia que ele era mais que um irmão, era meu anjo da
guarda japonês. Ele me proporcionou diversos passeios, compras, comidas de que
eu tinha saudades... Foi com ele que revi a pracinha onde eu namorava Cléber, a
Colgate, conheci seu lugar de trabalho e fui de novo a uma festa.
Esse meu anjo foi me dar apoio até no Nordeste, em fevereiro de 95! Sou
muito grata a ele... No fim de 94, ele e meu irmão, corajosamente, me levaram a um
barzinho. Depois do AVC, foi a primeira e a última vez que ingeri bebida alcoólica.
Desconhecendo a incompatibilidade entre meus medicamentos e o álcool, e
morrendo de vontade, tomei uma caipirinha de canudo. Fiquei tão realizada. Vi a
felicidade numa caipirinha.
No outro dia, Stéphanie me contou de uma conhecida que fazia uso de
anticonvulsivantes, meu remédio perene. Ela tomou bebida alcoólica e entrou em
coma. Coma! De novo? Não! Nunca mais bebi uma caipirinha. Nem nada que
contivesse álcool. Tentei até tomar refrigerante. Sem sucesso! O gás faz coceira na
minha língua e não engulo um único gole sem me engasgar. Dei adeus aos
refrigerantes e me contentei com os sucos de frutas.
Comecei a fazer fono numa clínica indicada pela irmã da Simone, amiga do
colégio. Essa clínica é uma extensão de uma renomeada universidade particular
paulistana, Pontifícia Universidade Católica (PUC). Nela eu conheci Marina.
Marina é uma fonoaudióloga culta, professora e muito competente. É ela
quem executa essa parte do meu tratamento e foi com ela que aprendi tudo o que
sei da fala. Antigamente eu achava, com certa ingenuidade, que, se
soubesse bastante sobre a fala, acabaria falando. Se tivesse pensado um pouco
mais, teria chegado à conclusão de que não é assim que funciona. Se fosse assim,
as criancinhas nunca falariam. Eu mesma falava sem saber nada. Agora já sei que
não resolve o problema mas, ainda assim, gosto de aprender.
Aprendi, por exemplo, que linguagem e fala são duas coisas distintas. Se me
comunico bem pela escrita, se sei o nome das coisas que me rodeiam, se meu
discurso tem lógica, então não tenho problema de linguagem. Tenho um
forte impedimento articulatório que me causa a ausência de fala. É como ela diz:
- A fala está aí!
Eu sei quando, como e o quê falar. Quer dizer, minha mente sabe; minha
boca, não.
Aprendi também que tenho algo como uma falsa afasia. Falsa, porque não
apresento problema de linguagem. É só falta da fala, provocada por um AVC. "Só" é
força de expressão. Aprendi também que a afasia pode ser de compreensão, o que
absolutamente não é meu caso, ou de produção. Dentro da afasia de produção,
existe a disartria, que é a dificuldade de articular palavras, resultante de
uma perturbação dos centros nervosos. Por isso pode-se dizer que tenho afasia de
produção ou disartria.
Aprendi tantas outras pequenas coisas que nem dá para enumerar. Também
me dei conta de algo terrível: eu penso para falar, e, se você fala, não pensa antes.
Isso é fácil de observar. Recentemente, comecei a conseguir soltar uns sons. Então
penso:
"Tenho que encher os pulmões". Na expiração, faço o ar vibrar as cordas
vocais... Se quero emitir algo que pareça com um MA, junto os lábios. Um LA?
Promovo o dificultoso encontro da língua com os dentes superiores. Um FA?
Dentes superiores encontrando lábio inferior. Tudo isso, e muito mais, morava no
meu inconsciente e eu falava perfeitamente.
Com o AVC perdi essa espontaneidade. Estou reaprendendo
tudo, conscientemente. Mas, enquanto eu estiver vinculada ao consciente, uma
coisa é certa: não vou falar... É humanamente impossível controlar a respiração, a
articulação e ainda raciocinar sobre o que se vai falar. Foi por não ter passado pelo
consciente que, consegui emitir o "obrigada na única vez em que falei após o
acidente". A consciência só veio depois. Quando me dei conta de que havia falado.
Através dos exercícios que a Marina orientava, percebemos que minha
respiração é muito curta. O tempo máximo de expiração é de três segundos. Dizer
um longo A, nem pensar.
Percebemos, também, que eu não tinha nenhum controle sobre a respiração.
Ela foi contra o uso do computador como meio de comunicação:
- Usando um alfabeto, a fala vem mais depressa.
E se não vier?
Explico melhor minhas cartolinas. Deve ter uns 35 X 15 cm, é branca com as
letras em negro. Nela estão as vogais, as vogais acentuadas, as consoantes, a
vírgula, o ponto de interrogação e tudo o que se usa na escrita. Essa é a minha fala.
Primeiro vêm as consoantes, divididas em fileiras:
B C D ... K L  M N P ... T V  X W Y Z  Depois temos as
vogais, os números de 0 a 9, acentos, pontos de interrogação e exclamação, dois-
pontos...
Se quero escrever meu nome, aponto com o braço esquerdo para as letras
de cada fileira:
L-U-C-I-A-N-A S-C-O-T-T-L.
Antigamente, o ouvinte emendava as letras:
L-U-C-I-A-N-A-S-C-O-T-T-I 
Até que inventamos um gesto, que eu conseguisse fazer, simbolizando o fim
de uma palavra. Esse método é extremamente lento, experimente fazer uma frase
dessa maneira e veja que discrepante diferença senti entre falar e soletrar. Além de
lento, esse método cansa o ouvinte. A pessoa ou se adianta no que quero dizer, ou
desiste de me ouvir. Vamos supor que quero dizer que "isto é difícil". Então aponto:
L-S-T-O é D-I-F...
Na ânsia de ser mais rápido, o ouvinte pergunta:
- Diferente de quê?
Isso é só um exemplo do que acontece com milhares de palavras. Um D-I-F
pode ser traduzido por diferente, difícil, difuso, etc. Se acontece algo parecido com
esse exemplos ou se desistem de me ouvir, posso perder a paciência e tentar atirar
a cartolina longe. Meu lançamento não vai além de 10 cm, mas fica clara a minha
raiva. Odeio com todas as forças a pobre cartolina, que não me fez nada. É a
primeira vez que dependo de uma coisa e a odeio ao mesmo tempo.
Também é comum acontecer de uma pessoa não querer me ouvir. Nesse
caso, é só não me dar a cartolina. O ditado: "Quem tem boca, fala o que quer, quem
tem ouvido, ouve o que não quer, definitivamente não se aplica a mim. Pelo menos
a primeira parte.
Há ainda os casos em que fazem de conta que me entenderam,
subestimando uma das únicas coisas sadias que tenho: minha consciência. Vamos
imaginar, por exemplo, que eu queira dizer uma frase como: "Gosto de morango no
verão". Primeiro, para o ouvinte não emendar todas as letras, vou soletrando palavra
por palavra, uma de cada vez:
G-O-S-T-O  É muito freqüente a pessoa a quem me dirijo dizer:
- Como é? Faz de novo.
E aponto devagar letra por letra:
G-O-S-T-O  A pessoa diz:
- Grosso?
Faço que não, com a cabeça, e repito:
G-O-S-T-O  Finalmente o ouvinte diz:
- Gosto?
Balanço a cabeça afirmativamente e sigo em frente:
D-E  - De?
Faço que sim e vou soletrar a próxima palavra:
M-O-R-A-N-G-O  Percebo que não fui entendida. Mas escuto um:
- Ah! Pode parar, já te entendi.
Mas o interlocutor não repete a palavra "morango", mesmo porque não me
entendeu... Não me incomodo de repetir 20 vezes uma mesma palavra, mas não
posso concordar que insultem minha inteligência falando que já entenderam uma
frase que ainda está na metade. Como isso é possível? Na verdade, como posso ter
sido compreendida apenas ao dizer: "Gosto de..."?
Isso faz algum sentido? Você pode até achar meu exemplo gritante. Como é
que alguém vai confundir gosto com "grosso"? Mas isso é mais comum do que se
imagina... centenas de vezes, com milhares de vocábulos. E sempre querem me dar
a impressão de que me entenderam. Querem, mas não conseguem. É óbvio
que ninguém pode entender uma frase ainda na metade!!!
Não sei por que o ouvinte quer me dar a falsa impressão de que me
entendeu... Se for para me fazer feliz, não consegue. Prefiro repetir exaustivamente
uma palavra e ser entendida, a escutar um "Ah, entendi" no meio da frase.
Esses são alguns dos problemas que me acompanham.

Dia 6 de novembro de 1996


Ju,
Eu, sem dúvida, estaria mais perto de falar, se tentasse me comunicar através
dos sons que produzo. Mas é uma idéia descartável, só de pensar... Não vou me
expor ao ridículo. Meus amigos e minha família conheciam uma outra Luciana,
não uma garota sem movimento, que anda de cadeira de rodas e que solta uns
quando tenta falar. Poupo-me de mais uma vergonha.
Uma pessoa vem sempre me ver. Não a Simone, amiga do colégio, mas a
mãe dela, a Irmã.
  Simone, Quero que você leia este diário, porque ele é minha vida.
Você sabe que confio em você pra caramba. Você me entende. Você, a
Priscila e o Héricles são as pessoas mais importantes da minha vida. Se eu perder
um de vocês, será como se eu tivesse perdido um braço. Adoro vocês. Você
também, é claro.
O que você vai ler é tudo que me aconteceu de mais importante nestes 16
anos que vou fazer. Leia, pense e me aconselhe nas coisas que posso melhorar,
pois não quero terminar a vida sozinha. Deixo você entrar no meu mundinho, pois
confio muito em você e adoro você, menina! Você vai longe!
Beijão, da Lu.
A Irmã vem me ver frequentemente e às vezes traz um padre amigo, que me
dá o sacramento da comunhão, o mesmo que me deu extrema-unção na UTI do
Einstein. Uma vez a Irmã o trouxe aqui e perguntou:
- Quer ficar sozinha com ele?
Como quem diz "Quer se confessar?". E o padre, antecipando-se, respondeu:
- Não precisa.
E imediatamente eu pensei:
"É, estou pagando todos os meus pecados em vida; os que cometi e os que
não."
E há quem pense que foi pouco o que me aconteceu. Esse, então, que atire a
primeira pedra. Não posso dizer que a presença da Irmã me surpreendeu. Ela
sempre me dá conforto e ajuda financeira para meu tratamento. Se hoje faço fono
com a Marina é graças à irmã da Si, que também é fonoaudióloga. Nem tenho
palavras para agradecê-las.
Chegou o Natal de 1994. Para mim, agora, sem brilho.
Uma data comemorativa como tantas... Héricles me deu a ceia. Dele eu não
tinha vergonha. Nem da minha família, nem da Bia, que sempre me fez companhia.
Depois da meia-noite, Héricles, Bia e o meu irmão foram para uma festa, e eu fiquei.
Não bebia, não dançava, não paquerava, não conversava... Para que festa?
Vi meus inseparáveis companheiros: meus pais. Meu pai sai, mas escravizei
mamãe, que nunca me deixa só. Apesar de me chamar de trabalhosa, faz tudo o
que peço. Para todo o mundo deve ser penoso perder os pais, mas para mim é
algo inadmissível. Preferia não estar viva a sentir mais essa dor...
No Réveillon, a família da Bia veio nos fazer companhia. Lembrei-me muito
da passagem de ano de 93 para 94. Tão diferente desta! Cristian me convidou para
passar o Ano Novo com ele, em Mongaguá. Por muito tempo, achei que ele me deu
azar, devido a maio de 1994 e à trombose. Mas isso é besteira. Hoje me lembro
desse Réveillon como o mais bonito que passei. Fui para Mongaguá com Cristian, a
irmã dele e o namorado dela. Ficamos na casa dos tios, com mais duas primas e a
mãe do Cristian.
Todos me tratavam muito bem, e foi impossível não comparar com a casa do
Lucas. Aqui me tratavam infinitas vezes melhor. Cristian tinha comprado, com a mãe
e os irmãos, a casa ao lado da casa da tia em Mongaguá. Cheia de capim e
sem móveis, só servia para Cristian dormir num colchonete, tomar banho quando
acabava a água na casa da tia e namorar nas raras horas em que estávamos
sozinhos. Eu me sentia, e muito, atraída por ele; e seus beijos eram, para mim, o
máximo.
Como se não bastasse eu adorar o Sol, fez um tempo espetacular. Lembro-
me que uma tarde fomos até outra cidade, e foi super-romântico passear, ao cair a
tarde, na praia. Lembro-me também que deu para perceber que Cristian era
o queridinho da mamãe, que vivia repetindo:
- Cris, meu amor, vem comer...
E no segundo posterior:
- Luciana, vai buscar o Cris. - E lá ia eu.
Peguei um super bronzeado, pois íamos frequentemente para a praia, onde
eu e Cristian sempre caminhávamos. Quando passávamos por algum esgoto,
Cristian me pegava no colo, coisa que eu adorava. Engraçada a vida, hoje só chego
a certos lugares se me pegarem no colo.
O Ano Novo foi inesquecível. Fui para a praia com Cristian, que levou uma
garrafa de champanhe. Vestimos branco e ficamos abraçados, aguardando a meia-
noite. Na hora do Réveillon, estouramos o champanhe e nos beijamos. Vimos
os fogos de artifício sobre o mar, e pulei sete ondas na praia pedindo sorte. Tudo em
vão. Foi o ano mais azarado da minha vida. Depois de ter comemorado a passagem
de ano, fomos a um show e dançamos pagode. Tudo estava absolutamente
perfeito, lamentei termos que dormir separados.
Acabou o sonho, e a realidade nos chamava. Tínhamos que voltar. Viajei com
Cristian, apesar de lamentar o faceto de ser o primeiro Ano Novo que passaria longe
dos meus pais. Esse faceto pesou muito na minha decisão. Tenho um tio que
vive dizendo:
- Família desunida permanece unida.
É isso. Nós discutimos, mas nos adoramos. E agora posso dizer que
realmente seria impossível viver sem eles. Não só meus pais, mas também meu
irmão. Meu irmão que, conversando comigo, ainda me dá motivos para rir. Tanto foi
assim que no dia 2 de janeiro de 1994, quando voltei, estourei champanhe com
minha família, como se fosse dia 31 de dezembro.
Cheia de pretensão, imaginava enfim vencer todos os obstáculos. Pensei que
o ano de 1995 seria o ano em que recuperaria meus movimentos e minha fala. Eu
não tinha noção. É muito mais difícil do que se pensa. Agora sei...

