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Escrita Dossiê

da História
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Narradores de
Javé: memórias e
identidades polifônicas
no cinema brasileiro

Antônio Carlos Araújo Ribeiro Júnior Narradores de Javé: poliphonyc


Márcia Manir Miguel Feitosa memories and identities in Brazilian
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) cinema

Resumo Abstract
Baseado nos debates acerca da memória em Based on the debates about memory in
Maurice Halbwachs e Michael Pollak, esse Maurice Halbwachs and Michael Pollak,
artigo tem como objetivo central discutir o this article has as its central objective to
processo de construção da memória coletiva. discuss the process of collective memory
Para tanto, será feita a análise do longa-me- construction. In order to do so, we will
tragem brasileiro Narradores de Javé, produzido analyze the film Narradores de Javé produced
em 2003. Ademais, considerando que a ques- in 2003. Moreover, considering that the issue
tão da identidade é não apenas outro aspecto of identity is not only another visible aspect
visível na produção, mas também um fator of production but also a factor that interacts
que interage com a memória de determinado with the memory of a particular social
grupo social, caberá uma breve reflexão sobre group, a brief reflection will be given about
o conceito. Em relação às memórias e identi- the concept. In relation to the memories
dades que emergem no filme, entende-se, de and identities that emerge in the film, it is
antemão, que estes conceitos compõem uma understood, in advance, that these concepts
verdadeira polifonia discursiva, em que várias compose a true discursive polyphony, in
vozes interdependentes podem vir a se har- which several interdependent voices can
monizar ou se desarmonizar, criando um dia- come to harmonize or disharmonize, creating
logismo em torno de uma mesma temática. a dialogism around a same theme.
Palavras-chave: Narradores de Javé; Memó- Keywords: Narradores de Javé; Memory;
ria; Identidade; Polifonia; Dialogismo. Identity; Polyphony; Dialogism.

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I n t r o d u ç ã o
A
s raízes do Brasil e o sertão tir assuntos relacionados às questões
já foram temas caros para os sociais, econômicas e identitárias que
viajantes do século XVIII, para enredam determinadas imagens so-
os romancistas do século XIX e do sé- bre o universo sertanejo.
culo XX e, também, analisados por
sociólogos como Paulo Prado, Sérgio Com o objetivo de analisar com mais

Buarque de Holanda, Gilberto Freyre profundidade as formas pelas quais o


e Darcy Ribeiro. O sertão, outrossim, cinema nacional representa a constru-
já serviu de inspiração para composi- ção da identidade no campo, optou-
ções populares como Sobradinho, de Sá -se pelo filme Narradores de Javé, um
e Guarabyra, Carcará, de João do Vale drama lançado em 2003, com dire-
etc. Já foi representado pelos român- ção e roteiro de Eliane Caffé. O longa-
ticos como um paraíso perdido, um -metragem conta com alguns atores
lugar idílico, exótico. Mas também já de repercussão no cenário nacional e
foi visto como o próprio inferno: lugar acumulou variados prêmios interna-
de condições precárias, seca, atraso e cionais, como o prêmio da crítica no
selvageria. Festival Internacional de Friburgo, Suíça,
em 2003, e, no ano seguinte, mais dois
O cinema nacional também passou a prêmios de melhor filme: no VII Festi-
dialogar com a temática e com as for- val Internacional de Cinema de Punta del
mas pelas quais o sertão foi tratado e, Este e no V Festival de Cinema des 3 Aques,
sobretudo, representado, passando, em Quebec, Canadá.
assim, a estar em pleno diálogo com
as formas construídas por esses dis- O entrecho da película trata da história
cursos. As representações cinemato- do vilarejo Vale do Javé, que será inun-
gráficas do sertão, nesse sentido, na dado pelas águas de uma represa caso
medida em que perpetuam tais ima- não comprove seu valor patrimonial por
ginários, podem servir, por meio do meio de documento histórico e científi-
olhar crítico, como objeto para discu- co. O uso da memória oral surge como

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a única forma de salvar a região, mas al- me, Antonio Biá não escreve a grande
guém deve registrar os eventos, uma vez história de Javé que, ao que tudo indica,
que os moradores são quase todos anal- será escrita logo após sua inundação
fabetos. A comunidade se vê obrigada a pela represa a partir das novas versões
compartilhar suas narrativas com o per- criadas quando da tentativa de se reer-
sonagem Antonio Biá, o antigo carteiro guer Javé em outro lugar. O progresso,
do vilarejo, alguém que fora banido por para os moradores desterrados, não
conta de denúncias caluniosas feitas será capaz de soterrar a memória vivida.
por meio de cartas a moradores de Javé,
Além de ser uma produção pouco es-
para evitar que o posto dos correios fos-
tudada, Narradores de Javé simboliza
se fechado por falta de movimento.
uma forma tragicômica de tratar as
Antonio Biá é convocado, assim, a re- questões que circunscrevem o am-
gistrar na escrita as histórias sobre a biente sertanejo e, nesse sentido, a
fundação de Javé, com seus persona- proposta de análise da oralidade por
gens heroicos e destemidos, como é o meio de vários narradores, parale-
caso de Indalécio e Mariadina. Passa lamente ao diálogo com outras re-
a conhecer, nesse ínterim, as fanta- presentações do sertão, possibilita a
sias, as lembranças e as memórias do existência de um dialogismo acerca da
povo por meio dos Imagem 1 – Cartaz do longa-metragem brasileiro temática.
Narradores de Javé (2003).
relatos em tom
Ao analisar as
de fábula, narra-
considerações de
dos em várias ver-
Mikhail Bakhtin
sões, muitas delas
sobre o romance
desencontradas.
polifônico – mé-
Alguns desses
todo comum nas
narradores/perso-
obras do escritor
nagens, aliás, po-
russo Fiódor Dos-
dem ser vistos na
toievski –, Paulo
Imagem 1.
Bezerra (2012) in-
No desfecho do fil- Fonte: Marques (2017). dica que o dialo-

