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Laplanche Novos Fundamentos para Psicanalise
Laplanche Novos Fundamentos para Psicanalise
Laplanche, J. - A Angústia
PARA A
Laplanche, J. - Castração/Simbolizações
Laplanche, J. - A Sublimação
PSICANÁLISE
Tal!ajerro, A. - Curso Básico de Psicanálise
Bion, W. R. - Uma Memória do Futuro I: - O Sonho
Ferenczi, S. - Diário Clínico
Lagache, D. - A Transferência
McDouga/1, J. - Teatros do Corpo
Laplanche, J., Cotet, P., Bourguignon, A. - Traduzir Freud
. J Laplanche
Lap!anche, J. - O Inconsciente e o Id
Lap!anche, J. - Novos Fundamentos para a Psicanálise
'i
I Martins Fontes
São Paulo - /992
I
Título original: NOUVEAUX FONDEMENTS POUR LA PSYCHANALYSE
Copyright © Presses Universitaires de France, 1987
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1988, Sumário
para a presente edição
Bibliografia.
1. Catártica . .................................. 19
ISBN 85-336-0132-8
Instauração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . •
165
Reinterrogação do binômio atividade-passividade 130
A tina: um lugar pulsional puro . . . . . . . . . . . . . . 165
Os cartesianos . . . . , . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 131
Junção com Ferenczi . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . 132
Um lugar de sedução originária . . .. . . . . . . . . . . . 166
A continência . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....
. 1 68
2/ A transferência . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .
. 168
A própria situação é transferência . . . . .. . .. . . . . 169
Transferência em pleno, transferência em oco . . 170
31 O processo . .. . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . .. .
. 171
Níveis da teorização . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 72 INTRODUÇÃO
Análise infinita e transferência de transferência . 173
tema e a vontade de ir até o fim. Por isso uma certa corrida a um happy end, não num desenvolvimento sem falhas, mas
contra o relógio e um tipo de procedimento que será um por recalcamento, repetição, retorno do recalcado. E, por
pouco menos errante e um pouco menos "em espiral" do outro lado, se nos referirmos a uma tradição mais antiga,
que em outros momentos. filosófica, penso tanto na tradição de Hegel quanto no le
Fundamentos: é, a partir de uma crítica incessante dos gado de um Heidegger, veremos que trazer algo de novo
conceitos ditos fundamentais, uma retomada dos gestos e não é necessariamente inovar, não é necessariamente afastar
dos movimentos que fundam; que fundam o quê? Que fun se dos fundamentos. Entre o termo "novo" e o termo "fun
dam a psicanálise, que fundam uma psicanálise, no senti damento" há, portanto, um movimento: o fato de retor
do do que chamamos o tratamen nar aos fundamentos para renová-los. Voltar às fontes.
FUNDAR
to; e, finalmente, que fundam o ser Além do mais, insisto neste outro ponto: ligo "novi
NOVAMENTE
humano. Pois, eu insisto, o que é dade" a "fundamento" e não à "psicanálise" ; não se tra
fundador para a psicanálise só pode sê-lo se estiver em res ta para mim de uma nova psicanálise. A psicanálise existe,
sonância, estiver a posteriori, com o que é fundador para é uma situação e uma prática que se desenvolvem - que
o ser humano. se desenvolvem também como prática teórica, voltarei a is
Portanto, fundamentos, mas também: "novos funda to -, e não é o caso de inovar a qualquer preço, mesmo
mentos" ? Desconfiança, perigo, quando aparece o termo que fosse para agradar alguns. Mas o que se trata de reco
"novo"! Aludirei a uma crônica recente que pretende (mais locar em questão e de renovar, explicitando-o, é o que funda.
uma vez!) proclamar o declínio da psicanálise e da sua pro Distinguir nitidamente fundamento e prática, no en
dução intelectual, silenciando sobre alguns dos trabalhos tanto, não conseguiria nos situar numa oposição absoluta,
mais ricos entre as publicações recentes. O anúncio do de pois é bem evidente que renovar os fundamentos não pode
clínio é apenas o inverso da avidez insaciável por algo de deixar de repercutir sobre a prática, assim como uma certa
novo a qualquer preço. Surpreenda-nos a todo instante, inclinação moderna da prática não pode deixar de ter in
faça-nos continuar gozando e sempre mais, pede-se à psi fluência sobre nossa maneira de considerar os fundamen-
canálise. No dia, já antigo, em que a psicanálise, e particu tos. Aqui, ao insistir sobre a rela-
larmente a psicanálise francesa, cedeu aos efeitos e à fasci FUNDAMENTO E ção que, apesar de tudo, existe eu-
nação da moda, ela enveredou pelo que podemos chamar EPISTEMOLOGIA tre os fundamentos e a prática, tal-
de "satisfação da pulsão pelas vias mais curtas" para reto FREUDIANA vez vá de encontro ao que Freud
mar uma fórmula freudiana, ou então, "processo primá disse algumas vezes. Aludo parti
rio", ou, "pulsão de morte". O gozo a qualquer custo é cularmente a um trecho de "Introdução ao narcisismo" 1 ,
o trabalho desenfreado da pulsão de morte. mas encontramos outros do mesmo gênero, onde os con
Desconfiemos, portanto, do termo "novo", e retome ceitos mais gerais da psicanálise são apresentados como su
mos este adágio de Freud em O chiste: "toda descoberta perestruturas distantes da experiência e, eventualmente, in
tem apenas metade da novidade que parece ter à primeira tercambiáveis. Há, aí, a ostentação de um certo ceticismo
vista" . Ceticismo, dirão. Mas, certamente, não qualquer em relação à especulação, ceticismo que vem contradizer
ceticismo, pois a psicanálise acrescenta suas razões a esse
adágio. A psicanálise nos mostra que a história procede não
por progressão contínua, não por acumulação e não rumo I. La vie sexuelle, Paris, PUF, pp. 84-85.