Dia 7 de novembro de 1996


Boa tarde, Juliana!
No começo de 1995, fui para o Nordeste. Mais precisamente em fevereiro,
passar o mês. Já não usava fraldas e controlava a hora de fazer xixi. De forma
alguma é parecido com o que eu era. Antes era só ficar "com vontade" e correr para
um banheiro. Agora, não. Controlo meu organismo de forma que eu faça xixi antes
de sair. Nem sempre dá para me levarem a um banheiro. É o caso, por exemplo, do
avião.
Percebi que temos mordomias numa cadeira de rodas. Quando um lugar
público está lotado temos vagas privativas para nossos carros. Mas há sempre os
espertinhos que não respeitam nossa deficiência. Não pegamos filas. Assistimos
aos shows na frente. Às vezes, entramos em cinemas sem pagar. E no aeroporto
somos carregados primeiro para o avião, temos lugar especial para aguardar o vôo e
podemos ter excesso de bagagem.
Eu adorava avião. Acho um transporte seguro e rápido. Era uma festa voar
para o Nordeste. Mas todo o mundo sabe que, no avião, passa-se o tempo comendo
e bebendo. Isso que devia ser um lazer, virou um martírio para mim.
Beber é um problema. Bebida alcoólica? Não posso. Refrigerante? Dá
coceira. Suco de tomate, que eu adoro? Agride o estômago. Bebidas com
chocolate? Prendem o intestino. Sucos de frutas e água? Provocam engasgo...
Comer é outro problema. Não mastigo, consequentemente, não como carne. Como
de boca aberta. Alguém tem que me dar comida na boca e, como não mexo a
língua, me sujo toda.
Eu sentia milhões de olhos voltados para mim e morria de vergonha. Até rir
era constrangedor. Vi que o que antes eu adorava agora era ruim para mim, O que
em geral era legal, podia ser muito doloroso. Só entendi isso depois.
Passei a avaliar as coisas sob um prisma novo, cujos reflexos eu não conhecia.
Antes, quando era convidada para ir a algum lugar, só tinha que pensar se ia gostar
ou não. Se me agradasse, eu ia. Agora, me pego pensando:
Como será o acesso? Como vou comer? Beber? O que vou fazer se...?" Se,
se... todos os se que eu nem levava em consideração.
Eu ficava o tempo todo imaginando como meus avós e meus tios iriam me
receber... A recepção foi calorosa e um pouco triste. Quando vi minha foto antiga na
estante da minha avó, chorei de saudade.
Virei atração turística, triplamente. Primeiro, porque era de São Paulo;
segundo, porque era tetraplégica e, terceiro, muda.
Tia Maria e mamãe me davam tudo o que eu precisava. Eu exigia sempre
uma pessoa perto de mim... Eu, que era totalmente independente, tive que me
acostumar a viver dependendo das pessoas.
A casa de vovó virou ponto de romaria... Todos arranjavam um pretexto para
me ver e saciar a curiosidade. Eu me senti uma marciana. Uma tarde, apareceram
umas deficientes físicas que não sei se eram parentes, nem sei os nomes. Elas me
pediam para ter força e paciência. Contavam que sofriam preconceito. Depois que
elas se foram, eu disse para mamãe, soletrando:
- Não sou deficiente física.
Meu irmão, que estava no quarto, disse:
- Na verdade, a sua lesão é no cérebro. Você é uma deficiente mental.
Mamãe concluiu:
- Mas deficiente física se encaixa melhor para ela. Não é, mas está.
Comecei a me familiarizar com o termo.
Mas algumas visitas me emocionaram. Eram as minhas amigas que saíam
comigo no passado. Morria e morro de saudades daquela época. Alguns dos meus
paqueras e ex-namorados também vieram me ver. Eu, agora, nem podia falar com
eles... Que situação mais infeliz! Definitivamente, eu não gostava de ser vista. Ainda
bem que Mauro, Juninho e Roberto não apareceram...
 No engenho do marido de Tia Maria conheci o Mauro, um sobrinho dela.
Mauro é pouca coisa mais velho que eu. Quando ele era pequeno era metidinho e
gorducho. Na época em que conheci Roberto e Juninho, vi que Mauro tinha mudado,
mas não reparei muito.
Chegando lá, o Mauro estava dormindo numa rede, e eu fui tomar banho de
cachoeira. Quando ele acordou, que surpresa! Ele é lindo! Ou melhor, ficou lindo!
Alto, olhos verdes, loiro, super bronzeado do sol do engenho e um baita corpo
devido ao trabalho. Uma massa humana perfeita!!!
Depois ele me convidou para andara cavalo. Montei na frente da sela e
Mauro montou atrás de mim. Foi demais! Ele me abraçou, beijou meus cabelos e
perguntou se eu ia à festa de noite. Respondi:
- Claro! Nós vamos, né?
No fim de semana eu fui para a baía Traição. E encontrei com o Mauro.
Namoramos, bebemos, dançamos, conversamos e passeamos de moto. Foi the
best!
Tia Bianca falou na mesa do pavilhão onde estava tendo a festa:
- Lu, tem um cara sentado atrás de você que falou que quer te conhecer.
Olhei, e o cara era muitíssimo sensual. Ele estava me olhando pelo canto dos
olhos, com um leve sorriso nos lábios. O Juninho não era bonito, mas era
charmosíssimo. Ele veio e me tirou para dançar. No caminho para a pista de
dança, ganhei flores de um rapaz desconhecido.
Durante a dança, ele me apertou bem carinhosamente... e eu também. Mal
acabou a primeira música, ele me beijou e disse:
- Desculpa, não deu para resistir.
Eu ri e falei:
- Está desculpado.
Quis mais um beijo dele, o que consegui facilmente. Dançamos bem
apertadinhos, e eu gostei.  Dia de Natal, 25, à tarde, Juninho foi me encontrar na
casa de Tia Maria e ficamos juntos. Ele continuou sensual, envolvente, charmoso e
atraente.
Amanhã volto para João Pessoa. Vou voltar a tomar sol. Lá os amores são
outros... Quero rever o cara do ônibus, o Roberto. A dor que sinto é a mais forte que
já tive, e me faz crer que vou sofrer muito de amor, Amor verdadeiro, amor
amizade, confiança, atração, alegria, companheirismo... enfim, amor com todas as
letras e sintomas.
Ainda em João Pessoa, uma coisa não me saía da cabeça: Roberto, o
moreno que vi no ônibus. Virando a rua acima da casa de Tia Bianca, num dia
qualquer em que fui dar uma volta a pé com minha tia, quem eu vejo? O moreno
mais lindo das galáxias, o dito-cujo. Fomos apresentados. Ele me abraçou, segurou
minha mão bem forte e disse que eu era linda. Os homens no Nordeste são muito
diretos...
À noite, ele apareceu. Enquanto ele fumava e conversava conosco, na
calçada, eu olhava para ele. Ele piscava para mim e sorria. Eu ria também.
Dia 6 de janeiro de 88, fomos todos a um barzinho. Senti-me super bem ao
lado do Roberto. Lindo, compreensivo, carinhoso, orgulhoso... Tudo perfeito. O olhar
mais brincalhão do mundo e um lindo sorriso estampado nos mais belos dentes.
O bar ficava perto da praia, e o luar nos guiou até lá. Na praia ele me beijou. E
como beija bem!!! Agradeci a Iemanjá o momento gostoso que eu estava vivendo.
Assim, começamos a namorar. Um namoro que não prometia nada...
provavelmente acabaria como tantos namoros de férias.
Mas muita coisa aconteceu e... nos apaixonamos.
O Beto aparece aqui todos os dias: de manhã, de tarde e de noite. Mal eu
acordo, já escuto a voz dele pela casa. A mãe dele até perguntou se ele não quer se
mudar de vez para a minha casa.
O tempo foi passando. Cada vez mais eu me apegava a ele, e ele a mim. Senti
que o nosso relacionamento era sério, então contei ao Juninho. Ele compreendeu.
Mas, numa manhã, ele estava comigo, em casa, quando Juninho ligou. Beto ficou
muito bravo e enciumado. Quando desliguei o telefone, ele disse:
- Acabou! Não vou servir de otário para ninguém.
Foi aí que vi que adorava aquele moreno, com o cabelo e o sorriso mais
lindos do mundo... Caí no choro, como nunca chorei por ninguém. Antes de ir
embora, ele disse:
- Independentemente de qualquer coisa, valeu ter te conhecido. O tempo que
passei com você foi o mais importante que já tive.
Fiquei chorando, pois percebi que tinha acabado tudo. À tarde, ele voltou.
Deitou-se no meu colo, me abraçou, beijou, disse que tinha se arrependido do que
falou, que me adorava... Eu já o adorava.
Uma noite, deitado no meu colo, ele disse:
- É terrível estar pertinho de quem se gosta e saber que essa pessoa vai
estar longe dentro de uns dias. Não se envolva com ninguém em São Paulo. Não
namore ninguém por muito tempo. Não me esqueça... Quando você voltar, a
gente fica junto.
Foi então que começou o pensamento para o futuro.
Para o depois das férias. Será que tudo não acabaria com minha partida? É, tudo
evoluiu muito rápido. Fomos a um show e, num ambiente cheio de energia, ele
disse:
- Eu te amo.
- Eu também - respondi.
O compromisso de namorar por pouco tempo, namoro de férias, mudou para:
"Não namore ninguém!". E os "Eu te amo" eram freqüentes. Assim, fomos nos
envolvendo cada vez mais... Quando eu vi, percebi que estava amando. Ele disse
que me ama, que tudo está em minhas mãos e que ele fica comigo até o dia que eu
quiser. Eu respondi:
- Para sempre.
O Beto fuma. Tem 16 anos, mas aparenta 18, e vai para o terceiro colegial
como eu. O último dia em que saímos, chorei muito de saudade, que, infelizmente,
não mata, mas maltrata. Ele também chorou. Semana que vem, estarei só, em casa.
No caminho para o aeroporto, o Beto fumou como louco e disse:
- Não esqueça que você tem alguém que te ama, que quer você acima de
tudo.
Quando subi no avião, pude vê-lo ao longe chorando no ombro de Tia Bianca.
Chorei a viagem inteira, abraçada ao ursinho de pelúcia que ele me deu. Que delícia
são esses namoros de adolescente....