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gismo pode surgir entre as vozes das bilia e suas tensões na tela, propõe-se
personagens desse romance, do nar- um debate acerca da relação entre a
rador, dos leitores e do escritor, e que memória coletiva e individual. O ob-
isso também pode significar uma in- jetivo é realizar uma possível leitura
tertextualidade – toma como exem- crítica da produção Narradores de Javé,
plo um enunciado de Esaú e Jacó, do discutindo o processo de construção
escritor brasileiro Machado de Assis, e da memória coletiva e tomando, para
outro de Dante. Para Bezerra (2012, p. tanto, as falas dos personagens como
197), “enunciados dis- fio condutor. Assim, o
tantes um do outro O objetivo é realizar uma propósito é, por meio
no espaço e no tem- possível leitura crítica de uma relação entre
po, mas que, [quan- da produção Narradores história e cinema, dis-
do] confrontados [...] de Javé, discutindo o cutir questões rela-
forma-se essa conver- processo de construção cionadas à memória
gência de sentidos”. da memória coletiva e dentro e fora do filme
Vale destacar que
tomando, para tanto, as nacional em questão.
Narradores de Javé é
falas dos personagens
apenas um dos exem-
como fio condutor. Assim, Ainda com o foco na
o propósito é, por meio de oralidade histórica e
plos de produção que
uma relação entre história na memória, serão
trabalha sob influên-
e cinema, discutir questões feitos comentários
cia da tradição da tra-
relacionadas à memória sobre os simbolismos
gicomédia, manifes-
dentro e fora do filme do filme e os aspectos
tação que se tornou
nacional em questão. míticos nas falas dos
na Antiguidade Clás-
personagens. A inten-
sica um subgênero do
ção é destacar algumas cenas e falas
teatro, uma forma híbrida de peça que
do filme de forma que isso possibilite,
reunia o drama e a comicidade.
na medida do possível, um diálogo e
Do ponto de vista estrutural, no tó- um debate acerca da construção da
pico intitulado A busca da memoria- memória coletiva e da história. A des-

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crição das cenas, portanto, não intenta meio da diferença e das tensões so-
enveredar para um resumo ou rese- ciais, a sua identidade local é forjada.
nha da produção, mas apenas servir
de maneira didática para melhor visu-
alização do debate aqui proposto. Essa
abordagem implica analisar o que o A busca da memoriabilia e suas
tensões na tela
historiador José Luís de Oliveira e Sil-
va (2010) chamou de memória interna
da produção, isto é, os simbolismos Mas concordamos todos que a impossi-
presentes nas falas e cenas, servindo bilidade de restabelecer o vivido é coisa
dada. Não existe filme sem cortes, edi-
de gancho para a discussão sobre a ções, mudanças de cenário. Como em
memória coletiva. Visa-se, no entanto, um filme a entrevista nos revela pedaços
do passado, encadeados em um sentido
dar igualmente vazão à memória exter-
no momento em que são contados e em
na da produção, de forma que haja um que perguntamos a respeito. Através
desses pedaços temos a sensação de que
diálogo com os aspectos extrínsecos
o passado está presente. A memória, já
ao filme. disse, é a presença do passado (ALBERTI,
2004, p. 15).
No último tópico, Por quem o sino do-
bra: os badalos da identidade, pretende- Tomando como pressuposto o racio-

-se estabelecer relações entre a me- cínio da historiadora Verena Alberti

mória coletiva e a identidade social. de que a oralidade histórica do vivido

Esse objetivo se justifica pelo fato de – quando se pretende registrá-la – pas-


o filme trabalhar com os estereótipos sa por um processo similar ao de um
de sertanejos, cujos trejeitos, proble- filme, pode-se dizer que as aventuras e
mas, atitudes e imaginário se fizeram desventuras repassadas no filme Nar-
presentes no processo de formação da radores de Javé (2003) passam a fomen-
identidade nacional. No entanto, sen- tar uma curiosa metalinguagem. A
do estes sujeitos, antes de qualquer própria proposta de análise crítica da
síntese identitária, indivíduos distin- oralidade histórica e de outras ques-
tos, cabe analisar de que forma, por tões que permeiam o filme torna-se