4 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE INTRODUÇÃO 5
por completo a inspiração e a exigência profunda de Freud te, mas determinadas por suas importantes relações com os
quanto à procura, precisamente, do fundamento. materiais empíricos; acreditamos ter adivinhado essas rela
Existe um outro texto epistemológico mais nuançado, cões antes mesmo de poder conhecê-las e demonstrá-las [por
que eu gostaria de comentar rapidamente. É o início, mui tanto, é dado lugar à intuição e ao que aprenderemos mais
to conhecido, de "Pulsões e destinos das pulsões", onde adiante ser especulação]. Somente após um exame aprofun
Freud se interroga sobre a necessidade de recorrer a um con dado do campo de fenômenos considerado é que também
ceito tão fundamental quanto o de pulsão. podemos apreender mais precisamente os conceitos cientí
"Temos ouvido com freqüência a formulação da se ficos fundamentais que ele requer e modificá-los progressi
guinte exigência: uma ciência deve ser construída com base vamente ... É quando pode ser a hora de confiná-los em de
em conceitos fundamentais claros e nitidamente definidos. finições. Mas o progresso do conhecimento tampouco to
Na verdade, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, lera rigidez nas definições. Como o exemplo da física ensi
começa com tais definições [veremos que todo este texto des na de maneira brilhante, mesmo os 'conceitos fundamen
creverá um procedimento epistemológico geral, sem nenhu tais' que foram fixados em definições vêem seu conteúdo
ma referência ao que pode ter de particular a procura dos constantemente modificado." 2
fundamentos e a conceitualização em psicanálise]. O ver Constatemos que é com a física que termina esse pará
dadeiro começo de toda atividade científica consiste, antes, grafo, que descreve, portanto, um vaivém enriquecedor entre
na descrição de fenômenos, que, em seguida, são agrupa experiência e conceitos. Os conceitos fundamentais não es
dos , ordenados e inseridos em relações [Freud retornará,. . tão presentes desde o começo; desde o estágio da descrição,
é claro, ao termo de fenômeno: não se trata de um empins- porém, há contextos ideais vagos, como roupas que não de
mo cego]. Já na descrição, é inevitável aplicar ao material vem apertar, isto é, não devem ser restritivas, ao mesmo
certas idéias abstratas extraídas daqui e dali e, certamente, tempo convencionais e não arbitrárias, emprestadas daqui
não apenas da experiência atual [a própria experiência, sim ou dali. Evidentemente, um dos conceitos que teremos de
plesmente para ser percebida e dita, para ser simplesmente examinar será este empréstimo dos conceitos da psicanáli
descrita, necessita de um primeiro enquadramento concei se tomados de domínios conexos, esta espécie de colagem.
tual emprestado, "improvisado"]. Tais idéias - que se tor É somente num tempo posterior que se opera um estreita
narão os conceitos fundamentais da ciência - são ainda mento em direcão aos conceitos fundamentais, uma tenta
mais indispensáveis na elaboração posterior dos materiais. tiva de delimitá-los e defini-los; mas essas definições esta
Primeiro, eles comportam necessariamente certo grau de in rão sempre sujeitas a revisão.
determinação; seu conteúdo não pode ser claramente deli Muito bem, belíssimo texto, mas que, insisto, não é em
mitado [o retorno a uma definição clara é um tempo total absoluto específico de procedimento da psicanálise, ou, para
mente secundário e, como veremos, uma etapa nunca aca ser mais preciso, que a inclui numa epistemologia geral, no
bada]. Enquanto estiverem nesse estado, chega-se a um acor mesmo plano das ciências da natureza. É por isso que não
do sobre sua significação, multiplicando as referências ao posso resistir a invadir o parágrafo seguinte, e vocês verão
material da experiência de que parecem derivar, mas que,
na verdade, está submetido a elas. Portanto, têm, rigoro
samente falando, o caráter de convenções, embora tudo de 2. Métapsychologie, Paris, Oa!limard, pp. 1 1-12. Entre colchetes: comen
penda do fato de que não sejam escolhidas arbitrariamen- tários de J. L.