Dia 9 de novembro de 1996


Querida Ju,
Comecei a fazer fisioterapia todas as manhãs. A físio realmente não me
deixa. É um mal necessário, não me dá férias!
Mamãe contratou um fisioterapeuta da cidade que, na verdade, não era físio.
Era um professor de Educação Física. Como ele não era careiro, vinha todos os
dias, menos nos fins de semana, quando a Margarida repetia os exercícios.
Wilson é um morenaço simpático, bonito e muito competente. Eu o considero
o melhor investimento do meu tratamento. Com ele, evoluí muito. Ganhei alguns
movimentos e consegui ficar sentada sem segurar em nada, graças a ele.
Mamãe e Tia Maria me arrumavam. Colocavam um colchonete na sala de
estar, e toda manhã vinha Wilson. Depois elas me davam banho e, posteriormente,
o almoço. À tarde eu ficava na rede ou fazendo exercícios de caligrafia na cama.
À noite eu jantava, via TV, e dormia cedo. Assim foi passando o mês. Mal vi a "cara"
da rua.
Margarida verdadeiramente é super amiga de mamãe. Essa realmente me
deu apoio. Ela arrumou os exercícios de caligrafia, patrocinou milhares de coisas,
além de me dar banho, levar-me para passear e para a praia. Quando fiquei
com febre, me deu remédio.
Também emprestou seu carro e foi nos levar ao aeroporto... Ela foi
excepcional!
Héricles foi para o Nordeste de carro, com um amigo do meu irmão.
Realmente não existem palavras para descrever o Héricles daqueles tempos. Tudo
o que ele podia me proporcionar, ele proporcionava, e todo o carinho e apoio que ele
podia dar, dava. Comecei a ver a rua, a sair de casa, após a sua chegada. Ele me
carregava até o carro e passeava comigo pela cidade. Com ele e com o amigo do
meu irmão, eu até conversava e comecei a me distrair um pouco mais.
Héricles chegou a organizar uma festa beneficente lá, para arrecadar mais
fundos para meu tratamento, pois é inacreditável o quanto se gasta. Decidi que não
iria a essa festa, pois, definitivamente, eu não estava com exposição.
Além de ser constrangedor ser vista, era depressivo, pois festas lembram quem eu
fui um dia. Emprestei uma roupa nova minha para Tia Maria. Esse era um modo de
eu estar presente. E da maneira que eu queria ser lembrada. Aproveitei e mandei
um recado para Mauro também:
- Quando eu puder, vamos voltar a dançar.
Ele pediu que Tia Maria me dissesse:
- Tenho certeza de que isso vai acontecer.
Ambos erramos, nunca mais... mas eu não sabia.
Héricles, Marcus e o amigo saíam e namoravam muito. Realmente o
Nordeste é uma festa para quem é são. No começo eu ficava triste, por vê-los
saindo e não poder acompanhá-los, e também por ser tão prontamente excluída.
Cada vez que eles saíam para se divertir, era uma facada no meu coração.
Depois comecei a me divertir ouvindo as experiências do meu irmão.
Até hoje, vivo a vida dele. Gosto de vê-lo quando está se arrumando para
sair. Fico me imaginando, através das suas histórias, paquerando, dançando, rindo,
bebendo... Não é nem 1 por cento das emoções que eu tinha, mas é alguma na
minha vida pacata. É o que digo, viver assim é só para passar vontade e viver do
passado. Só que, como diz Marina Lima em sua música: "Os momentos felizes não
estão escondidos nem no passado, nem no futuro".
Teve também a festa da padroeira. Eu havia namorado, dançado, conversado
tanto nas festas de outros anos. Não dessa vez. Preferi ficar na minha cama
hospitalar, dormindo. De madrugada, acordei e ouvi ao longe a música da festa.
Imaginei centenas de pessoas fazendo tudo o que eu fazia. Ao meu redor, havia
agora uma cama hospitalar, uma rede, uma TV e cadernos de caligrafia. Fiquei
desesperada. Nem cantar a música que vinha de longe eu podia. Poxa, eu só
tinha 23 anos! Entende por que digo que fui arrancada da vida? Por que tanto ódio e
rancor? Naquela cama eu tive certeza: o destino foi tremendamente cruel! Eu não
podia fazer muita coisa, mas o que podia fiz: chorei um pedaço da noite,
depois adormeci com uma mágoa profunda.
No dia seguinte chorei o dia todo e vomitei umas quatro vezes, apesar de não
ter comido nada. Héricles, preocupado, me levou a um neurologista de outra cidade.
O médico me achou bonita. Hum, quem me viu, sabe: bonita eu era... Olhou meus
exames e disse:
- Ela tem sorte de estar viva.
E eu pensei comigo mesmo:
"E um terrível azar de ter sofrido uma trombose..."
Foi aí que comecei a pressionar para irmos para João Pessoa. Lá eu via um
pouquinho de diversão, pois teria, pelo menos, uns banhos de mar. "Pegar uma
praia", como eu estava acostumada, nem pensar... Sem biquínis decotados,
sem andar à beira-mar, sem passar bronzeadores pelo corpo, sem nadar e pouco,
pouco sol. Mas, mesmo assim, era melhor do que passar as tardes numa rede.
Comecei a querer ver praia, pois estava cansada de passar as férias numa rede ou
tentando escrever.
O Sol foi só o que me sobrou. Tia Maria começou a me pôr ao sol depois da
fisioterapia. Eu ficava sentadinha na varanda de vovó, na cadeira de rodas, sem
nenhum movimento, uma estátua ao sol. Eu digo que o Sol foi só o que me
sobrou, mas não é tão simples... Apesar de adorar, nas raras vezes em que tomo
sol, a válvula que existe na minha cabeça esquenta, fico com dor de cabeça,
vermelha, tonta e vomito. Preciso maneirar hoje as doses de sol.
O mês estava acabando, e nada de praia. Finalmente, mamãe conseguiu a
casa de Tia Bianca emprestada, na praia de Cabo Branco, em João Pessoa.
Margarida ia ficar no apartamento que tinha no litoral para nos ajudar. Um carro era
imprescindível.
A princípio, eu teria de fazer a inseparável fisioterapia, teria de tentar fazer
fonoaudiologia e, para me locomover, eu iria necessitar de um carro. O motorista
nós tínhamos: Marcus. Faltava o carro. Provisoriamente, precisei dar adeus a
essas atividades.
Luana é uma moça negra, muito dinâmica, afilhada de vovó. Mora com meus
avós e faz um pouco de tudo. Mamãe precisava de ajuda para cuidar da casa e de
mim, no litoral, e contratou Clotilde, a irmã mais velha de Luana. Um dia, Clotilde
passou leite de cabra no meu cabelo e me pôs ao sol. Eu tinha esperança de que
meu cabelo voltasse à antiga cor... Depois do banho, me olhei no espelho e... que
decepção. Não vi nenhuma diferença... Passei de tudo no meu cabelo: mil e um
xampus, camomila, leite... mas não tem jeito, ele enegreceu de vez. Desisti. Sou
mesmo uma morena hoje.
O carnaval veio e eu desejei estar pronta para pular atrás de um trio elétrico.
Os rapazes jantavam, saíam, iam a bailes a noite toda e chegavam de manhã. Eu
assistia às festas pela TV.
De manhã, eu acordava cedo, quando o sol é mais fraco, e ficava sonhando
com a praia. Mas os rapazes, logicamente, dormiam. Só consegui ver o mar à
tardinha, umas três vezes, graças ao Héricles e à Margarida. Essa foi a temporada
que passei no Nordeste. Não foram bem férias, porque não trabalho, não estudo...
vivo de "férias", esperando minha aposentadoria.
A última novidade que ouvi por lá foi sobre Roberto: ele estava noivo. Meditei
e vi que a vida continuava. Estou quase perdendo o contato com Roberto. O tempo
e a distância vão acabar com tudo... eu sinto que vai. Dará certo uma relação
assim?
Tenho adoração por Roberto. Sem ele, nunca mais vou ser a mesma, mas
sinto que ele está se distanciando. Completamente inativa, sem poder fazer nada, só
morrer. De saudade de ti, meu desejo.
Meus avós, Tia Maria e filhos foram se despedir de mim. Viajaram de Alagoa
Grande para João Pessoa com esse objetivo. Pena que o tio Nana não foi. Aliás,
esse irmão de mamãe é, atualmente, o tio de que mais gosto. Ele se mostrou muito
verdadeiro e fez o que era possível para me ajudar. Foi ele que tocou violão na
minha festa beneficente e me viu preencher cadernos de caligrafia nas tardes vazias
que eu tinha em Alagoa Grande.
Enfrentei o vôo de volta para São Paulo. E encontrei papai no aeroporto, com
uma rosa.