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parte da narrativa à medida que, em- geral, os filmes desse período procura-
bora se saiba que a produção seja fic- ram financiar uma volta às imagens das
cional, nela se debruça para construir origens do país, buscando encontrar
sentidos. Em outros termos, direta ou um ‘centro’ – o ‘marco zero’ – fundador
indiretamente, analisar o filme é re- da ‘brasilidade’” (SILVA, 2010, p. 2).
contar a história de Javé.
De alguma maneira, esse discurso ci-
Uma vez que no relato oral a memó- nematográfico de crítica e denúncia do
ria não está imune aos cortes, edições, subdesenvolvimento do país e foco nos
mudanças de cenário, tal metáfora se silenciados da história nacional esteve
aproxima de uma representação do presente nos anos 1960 por meio das
real nas narrativas ficcionais ouvidas e empreitadas do Cinema Novo, enca-
escritas por Antonio Biá, um dos úni- beçado por Glauber Rocha, Cacá Die-
cos alfabetizados da pequena comu- gues, Ruy Guerra, entre outros. É o que
nidade de Javé, interpretado pelo ator se constata em produções como Deus e
José Dumont. Antes, porém, de se fo- o Diabo na Terra do Sol (1964), Barravento
car propriamente nas questões sobre (1962), Ganga Zumba (1964) e A Grande
memória e história que circunscrevem Cidade (1966). Naquele momento de
o universo da narrativa, convém con- efervescência política e da constan-
siderar o diálogo do filme com outras te referência à luta de classes e à luta
produções. contra o imperialismo, estava em alta o
sertão, não apenas no cinema, mas em
O historiador José Luís de Oliveira, em
outras formas de arte.
seu texto Oralidade, memória e constru-
ção identitária do Sertão no filme Cipriano Após a reabertura política no final dos
(2010), informa que a produção cinema- anos 1980, foi possível retornar a essas
tográfica nacional passou a investir em discussões, sem risco de censuras ou
roteiros, nos anos 1990, que fizessem ameaças por parte do Departamen-
referência às origens do Brasil, às ques- to de Ordem Política e Social (DOPS)
tões relacionadas às favelas e ao sertão, e do Serviço Nacional de Inteligência
lugares que simbolizariam os proble- (SNI) e propor, dessa forma, o mesmo
mas nacionais. Segundo ele, “de modo debate em um formato mais moder-

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no de cinema. Nesse sentido, José Luís cunstâncias, por ser o único capaz de
comenta que esses filmes tinham ro- salvar a comunidade. O debate pode-
teiros baseados em dualidades como ria girar em torno dos limites entre a
a exploração versus a dignidade – ví- escrita da história e a verdade dos fa-
cios e virtudes – e que geralmente o tos, uma vez que, enquanto discurso,
sertão era apresentado como lugar de a história é produzida e mediada por
hostilidade e arcaísmos. Embora em interesses; os fatos são lidos e interpre-
Narradores de Javé estejam presentes a tados segundo o olhar do historiador.
desigualdade social e a pobreza da re- Este, por fim, está sujeito a interpretar
gião sertaneja, representadas pela co- tais fatos segundo sua vivência, isto é,
munidade ficcional, o foco é menos os influenciado por questões políticas, ou
estereótipos e mais um itinerário pela mesmo de raça, credo e classe social.
oralidade histórica inerente a essas re- Imagem 2 – Vicentino relata suas histórias a Antonio Biá
em Narradores de Javé.
giões.

O estereótipo do sertanejo mentiroso,


tal como o personagem João Grilo no
longa-metragem O auto da compadeci-
da (2000), prossegue na personagem
Antonio Biá. A figura do malandro, ali- Fonte: Caffé (2017).

ás, é bastante recorrente na literatura Obviamente, a denúncia em relação às


brasileira do século XIX e XX, em uma questões agrárias, à educação precária
referência ao jeitinho brasileiro. Esse ar- e à defesa pela importância da alfabe-
tifício em Narradores de Javé fomenta tização são elementos implícitos na
uma interessante discussão em torno produção, o que pode caracterizar a
da relação entre a história oral e o do- herança de denúncia daquelas produ-
cumento escrito, como é possível des- ções realizadas nos anos 1960, em um
prender da Imagem 2. primeiro momento, e depois na década
de 1990. A opção por recontar histórias
Dessa maneira, mesmo sendo um su- da região e com isso produzir um do-
jeito moralmente duvidoso, Antonio cumento histórico, mais do que o exer-
Biá ganha legitimidade, dadas as cir- cício de preservação de uma memória

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coletiva, atua também como uma fer- A presença da metalinguagem na pro-


ramenta de resistência à moderniza- dução, inclusive, é muito importante.
ção excludente que chega ao campo. A história começa a ser contada pelo
personagem Zaqueu ao avistar uma
O tom tragicômico da(s) narrativa(s) senhora humilde tentando aprender
– convém enfatizar o plural porque, a ler, enquanto o filho dela se mostra
além dos diversos relatos orais da co- desacreditado de tal empreitada. Uma
munidade, a própria história dessa questão moral insurge nessa dimen-
empreitada e derrocada é contada são espaço/temporal do que convém
também oralmente no primeiro pla- chamar aqui de primeiro plano narra-
no pelo personagem Zaqueu, inter- tivo: a importância da leitura e o aces-
pretado por Nelson Xavier – se repor- so ao conhecimento. A sutil referência
ta, portanto, a um tipo tradicional de aos padrões de consumo urbano no
roteiro interessado em apresentar os walkman de um dos ouvintes e o inte-
sofrimentos e alegrias do sertão bra- resse em ouvir a história que será con-
sileiro e fomentar, mormente, refle- tada faz crer que, naquele momento,
xões acerca da oralidade histórica e o sertão estaria cada vez mais ligado
da própria história oficial. E, ainda, da às áreas urbanizadas sob o padrão ca-
impossibilidade de essa mesma histó- pitalista, mas guardando reminiscên-
ria dar conta da verdade. Essa tentativa cias de uma tradição eminentemente
inglória da História é representada, de rural, em que a oralidade possui acen-
maneira simbólica, pelo personagem tuado destaque como meio de comu-
Antonio Biá que, na função do histo- nicação e preservação da memória.
riador, é encarregado de registrar as
memórias individuais e coletivas da O segundo plano, centrado na história
comunidade sertaneja. Aliás, o pró- dos moradores em contar a história de
prio fato de o personagem, outrora Javé, irrompe para os jovens e velhos
uma figura marginalizada pelos ma- ouvintes do primeiro plano do roteiro.
lefícios que causou à comunidade, Logo o espectador, como os ouvintes
estar agora munida de importância, de Zaqueu, pode adentrar à comu-
simboliza a conflituosa relação de po- nidade de Javé e conhecer seus mais
der envolvendo aqueles que contam e diferentes narradores, bem como se
aqueles que escrevem a História. informar das razões pelas quais eles