6 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE INTRODUÇÃO 7
por quê. O parágrafo seguinte in- cuação da energia externa. Entre a extremidade receptora
A FISIOLOGIA traduz o conceito de pulsão e to- e a extremidade motora, não há nada que se pareça com
COMO FUNDAMENTO: ma um empréstimo da fisiologia, uma tentativa de se desembaraçar de uma excitação incô
UM BICHO a fisiologia de Reiz, que, em geral, moda. Este "esquema" não se sustenta nem por um segun
NA FRUTA é traduzido por "excitação", mas do, não apenas diante da fisiologia moderna, mas até mes
que seria melhor verter por "estí mo perante a da época de Freud. E certamente Freud sabia
mulo" , para distingui-lo de Erregung, a "excitação" . Por disto.
tanto, o conceito de pulsão seria compreendido com refe Aí está, portanto, essa noção de arco reflexo, descrita
rência à noção mais vasta de "estímulo". Cito : "Há um por um falso esquema no âmbito de uma fisiologia aber
conceito fundamental, convencional deste gênero, por en rante, proposta como modelo para a psicanálise! E, sem dú
quanto ainda bastante confuso, de que não podemos pres vida, como um modelo extremamente fecundo, na própria
cindir em psicologia: é o de pu/são. Tentemos dar-lhe um medida em que, por mais errado que seja, há algo no apa
conteúdo abordando-o por diversos lados . Primeiro, pela relho psíquico que se parece com isso, ou seja, que tudo
fisiologia. Esta nos fornece o conceito do estímulo e o es o que entra deve ser rapidamente evacuado. Desta forma,
quema [é aqui que começo a me divertir, ouso dizer] do re esse suposto empréstimo tomado de uma ciência conexa re
flexo, segundo o qual uma excitação aplicada ao tecido vi corre apenas a uma fisiologia fantástica, ou, talvez, popu
vo a partir de fora (a substância nervosa) é descarregada lar, assim como a paralisia histérica recorre a uma anato
para fora sob forma de ação. "3 mia paracientífica para delimitar seu território.
Eis que o conceito de pulsão poderia ser esclarecido pela Não gostaria de terminar com esse passo de virtuosis
noção de estímulo e pelo "esquema do arco reflexo " . Um mo epistemológico de Freud sem insistir na maneira como
esquema que, tal como o apresenta Freud, eu sempre mos ele explode, como que de dentro, no momento em que pre
trei estar absolutamente errado; um esquema tirado de uma tende "aplicar" seu procedimento ao conceito de pulsão e
falsa fisiologia, até mesmo de uma fisiologia infantil. A idéia ao "exemplo" do arco reflexo. Como em vários outros
de que uma excitação aplicada sobre o tecido vivo a partir textos4, cujo desenvolvimento estaria aparentemente bem
de fora encontra-se idêntica na saída provém de um meca fundamentado na razão e na experiência se dissesse respei
nicismo elementar que ninguém defenderia. Sabemos que to às ciências da natureza, ou até às outras "ciências hu
o que é descarregado sob forma de ação muscular terminal manas" , o bicho foi introduzido na fruta pelas últimas li
nada tem a ver nem com a energia do estímulo, nem tam nhas, tão desconcertantes : o modelo emprestado da "bio
pouco com a energia nervosa que percorre as vias do "arco logia" , da psicofisiologia, é um falso modelo. Como que
reflexo ". A energia muscular, a energia da ação, aquela que para significar uma dupla heterogeneidade; não apenas a
faz levantar a perna quando se bate com um martelo no ten psicanálise não é como as outras ciências, já que não pro
dão rotuliano, evidentemente nada tem em comum com a gride como elas, mas talvez esteja numa relação com as ou
energia do martelo. Trata-se de uma seqüência de desenca tras ciências que não é comparável à que elas mantêm en
deamentos sucessivos, e não do transporte seguido da eva- tre si.
3. Ibid. , pp. 12-13. Entre colchetes: comentários de J. L. 4. Cf. mais adiante pp. 25-26.
'i
Portanto, este texto é um parêntese, porém muito im se a rebaixarmos, como é muitas vezes o caso, a tudo o que
portante, na medida em que introduz, numa aura sinistra, qualquer 1/; (dir-se-ia em matemática), em qualquer circuns
as relações da psicanálise com os domínios conexos : não tância, pode recolher de qualquer sujeito. A inflação do con
apenas a biologia, como a lingüística e também a história, ceito de clínica acompanha seu caráter vago e irrefletido,
a pré-história, e outros. Teremos a oportunidade de exa e, sobretudo, o valor de álibi que ele ganha hoje em dia,
minar esse problema. É possível a importação, a apropria álibi contra o pensamento e arma de guerra contra toda re
ção de fundamentos conceituais externos à psicanálise? E, flexão. Pretende-se que se trata de um empirismo salutar?