Dia 12 de novembro de 1996


Oi, minha amiga calada.
Chegando em casa, fiquei contente em rever Stéphanie. Já não tínhamos
Alice. Desde 94, mamãe acorda e vem me virar de madrugada. Além de não dormir
direito, ela cuida da roupa da família, da comida, é enfermeira, advogada,
farmacêutica, acompanhante, passadeira, cozinheira, juíza... Mãe é mãe! Mas a
minha vai além de uma mãe comum.
No começo de 1995 eu já não causava sensação. A minha casa, que era
lotada de amigos, parentes, curiosos, vizinhos e conhecidos, foi-se esvaziando.
Claro que fiquei esperando as pessoas aparecerem com a mesma assiduidade
do começo. Diversas vezes pensei:
"Faz tempo que Beltrano não aparece". Deve vir neste fim de semana...
E ficava esperando, mas Beltrano não vinha... Pouco a pouco, meus amigos
deixaram de ser amigos e seguiram suas próprias vidas. Meu pai é quem diz:
- É a vida. Você tem que entender que não faz mais parte do dia-a-dia deles.
Eles têm a própria vida.
Tantas pessoas saíram da minha convivência, que nem vale a pena listar...
Há também aquelas visitas que a gente não espera. É o caso de alguns paqueras e
ex-namorados que nunca foram meus amigos. Amizade é um sentimento que
não cultivo por eles. Pois bem! Alguns agora se colocam como "amigos"... Acho que
o único que sinto verdadeiro prazer em receber é Richard. Ele realmente virou um
amigo. Frequentemente vem me ver, gosta de ficar horas me ouvindo soletrar.
Formado, freqüentador do CEPE-USP, bonito, gosta de dançar, tem um bom papo.
Foi no verão de 92, no CEP, que eu o conheci, quando ainda fazia
Engenharia Mecânica na Escola Politécnica. Um "caso que também sempre foi
revestido de amizade é o Kiko, que igualmente me dá prazer quando aparece". Mas
Lucas, Lu, Cristian, Caio, até o Walter, me fazem lembrar de que deixei de ser
mulher... Junto com a trombose, foi-se a minha feminilidade.
Recebi uma declaração de amor, realmente linda, de um carinha lã da
classe: o Kiko. Pobre Kiko. Ele me deixou confusa. Em alguns momentos nem eu
me entendia. Não valeu a pena gostar de mim. Não no lugar do Kiko. Ele faz meu
ego subir, e é claro que gosto disso. Senti falta dele. Misturei sentimentos e dei
esperança. Na festa de sábado, a decepção foi muito maior. Quando fiquei com o
Sandro. Ele chorou.
Hoje ele me ligou e me convidou para sair. Fomos até a Serra da Cantareira,
e ficamos juntos. Gostei muito de ter ficado com ele, mas faltou aquele "logo mais"
que, quando não surge, não tem jeito.
Com poucas visitas, sobrava-me tempo para as terapias. Comecei a fazer
hipoterapia na Fundação Selma. Um fisioterapeuta montava comigo, num cavalo de
verdade, O cavalo me emprestava seu andar. O balanço do cavalo é tridimensional:
para cima e para baixo, para a frente e para trás, e para a direita e para esquerda.
Dizem que melhorei muito de postura e equilíbrio de tronco, mas eu não percebo a
diferença.
Em 95 eu tinha um tratamento super intensivo. Eu queria melhorar logo. Fazia
diversas terapias, em todos os períodos, em todos os dias: fono, físio,
hipoterapia, ortostatismo, terapia ocupacional, psicologia... Este ano meditei e vi que
minha melhora é muito lenta. Controlei minha ansiedade e reduzi minhas terapias
pela metade.
Conheci a AACD, cujo hospital está cheio de deformidades: acidentados,
problemas congênitos, gente em cadeira de rodas, muletas, andadores e até de
cama. Nunca vi tanta gente amputada e destruída junto. É cheio de
gente "despedaçada". Se a Fundação Selma é a "casa dos monstros", a AACD é o
"hospital dos horrores.
  Quando lá cheguei, passei primeiro por uma médica gorducha. Ela me
perguntou:
- Você quer melhorar?
Lógico que eu queria. Que pergunta!... Balancei afirmativamente a cabeça.
- Temos que internar...
Mas o preço da internação era exorbitante, fugindo completamente do nosso
orçamento. Então, fiz uma avaliação com diversas terapeutas. Comecei a fazer
ortostatismo e fisioterapia duas vezes por semana e pus meu nome na lista
de espera de hidro e T. O. - terapia ocupacional.
Ortostatismo nada mais é que passar uns 40 minutos em pé, na frente de um
espelho, corrigindo a postura. Toda amarrada, logicamente, a uma prancha. Nesses
40 minutos, observei muita gente chegar na sala de fisioterapia de cadeira de rodas
e sair andando. Usando próteses, muletas, andadores... mas andando. Em geral, os
terapeutas da AACD davam um jeito de reabilitar os pacientes. Eu melhorei,
mas não saí andando.
A minha fisioterapeuta era excelente. Tereza era uma japonesinha jovem,
com cabelos lisos até o ombro, magra e de óculos. Ela treinava meu equilíbrio em
diversas posições. Eu gostava muito dela. Até que tive de trocar de terapeuta.
Então as sessões de físio despencaram de qualidade nas mãos de Laura,
aquele tipo de fisioterapeuta cheia de falsos risinhos e elogios que afrontam minha
inteligência. Péssima profissional, adorava bater papo. Um dia ela me largou
meia hora na cama, numa sessão de 40 minutos, e foi falar no telefone. No começo,
esperei pacientemente. Depois eu me enchi e quis ir embora. Aí eu lembrei que não
andava. Pensei em pedir ajuda. Lembrei que não falava. Só então me dei conta
de que eu não tinha nada para fazer e me senti largada.
No começo fiquei com muita raiva por estar nas mãos de uma físio tão pouco
profissional. Mas o tempo foi passando, e eu lá deitada... pensando. Concluí que eu
ainda teria que conviver muitas horas com Laura e que, para eu ter uma fisioterapia
"menos ruim", era melhor manter, aparentemente pelo menos, uma relação de
simpatia entre paciente e terapeuta. Percebi que eu teria de fazer de conta que
quase não perdi 30 minutos de uma terapia de 40, e que não notei que a terapeuta
me deixou numa cama para falar no telefone. É fácil fazer de conta que sou pouco
esperta. Sem precisar me esforçar, já duvidam da minha inteligência. Então, quando
ela voltou, pediu desculpas. Eu balancei a cabeça afirmativamente, mostrando que
estava tudo bem. Situação igual se repetiu um milhão de vezes.
Fiz fisioterapia cinco meses e depois recebi alta. Na AACD é assim...
Melhorou? Não? Azar, O sistema é de rodízio. Todos querem uma chance.
Enquanto isso, comecei a hidro e a T. O. A hidro foi a única terapia que chegou
perto de me agradar. Lembrava o CEPE-USP. Piscina, chuveiro, maiô...
A terapeuta era bem medíocre, mas é difícil encontrar bons e experientes
profissionais.
Tive que entrar na fila de espera de T. O. por duas vezes. Pois a primeira
terapeuta, numa das primeiras sessões, deixou de me atender por um pequeno
atraso, pois estávamos no estacionamento, esperando o carro da frente descarregar
outro deficiente. Eu não falo, mas sou plenamente consciente. Eu lembrava que, por
motivos menores, qualquer faculdade dá 15 minutos de tolerância. Já disse que
entre terapeuta e paciente é necessário haver afinidade. Então, como é que eu ia
passar horas na presença de uma mulher ignorante?
Mais tarde, fui chamada para fazer T. O. e gostei muito da nova terapeuta.
A hidro e a T. O. se estenderam por todo o ano. Até que abandonei. Deixei a
AACD quase no final do ano. Fui visitar a médica gorducha que me viu no começo
do tratamento na AACD, e ela me deu "um banho de água fria". Falou, com outras
palavras, que, se em um ano não melhorei, nunca mais eu voltaria a andar. Que eu
era adulta e consciente e que era melhor não alimentar falsas ilusões. Fiquei com
tanta raiva que parei toda e qualquer terapia na AACD. Se eu conseguir andar, volto
lá e falo:
- Está vendo? Consegui!
Ops, sempre esqueço... Falar como?!
Eu não sei o quanto as esperanças e a força de vontade contribuem para eu
voltar a andar, mas uma coisa é certa, tenho que acreditar, com todas as forças, que
vou voltar a caminhar. Sem acreditar, não tenho chance.

Dia 13 de novembro de 1996


Jujuba,
Em abril do ano passado, mudamos de casa. Infelizmente ela tem dois
andares. Tenho que ser carregada para todo o lado, pois meu quarto é no segundo
andar, e a saída é no térreo. Muitas vezes meu irmão, super atlético, me carrega.
Digo sempre que "Marcus é as minhas pernas". Não só aqui em casa, mas
também em todo o lugar a que uma cadeira de rodas não tem acesso, ele me põe
nos braços e me leva até esses locais que seriam inatingíveis para mim. Se ele não
está, tenho que ser carregada pelos meus pais.
Essa eu não considero minha casa. Não ando por ela, não abro a geladeira,
não ligo o chuveiro, não abro nem fecho portas, não ponho a mesa, não me olho no
espelho... só vivo aqui. Quando pego a estrada que vai para minha antiga
casa, parece que estou indo para minha casa. Vejo que, infelizmente, não é essa a
realidade. O trajeto se transformou. Há dezenas de construções novas, que não
existiam quando eu dirigia meu Uninho.
Em 1995, no segundo semestre, papai foi para a Itália. Mandei carta para
Cesari, Luigi...
 Visitamos um primo do meu pai. Estavam lá os seus três filhos homens e
mais dois amassos. Luigi me agradou especialmente, mas ele é muito tímido...
espero vê-lo novamente. Aqui em Nápoles, conheci o Cesari. Ele estava na casa de
uns amigos do meu pai. Fomos jantar na casa dele e durante o jantar ficamos
conversando. Falo razoavelmente bem o italiano.
Minha impressão é de que o Luigi, de 16 anos, é mais maduro e mais
inteligente que o Cesari, que tem 20. Durante o jantar ele me deu um monte de
indiretas, que até no Brasil já são velhas. Hoje o Cesari já me telefonou. Por ele ser
educadíssimo, e por meus pais gostarem muito dos pais dele, talvez a gente saia.
Mas, decididamente, ele não fez meu tipo.
Quando Cesari veio da Itália para passar as férias aqui, eu só sabia que ele
era um pouco mais velho que eu, e que eu tinha uma certa queda por italianos.
Sonhava em me casar com um. Mas não tinha a mínima idéia de como ele estaria,
fazia muitos anos que não nos víamos. De qualquer modo, decidi levá-lo conosco no
Carnaval de 94.
Cesari havia se transformado num rapaz interessante, bem diferente daquele
chato que pegou no meu pé na Itália. Ele chamou minha atenção, e eu adorava o
seu jeito de falar. Cesari também era farmacêutico, o que aumentava a afinidade
entre nós. Apesar de tudo isso, e de ele me agradar, comportei-me como namorada
do Cristian. Só não sei qual teria sido minha reação, se Cesari tivesse tentado ficar
comigo...
Dia 14 de fevereiro de 94 fomos para a praia da Fortaleza, no litoral norte de
São Paulo, onde fica o clube. Fomos de carro para a praia, que tinha um acesso
super difícil.
Ficamos um tempão numa estrada de terra, cheia de obstáculos e com
desfiladeiros íngremes. Mas a paisagem, após cada curva, era linda. A praia não
tinha nada de especial, a não ser o clube. Cesari nos convidou para ir até lá, após
uns momentos de sol. Todos nós, inclusive eu e o meu irmão, aceitamos o convite,
menos Cristian e Nelson, que permaneceram na esteira.
Chegando lá, procuramos uma mesa e pedimos caipirinhas com lulas fritas.
Cesari se propôs a pagar tudo, ou quase tudo, não me lembro. Sei que tudo que eu
e meu irmão comemos e bebemos, para mim, saiu de graça. Cesari não estava só
nos oferecendo uns drinques, estava com o objetivo de nos embebedar. Meu irmão
e Cesari foram espertos. Divertiram-se muito, mas não ficaram bêbados. Achei a
caipirinha de vodca de lá uma delícia e dei até um beijo no rosto do garçom.
Tomei umas cinco.
Saímos de lá totalmente trôpegos, principalmente eu, Caio e Eugênia. A praia
tinha se tornado estreita, para nosso andar em ziguezague. De longe pude avistar os
olhares de espanto do Cristian e do Nelson. Jogamos Eugênia na água e entramos
todos no mar. Cesari veio nadar pertinho de mim, me abraçou, me pegou no colo, e
me beijou.
  Vou beijar-te agora  não me leve a mal hoje é carnaval...
Nesse clima de folia, deixei minha empolgação falar mais alto, apesar do
olhar indignado e furioso do Cristian, que mal podia crer nos seus próprios olhos. Já
mais sóbria, expliquei para Cesari que tudo deveria acabar por ali, pois não queria
qualquer tipo de compromisso. Ele aceitou super bem, e no dia seguinte
continuamos com nossa relação, super amigável. Na verdade, nenhum dos dois se
envolveu, só cedemos a uma atração.
Consegui escrever as cartas, e na volta papai trouxe as respostas. Tanto a
carta do Luigi como a do Cesari eram repletas de palavras animadoras, cheias de
força e coragem. Não, não eram mais os homens que mostravam
segundas intenções nas entrelinhas, eram agora os amigos presentes em palavras,
com tanta fé e esperança que me emocionei muito ao lê-las.
Ah! Um dia pedi a João, o chato de um motorista, que parasse em frente ao
prédio do apartamentozinho do Lucas, a "nossa casinha". Argh! Depois do acidente,
acho que fiquei piegas! Passei bem uns 20 minutos olhando e recordando
dias felizes.
Lembrei-me que há bem pouco tempo passei lá momentos inesquecíveis. Só
assim eu ficava perto de momentos prazerosos: lembrando. Lembrei-me dele me
levando lá pela primeira vez, dando-me uma bonequinha de pano e fazendo
amor, magnificamente, no chão da sala. Dizendo:
- Lu, você finge que mente e seus pais fingem que acreditam...
E tocando violão para mim. Dormindo comigo n vezes e dizendo escassas
vezes:
- Eu te amo.
Eu, fumando na varanda, enquanto ele dormia... e o topázio azul do Dia dos
Namorados. Naquela época eu achava que a vida era ingrata o bastante, porque
Lucas ia passar três meses nos Estados Unidos. Tive certeza de que era. Senti
uma profunda nostalgia desses preciosíssimos anos da minha vida e chorei.