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decidiram escrever sua história, rela- Em diálogo com Michael Pollak (1992,
tando-a a um entrevistador não mui- p. 201), pode-se afirmar que tanto a
to confiável, mas o único alfabetizado memória coletiva quanto a memó-
daquele vale. Inicia-se, então, uma ria individual possuem seus próprios
narrativa caleidoscópica repleta de ca- elementos constitutivos e são eles, “em
madas e temporalidades fomentadas primeiro lugar, os acontecimentos vi-
pelas entrevistas. vidos pessoalmente. Mas também há
os acontecimentos que eu chamaria
Se, como expôs a historiadora Verena de ‘vividos por tabela’, ou seja, acon-
Alberti (2004, p. 15), “a entrevista nos tecimentos vividos pelo grupo ou pela
revela pedaços do passado”, Maurice coletividade à qual a pessoa se sente
Halbwachs (2006, p. 39) já afirma que pertencer”. Entretanto, segundo Hal-
“não basta reconstituir pedaço por pe- bwachs (2006, p. 72), não obstante a
daço a imagem de um acontecimento memória individual tenha essa liga-
passado para obter uma lembrança”, ção com a experiência individual, ela
é necessário que essa “reconstituição “não está inteiramente isolada e fe-
funcione a partir de dados ou de no- chada, ao contrário, se diz que, para
ções comuns” e diz também que isso evocar seu próprio passado, em geral
“será possível se somente tiverem feito a pessoa precisa recorrer às lembran-
e continuarem fazendo parte de uma ças de outras, e se transportar a pon-
mesma sociedade, de um mesmo tos de referência que existem fora de
grupo”. Apenas dessa maneira pode si, determinados pela sociedade”, isto
ser possível, portanto, o acesso a uma porque, para ele, “o funcionamento
memória de fato coletiva. Essas lem- da memória individual não é possível
branças comuns estão, direta ou in- sem esses instrumentos que são as
diretamente, presentes nos discursos palavras e as ideias, que o indivíduo
dos seis que são entrevistados por An- não inventou, mas toma emprestado
tonio Biá. Embora haja descontinui- de seu ambiente”.
dades nos relatos que são apresenta-
dos, é possível perceber que todos se Portanto, é possível perceber que há
remetem a um mito das origens da co- uma relação dialética entre a memó-
munidade, destacando uma figura no ria individual e a memória coletiva,
papel de seu descobridor e fundador. de forma que a primeira está contida

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na segunda – em certos casos pode do histórico baseado apenas em fon-


até fazer parte dela, deixando de ser tes escritas. Nesse sentido, a memória
individual – e esta, por conseguinte, é coletiva e a história são distintas para
constituída por meio dos enquadra- ele, porque a primeira está sempre
mentos realizados na primeira. Isto é, sendo atualizada por meio do confli-
as memórias individuais passam por to entre as lembranças do grupo; já a
um processo que as interliga, mas que, história é “a compilação dos fatos que
ao mesmo tempo, monta um quadro ocuparam maior lugar na memória
coeso e coerente para o grupo.
dos homens” (HALBWACHS, 2006, p.
Contudo, é interessante perceber que 100). Portanto, podem existir diversas
Antonio Biá parece tomar nota não de memórias coletivas distintas, enquan-
uma, mas de seis narrativas distintas, to a história caminha para o universal.
todas imbuídas de aspectos aflorados
Entretanto, é importante destacar que
por seus próprios narradores, na tenta-
a problemática das considerações de
tiva de institucionalizar-se na história
Halbwachs sobre a memória coleti-
oficial. Constatam-se duas questões a
partir desse fenômeno: primeiro, que va reside da sua leitura pessoal acer-
a memória é também um território ca da relação história versus memória.
de disputas, como esclarece Michael Ao fazer a distinção entre história viva
Pollak (1992, p. 216) ao abordar a me- e história escrita, pressupõe-se uma
mória política e, por isso mesmo, cada superioridade do relato oral sobre o
narrador tenta impor seus ancestrais documento escrito. A concepção de
como fundadores da comunidade. história de Maurice Halbwachs deve-
Em segundo lugar, no filme, aqueles -se ao formato positivista, ou seja, à
moradores delegavam ao documen- própria experiência de metodologia
to escrito uma forma de transformar da História como ciência.
sua memória em patrimônio históri-
co. Maurice Halbwachs concorda com Vale frisar que, muito embora a obra
a legitimidade de um documento que máxima do sociólogo Maurice Hal-
partisse desses relatos orais, pois a me- bwachs tenha sido publicada em 1950,
mória que seria repassada seria uma seu autor falecera em 1945, ou seja,
memória viva, ao contrário do conteú- antes que ele pudesse ter contato ou