sobretudo, questão prévia: são esses conceitos realmente ex Diria que, em relação à grande tradição empirista, a dos
ternos? Ou, então, para formular uma outra questão no mes anglo-saxões, o empirismo da "clínica" é irreconhecível e
mo círculo, que sentido pode ter o termo "apropriação de os grandes empiristas certamente não se reconheceriam ne
um conceito" quando se trata da psicanálise quejaz da pró le. Sob o nome de retorno à clínica, o que se tenta impor
pria apropriação, não apenas um movimento conceitual, é um terrorismo de conceitos implícitos, com muita freqüên
mas um movimento real; digamos, algo necessariamente fun
cia retirados do senso comum ou banalizados por ele. Te
dado numa introjeção (para empregar um termo simples)?
rei a oportunidade de falar de um desses conceitos, um dos
Fundamentos para a psicanálise mais recentes , que se tornou uma espécie de tapa-buracos,
QUATRO LUGARES são, portanto, fundamentos para em particular na psicologia psicanalítica anglo-saxã, ou se
DA EXPERIÊNCIA uma experiência que é a experiên ja, o conceito de interação, que passou a ser a fórmula má
ANALÍTICA cia psicanalítica. A experiência psi gica da antiteoria. Mas poderíamos citar muitos outros . . .
canalítica pode ser localizada? Há Dir-se-á que o "pensamento clínico" é um pensamen
um lugar privilegiado dessa experiência? Certamente, se hou to pragmático? Mas também isto seria injuriar a grande tra
ver um lugar privilegiado diremos imediatamente que é o dição do pragmatismo como orientação epistemológica, seria
tratamento psicanalítico. Precisamos ainda definir com pre esquecer que o verdadeiro pragmatismo toma, sem dúvida,
cisão esse privilégio que talvez nada tenha a ver com aquele como critério o êxito, mas o êxito do pensamento, e não
que se vincula, pretensamente, à experiência imediata, um a obtenção de um efeito material imediato, como gostariam,
privilégio de empiria, pois, no fim das contas, talvez não em número cada vez maior nos nossos círculos, aqueles que
haj a nada menos empírico do que o tratamento psicanalíti a propósito de cada conferência, em cada momento da dis
co. Além disso, a experiência psicanalítica não é somente cussão , têm apenas uma questão na boca: para que serve
experiência do tratamento, e podemos agrupar os lugares isto? Que receita você me propõe? Uma receita a qualquer
e os objetos da experiência psicanalítica em quatro pontos: preço para obturàr a angústia de nossa ineficácia terapêu
a clínica, a psicanálise exportada, a teoria e a história. tica demasiado freqüente ! "Meu reino por um cavalo ! "
A clínica. Pois bem, a lista acima,
-1 "Freud todo por uma receita! "
A CLÍNICA: que recoloca a clínica em paralelo
O TRATAMENTO com outros lugares, indica que es A crítica de um pensamento vulgarmente empirista ou
ta não corresponde ao todo da ex pragmático. não precisa mais ser feita. Freud a esboça no
periência psicanalítica, mesmo se quisermos, como devemos, trecho que eu citava há pouco. Toda experiência só pode
dar-lhe o sentido estrito da clínica do tratamento. Com mais ser acolhida em contextos conceituais, pré-contextos, que
razão ainda, ela não é o lugar da experiência psicanalítica vão se afinar e se corrigir numa dialética, num movimento
10 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE INTRODUÇÃO 11
de vaivém, com a experiência. Contudo, podemos nos per ta, na própria base, o fato de que o sujeito humano é um
guntar, como eu indicava anteriormente, se a argumenta ser teotizante, e teorizante de si mesmo , quero dizer que
ção de Freud não é uma espécie de remédio para todos os ele teoriza a si mesmo, que ele se autoteoriza, ou então, se L*-J
males. A epistemologia de Freud, neste trecho, estará à al
tura de seu objeto e da especificidade deste? Especificida
de do objeto humano, ficamos tentados a dizer. Pode ser.
esse termo de teoria mete muito medo, que ele se auto- .
simboliza. A simbolização que lhe surge no tratamento, in-
terpretação ou auto-interpretação, movimento da interpre-
�
Mas e então . . . ? Trata-se simplesmente de opor as ciências tação entre o analista e o analisado, essa simbolização é re
simbolização com base em primeiras simbolizações, dessas {
humanas às ciências naturais? Talvez não fôssemos muito
longe se incluíssemos a epistemologia da psicanálise numa
epistemologia geral das ciências humanas.
simbolizações originárias em cujo rastro nos colocaremos
necessariamente nesta procura dos fundamentos.