Dia 15 de novembro de 1996


Bom dia, Ju!
Considerando essas minhas experiências nostálgicas, resolvi pedir ao Lucas
um dia no sítio. Expliquei a ele que eu estava vivendo uma fase de saudades e
queria rever esse lugar onde fui muito feliz. Na minha mente, eu me via na cadeira
de rodas mesmo, com os poucos e bons amigos, a lareira acesa, Lucas no violão,
todos comendo pudim de leite... igualzinho aos bons tempos.
Muitas vezes a gente passava o dia de domingo no sítio com os amigos mais
chegados. Minha mãe fazia um pudim de leite condensado que todo o mundo
adorava, e eu levava a melhor sobremesa para o nosso churrasco. Lucas sempre
levava o violão para o sítio e tocava para mim. Adorava ouvir Stand By Me, de John
Lennon, e Logical Song, do Supertramp, no seu inglês perfeito. Às vezes eu dava
um jeito para dormir lá no final de semana. Lembro-me de um desses fins de
semana, numa noite de amor, em que eu estava com a libido a toda e atingi oito
orgasmos! Ele, cinco! Esse homem era ou não perfeito?
Para começo de conversa, convidei todos os poucos amigos que sobraram.
Tirando Héricles, Stéphanie e meu fiel irmão, todo o mundo arranjou uma boa
desculpa para não ir.
Depois de muito pensar e remoer toda minha história com Lucas, cheguei à
conclusão de que suas visitas amigáveis eram muito cômodas. Ora, levando em
consideração que a pílula foi um co-fator necessário para minha trombose, ele bem
que poderia ter feito o que Héricles fazia. De vez em quando, ele poderia me
carregar para o seu carro, passear comigo no shopping e sentir os milhares de
olhares inquisitórios. Vir me ver com mais freqüência. Viajar comigo, já que agora eu
não podia viajar sozinha. Levar-me à praia, à piscina, ao cinema, a um bar... ou seja,
dar um pouco de vida social a quem gostou tanto dele...
Fui eu quem decidiu que ia tomar pílula. Também, tinha que ser. Eu nunca ia
aceitar um namorado me dizendo o que eu deveria ou não fazer. Como foi que
decidi tomar pílulas? Sem sombra de dúvida, Lucas sabe. Ele que, hoje, nem sabe
direito se comunicar comigo e morre de medo que eu espirre na presença dele. Belo
apoio à ex-namorada apaixonada, que conviveu com ele três anos. Tomar a pílula
foi uma decisão conjunta, mas quem ficou tetraplégica e muda fui eu!
Sabe, eu acho muito cômodo isentar-se da responsabilidade da minha
tragédia pessoal, afirmando que não tem nada com isso, Se eu falasse, já teria
provado por A mais B que a pílula contribuiu mais na minha trombose do
que gostaríamos de acreditar. Nós, porque eu também queria estar livre de qualquer
culpa... Uns dizem que a pílula foi 100 por cento responsável pela trombose. Outros
acham que foi um dos fatores, mas ninguém a isentou. Ninguém, não, só
Lucas, quando toquei no assunto. Acho que o faceto de ele não querer aceitar isso é
simplesmente prova de que quer deitar no travesseiro e dormir tranqüilo.
Só depois de dois anos é que tomei consciência de que a atitude de Lucas era
muito cômoda para ele. Fiquei, integralmente, com a pior parte da nossa história. Eu
esperava tanto ver um Lucas forte... Mesmo durante o nosso namoro, eu via sinais
de fraqueza, principalmente em situações difíceis.
Eu tinha uma sensação estranha, sempre tive: achava que um dia uma
tragédia ia acontecer na vida do Lucas. Um acontecimento que exigiria dele o pulso
e a força que ele não tinha. Então, ele cresceria e seria um homem mais que
perfeito. Caramba! Não imaginei que esse faceto contundente seria eu! A
tragédia aconteceu, mas ele não tomou conhecimento. Não cresceu. Fez de conta
que não era com ele, que não lhe dizia respeito.
Demonstrando o antigo desinteresse, Lucas apareceu duas horas e meia
depois do horário marcado para me levar ao sítio. Eu queria xingar e gritar:
- Covarde!
Traduzi toda a minha raiva num fraco soco em seu braço, que nem machucou.
Frequentemente fazia isso. Batia e mordia quando estava com raiva. Parecia louca,
não é? Não, não era. Precisava mostrar minha raiva, externar minhas revoltas, como
todo o mundo. Sobraram-me apenas esses gestos.
No sítio, Lucas fez o churrasco, mas como mastigar carne está além das
minhas capacidades, comi uma macarronada, escondida na cozinha, morrendo de
vergonha do Lucas. Lamentável... tenho vergonha agora de ter feito isso! Cretinice!
Depois do almoço, foi todo o mundo dormir. Lucas entrou e Stéphanie fomos
para um quarto cheio de beliches. Este era um cenário inédito: dormir longe do
Lucas. Desde que nos conhecemos, nunca dormimos separados. Dormir... Até
parece que isso era possível! No escuro, imaginei-me com um corpo bem-feito,
cabelos compridos, andando até o quarto do Lucas, batendo na porta, dizendo-lhe
um "oi", dando-lhe um beijo e deitando-me no meu lugar, na cama de casal. Até bem
pouco tempo, sem dúvida, era isso que faria.
Depois que todos acordaram, ainda lancei um olhar nostálgico para o interior
do nosso quarto, e vi meu lugar na cama de casal, intacto. Quantas vezes aquela
cama foi nossa? Bom, pelo menos não presenciei outra garota pegando o lugar que
era meu. É como dizem: "Longe dos olhos, longe do coração".
Na volta, sem querer, fiz Héricles se perder do carro do Lixas. Conclusão:
odiei esse dia!
Sabe, minha querida amiga Ju, eu queria mostrar a você como uma trombose
cerebral me transformou. Meu pescoço ficou fortemente virado para o lado direito.
Esse lado, além de ter pouco movimento, é caído. é visível o ombro direito mais
baixo que o esquerdo. E a cabeça sempre pende para o lado direito, desequilibrando
ainda mais o meu corpo. Mas eu não percebo esse desequilíbrio. Aliás, meu "meio"
é o lado direito. Se me pedem para pôr a cabeça no meio, eu a coloco um pouco
para a direita, O pescoço de todo o mundo é reto, o meu é em diagonal. Para a
direita, claro!
Minha coluna tinha o formato de um S, agora parece um C. Fiquei corcunda.
Logicamente, os seios, que eram eretos, caíram. Quando voltei do Einstein, achei
que era devido aos três meses sem sutiã. Depois entendi que a coluna tem mais a
ver com isso do que eu supunha. E virou um C, porque passo horas deitada.
A barriga, sem musculatura, ficou enorme. Os velhos jeans não entram em
mim de jeito nenhum. Calças de cintura baixa ficam ridículas. Só uso calças de
elástico. É uma tortura me lembrar da antiga barriguinha queimada de sol e
com pêlos dourados. Agora, é grande, branca... Só uso maiô, para não ficar mais
ridícula. Dei adeus aos biquínis.
Respiro expandindo o tórax, não com o abdome. Às vezes, na fisioterapia, o
terapeuta diz:
- Barriga para dentro, peito para fora!
Mas eu não tenho nenhum controle. A parede do consultório é mais
obediente.
Meu quadril está torto. Está inclinado para a esquerda. Isso dá a impressão
de que a perna esquerda é maior que a direita. Mas não é verdade. De faceto. É o
quadril que está virado.
Os pulsos são caídos, ou flecidos, como dizem os terapeutas. Até a mão que
tem mais movimento, parece que cede ao próprio peso e fica flexionada.
Minhas pernas são hiper, supefinas. Tenho até vergonha de pôr uma
bermuda. Como se fosse pouco, ainda tem meus pés que, antes da cirurgia, eram
tortos; agora, nem parecem os meus, ficaram diferentes, estranhos...
Um dia Nicolas veio em casa e me deu a pior notícia que já recebi. Ele estava
fazendo fisioterapia com um terapeuta cobra. Até tentei ser paciente dele. Esse físio
era da Fundação Selma, mas montou sua própria clínica. Esse é o tipo de terapeuta
que me exclui do rol de suas pacientes, apesar de ele ser muito bom. Quem sabe se
eu fosse rica?
Nicolas me contou que o seu terapeuta disse que é ramos iguais. Que entre
um AVC e uma paralisia cerebral é só a idade que difere. Não sei a veracidade
dessa informação. Também não sei se Nicolas se explicou direito. Vi-me daqui a 23
anos, com a idade que Nicolas tem agora, numa cadeira de rodas. Pode até ser,
mas, até aquele momento, eu não vislumbrara essa nefasta possibilidade.
Em setembro, Nicolas me convidou para irmos a um show. Ele me fez entrar
de graça e me levou ao camarim. Consegui um autógrafo do cantor e uma foto.
Cheguei a pensar que Nicolas fez por mim o que muitos rapazes
perfeitamente saudáveis não fizeram... Nessa época, pensei seriamente na hipótese
de vir a namorar com ele, mas depois de refletir muito vi quão absurda era a idéia.
Eu não sei o que é mais gritante quando reflito nessa possibilidade, mas acho
que, antes de tudo, vêm os grandes impedimentos físicos que nos cercam.
Suponhamos que eu gostasse dele e imaginemos que eu realmente
quisesse namorá-lo. Como isso se daria? Certamente não seria nada normal. Levei
em conta que estou condenada a passar a vida inteira sozinha, ponderei que Nicolas
pudesse me dar uma lembrança da vida afetiva que deixei no passado. Mas preferi e
prefiro ficar só. Digo que namorar Nicolas é como me mudar para Marte. Ora, o que
é que você faz quando namora? Caminha de mãos dadas, abraça, beija, faz amor,
conversa, dança... Absolutamente nada disso eu faço, e não vai ser Nicolas
quem vai me abraçar, numa cadeira de rodas... Ele, que mal consegue me
cumprimentar.
Não me encontro em situação de selecionar as pessoas com quem me
relacionar. Racionalmente eu sei disso, mas, instintivamente, não. Escolho beleza
física, atração, charme, simpatia, autonomia, religião... E mesmo que exista na Terra
um homem que tenha o mau gosto de se interessar por mim neste estado, e passe
na minha seleção, meu senso crítico me poupa do ridículo. Seria segundo o meu
critério de seleção que eu agiria se nunca tivesse sofrido um AVC. Hoje,
esse assunto está encerrado; mas, se eu penso: "Aí está um homem bonito!", é
porque ele realmente é bonito. E isso independentemente da forma física em que
me encontro.
Nicolas, como já disse, mal consegue me cumprimentar. E como se os
impedimentos físicos não bastassem, há ainda uma agravante: ele é judeu. Jurei
para mim mesma, antes do AVC, que nunca mais me envolveria com um judeu.
Por qual motivo deveria esquecer esse juramento?
Além disso, conviver com uma pessoa numa cadeira de rodas é me violentar.
Eu ando numa porque sou obrigada. Apesar de eu ter muito menos movimento que
Nicolas e de ser muda, ele não representa uma esperança de melhora para mim.
Traz a idéia de que posso viver para sempre numa cadeira e nunca andar, como ele.
Coisa que me dá depressão só de pensar.
Sinto-me constrangida por ser vista na companhia de outra cadeira de rodas.
Se uma já chama a atenção das pessoas, imagine duas... Ele não liga, pois sempre
viveu assim. Mas eu vivi minha vida toda olhando, com pesar, para as cadeiras
de rodas e pensando:
"Coitado!". Agora é minha vez. Sei que quem me olha pensa o mesmo.
Quanto menos eu atrair a atenção, melhor...
Acho que Freud explicaria isso... Quando eu sonho, sempre me vejo como eu
era, exceto quando sonho com Nicolas. Nesses casos, estou exatamente como sou,
sentada na cadeira, muda, de cabelos pretos e curtos, sem movimento... Nicolas
me lembra algo que prefiro esquecer, quando é possível...
Além de todos esses impedimentos, até arriscaria me mudar para Marte, se
eu estivesse a fim, mas não estou.

