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da História
http://dx.doi.org/10.20396/resgate.v25i1.8648175
Narradores de
Javé: memórias e
identidades polifônicas
no cinema brasileiro
Resumo Abstract
Baseado nos debates acerca da memória em Based on the debates about memory in
Maurice Halbwachs e Michael Pollak, esse Maurice Halbwachs and Michael Pollak,
artigo tem como objetivo central discutir o this article has as its central objective to
processo de construção da memória coletiva. discuss the process of collective memory
Para tanto, será feita a análise do longa-me- construction. In order to do so, we will
tragem brasileiro Narradores de Javé, produzido analyze the film Narradores de Javé produced
em 2003. Ademais, considerando que a ques- in 2003. Moreover, considering that the issue
tão da identidade é não apenas outro aspecto of identity is not only another visible aspect
visível na produção, mas também um fator of production but also a factor that interacts
que interage com a memória de determinado with the memory of a particular social
grupo social, caberá uma breve reflexão sobre group, a brief reflection will be given about
o conceito. Em relação às memórias e identi- the concept. In relation to the memories
dades que emergem no filme, entende-se, de and identities that emerge in the film, it is
antemão, que estes conceitos compõem uma understood, in advance, that these concepts
verdadeira polifonia discursiva, em que várias compose a true discursive polyphony, in
vozes interdependentes podem vir a se har- which several interdependent voices can
monizar ou se desarmonizar, criando um dia- come to harmonize or disharmonize, creating
logismo em torno de uma mesma temática. a dialogism around a same theme.
Palavras-chave: Narradores de Javé; Memó- Keywords: Narradores de Javé; Memory;
ria; Identidade; Polifonia; Dialogismo. Identity; Polyphony; Dialogism.
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I n t r o d u ç ã o
A
s raízes do Brasil e o sertão tir assuntos relacionados às questões
já foram temas caros para os sociais, econômicas e identitárias que
viajantes do século XVIII, para enredam determinadas imagens so-
os romancistas do século XIX e do sé- bre o universo sertanejo.
culo XX e, também, analisados por
sociólogos como Paulo Prado, Sérgio Com o objetivo de analisar com mais
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a única forma de salvar a região, mas al- me, Antonio Biá não escreve a grande
guém deve registrar os eventos, uma vez história de Javé que, ao que tudo indica,
que os moradores são quase todos anal- será escrita logo após sua inundação
fabetos. A comunidade se vê obrigada a pela represa a partir das novas versões
compartilhar suas narrativas com o per- criadas quando da tentativa de se reer-
sonagem Antonio Biá, o antigo carteiro guer Javé em outro lugar. O progresso,
do vilarejo, alguém que fora banido por para os moradores desterrados, não
conta de denúncias caluniosas feitas será capaz de soterrar a memória vivida.
por meio de cartas a moradores de Javé,
Além de ser uma produção pouco es-
para evitar que o posto dos correios fos-
tudada, Narradores de Javé simboliza
se fechado por falta de movimento.
uma forma tragicômica de tratar as
Antonio Biá é convocado, assim, a re- questões que circunscrevem o am-
gistrar na escrita as histórias sobre a biente sertanejo e, nesse sentido, a
fundação de Javé, com seus persona- proposta de análise da oralidade por
gens heroicos e destemidos, como é o meio de vários narradores, parale-
caso de Indalécio e Mariadina. Passa lamente ao diálogo com outras re-
a conhecer, nesse ínterim, as fanta- presentações do sertão, possibilita a
sias, as lembranças e as memórias do existência de um dialogismo acerca da
povo por meio dos Imagem 1 – Cartaz do longa-metragem brasileiro temática.
Narradores de Javé (2003).
relatos em tom
Ao analisar as
de fábula, narra-
considerações de
dos em várias ver-
Mikhail Bakhtin
sões, muitas delas
sobre o romance
desencontradas.
polifônico – mé-
Alguns desses
todo comum nas
narradores/perso-
obras do escritor
nagens, aliás, po-
russo Fiódor Dos-
dem ser vistos na
toievski –, Paulo
Imagem 1.