\
Antes de avançar mais, acho que convém definir duas Um segundo lugar e objeto da ex-
especificidades da clínica psicanalítica como objeto. Primei A PSICANÁLISE periência psicanalítica é a psicaná-
ramente, a especificidade da nossa experiência do tratamen EXTRAMUROS lise que chamo de exportada ou ex-
to. Nossa experiência se produz num enquadre fundante, tramuros. Sabe-se que utilizo essa
segundo uma regra ela mesma fundante, já que se intitula expressão para me demarcar da de ' 'psicanálise aplicada' ' ,
assim: Grundregel, ''regra fundamental' ' , ou seja, que es que, com certeza, é a mais comum e mais eloqüente, encon
tá no próprio fundamento do que vai acontecer no trata trando sua origem já nos tempos de Freud, mas que, por
mento. O que essa regra funda, o que ela funda de novo carregar consigo a noção de aplicação, é totalmente sujeita
voltaremos a abordar, mas sublinhemos que esse caráter fun a críticas. "Aplicação" suporia que, a partir de um domí
dante do tratamento vai muito além do que se pode dizer nio privilegiado, que, com efeito , é o tratamento, uma me
das condições experimentais que enquadram necessariamente todologia e uma teoria seriam abstraídas, para, em segui
todo aparelho de experimentação numa ciência qualquer da, serem transferidas, sem mais- como numa engenharia
("humana" ou não). Isso vai muito mais longe que o pre - para um outro domínio, assim como a ciência aplicada
ceito de que se leve em conta as condições da observação. de um engenheiro, para construir uma ponte, nada mais é
É algo que pretende fundar e recolocar em andamento um do que uma engenhosa derivação a partir dos conceitos fun
processo em ressonância com um processo fundante do ser damentais da física ou da mecânica. Por isso, rejeitamos essa
humano. noção de psicanálise aplicada que desdenha o que constata
A outra característica, que não é totalmente indepen mos quanto à sua função, quanto ao seu papel, à sua im
dente da primeira, é que o objeto da psicanálise não é o ob portância, no movimento psicanalítico e, antes de mais na
jeto humano em geral; não se trata do homem que pode da, em Freud; em Freud, onde verificamos não apenas sua
mos delimitar através de várias ciências - a psicologia, a importância quantitativa na obra, mas também sua fecun
sociologia, a história, a antropologia-, mas do objeto hu didade. Quando se pensa que um caso como o de Schreber,
mano, na medida em que formula, que dá forma à sua pró ou como d de Leonardo, tão centrais para o progresso do
pria experiência. É evidente que lhe dá forma essencialmente pensamento freudiano, são psicanálise extratratamento, ex
na linguagem do tratamento, porém, de maneira mais pro tramuros. Quando refletimos sobre os estudos socioantro
funda, este é um movimento de sua vida inteira. Uma epis pológicos, no Totem e tabu, no Moisés, nos estudos sobre
temologia e uma teoria da psicanálise devem levar em con- a arte, nos estudos sobre a religião, escritos estes que cons-
12 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
INTRODUÇÃO 13
tituem uma proporção considerável da obra freudiana. Em
nenhum caso, esse pensamento extramuros é secundário em Terceiro lugar e objeto de experiên-
Freud; tira sempre seus resultados do contato com seu ob A TEORIA COMO cia: a teoria. Enunciar que a teoria
jeto. Face a essa fecundidade, tive a ocasião de sublinhar, EXPERIÊNCIA é lugar e objeto de experiência sig-
não sem alguma ironia, o desapreço de que é objeto por nifica, é evidente, recusar à teoria ' .
parte de muitos, nos nossos dias, um descrédito que só se qualquer estatuto que estaria definitivamente à parte, seja-t�
compara ao entusiasmo com que cada um a ele se dedica, como ferramenta (ferramenta conceitual, diz-se às vezes: ela
seja abertamente - e este é por certo o melhor caso-, se deve servir para alguma coisa), seja, pelo contrário, como
superestrutura mais ou menos inútil (e sabemos que, à ve-
]
ja de maneira sub-reptícia e até mesmo nas apr�ciações psi
canalíticas do "movimento" e das escolas psicanalíticas, ou, zes, era uma afetação de Freud, não se pode dizer de outra
então, na "psicanálise" dos "caros colegas": forma, pretender que os conceitos psicanalíticos eram, em
A psicanálise se dirigindo para fora-do-tratamento, não suma, nosso hobby). Ao inverso, afirmar que o homem é
de maneira acessória, como um ao-lado-de, mas fundamen a� to!eorizante si.�ni�ica dizer que toda verdadeira teoriza- 1
çao e uma expenencm _
que, necessanamente, engaja o pes- •
talmente, dirigindo-se adiante dos fenômenos culturais; pois,
com efeito, a psicanálise exportada não é exportação para quisador. O modelo disto, sem dúvi da, é Freud. Penso nes-
qualquer lugar, nem todo "extratratamento" é objeto de tes monumentos puramente teóricos que são o Projeto pa-
psicanálise extramuros e as condições de domínio e de mé ra uma psicologia científica de 1895, o capítulo VII da In
todo têm de ser definidas a cada vez. Nesse movimento de terpretação dos sonhos, Para além do princípio de prazer,
se-dirigir-para-fora da psicanálise, distingo dois aspectos, ou então o último achado, este texto inédito que se intitula
dois movimentos, ou um duplo aspecto de um mesmo mo Visão de conjunto sobre as neuroses de transferência. Pois
vimento: com certeza o aspecto interpretativo, teorético, in bem, como abordar esses monumentos teóricos senão co-
clusive especulativo, mas também um aspecto real sobre o mo exercício onde se vive a análise? Ela não é vivida aí em
qual pouco se insistiu até agora. Por aspecto real entendo relação a um objeto que lhe seria extrínseco, mas se desen-
que a psicanálise, não apenas como pensamento e como dou volve por seu movimento próprio. Experiências que cabe ana-
trina, nas obras de psicanálise dita extramuros, mas como lisar, levar ainda mais longe do que Freud, levar aos últi-
modo de ser, invade o cultural. A psicanálise é um imenso mos redutos, com a possibilidade, assim, de vê-las se desar
movimento cultural e, neste sentido , é o conjunto da psica ticularem, se decomporem e se recomporem.