Dia 16 de novembro de 1996


Oi, minha amiga!
Eu penso assim: se eu estivesse num estádio de futebol, com mais um milhão
de pessoas, e caísse um raio, este cairia na minha cabeça. E o raio caiu.
É uma visão simplista da minha tragédia, mas envolve muito sentimento. Eu
deparei com um corpo que não pode mais nada e cheio de complicações. Em
contraposição, acompanha-o uma mente sã, rápida em raciocínio, cheia de sonhos,
lembranças, amores e informações. Um corpo inutilizado, que não anda, não se
mexe, nem fala, acompanhado de uma consciência observadora, aprendiz e crítica,
que se frustra e sofre com essa situação.
Eu demoro um segundo para entender uma frase e um minuto para transmitir
o que penso. Além disso, já escutei, um bilhão de vezes:
- Não posso te ouvir porque estou com pressa, cansado, vendo TV, dirigindo,
te dando comida...
Como minha mente é sã, dói ouvir:
- Mas ela me entende? Posso falar normalmente com ela? Ela ouve? Você
sabe o que é alface? Você sabe onde está o teto? "São seus pais"? Está
aprendendo as letras?
Parece mentira, mas varei noites estudando. Entrei na USP uma das
primeiras colocações. Estava fazendo curso de pós-graduação... Duvidam até que
eu ouço! Quando não duvidam do meu intelecto. Na Fundação Selma, se aparece
um terapeuta novo, um estagiário, alguém que não se familiarizou ainda com meu
caso, é comum ouvir coisas como:
- E aí, Lu? Você tem medo do cavalinho? Ele é alto, né? Ih... Está solto! Está
com medo?
E eu falo comigo mesma:
"Será possível que todo o mundo associa falta de fala a retardo mental?!"
Todas essas coisas trouxeram muita frustração, mas também me deram uma
tolerância que eu não tinha. Luto por dias melhores e espero que um dia seja óbvio
que tive algum acidente, mas que sou mentalmente capaz.
Para lidar com minhas frustrações e minha nova vida, faço terapia. E com ela
consigo entender e aproveitar o que me acontece. A minha psicóloga clínica é da
mesma faculdade que Marina, minha fono, e como ela é competente!
Eu sempre achei essa história de análise uma bobagem, e sempre achei que
a pessoa que precisasse de ajuda psicológica tinha que começar se ajudando, e não
correr para um divã de um analista. Em parte eu tinha razão, pois precisamos querer
ultrapassar nossas dificuldades para poder fazer terapia.
No primeiro encontro com minha psicóloga, encontrei uma mulher bonita,
morena, de olhos verdes, segura, tranqüila e sorridente. Eu estava vivendo
momentos terríveis, sofrendo com a reviravolta da minha vida e soletrei para
ela, descrente: "Eu sou muito infeliz. Você pode me ajudar?"
A resposta dela confirmou o que eu pensava:
- Se você quiser...
Não existe milagre. O analista ajuda a nós mesmos a nos ajudarmos. E em
algumas situações estamos tão aflitos, tão angustiados, tão cheios de autopiedade
que nos faz muito bem ouvir opiniões sensatas, racionais, que nos levam pela
mão novamente à superfície e nos trazem um arzinho, nos fazendo respirar e nos
ensinando, de novo, a viver. Às vezes uma vida é impossível sem essa ajuda.
Minha psicóloga percebeu o quanto é raro para mim falar e ser ouvida. Então
ela senta-se do meu lado, eu abro meu laptop e vou contando como me sinto, quais
as novidades... Ela ouve tudo com uma santa paciência, esperando meu lento digitar
concluir as palavras e não concluindo o que quero dizer. Ela me permite lembrar
como é bom expressar sozinha um pensamento.
Às vezes levo uma carta, algo que eu tenha escrito e que gostaria que ela
comentasse. Este livro, por exemplo, ela acompanhou, incentivou, opinou e me
ajudou como pôde. E me dizia:
- Eis o seu caminho...
Outras vezes:
- Não tem nada que me agradecer, Luciana. Você pode contar com a ajuda
das pessoas. A vida é assim.
Ela me mostrou que nós podemos ajudar a quem nos pede ajuda.
Muitas vezes não concorda com o que digo e me fornece sempre opiniões
sensatas, bem-humoradas e racionais.
Consigo visualizá-la lendo este livro e achando que em alguns trechos me enchi de
autopiedade. Eu sei. Mas com ela tenho aprendido que isso não ajuda ninguém.

Dia 18 de novembro de 1996


O dia 3 de outubro de 1995 estava próximo. Desde o começo do ano, eu tinha
planejado cortar o cabelo para meu aniversário. Dias antes, até, eu falei para Bia
que não queria presente, queria que, perto do meu aniversário, ela me levasse a
um cabeleireiro. Ela foi excepcional. Trouxe o cabeleireiro em casa!
Era a primeira vez que eu cortava aquele estranho cabelo, depois de terem
rapado o meu. Meu cabelo original tinha mechas loiras naturais. Lembrando do meu
antigo cabelo, pedi a ele que fizesse mechas artificiais loiras naquele cabelo preto.
Ficou ridículo!
Arrumei-me toda, mostrando meu novo corte artificial, e fui carregada por
Marcus até à sala. Convidei todos os poucos amigos com quem eu ainda tinha
contacto. Poliana apareceu sem ser convidada e quase me estraga a noite.
Ela se fazia de amiga e estava toda prosa. Eu, inerte no meu canto, pensava: "O que
essa garota faz aqui? Ela nunca foi minha amiga!"
Depois que a gente sofre trágicas mudanças de percurso na vida, é natural
recorrer a misticismos, a explicações que vão além do faceto que nos modificou ou
nos tirou da rota. Durante um tempo cheguei a ir a alguns lugares, fui levada a
outros tantos, buscando luz e uma explicação para a radical mudança de meu
destino.
Todos os médiuns a que fui apontaram Poliana como fonte de muita inveja,
como uma espécie de detonadora de meu acidente. Pessoalmente não acredito
nisso, prefiro explicações científicas. Mas de uma coisa tenho certeza: a presença
dela nunca me fez bem, ainda mais agora, comigo assim, passiva.
Bem, voltando ao meu aniversário, achei que meu cabelo novo fosse
provocar algum tipo de comentário. Que nada!
Só Nicolas reparou...
Lucas chegou, cumprimentou-me pelo aniversário e disse:
- Mandei fazer um anel para você, mas não ficou pronto.
Esperei durante meses esse anel, que até agora não veio.
Cristian me cobriu de presentes. Mas ninguém olhou para mim com desejo,
como eu estava acostumada.
Do meu canto, eu observava minhas amigas jogando charme para meus ex-
namorados e paqueras. Eles eram meus, mas o que eu podia fazer? Tomei
consciência de que os anos que vivi ficaram mesmo no passado. Eu não era mais o
que tinha sido.
No final da festa, Priscila se ajoelhou perto de onde eu estava sentada e
começou a tentar explicar sua ausência, ou melhor, justificar. Falei o que é verdade:
nenhum problema era maior que o meu. Priscila disse que sempre pensava em mim,
mas os compromissos tomavam todo o seu tempo.
Pude ver que era inútil soletrar tudo o que eu estava pensando.
Sem fala, meu discurso não tinha força. Ela rebatia meus argumentos tão
lógicos dizendo que pensava em mim. Mas de que me valem pensamentos? Queria
que ela me desse companhia, escutasse meus desabafos e compartilhasse minha
dor...
O tempo me mostrou que só a minha família, independentemente de como eu
me apresente, me ama de verdade e sempre estará do meu lado. Quando digo
minha família, entenda-se meu pai, minha mãe e meu irmão.
Achei que quem gostasse realmente de mim não me abandonaria. Se você
procurar um sentimento meigo, cúmplice, consolador, terno, que permita um
desabafo, que compartilhe sua dor e que não sinta vergonha do que você se
tornou... esqueça! Não é na minha vida que você vai encontrar. A amizade, de
faceto, é uma relação de reciprocidade, e não, como eu pensava, uma relação de
dar sem receber. E eu não ofereço quase nada...
Apesar disso tudo, tenho mudado meus conceitos sobre amizade. Uma
expressão atual desse conceito foi realmente Stéphanie. Em dezembro de 95, viajei
com ela e uma amiga sua para Porto Seguro, na Bahia. Fomos em excursão.
Um tipo de viagem nova para mim, rodeada de gente desconhecida.
Embora não pudesse acompanhar todos os programas agendados pelos
guias e tivesse de ficar algumas partes do dia restrita ao hotel, foi muito boa essa
viagem: tomei sol, banhos de piscina, ouvi música, tirei fotografias, consegui até
bater uma foto - e não saiu tremida. Fiz compras, tomei sorvete, suco de tomate.
Coisas que adoro e algumas que eu não fazia há muito tempo.
Mas a coisa mais importante dessa viagem foi o carinho de Stéphanie para
comigo. Tudo o que você possa imaginar, ela fez. Até perder parte das férias para
me fazer companhia no hotel. Apesar de termos quase a mesma idade, tenho-a
como uma mãe. Já o Natal de 95 eu passei na casa da Bia, e, no Ano Novo, ela veio
aqui em casa. No Révellon, não bebi como os outros, nem fiz grandes planos como
no ano anterior. Só olhei meu braço direito e pensei com firmeza:
"Neste ano de 96 que começa, quero que ele mexa!"
Estamos já em novembro, e o danado do braço não se mexeu ainda.
Teimoso...
Eu nem sei como vão ser o Natal e o Révellon deste ano. Tristes, sem a Bia...
No começo de 1996, mamãe e Marcus foram para o Nordeste. Eu não quis ir.
Preferi dar um pouco de descanso à mamãe. Fiquei com papai e Stéphanie. Passei
o carnaval na casa dela, um pequeno prédio, muito distante da minha casa. O
irmão dela, bem bonito, foi quem me levou no colo degraus acima.
Naquela pequena casa, fui divinamente bem tratada por todos e pela irmã dela. A
irmã da Stéphanie nada tem a ver com ela.
Stéphanie é tímida, super séria e quieta. Sua irmã é falante, extrovertida e avoada.
Nem fisicamente elas se parecem.
Depois que mamãe voltou, conhecemos o Centro de Vidas Independentes -
CVI. Não concordo com esse título, mas mesmo assim fui à fundação do CVI da
qual Nicolas e António fazem parte.
É uma organização repleta de deficientes, como eu, e algumas pessoas
normais". Sua finalidade é ajudar deficientes, desde a indicação de clínicas de
fisioterapia, locais de aquisição de cadeiras de rodas, até casos como o meu, que
pensava reaver meu emprego. António, presidente da CVI, continua atuando na
mesma empresa em que trabalhava antes de ficar tetraplégico, e foi ele quem me
indicou outra pessoa do CVI: Ptolomeu.
Ptolomeu é um senhor "normal", com uns 45 anos, oriental, simpático e
inteligente. Ele veio aqui em casa, fez uma entrevista e pediu a papai que marcasse
uma reunião com a Colgate. Papai tentou, mas eles nem deram resposta. Coisa
que eu já previa.
O planeta Terra, para o Ptolomeu e para o CVI, é um mundo utópico.
Infelizmente, não é nessa utopia que vivemos, num mundo repleto de direitos,
acessos para deficientes, pessoas que não sofrem discriminação. Consideram que
o deficiente físico é um ser competitivo no mercado de trabalho;
deveria ser, mas isso me soa como piada. Eu conheço bem a política da Colgate:
"Teve um AVC? Azar...". Nunca vou ser de novo funcionária de lá. Ela foi feita, como
todas as outras empresas, para empregados sadios e inteligentes, como eu era.
Ptolomeu acha que ter consciência é uma grande coisa. No meu caso, não adiantou
muito ainda.
Para mim, vida independente é um conceito e um nome completamente
inapropriados. Como se isso fosse possível! A vida Independente prega a não-
subordinação moral às eventuais regras ditadoras da nossa vida. Ou seja, "não
abaixar a cabeça" às leis, às regras, ou à vontade alheia e fazer valer nossa
vontade. Querendo dizer: "Somos deficientes, mas temos vontade própria".
Eu não concordo com essa linha de raciocínio. Acho que é mesmo um luxo
sem fundamento. Quantas vezes, sendo totalmente independentes e normais, temos
que "nos dobrar" e aceitar um monte de regras com as quais não concordamos?
Quando se passa de um modo de vida independente a um dependente "abaixa-se a
cabeça" para tantas coisas que Vida Independente passa a ser um dito sem
propósito.