Bezerra (2012) in-
No desfecho do fil- Fonte: Marques (2017). dica que o dialo-
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gismo pode surgir entre as vozes das bilia e suas tensões na tela, propõe-se
personagens desse romance, do nar- um debate acerca da relação entre a
rador, dos leitores e do escritor, e que memória coletiva e individual. O ob-
isso também pode significar uma in- jetivo é realizar uma possível leitura
tertextualidade – toma como exem- crítica da produção Narradores de Javé,
plo um enunciado de Esaú e Jacó, do discutindo o processo de construção
escritor brasileiro Machado de Assis, e da memória coletiva e tomando, para
outro de Dante. Para Bezerra (2012, p. tanto, as falas dos personagens como
197), “enunciados dis- fio condutor. Assim, o
tantes um do outro O objetivo é realizar uma propósito é, por meio
no espaço e no tem- possível leitura crítica de uma relação entre
po, mas que, [quan- da produção Narradores história e cinema, dis-
do] confrontados [...] de Javé, discutindo o cutir questões rela-
forma-se essa conver- processo de construção cionadas à memória
gência de sentidos”. da memória coletiva e dentro e fora do filme
Vale destacar que
tomando, para tanto, as nacional em questão.
Narradores de Javé é
falas dos personagens
apenas um dos exem-
como fio condutor. Assim, Ainda com o foco na
o propósito é, por meio de oralidade histórica e
plos de produção que
uma relação entre história na memória, serão
trabalha sob influên-
e cinema, discutir questões feitos comentários
cia da tradição da tra-
relacionadas à memória sobre os simbolismos
gicomédia, manifes-
dentro e fora do filme do filme e os aspectos
tação que se tornou
nacional em questão. míticos nas falas dos
na Antiguidade Clás-
personagens. A inten-
sica um subgênero do
ção é destacar algumas cenas e falas
teatro, uma forma híbrida de peça que
do filme de forma que isso possibilite,
reunia o drama e a comicidade.
na medida do possível, um diálogo e
Do ponto de vista estrutural, no tó- um debate acerca da construção da
pico intitulado A busca da memoria- memória coletiva e da história. A des-
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crição das cenas, portanto, não intenta meio da diferença e das tensões so-
enveredar para um resumo ou rese- ciais, a sua identidade local é forjada.
nha da produção, mas apenas servir
de maneira didática para melhor visu-
alização do debate aqui proposto. Essa
abordagem implica analisar o que o A busca da memoriabilia e suas
tensões na tela
historiador José Luís de Oliveira e Sil-
va (2010) chamou de memória interna
da produção, isto é, os simbolismos Mas concordamos todos que a impossi-
presentes nas falas e cenas, servindo bilidade de restabelecer o vivido é coisa
dada. Não existe filme sem cortes, edi-
de gancho para a discussão sobre a ções, mudanças de cenário. Como em
memória coletiva. Visa-se, no entanto, um filme a entrevista nos revela pedaços
do passado, encadeados em um sentido
dar igualmente vazão à memória exter-
no momento em que são contados e em
na da produção, de forma que haja um que perguntamos a respeito. Através
desses pedaços temos a sensação de que
diálogo com os aspectos extrínsecos
o passado está presente. A memória, já
ao filme. disse, é a presença do passado (ALBERTI,
2004, p. 15).
No último tópico, Por quem o sino do-
bra: os badalos da identidade, pretende- Tomando como pressuposto o racio-
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parte da narrativa à medida que, em- geral, os filmes desse período procura-
bora se saiba que a produção seja fic- ram financiar uma volta às imagens das
cional, nela se debruça para construir origens do país, buscando encontrar
sentidos. Em outros termos, direta ou um ‘centro’ – o ‘marco zero’ – fundador
indiretamente, analisar o filme é re- da ‘brasilidade’” (SILVA, 2010, p. 2).
contar a história de Javé.
De alguma maneira, esse discurso ci-
Uma vez que no relato oral a memó- nematográfico de crítica e denúncia do
ria não está imune aos cortes, edições, subdesenvolvimento do país e foco nos
mudanças de cenário, tal metáfora se silenciados da história nacional esteve
aproxima de uma representação do presente nos anos 1960 por meio das
real nas narrativas ficcionais ouvidas e empreitadas do Cinema Novo, enca-
escritas por Antonio Biá, um dos úni- beçado por Glauber Rocha, Cacá Die-
cos alfabetizados da pequena comu- gues, Ruy Guerra, entre outros. É o que
nidade de Javé, interpretado pelo ator se constata em produções como Deus e
José Dumont. Antes, porém, de se fo- o Diabo na Terra do Sol (1964), Barravento
car propriamente nas questões sobre (1962), Ganga Zumba (1964) e A Grande
memória e história que circunscrevem Cidade (1966). Naquele momento de
o universo da narrativa, convém con- efervescência política e da constan-
siderar o diálogo do filme com outras te referência à luta de classes e à luta
produções. contra o imperialismo, estava em alta o
sertão, não apenas no cinema, mas em
O historiador José Luís de Oliveira, em
outras formas de arte.