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ter sido influenciado pela obra Apologia A personagem, curiosamente, se refe-


da História, ou o ofício do historiador, de re a uma das narrativas homéricas em
Marc Bloch (1949), um dos historiado- uma de suas interlocuções, utilizando
res fundadores da Escola dos Annales, o termo odisseia javeica. Assim, as es-
um movimento historiográfico francês tratégias discursivas e literárias para
iniciado em 1929. Publicado somente recontar os fatos relatados pelo entre-
em 1949 pelo historiador Lucien Feb- vistado trazem à tona o limiar entre
vre, Apologia da História (2001) traz pela a literatura e a história, tão presentes
primeira vez a concepção da história nas narrativas de Homero como Ilíada
como problema. Trata-se de uma in- e Odisseia, obras oriundas da Antigui-
vestigação das ações do homem no dade Clássica.
tempo, e não apenas a mera reprodu-
Nesse sentido, se se considerar tal
ção esquemática do passado, fator este
empreitada também como uma in-
tão criticado em A memória coletiva.
terpretação por parte do entrevista-
dor, é possível comparar a figura do
Em se tratando da função da História,
personagem Biá ao deus mitológico
no exercício que lhe fora incumbido
Hermes. Criado e incumbido de fazer
de historiador, ao se deparar com uma
a mediação entre os deuses olímpicos
verdadeira polifonia de vozes e memó-
e os homens, Hermes possuía a capa-
rias, o satírico personagem Antonio
cidade de revelar a verdade. Não por
Biá lança interessantes frases de efeito
acaso deriva de seu nome a palavra
como as que se segue: “uma coisa é o
hermenêutica. Assim, “Hermes é o deus
fato acontecido, outra é o fato escrito”;
do discurso, que, para os gregos, esta-
“o acontecido tem que ser melhorado
va diretamente relacionado à astúcia
no escrito, de forma melhor (sic), para
e à habilidade no trato com as pala-
que o povo creia no acontecido”; “a his-
vras, por isso era invocado por quem
tória é de vocês, mas a escrita é minha”.
desejava adquirir os dons da memória
Tais frases, por certo, representam um
e da palavra” (COSTA, 2009, p. 417).
recurso do escritor como forma de
justificar suas intervenções estilísticas Por isso, sendo Hermes o detentor da
nos relatos transcritos. verdade, o poder de traduzir o alçou a

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deus da mentira, também. Dessa for- Isso reafirma a noção de que “o tem-
ma, o esclarecimento passa a ser ambí- po da história se constrói contra o da
guo – como coloca Costa (2009, p. 418), memória”, ou seja, de que “o tempo da
“O deus da tradução é o deus da traição”. memória, o da lembrança nunca pode
Contudo, se esta é uma feliz compara- ser inteiramente objetivado”. Diferen-
ção, então se tem mais do que uma rela- te do tempo histórico, “ele revive com
ção com os mitos de outras sociedades, uma inevitável carga afetiva”, sendo,
mas também a permanência dos mitos portanto, “remanejado em função das
repassados pela tradição oral. Assim, experiências ulteriores que o investi-
novamente tem-se a tensão entre a lite- ram de novas significações” (PROST,
ratura e a história centrada no escritor/ 2008, p. 105). Em meio a essa rein-
historiador que é a personagem. venção de significação do passado,
se pode discutir as próprias relações
Ao reforçar o tom apologético com a de poder e as tensões que envolvem a
referência às epopeias, são reforçadas empreitada missionária da comunida-
as afetações que acometem aqueles de para se perpetuar.
sujeitos no momento de contar os
Nesse sentido, não gratuitamente, a fi-
grandes feitos do passado. Em relação
gura fundadora da região de Javé sem-
a esses juízos de valor que se instalam
pre tem relação de proximidade, às
na lembrança e podem determinar a
vezes de parentesco, com aquele que
memória de determinado evento, Re-
relata. Há, inclusive, várias grafias: pri-
nata Acácio Rocha (2013, p. 24) afirma
meiro Indalécio, descrito no início como
que:
uma figura quase napoleônica, heroica
Para alguns estudiosos, a memória se- e autossuficiente – sendo em seguida
ria apenas um fato biológico, isto é, um
ajudado por Mariadina, sem a qual
modo de funcionamento das células do
cérebro que registram e gravam percep- não teria sucesso, depois, atrapalhado
ções e ideias, gestos e palavras. Entretan- e cômico, segundo relato do persona-
to, se a memória fosse mero registro cere- gem Firmino (Gero Camilo). Por fim, é
bral, como explicaríamos, no fenômeno
mencionado como Indalêo, sendo lem-
da lembrança, que o que selecionamos e
lembramos possui aspectos afetivos, sen- brado como um escravo possivelmente
timentais e valorativos? a guiar outros para um Quilombo.