nálise que se dirige para fora-dos-muros. Tentei , nas mi Trata-se aí, nos diz Freud, de especulação. "O que se
nhas Problemáticas III dedicadas à sublimação5, delimitar gue é especulação ...", diz ele em Para além do princípio de
o que poderia ser uma teoria da sublimação moderna - prazer e quase a mesma frase em Visão de conjunto sobre
) as neuroses de transferência. Enuncia-se, como que se des
'1
para empregar tal termo - a partir desse movimento que
dirige a psicanálise para a cultura e que faz com que o ho- culpando e aproximando a especulação do livre jogo da ima
T mero psicanalítico não seja somente um homem segundo a ginação, mas sabemos que essa especulação logo adquire,
' psicanálise, estudado pela psicanálise, mas um homem que para ele, mais peso do que todo raciocínio experimental. Pen
doravante está marcado culturalmente pela psicanálise. samos, em particular, na famosa especulação sobre a pul
são de morte que, nascendo efetivamente de um suposto mo
5. Paris, PUF, 1980.
vimento "para ver no que vai dar ", de uma espécie de "ex
periência de pensamento", "ganha consistência" pouco a
+
t-
NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE INTRODUÇÃO 15
14
pouco, como uma maionese, e ganha uma consistência mais mo que competentes, como a de Jorres. Mas, em contrapo
forte que a maionese, como um verdadeiro cimento. Espe sição, tampouco entendo por história a história revista que,
culação biológica em Para além do princípio de prazer, es em nossos dias, pode nos ser apresentada, anedótica ou não,
peculação antrOpológico-histórica em Totem e tabu ou, ain segundo os poucos documentos que se consegue exumar e
da, na Visão de conjunto, a especulação em Freud é uma que, algumas vezes, são seguramente importantes; essa his
real " experiência interior" , para retomar esse termo de um tória mais verídica, que, pouco a pouco, quer substituir as
outro autor. Não é uma desvalorização mobilizá-la, isto é, falsificações ou as mediocridades da precedente. O que me
torná-la móvel, remobilizá-la, desfazer seus laços artificiais interessa é a história de um pensamento inteiramente mo
para eventualmente reencontrar para ela outras valências, vido por seu objeto ou, se quiserem, inteiramente movido
sem por isso rebaixá-la a algo puramente ilusório (sinôni por sua pl;llsão. Mais do que a anedota, mais do que peri
mo, para alguns, da fantasia), mas, por outro lado , sem pécias (esses faJI1osos abandonos, esses famosos retornos),
reduzi-la a um jogo de argumentos puramente racionais. também mais do que as continuidades, o que me interessa
Meu quarto ponto, por fim, será o nessa história de experiência é uma dialética complexa on
A HISTóRIA coMo seguinte: o que acabamos de esbo- de encontramos, na evolução da teoria, o eco e, às vezes,
EXPERIÊNCIA çar sobre a experiência teórica se- o decalque da evolução do ser humano. Acho que não se
ria ainda mais verdadeiro a propó ria abusivo enunciar uma espécie de lei de Haeckel de um
sito da história como lugar e objeto de experiência. Tam novo tipo (vocês §abem: a ontogênese reproduz a filogêne
bém aí trata-se da história da psicanálise e, particularmen se), aplicável, pelp menos, ao pensamento psicanalítico e
te, da história de Freud e do pensamento freudiano . Ainda que formularia que "a teorético-gênese reproduz a ontogê
não esgotamos (algum dia o faremos?) o privilégio de este nese". Tive a oportunidade de mostrá-lo de perto no caso
mecanismo ser não apenas fecundo, ou genial se quiserem, da teoria freudian<'J. das pulsões, sobre a qual se é forçado
mas de ser o lugar de uma experiência que revela até nas a dizer que seu próprio desenvolvimento temporal repro
suas hesitações, nas suas defesas, nas suas tomadas de po duz algo do movimento do ser humano pelo qual se engen
sição, nas suas repetições, os próprios contornos de seu ob
jeto. Por história do pensamento de Freud certamente não \ dram suas próprias pulsões.