seu texto Oralidade, memória e constru-
ção identitária do Sertão no filme Cipriano Após a reabertura política no final dos
(2010), informa que a produção cinema- anos 1980, foi possível retornar a essas
tográfica nacional passou a investir em discussões, sem risco de censuras ou
roteiros, nos anos 1990, que fizessem ameaças por parte do Departamen-
referência às origens do Brasil, às ques- to de Ordem Política e Social (DOPS)
tões relacionadas às favelas e ao sertão, e do Serviço Nacional de Inteligência
lugares que simbolizariam os proble- (SNI) e propor, dessa forma, o mesmo
mas nacionais. Segundo ele, “de modo debate em um formato mais moder-
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no de cinema. Nesse sentido, José Luís cunstâncias, por ser o único capaz de
comenta que esses filmes tinham ro- salvar a comunidade. O debate pode-
teiros baseados em dualidades como ria girar em torno dos limites entre a
a exploração versus a dignidade – ví- escrita da história e a verdade dos fa-
cios e virtudes – e que geralmente o tos, uma vez que, enquanto discurso,
sertão era apresentado como lugar de a história é produzida e mediada por
hostilidade e arcaísmos. Embora em interesses; os fatos são lidos e interpre-
Narradores de Javé estejam presentes a tados segundo o olhar do historiador.
desigualdade social e a pobreza da re- Este, por fim, está sujeito a interpretar
gião sertaneja, representadas pela co- tais fatos segundo sua vivência, isto é,
munidade ficcional, o foco é menos os influenciado por questões políticas, ou
estereótipos e mais um itinerário pela mesmo de raça, credo e classe social.
oralidade histórica inerente a essas re- Imagem 2 – Vicentino relata suas histórias a Antonio Biá
em Narradores de Javé.
giões.
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decidiram escrever sua história, rela- Em diálogo com Michael Pollak (1992,
tando-a a um entrevistador não mui- p. 201), pode-se afirmar que tanto a
to confiável, mas o único alfabetizado memória coletiva quanto a memó-
daquele vale. Inicia-se, então, uma ria individual possuem seus próprios
narrativa caleidoscópica repleta de ca- elementos constitutivos e são eles, “em
madas e temporalidades fomentadas primeiro lugar, os acontecimentos vi-
pelas entrevistas. vidos pessoalmente. Mas também há
os acontecimentos que eu chamaria
Se, como expôs a historiadora Verena de ‘vividos por tabela’, ou seja, acon-
Alberti (2004, p. 15), “a entrevista nos tecimentos vividos pelo grupo ou pela
revela pedaços do passado”, Maurice coletividade à qual a pessoa se sente
Halbwachs (2006, p. 39) já afirma que pertencer”. Entretanto, segundo Hal-
“não basta reconstituir pedaço por pe- bwachs (2006, p. 72), não obstante a
daço a imagem de um acontecimento memória individual tenha essa liga-
passado para obter uma lembrança”, ção com a experiência individual, ela
é necessário que essa “reconstituição “não está inteiramente isolada e fe-
funcione a partir de dados ou de no- chada, ao contrário, se diz que, para
ções comuns” e diz também que isso evocar seu próprio passado, em geral
“será possível se somente tiverem feito a pessoa precisa recorrer às lembran-
e continuarem fazendo parte de uma ças de outras, e se transportar a pon-
mesma sociedade, de um mesmo tos de referência que existem fora de
grupo”. Apenas dessa maneira pode si, determinados pela sociedade”, isto
ser possível, portanto, o acesso a uma porque, para ele, “o funcionamento
memória de fato coletiva. Essas lem- da memória individual não é possível
branças comuns estão, direta ou in- sem esses instrumentos que são as
diretamente, presentes nos discursos palavras e as ideias, que o indivíduo
dos seis que são entrevistados por An- não inventou, mas toma emprestado
tonio Biá. Embora haja descontinui- de seu ambiente”.
dades nos relatos que são apresenta-
dos, é possível perceber que todos se Portanto, é possível perceber que há
remetem a um mito das origens da co- uma relação dialética entre a memó-
munidade, destacando uma figura no ria individual e a memória coletiva,
papel de seu descobridor e fundador. de forma que a primeira está contida
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deus da mentira, também. Dessa for- Isso reafirma a noção de que “o tem-
ma, o esclarecimento passa a ser ambí- po da história se constrói contra o da
guo – como coloca Costa (2009, p. 418), memória”, ou seja, de que “o tempo da
“O deus da tradução é o deus da traição”. memória, o da lembrança nunca pode
Contudo, se esta é uma feliz compara- ser inteiramente objetivado”. Diferen-
ção, então se tem mais do que uma rela- te do tempo histórico, “ele revive com
ção com os mitos de outras sociedades, uma inevitável carga afetiva”, sendo,
mas também a permanência dos mitos portanto, “remanejado em função das
repassados pela tradição oral. Assim, experiências ulteriores que o investi-
novamente tem-se a tensão entre a lite- ram de novas significações” (PROST,
ratura e a história centrada no escritor/ 2008, p. 105). Em meio a essa rein-
historiador que é a personagem. venção de significação do passado,
se pode discutir as próprias relações
Ao reforçar o tom apologético com a de poder e as tensões que envolvem a
referência às epopeias, são reforçadas empreitada missionária da comunida-
as afetações que acometem aqueles de para se perpetuar.