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Essa estratégia discursiva incute ques- tiu ao falecimento do pai em casa. A


tões caras à relação de poder que pode identidade com o vilarejo, seu lugar de
vir a se manifestar na superfície da me- memória, para usar o termo de Micha-
mória histórica. Como, por exemplo, el Pollak, tem ligações com a memória
as questões de gênero: a única prota- do pai e de seu apego à casa.
gonista feminina Deodora – interpre-
A carga afetiva impressa nos relatos,
tada pela atriz Luci Pereira – destaca
somada à necessidade de construir
uma guerreira chamada Mariadina
uma narrativa que interesse à histó-
que assume posição de disputa pela
ria oficial – geralmente lembrando
inserção da figura da mulher na me-
os grandes homens e seus grandes
mória oficial da região.
feitos –, acaba desembocando em vá-
De outro lado, um dos personagens rios mitos. Contudo, vale ressaltar que
masculinos, Firmino, a vê como louca e “um mito não é necessariamente uma
feiticeira, insinuando uma inerente fra- história falsa ou inventada”, podendo
gilidade feminina e, ao mesmo tempo, ser compreendido como uma “história
inserindo aspectos místicos à narrati- que se torna significativa na medida
va, próprios de um suposto imaginário em que amplia o significado de um
sertanejo. Há também questões de es- acontecimento individual e se torna
trutura familiar e problemas agrários uma formalização simbólica e narra-
na narrativa de dois irmãos da mesma tiva das autorrepresentações partilha-
mãe que alegam estar nas suas terras das por uma cultura” (PORTELLI, 1995,
a ossada e as armas do fundador do p. 17). Além do mais, como pontua
vilarejo, insinuando seu valor históri- Norma Cortês (2010) em relação aos
co e arqueológico. A última história, aspectos estruturais da produção:
referente a Daniel e seu pai Isaías, des-
O filme consiste numa espécie de narra-
ponta como a mais dramática, simbo- tiva-mestre acerca de um conflito inter-
lizando o apego ao vilarejo, mesmo pretativo promovido pela profusão desa-

com as lembranças desagradáveis. A tada de outras inúmeras narrativas com


suas respectivas memórias divergentes.
personagem Daniel relata que, quan- Convém assinalar que esse formato de
do criança, presenciou o pai assassinar roteiro foi deliberadamente adotado. E o
um homem e depois conta que assis- seu efeito foi maximizar a incredulidade

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experimentada pelos espectadores, que tados in loco?


realmente permanecem em dúvida, in-
capazes de eleger qual narrativa descreve Quanto a esses questionamentos,
os verdadeiros acontecimentos da gran-
são eles os interlocutores e confec-
diosa História de Javé.
cionadores dessa história oral, que,
O próprio narrador do relato, outra voz segundo Verena Alberti (2004, p. 22),
que compõe o coro polifônico, sequer “trabalham conscientemente na ela-
presenciara todos os eventos e, assim, boração de projetos de significação do
se insinua que Javé jamais teve uma passado” – empreitada que “tem como
história documentada, perpetuando, base a experiência concreta, históri-
então, sua memória por meio unica- ca e viva, que, graças à compreensão
mente da oralidade, influenciada com hermenêutica, é transformada em ex-
certeza pela carga afetiva desse orador. pressão do humano”. Na verdade, se-
ria exatamente essa a contribuição da
Em um primeiro momento, isso de- oralidade histórica: suas dinâmicas e
semboca, inevitavelmente, em ques- o diálogo com o presente, com o mo-
tionamentos sobre a legitimidade dos mento em que se manifesta. Portanto,
fatos narrados e da própria existência como esclarece a historiadora, seme-
da comunidade. Será que Zaqueu re- lhante exercício de construção de sig-
almente passou por todos aqueles nificados do passado na história oral
acontecimentos? E ainda: será que acontece no presente e é resultante do
aqueles que acompanharam mais de próprio diálogo entre os envolvidos:
perto o processo de coleta de Antonio entrevistador e entrevistados.
Biá haviam realmente sido fiéis aos fa-
tos, independentemente de sua indig-
nação ao saberem que ele não havia
feito seu trabalho? Caso aquela histó- Por quem o sino dobra: os badalos
ria de fato se tornasse um documento da identidade
escrito, tais mudanças no relato e as
flutuações da memória oral não po-
deriam levantar dúvidas a respeito da Se por muito tempo a literatura e a
veracidade dos acontecimentos rela- história consideraram o sertão como

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lugar de construção de uma iden- comuns os conflitos para determinar


tidade nacional, é possível afirmar que datas e que acontecimentos vão
que a comunidade imaginada da nação ser gravados na memória de um povo”
brasileira se sustentou com os mitos (POLLAK, 1992, p. 204).
fundacionais e com a oralidade pre-
sentes nas comunidades que habita- É possível conjecturar, em função da
ram esses sertões. Tal discurso guar- criteriosa organização da memória na-
dou em si, mesmo no século XIX, o cional, que se tenta organizar os even-
entendimento do sertão como lugar tos mais importantes na comunidade
a ser desbravado, desvelado, marcas fictícia de Javé. As figuras masculinas
profundas do processo de colonização e femininas heroicas; os documentos
português, pois, como indica Janaína de posse das terras; a história regis-
Amado (1995, p. 150), “os brasileiros trada de forma científica etc., são fer-
não apenas absorveram todos os sig- ramentas utilizadas na tentativa de se
nificados construídos pelos portu- harmonizar a memória com a história
gueses a respeito do ‘sertão’, antes e oficial. No entanto, acredita-se que o
depois da colonização, mas também roteiro não intenta pensar – tampouco
acrescentaram-lhe outros, transfor- defender – a ideia de um sertão como
mando ‘sertão’ numa categoria essen- lugar a ser conquistado e modificado
cial para o entendimento da ‘nação’”. pelo projeto de modernização do Es-
tado, ainda que seja exatamente esse
Enquanto houvesse sertão, o conhe-
fator que proporcione a necessidade
cimento sobre o território não estaria
de documentação da história da co-
completo, as fronteiras não estariam
munidade.
perfeitamente demarcadas e, portan-
to, a identidade nacional ainda estaria A construção da represa significa a des-
em processo de construção. Essa iden- truição que cairá sobre o povoado, o
tidade, porém, é reforçada pela me- suposto soterramento das memórias
mória nacional, o que significa dizer e identidades ligadas àquele lugar. Por
que a “memória organizadíssima, que isso mesmo, as tensões mais dramáti-
é a memória nacional, constitui um cas emergem quando os indivíduos se
objeto de disputa importante, e são sentem ameaçados por esse fator exter-