Dia 19 de novembro de 1996


Juliana,
Sem propósito quase ficou minha vida no dia 23 de março... Nesse dia
mamãe recebeu um telefonema e pouco depois saiu com papai, cheia de mistério.
Stéphanie, que já não trabalhava conosco, veio me ver e ficou comigo enquanto
mamãe esteve ausente. Quando mamãe chegou, estava com uma cara péssima.
Eu estava morta de preocupação e soletrei:
F-A-L-A.
E ela falou:
- Sua amiga, Bia, sofreu um acidente e morreu.
Comecei a rir, pois achei que era brincadeira. Não fazia nem uma semana
que Bia tinha estado em casa, com um namorado novo!
Mamãe disse:
- É sério, Ciana! Ela se foi...
Comecei a chorar, imaginando um desastre de carro. Depois eu soube que
ela estava saindo de uma festa, com o namorado, quando sofreram uma
emboscada. Certamente, queriam matá-lo, e ela foi assassinada porque estava com
a pessoa errada no lugar errado e na hora errada.
Chorei muito, nem tive estrutura para ir ao enterro. Na missa de sétimo dia,
não parei de chorar. Chorava por ela e chorava por mim. Tinha saudades da Bia e
saudades da Luciana. Sua morte me fez reviver tudo o que perdi: a capacidade de
andar, falar, se mexer, fazer amor, nadar, dançar, dirigir, pedalar, fumar, assoprar,
beber, comer, mexer os músculos da boca, se coçar, namorar, paquerar,
fazer amigos, mergulhar, prender a respiração, flutuar na água, escovar os dentes,
se pentear, se limpar no banheiro, fazer um curso, ter privacidade, o emprego, a
beleza, os cabelos, a maciez da pele, as curvas do corpo, a risada...
A família da Bia é pequena. Ela era a única filha. Fora ela, tem o pai e a mãe.
Ele é muito calmo, já a mãe é muito otimista. Vive dizendo que vou andar... Como
ela era filha única, tenho certeza de que os tiros fatais que ela levou mataram muito
dos pais dela. Eu sofro, choro e tenho saudades. Mas me conforta saber que ela não
está sofrendo e que morreu tão bonita quanto era em vida...
No meu aniversário, em outubro, não chamei ninguém. Veio quem quis.
Poderia lamentar, pois poucos amigos vieram. Mas vou somente constatar: vieram
poucos, mas são amigos. Lembraram-se de mim e vieram me dar os parabéns.
Acho que me diverti mais que no ano anterior. Creio que eu criei
menos expectativas. Sabe, tomei consciência de que mesmo que viessem cem ex-
namorados, nenhum, absolutamente nenhum me veria com interesse, com desejo,
como eu gostaria, O problema é que, como eu já disse: eu sempre quis muito!
Passei quase a noite toda conversando pelo computador com Richard. Lucas
apareceu, e eu escrevi:
- Você só aparece no meu aniversário, e só faço aniversário uma vez por
ano...
Ele não comentou nada, apenas me disse:
- Mandei fazer um anel para te dar, mas não ficou pronto.
Eu escrevi no computador:
- Então traga dois: o deste ano e o do aniversário passado.
Ele ainda riu. Foi embora logo e até hoje não voltou. E... Como se não
bastasse subestimar meus sentimentos, ainda subestimam minha memória.
O ano foi passando... às vezes passo o dia escrevendo. É verdade que ainda
escrevo revoltadíssima com o que me aconteceu. Essa revolta vai e volta, e penso
que nunca vou me conformar. Acho que ninguém pensa que isso possa
lhe acontecer. Eu mesma nunca, nunquinha, pensei em tal possibilidade. Mas a
verdade é que todos somos vulneráveis: um mergulho mal dado, um atropelamento,
uma queda de moto, um acidente de carro, um tiro, um acidente vascular cerebral...
Só então nos damos conta de como somos frágeis, quebradiços.
Eu achava que andar, falar, beleza, juventude, não eram coisas que se
perdessem de uma hora para outra. Aí veio o destino e mostrou que eu estava
errada. Perdi isso e muito mais.
Depois de uma tragédia dessas, lembramos muito de nossa vida passada, e
aí vêm os pensamentos de ódio, rancor, amargura, frustrações... e o desejo de
morte! Mas penso que, uma vez que o mundo me deixou respirando, a sociedade
vai ter que me suportar assim. E eu deverei perdoar sua indiferença.
Algumas coisas, no entanto, são imperdoáveis: a displicência da
ginecologista, as incapacidades e, principalmente, as capacidades dos
neurologistas, permitindo a troca de uma vida saudável por outra inútil. São erros
que sei que morrerão comigo. Quando Bia morreu, lembrei de todas essas mágoas
e pensei: "Por que não eu, no lugar dela?!"
Hoje não penso mais assim. Já não quero morrer. Acho que devo ter uma
missão especial por aqui, nessa Terra, nesse mundo.
Não é fácil sobreviver com uma mente capaz num corpo inválido. A mudança
é lenta, mas não tão lenta que eu não possa percebê-la. Cansei de procurar os
culpados aqui e ali, em mim e nos outros. Cansei também de lembrar o que eu tinha.
Lembrei. Lembrei até à exaustão. Reordenei as lembranças e já posso fazer o
inventário do que restou.
Tenho uma família esplêndida. Tenho meus sentidos. Tenho o melhor
conforto possível. Tenho alguns movimentos que me permitem alguma
comunicação. Tenho uma mente completamente sã. Não é muito, comparado ao
que eu tinha... Mas as comparações já cumpriram sua missão. É preciso dar um
passo à frente. Um passo primeiro, que vá além do AVC, e que me permita escrever
outras histórias.
Sei que, se fosse começar a escrever hoje, este livro seria menos rancoroso.
Talvez ainda não falasse com doçura, nem fosse capaz de fazer poesia. Mas posso
ir dando a isso uma forma outra. Posso escrever, e cantar, e cantar, e cantar... ainda
que seja só letra a Letra... a beleza de ser uma eterna aprendiz.