sujeitos no momento de contar os
Nesse sentido, não gratuitamente, a fi-
grandes feitos do passado. Em relação
gura fundadora da região de Javé sem-
a esses juízos de valor que se instalam
pre tem relação de proximidade, às
na lembrança e podem determinar a
vezes de parentesco, com aquele que
memória de determinado evento, Re-
relata. Há, inclusive, várias grafias: pri-
nata Acácio Rocha (2013, p. 24) afirma
meiro Indalécio, descrito no início como
que:
uma figura quase napoleônica, heroica
Para alguns estudiosos, a memória se- e autossuficiente – sendo em seguida
ria apenas um fato biológico, isto é, um
ajudado por Mariadina, sem a qual
modo de funcionamento das células do
cérebro que registram e gravam percep- não teria sucesso, depois, atrapalhado
ções e ideias, gestos e palavras. Entretan- e cômico, segundo relato do persona-
to, se a memória fosse mero registro cere- gem Firmino (Gero Camilo). Por fim, é
bral, como explicaríamos, no fenômeno
mencionado como Indalêo, sendo lem-
da lembrança, que o que selecionamos e
lembramos possui aspectos afetivos, sen- brado como um escravo possivelmente
timentais e valorativos? a guiar outros para um Quilombo.
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no e que foge ao seu controle. Quanto Vocês acham que escrever essas histórias
vai parar a represa? Não vai, não! E sabe
a isso, pode-se perceber, nos pesadelos
por quê? Porque Javé é só um buraco per-
de Antonio Biá, uma forma de prenún- dido no oco do mundo. E daí? E daí que
cio do que acontecerá. Trata-se de uma Javé nasceu de uma gente guerreira? [...] se
ferramenta que torna a narrativa esca- hoje isso aqui é um lugar miserável, de rua
de terra, ó? De gente apoucada, ignoran-
tológica, apresentando ao espectador
te, como eu, como vocês tudinho! O que
o fim que se aproxima, aumentando, nós somos é só um povinho ignorante que
assim, a tensão do drama. quase não escreve o próprio nome, mas in-
venta histórias de grandeza para esquecer
Dessa forma, a resistência à moder- a vidinha rala, sem futuro nenhum. Vocês
acham... Acham mesmo que os homens
nização tem mais relação com a afe-
vão parar a represa e o progresso por um
tividade e a memória coletiva do que bando de semianalfabeto? Não vão, não!
com uma postura de recusa às desi- Isso é fato. É científico. (NARRADORES,
gualdades sociais do capitalismo ou 2003, 01h29min: 56s).
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tras? Se sim, de que forma a memória Exatamente como Stuart Hall (2000)
coletiva corroboraria para tanto? Es- afirmara, o sujeito alcança o reconheci-
sas questões podem ser respondidas mento de si por meio da diferença em
à luz de Michael Pollak (1992, p. 204) relação aos demais. Sua identidade está
quando afirma que “há uma ligação em constante transformação porque sua
fenomenológica muito estreita entre memória também está em movimento:
a memória e o sentimento de identi- construindo novos sentidos do passado
dade”. Esse sentimento de identidade, no presente, vivendo novas experiências,
segundo ele, seria como “o sentido da experimentando novas sensações. Por-
imagem de si, para si e para os outros”. tanto, esse processo complexo de cons-
Ou seja, a reafirmação do sujeito e de trução identitária é permeado por um
seu sentimento de grupo necessita da discurso polifônico em que o elemento
relação dialética existente entre a me- dialógico surge em meio à miríade de
mória individual e a memória coleti- vozes: nas identificações e memórias
va, afinal essa identidade é, ao mesmo compartilhadas; no sentimento de gru-
tempo, individual e coletiva também. po criado pelo imaginário coletivo ou por
Não se pode construir uma imagem de meio doutros elementos como a língua,
si sem o olhar do Outro, nesse sentido. os costumes e o território comum.
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Dossiê
Escrita da História
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