Em outros momentos é o conflito, a discórdia, a defa
entendo a história historicizante- de forma nenhuma sou sagem entre o pensamento e seu objeto que podem ser re
um historiador de Freud, outros são mil vezes mais compe conhecidos no que temos o direito de chamar de recalca
tentes do que eu. Sirvo-me da história que os outrOs escre mento, defesas, repetições incoercíveis. Entre esses recal
vem, mas não é essa a questão : parto de uma reflexão so camentos, entre essas defesas- que, com freqüência, ar
bre a história do pensamento freudiano. Não me refiro nem rastam consigo, como toda defesa, muito mais do que aquilo
à história oficial deste pensamento, nem à história revista. contra o que querem se defender, que arrastam, muitas ve
A história oficial é, primeiro, a história de Freud por ele
zes, todo um plano da realidade e, aqui, todo um plano da
mesmo. Mais de uma vez Freud esboçou, seja em obras se
realidade de pensamento -, há essa espécie de cataclismo
paradas, seja em certas passagens, uma história de seu pró
prio pensamento, história que é sempre extremamente dis sobre o qual ainda retornaremos e que ainda não perlabo
cutível, falsificada, o que, com mais motivos ainda, é tam ramos suficientemente, esse famoso cataclismo do suposto
bém o caso da história oficial dos grandes hagiógrafos, mes- abandono da teoria da sedução.
16 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
INTRODUÇÃO 17
Fundar a psicanálise e não criá-Ia, pois ela existe nes
todoxo? E o que isto pode querer dizer? É, ao contrário,
ses quatro lugares de experiência: clínico, teórico, extratra
fazer Freud dizer o que se quer, o que, com efeito, é o caso
tamento e histórico, lugares que reúno sob o termo de " teo
de um certo Iacanismo. É, também, recorrer a Freud, que
rético " para distingui-los em bloco de um "prático", no
ro dizer, eventualmente de maneira apologética, lançar pas
sentido de que mesmo o que se intitula clínico é, de fato, sagens de Freud contra outras passagens. "Escolástica freu
uma certa consideração (theorein) e uma certa reflexão so diana' ', dizem. Na verdade, não exageremos, a escolástica
bre o objeto, pois não existe clínica puramente empírica. freudiana nunca adquiriu as dimensões que tinha a esco
Quatro lugares de experiência, e o francês é pobre com es lástica aristotélica e, nem mesmo, mais perto de nós, a es
sa palavra que abrange pelo menos três termos em alemão colástica marxista. O termo que prefiro, depois desse re
(e também em outras línguas): o "Experiment" , o experi torno a Freud e desse recurso a Freud, seria o retorno so
mentalismo que se apaga diante do objeto; o "Erlebnis" , bre Freud, pois não podemos voltar a Freud sem fazê-lo
a experiência vivida, como nós traduzimos, onde é mais o sofrer (e é o que quer dizer este "sobre") um certo traba
objeto que se apaga diante da vivência; e, por fim, o que lho, trabalho sobre a obra e trabalho da obra, sobre o qual
entendo aqui por experiência, o "Erfahrung" , ou seja, um já me expliquei, trabalho que suplicia a obra.
movimento em contato com o objeto, em contato com o
movimento do objeto.
Fundar é, portanto, refundar, e refundar é voltar a um
gesto fundante e, necessariamente, é claro, a9 fundador,
isto é, a Freud. Qual é este gesto fundante? E aquele em
que ele instaura a situação analítica nos anos 90-95, o que
chamo de tina e que esquematizo, como poderão encontrar
desenvolvido em ensinamentos já antigos, no seu estranho
fechamento (fechamento do círculo) e abertura (pois tan
gencia outro círculo, o dos interesses e da adaptação)6.
Gesto inaugural o de Freud, mas que não parece sus
peitar que só o é porque renova outro gesto fundante, ou
tros gestos fundantes, que são o traçado, a delimitação de
um domínio no seio do ser humano no pequeno ser huma
no. Fundar é sempre fundar de novo.
O que dizer daquilo que se chama, daquilo que se cha
mou já há algum tempo, "retomo a Freud"? Os estilos disso
são inúmeros desde o movimento de arrasto provocado por
Jaroques Lacan. Retorno a Freud? Isso é ser freudiano or-
6. CF. Prob/émariques I I L'angoisse, Paris, PUF, 1980, pp. 178 ss, e, sobre
tudo, Problématiques V I Le baque/. Transcendance du transferi, Paris, PUF, 1987.