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no e que foge ao seu controle. Quanto Vocês acham que escrever essas histórias
vai parar a represa? Não vai, não! E sabe
a isso, pode-se perceber, nos pesadelos
por quê? Porque Javé é só um buraco per-
de Antonio Biá, uma forma de prenún- dido no oco do mundo. E daí? E daí que
cio do que acontecerá. Trata-se de uma Javé nasceu de uma gente guerreira? [...] se
ferramenta que torna a narrativa esca- hoje isso aqui é um lugar miserável, de rua
de terra, ó? De gente apoucada, ignoran-
tológica, apresentando ao espectador
te, como eu, como vocês tudinho! O que
o fim que se aproxima, aumentando, nós somos é só um povinho ignorante que
assim, a tensão do drama. quase não escreve o próprio nome, mas in-
venta histórias de grandeza para esquecer
Dessa forma, a resistência à moder- a vidinha rala, sem futuro nenhum. Vocês
acham... Acham mesmo que os homens
nização tem mais relação com a afe-
vão parar a represa e o progresso por um
tividade e a memória coletiva do que bando de semianalfabeto? Não vão, não!
com uma postura de recusa às desi- Isso é fato. É científico. (NARRADORES,
gualdades sociais do capitalismo ou 2003, 01h29min: 56s).

suas supostas melhorias estruturais.


Ao mesmo tempo, percebe-se que
Em outros termos, na impossibilidade
cada narrador faz referência aos Bra-
de deter os avanços da modernidade,
sis negro, mulato e branco. Dessa for-
a memória e a história são ativadas
ma, ainda que não se faça referência
como trunfo nessa relação de poder.
direta na película ao índio como uma
das raças que compuseram o chama-
Nesse ponto, vê-se que a história da
do mito da democracia racial freyreano,
comunidade pode ser associada a
vê-se que a diversidade racial das en-
uma representação dos marginalizados
trevistas dá um rumo diferente às his-
da história oficial, tanto em relação
tórias, em certos momentos: a mulher
às lutas sociais – de sobrevivência em
mulata que se torna braço direito do
meio às desigualdades e pobreza do
homem branco; o negro africano que
sertão – quanto na busca da preserva-
lidera seu povo. Uma clara referência
ção do seu lugar de memória em meio ao processo de construção da identi-
ao processo de modernização do cam- dade nacional presente no século XX.
po. Quanto a isso, a fala da persona- Ademais, a presença do negro africano
gem Antonio Biá para os moradores que guarda resquícios de sua tradição
do vilarejo é sintomática: oral – tão cultivada em muitas regiões

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no continente africano desde tempos ria e pela sobrevivência levantadas no


imemoriais – se harmoniza com a voz filme. O autor afirma que a marginali-
dos marginalizados da história: aque- zação destes povos era realizada “ini-
les que como ele foram relegados a cialmente por uma ideia já adquirida:
um patamar de não civilizados ou cul- não fizeram nada de notável, nenhum
turalmente atrasados por não aten- produto durável, antes da chegada dos
derem às demandas do colonizador brancos e da civilização – a selvageria
e que, posteriormente, seriam manti- como pré-história anônima e bronca”
dos na base da sociedade de classes. (MONIOT, 1976, p. 99).

Assim, ao analisar o silêncio que a Doravante, o desfecho do filme, quan-


história ocidental impôs à história do a comunidade é submersa pelas
da África, o historiador Henri Moniot águas, mostra o personagem Antonio
lança argumentos que têm muita se- Biá emocionado ao ver Javé destruída,
melhança com a disputa pela memó- como se pode visualizar na Imagem 3.

Imagem 3 – Antonio Biá e o Vale de Javé submergido, em Narradores de Javé.

Fonte: Marques (2017).