Terceira Parte

APRENDENDO A VIVER
Dia 11 de dezembro de 1997
Juliana, 
 Querida amiga! Lamento ter te deixado por um longo período, mas estava muito,
muito atarefada com minhas coisinhas aqui... Na verdade, voltei só para contar
umas descobertas. Vim te dizer que não sou a mesma e que a Luciana, aquela que
começou a contar suas aventuras reservadamente a você, não existe mais.
Ela era tão feliz, não é mesmo? Embora não soubesse. Ninguém sabe.
Realmente só damos valor às coisas quando as perdemos, e agora eu vejo quanto
aquela Luciana saboreava a vida e nem pensava nisso. Queria sempre mais e mais,
em busca da felicidade completa...
Esta, que agora te escreve pela última vez, aprendeu, a duras penas, que a
felicidade que todos nós procuramos, pode estar do nosso lado; na verdade pode
estar onde nós quisermos e, como já não ando mais por céus e terras, não falo
mais trocando experiências e jogando charme... Bem, tive que procurar essa
felicidade dentro dos limites da minha cama hospitalar ou vizinha à minha cadeira de
rodas. Ainda não a encontrei, nem ao menos sei se a encontrarei algum dia, mas
é lá que estou procurando.
Fiquei na dúvida, estes últimos anos, procurando em mim a antiga Luciana. Eu
me olhava no espelho, comparava o meu cabelo, fotos, a textura da minha pele, a
paciência, a compreensão, o charme, a risada, e via que as mudanças se operaram
exteriormente e interiormente. Meus pais diziam e dizem que eles tiveram duas
filhas Luciana. Meus amigos, os que sobraram, acoitam uma postura diferente como
se nunca eu tivesse tido intimidade com eles. Os antigos namorados ou
se distanciaram de uma vez e para sempre, ou encontraram uma posição mais
cômoda diante de mim. Virei um ser assexuado. Que remédio então? Fiz o que
todos já fizeram: matar uma Luciana que só vive em mim. Nos gostos, no passado,
nos valores... Só eu parei no tempo; vivi os últimos quatro anos de
passado, pensando: "Recordar é viver". Como me vi sem vida, em uma cadeira de
rodas, e como amo demais os 22 anos dourados que construíram minha vida, relutei
em enterrá-los. Reimaginei diversas vezes uma mesma cena. Agora chega. Eu
agradeço a todos por terem me tratado diferente.
Hoje entendo, por exemplo, a atitude da Priscila. Ela fez de imediato o que estou
fazendo agora. A indiferença dela, que tanto decepcionou a antiga Luciana, é a
mesma que tento ver hoje com outros olhos. Aquela que era a melhor amiga
da Priscila acho que morre definitivamente agora, com o fim deste livro. Muito
embora o melhor dela já tivesse sido perdido em 94. Agora entendo com clareza o
distanciamento de tantas pessoas que diziam que me adoravam. Não era a mim, à
minha essência que adoravam. Adoravam uma casca de mulher: uma garota bem-
sucedida, bonita, falante, que imaginava que, com tantos admiradores e amigos,
jamais ficaria sozinha.
Essa garota, muito revoltada, registrou aqui suas impressões sobre tudo e todos
e agora nos deixa de vez.. Ela já havia morrido. Ela não viveria tetraplégica e muda.
Então, simplesmente deixa de viver...
Ju, entender essa quebra na minha vida não é tão fácil. Se você pensar na
pessoa física, eu sou a mesma pessoa. Bem modificada, é verdade, mas a mesma.
No entanto a maior mudança ninguém pode ver: está na alma.
Até pouco tempo carreguei comigo o amargo gosto do ódio a todos os
neurologistas. Hoje penso diferente, mas ainda considero imperdoável a conduta
dos neurologistas que não conseguiram salvar uma jovem bonita, alegre, sociável; e
eu continuei a existir pura e simplesmente para sustentar amarguras, mágoas,
perdas, lembranças... Quem pensou que a salvou, errou brutalmente. A vida é muito,
muito mais que simplesmente respirar e pensar. E tem gente que nem
isso consegue! Para mim a vida é realmente maravilhosa... amar, curtir, passear,
sentir carinho... tudo é bárbaro. Isso é vida. Até que ponto os médicos podem bater
no peito e dizer: "Nós a salvamos!"?
Eu, atualmente com 26 anos, nada tenho a ver com aquela jovem que fez
faculdade de Farmácia, que era sedutora, que fez amor pela primeira vez com o
Cléber... Enfim, embora algumas pessoas não gostem dessa quebra na minha vida,
eis a solução mais lógica que encontrei para minha existência. De verdade, eu
também não queria minha vida partida. Mas, logicamente, ninguém me toca igual,
me olha igual, se dirige da mesma forma que antes a mim... nem penso mais como
aquela Luciana... Duas coisas vou levar para sempre: as lembranças e os olhos cor-
de-mel que resistiram.
Agora, como deficiente física, fico revoltada com os outros deficientes físicos que
possuem o dom da palavra. Gostaria tanto de falar e ser ouvida. Em vez disso, ouço
as inúteis e irrelevantes reivindicações que eles fazem. Dizem que 10 por cento da
população é deficiente. De que tipo? Mental, tetraplégicos, paraplégicos,
tetraparético, cegos, mudos... ou tudo junto?
É óbvio que as reivindicações dos cegos ou dos paraplégicos não me atendem.
Ônibus com elevadores, telefones públicos adaptados, certamente essas coisas não
servem a 10 por cento da população. Precisamos brigar por coisas
mais abrangentes. Guias rebaixadas para cadeiras de rodas, rampas nos locais
como hospitais, clínicas, consultórios... Lógico que o ideal é todo o mundo ter tudo...
o ideal... Diante de tantas necessidades, o Governo e a sociedade não podem
se esquecer, por exemplo, da educação e se preocupar com entradas em cinemas
para cadeiras de rodas, ou portinhas giratórias em bancos... Ora, damos um jeito!
Sinto-me muito mais ofendida em ir ao dentista e precisar ser carregada até a
cadeira de atendimento do que pedir para que alguém tire meu extrato bancário.
Na minha vida atual, tenho me correspondido e trabalhado pela Internet com
Tula, minha editora, com Héricles, com Eugênia, com Patrícia... com Lucas.
Sempre gostei de conversar com ele. Como disse acima, aquela Luciana brava e
revoltada com a passividade do Lucas deixou de existir. A reação que esperávamos
que Lucas adotasse diante do AVC não aconteceu nem nunca acontecerá. Isso
deixou a Luciana arrasada. Durante anos ela esperou uma atitude
mais companheira, mais cúmplice do Lucas. Uma palavra animadora, solidária;
mesmo que fosse mentira essa cumplicidade, mesmo que ele saísse do quarto dela
e fosse velejar ou encontrar a namorada. Sozinha naquela cama hospitalar ela
sofreria menos; teria a ilusão de não estar só. Ainda me enervo ao ouvir ele dizer:
- Foi um azar, uma tragédia...
Foi mesmo, não nego! Mas será que foi só isso? Nem falo em culpa, pois é claro
que ninguém queria que isso acontecesse. Nem mesmo Gilda, a única que poderia
prever, queria isso.
Sempre achei que tomava a pílula por nós dois, não é mesmo? Tenho isso muito
claro: se eu tenho culpa no que aconteceu, logicamente Lucas também tem. E por
que eu tive de sustentar essa barra sozinha? Onde está o homem sensato por quem
a Luciana era apaixonada? Ele me deixou só nessa "barca mais que furada".
Enquanto tive de me redimir perante todos pelas minhas mentiras, enquanto eu ia ao
shopping de cadeira de rodas, sentindo milhares de olhos inquisitórios; enquanto eu
ouvia uma canção, morta de vontade de cantar, ou enquanto eu chorava,
lamentando meu destino, eu imaginava Lucas rindo numa festa, tomando um banho
de piscina, fazendo amor com alguém...
Fatalidade? Azar? Tragédia? Foi mesmo, já disse, não nego! Mas foi
extremamente fácil culpar o destino, dar de ombros, e seguir a própria vida, não?
Não esperávamos muito, o sofrimento físico veio todo para mim, isso não
podíamos dividir; mas seria muito bem-vinda uma atenuação para o meu sofrimento
psicológico. E vindo de quem? Do Lucas!
Um dia em 1995, me dei conta que eu tinha perdido todos os atrativos que
atraíam facilmente os homens, que só havia me sobrado a inteligência. Logo que
comecei a escrever, escrevi cartas e mais cartas para Lucas; despejando
amor, relembrando nosso passado e querendo provar a mim mesma que com
inteligência e carinho eu Conquistaria de novo o homem mais especial que eu
conhecia. De algum modo isso o comoveu.
Uma noite ele veio no meu quarto, perto da minha cama, e perguntou:
- Posso te beijar?
Fiz que sim e ofereci meus lábios. E isso foi tudo, mas ele não beijou só meus
lábios, beijou minha alma... Lembro-me que fiquei sorrindo à toa por uns dois meses.
Talvez o efeito sobre mim seria outro, se Lucas pegasse na minha mão
e simplesmente dissesse:
- Lu, você não está sozinha.
Isso, com certeza, diminuiria minha sensação de vazio e tristeza ao olhar um
pedacinho do mundo pela janela do quarto, imaginando a vida correndo solta lá fora
enquanto a solidão me invadia. Mas isso é passado. Lucas passou, a raiva
do distanciamento dele também passou... Não sinto raiva quando penso nele, sinto
apenas uma ponta de amargura. Penso que a Luciana se entregou a um
relacionamento idealizado, muito aquém do que ela merecia.
Como disse, não sou mais aquela Luciana, uma jovem que era tomada pelo
desespero ao sentir o tempo passando e ver que não podia fazer nada. Que olhava
a janela e desejava sair por aí, andar, namorar, viajar... Hoje eu olho a janela e...
olho a janela. Para que ficar remoendo o que perdi? Vai me trazer de volta o viço e a
saúde dos meus queridos 22 anos? Por que pensar no que eu faria se amanhã
acordasse saudável?
Fiz muito isso estes anos todos. Fiquei horas num gostoso deleite, imaginando
como seria se eu achasse um gênio da lâmpada mágica ou se algum milagre me
devolvesse a saúde tão rápido quanto a perdi. Eu ficava imaginando que roupa
eu usaria, aonde iria, quem eu procuraria, o que eu diria... E, depois do devaneio, eu
me via na cama hospitalar, sem fala, sem charme; e me dava conta de que esses
encontros nunca ocorreriam, pelo menos, nunca do jeito que imaginei. E
chorei, chorei muito, até minha alma ficar diferente e suportar mais tranquilamente a
dor que carrego.
Não, não me conformei. Nem tampouco perdoarei aqueles que me condenaram
a esta vida. Uma vida sem opção, só a de viver o melhor possível. E é isso que
estou tentando fazer. Não posso dizer que sou feliz ainda, mas vou respirando
e mantendo o coração batendo. Nessa desgraça toda me sobraram algumas poucas
coisas, entre elas minha mente sã. Graças a ela, pude registrar aqui as idéias que
me assolavam. Digito bem devagar, é faceto. Mas, letra a letra, vou externando
meus pensamentos.
A alma que escreveu este livro não é a mesma que agora escreve estas
palavras. Quem escreveu este livro foi a alma de uma jovem que sonhava viver na
Itália, trabalhar como farmacêutica, casar, ter filhos... Mas, um dia, a vida
me mostrou que quem manda no destino, de verdade, é ela. E a vida realmente é
divina, maravilhosa... e extremamente traiçoeira. Em frações de segundo tudo muda.
Meu destino parecia tão certo, ao alcance das minhas mãos... Um AVC, e fim dos
antigos sonhos.
Sempre me chamou a atenção a fragilidade do destino. Ora, o que somos senão
um monte de planos sedimentados no nada? Eu vivia alegre e fagueira, deitava no
travesseiro e fazia planos e mais planos para um amanhã que nunca veio. Eu voava,
voava por sobre empecilhos que impediam minha realização. De repente, ao
amanhecer, me vi completamente sem asas para continuar meus vôos. E, junto com
as asas, foram-se os planos. Hoje aprendi a buscar realizações menores e descobri
que pequenas alegrias também podem dar satisfação e prazer. Não me conformei,
mas vivo melhor.
Eu sofri muito com a comparação. Eu ia a uma danceteria e lembrava que eu
adorava dançar; via um casal qualquer se beijando e lembrava que nunca mais eu
faria isso; olhava um vestido bonito e me imaginava dentro dele. Foi assim com
tudo que eu via, desde o meu carro até um prato de comida. Vi-me fazendo tudo o
que antes para mim era banal, trivial. Mas parei de comparar e comecei a valorizar
pequenas vitórias.
Um dia eu consegui ir de novo ao banheiro sem medo de cair, em outro voltei a
me alimentar sozinha, depois a beber sozinha...
Cada dia é um novo desafio, uma luta para vencer minhas limitações. Não
posso, a cada segundo que passa, lembrar as coisas que eu fazia. Esses
pensamentos me deixavam muito infeliz e tudo que eu alcançava me parecia
extremamente pouco.
E era mesmo, se comparado ao que eu tinha para construir em minha vida
anterior ao acidente. Por isso, agora não comparo mais a minha vida de hoje à de
outrora, mesmo porque é uma comparação desigual. Vibro com as atuais conquistas
porque para mim, atualmente, são montanhas gigantes que consegui escalar.
Continuo lembrando bastante as coisas que eu fazia, mas não comparo mais, só
dou graças aos céus por ter tido a oportunidade de ter vivido, de faceto. 22 anos de
vida.
Percebe, minha querida amiga, como essa é uma postura diferente? Procuro
não ficar Lamentando o azar de ter perdido tudo, pois penso que tive sorte de ter
tido anos maravilhosos.
A cada dia tenho mais certeza que quem não viveu ou vive o que vivi, ou quem
passa pela vida sem descobrir o sabor que ela tem, é muito mais infeliz que aquele
que perde a vida... mesmo sem saber. Você pode chamar esse pensamento
de conformista até, mas eu acho que essa é a chave para uma vida melhor!
Todos os dias, temos de agradecer o dom da vida, de ter a mens sana in corpore
sano, saborear os prazeres da vida, desde comer uma boa picanha até fazer amor,
conquistar independência, liberdade, realizar um projecto, sentir-se amada...
Eu até tenho alguns desses prazeres mas o importante é que aprendi a valorizá-
los. Descobri que você não precisa sofrer uma tragédia para saborear mais e mais a
vida. Seja esperto! Deseje mais do que você tem, lute, conquiste, mas antes valorize
tudo o que você já tem.
Aprende-se muito numa situação como a minha. Angustia-me a falta de fala,
nunca me acostumarei a essa perda, mas sem ela me vi obrigada a observar. E
quanta coisa passa despercebida sem uma observação atenta! Eu falava,
conversava muito, adorava jogar papo fora! Agora, além de aprender a observar,
aprendi a usar as palavras quando necessário e descobri que o discurso escrito é
muito mais forte que o falado. Portanto, minha amiga, cuidado quando for
escrever algo, pois você pode ofender mais do que gostaria, ir além do que
esperariam. E esse tipo de linguagem não perdoa erros, "é preto no branco"!
Nada justifica esta existência besta, mas mesmo entregue à vida, tetraplégica e
muda, a gente tem de aprender a "tirar leite de pedra" e a extrair algo de bom. Tudo
para viver melhor!
Muitas coisas boas aconteceram nesta minha nova existência. Um apoio
carinhoso vindo do Conselho de Farmácia ou a interferência do Ric, um gentil
advogado amigo do Marcus, naquela história do meu seguro. Coisas como essas
amenizam o meu sofrimento por tudo que perdi e tornam os meus dias mais leves.
Teve um dos sentimentos que me castigou realmente durante os últimos anos. E
não estou falando de amor, aquele que se mostrou, durante esta trajetória, tão frágil
quanto a minha beleza. Estou me referindo ao sentimento mais nobre do ser
humano: a amizade.
Amizade... Não aquela com esse sentido vulgar que todos usam e que imaginei
que existisse. Pensando segundo aquele conceito, eu chamava de amigo todo rosto
simpático que se aproximava de mim, e por isso eu sofri, chorei, me
senti terrivelmente só e fiquei muito decepcionada com todos. O tempo passou e vi o
que eu não via. Hoje, meus poucos, mas valiosos amigos provam que gostam
mesmo de mim. Não me baseio em palavras, que me iludiram durante 22 anos, mas
em atitudes.
São as atitudes que provam isso, não palavras ditas num momento qualquer
que tanto ouvi pela minha vida. E acreditei muito nelas... Hoje um "Te adoro!" não
me ilude mais: quem adora não precisa falar, convive e mostra. Não quero
mais estar cercada de gente aonde quer que eu vá. Na realidade, a Luciana fagueira
e descolada na maioria das vezes estava sozinha sem saber.
Hoje, ela compreende melhor a vida, amando-a como a um doce proibido,
daqueles que a gente não vai mais comer. Respeito esta vida, pois aprendi que ela
possui três qualidades marcantes.
É bela, com um sabor indescritível.
É traiçoeira, pois tudo pode mudar instantaneamente.
É forte, pois vejo seu poder teimosamente me trazer um amanhecer. Um após
outro, dia após dia. E, mesmo sem asas, ela vai me ensinando a voar.

NOTA   
Apesar da história de Luciana Scotti ser verdadeira, todas as pessoas nela envolvida
tiveram seus nomes devidamente trocados, estando assim protegidas em
suas verdadeiras identidades.
Os fatos narrados e as opiniões expressas neste livro são de inteira
responsabilidade da autora.
Fim

ESTE LIVRO FOI INFORMATIZADO POR AMÉRICO AZEVEDO e


Deolinda Fernandes. CASO ESTEJA INTERESSADO EM OBTER MAIS OBRAS
DESTE GÊNERO, CONTACTE COM AMÉRICO AZEVEDO - RUA MANUEL
FERREIRA PINTO, 530 - 4470-077 GUEIFŽES MAIA - TELEF.: 229607039
- 918175758 

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