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Diferente da destruição iminente Assim como as identidades se querem


legitimadas na herança de um tempo
anunciada pela construção da represa,
pretérito, a memória – compartilhada em
Biá pertence à comunidade, ainda que sociedade, ou individualizada – localiza-
tenha ficado isolado por conta das ca- -se, inevitavelmente, dentro de um fluxo
lúnias e difamações dirigidas aos mo- temporal que acaba por aproximar pas-

radores. As memórias de Biá também sado, presente e futuro. As relações es-


tabelecidas dentro desse fluxo ocorrem
passam a pertencer à memória coleti-
no momento em que, mesmo voltando
va da comunidade, ao passo que faz as inicialmente seu olhar para o passado, a
entrevistas e adentra a vida íntima dos memória é “desencadeada de um lugar,
outros personagens, conhecendo seus e esse situa no presente”. (SEIXAS, 2002
apud SILVA, 2010, p. 5).
anseios, seus apegos aos mitos, aos
seus mortos, ao vilarejo, sua vontade A história recomeça, consequentemen-
de contar e se perpetuar na história. te, de duas formas: ao resgatar o sino

A identificação da personagem com a da igreja – entendido como patrimônio


comunidade é construída, nessa lógi- do vilarejo, símbolo de sua fundação e
ca, por meio de lembranças marcan- sustentador de sua identidade –, e por
tes, nem sempre carregadas de boas meio da escrita espontânea de Antonio
sensações. O sertão passa a despontar Biá. A disputa dos moradores para se in-
como lugar de unidade simbólica fun- serirem na história escrita do vale e na
damental, nos termos de José Luís de perpetuação da memória coletiva reco-
Oliveira e Silva (2010, p. 2). Assim, não meça, desta vez, marcada pelo discurso
seria necessário perder de vista o lu- da experiência vivida in loco. O destaque
gar no qual o sujeito está inserido, na para o fato de a personagem, como o
medida em que a configuração desse pesquisador, iniciar a escrita do traba-
ambiente e os diferentes significados lho científico apenas quando presencia
a ele atribuídos se concatenam. Esse o principal patrimônio material de Javé
raciocínio bem pode ser usado para – o sino da igreja – ser protegido pelos
analisar as questões que perpassam seus habitantes, faz crer que, por meio
o vilarejo fictício do filme, na medida da experiência de vida, novos sentidos
em que a identidade social do grupo passam a ser forjados, competindo para
está intimamente relacionada à sua o estabelecimento das conexões sociais
memória coletiva: e sentimento de pertencimento a um

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grupo. Nesse raciocínio, a identificação personagens umas com as outras se


com o que se passa e a apuração dos dá, portanto, pelas diferenças e pelas
fatos fomentam o interesse em docu- relações de poder insurgentes.
mentar o novo começo da comunidade,
perpetuando um diálogo com seus pa-
res. Mais do que isso, surge a oportuni-
dade de ser copartícipe da construção
Considerações finais
da história do vilarejo. Como esclarece
Stuart Hall (2000, p. 106),

Na linguagem do senso comum, a identi- Acredita-se que, por meio da análise


ficação é construída a partir do reconheci- aqui realizada de elementos consti-
mento de alguma origem comum, ou de
tuintes do filme brasileiro Narradores
características que são partilhadas com
outros grupos ou pessoas, ou ainda a par- de Javé, se pôde destacar questões en-
tir de um mesmo ideal. É em cima dessa volvendo essa relação memorialís-
fundação que ocorre o natural fechamen-
tica e identitária que compõe a vida
to que forma a base da solidariedade e da
fidelidade do grupo em questão. social. Obviamente, não se trata de
uma tentativa de exaurir esse debate,
Ora, durante o decurso do filme, se tampouco de insinuar que são apenas
apresentam várias falas e cenas que essas questões a serem levantadas na
demonstram as tensões em prol do es- produção. Todavia, por todos os argu-
tabelecimento de uma história regio- mentos levantados, cabe aqui uma
nal que interessasse à história oficial breve consideração sobre a memória e
do país. Em meio à polifonia de vozes a identidade, de forma a sintetizar os
que reverberam na oralidade histórica, pontos mais importantes do texto.
uma dessas soa dissonante. O fato de
Antonio Biá saber ler e escrever funcio- Em primeiro lugar, haveria, enfim,
na como mecanismo de legitimação e alguma relação entre a memória de
diferenciação dos demais – vide a ins- um grupo determinado e sua identi-
crição sarcástica na porta de sua casa: dade? As identidades dos indivíduos
proibida a entrada de analfabetos. O pro- que compõem esse conjunto estariam
cesso de construção e identificação das sujeitas às influências umas das ou-

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tras? Se sim, de que forma a memória Exatamente como Stuart Hall (2000)
coletiva corroboraria para tanto? Es- afirmara, o sujeito alcança o reconheci-
sas questões podem ser respondidas mento de si por meio da diferença em
à luz de Michael Pollak (1992, p. 204) relação aos demais. Sua identidade está
quando afirma que “há uma ligação em constante transformação porque sua
fenomenológica muito estreita entre memória também está em movimento:
a memória e o sentimento de identi- construindo novos sentidos do passado
dade”. Esse sentimento de identidade, no presente, vivendo novas experiências,
segundo ele, seria como “o sentido da experimentando novas sensações. Por-
imagem de si, para si e para os outros”. tanto, esse processo complexo de cons-
Ou seja, a reafirmação do sujeito e de trução identitária é permeado por um
seu sentimento de grupo necessita da discurso polifônico em que o elemento
relação dialética existente entre a me- dialógico surge em meio à miríade de
mória individual e a memória coleti- vozes: nas identificações e memórias
va, afinal essa identidade é, ao mesmo compartilhadas; no sentimento de gru-
tempo, individual e coletiva também. po criado pelo imaginário coletivo ou por
Não se pode construir uma imagem de meio doutros elementos como a língua,
si sem o olhar do Outro, nesse sentido. os costumes e o território comum.

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