1
CATÁRTICA
11 O biológico
mo : como origem, como modelo (com a polivalência que um momento de "atualidade" , um momento em que ela
se pode atribuir a esse termo, volto a isto num instante) e, se atualiza no atual do corpo. Idéia por demais esquecida,
por fim, como esperança, como perspectiva de futuro e, mui mas periodicamente redescoberta e ainda há pouco, a pro
to precisamente, como perspectiva terapêutica. pósito da angústia, visto que um congresso sobre esse te
A esperança de um tratamento bio ma, que os j ornais cobriram de maneira bastante curiosa,
O BIOLÓGICO lógico, quimioterápico, das neuro opunha a posição de Freud como puramente psicogenéti
COMO ESPERANÇA ses nunca abandonará Freud, co ca, a uma teoria, digamos "metabólica" , da angústia, es
mo algo que deveria, algum dia, quecendo que o próprio Freud é o inventor dessa teoria me
por vias bem mais curtas, suplantar o tratamento psicote tabólica, intoxicante, da angústia2 • A angústia como me
rápico. Isto não deixa de ter fundamento na teoria, em re do presente que repete um medo antigo, eis o aspecto mais
lação a uma idéia precisa que pode ser enunciada de dife simples (e, sem dúvida, o mais simplista, inaceitável sob esta
rentes maneiras: forma) da teoria psicogenética3 ; a angústia como transbor
Primeiramente, a natureza química da libido, conside damento e opressão do ego por um excesso de libido: esta
rada por Freud como um produto de metabolismo suscetí é a teoria "atual". Sem insistir na síntese possível entre es
vel de descarga, de acumulação e, portanto, responsável por ses dois pontos de vista, valeria a pena sublinhar que uma
intoxicação. A libido, para Freud, seria uma substância úni teoria psicanalítica da angústia não pode deixar de levar em
ca nos dois sexos. conta esse ataque interno pela libido4 , que se desenvolve no
Ligada a esta teoria da natureza química da libido, há nível do corpo. Caberia igualmente lembrar, para uma teoria
a velha teoria das neuroses atuais, neuroses consideradas geral dos afetos, que esta, não mais do que a teoria deste
como não sendo de origem nem de significação psicológi afeto por excelência que é a angústia, não pode evitar de
cas, mas determinadas por um desvio do metabolismo se se situar na própria cena do corpo. A modificação corpo
xual, um desregramento dos mecanismos que normalmen ral e sua vivência perceptiva são essenciais para a vivência
te deveriam desembocar numa descarga regular da libido. do afeto, de forma que não há nada de escandaloso, nem
Essa teoria das neuroses atuais, sempre presente, nunca de antipsicanalítico, em lembrar que as drogas podem mo
abandonada, significa, por um lado, que Freud coloca uma dificar completamente essa vivência e em formular o pro
categoria ao lado de outra, a categoria das neuroses atuais jeto de uma ação seletiva e controlada sobre ela.
ao lado da categoria das psiconeuroses, tendo estas últimas Depois desta evocação bastante rápida relativa à no
uma determinação e uma significação psíquicas, enquanto ção do biológico como "esperança" , passo ao que, antes
que nas neuroses atuais estaria em plena ação um mecanis
mo somático e, portanto, presente, "atual", j á que o cor
po, por definição, como res extensa, está sempre no pre 2. Simpósio internacional sobre os "Novos aspectos da ansiedade" na Aca
sente. Mas a neurose atual é, ao mesmo tempo, mais do que demia de Medicina, 24-26 abril de 1 985. Resumo no Le Monde de 24 de abril
de 1985, p. 15.
uma simples categoria limitada. Ela é apresentada por Freud
como intrínseca às psiconeuroses, no sentido de que não exis 3 . Cf. sobre este ponto, Problématiques I/L 'angoisse, Paris, PUF, 1980,
pp. 148 ss. e 244 ss.
te psiconeurose, mesmo totalmente compreensível por fa 4. O que chamo de ataque do objeto-fonte. Cf. particularmente "Une mé
tores psíquicos, que não comporte um momento- talvez o tapsychologie à l'épreuve de l'angoisse ", em Psychanalyse à l'Université, 1979,
mais eficaz, do ponto de vista da produção dos sintomas-, 4, 16, pp. 709-722.
I
I
22 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 23
de mais nada, gostaria de sublinhar e discutir no freudis um lado, encontramos o que chamo modelos de memórias,
mo: o biológico como "protótipo" . Vorbild é um termo de modelos de livre circulação que poderiam ser comparados
'' ao que são, em nossos dias, os modelos informáticos. O mais
considerável freqüência em Freud
e sob o qual várias idéias vêm se ! famoso desses modelos é o do capítulo VII da Interpreta
o BIOLóGico
l
coMo MODELO juntar. O Vorbild é uma imagem, ção dos sonhos, mas temos também toda uma parte do Pro
uma épura, um desenho prelimi- 4ll jeto para uma psicologia científica. O famoso modelo do
nar, ao mesmo tempo "modelo" abstrato e uma primeira
realização concreta, ou seja, um "protótipo" . Em várias
l
I
capítulo VII estabelece, com efeito, uma sucessão de me
mórias entre as quais se produzem reinscrições sucessivas .
ocasiões Freud emprega essa noção, particularmente a pro I. E há um outro tipo de modelo, os modelos de nível· estão
muito mais próximos da biologia, pois fazem intervi� a fic
pósito do que chama os protótipos normais dos estados pa
tológicos. Assim, o luto seria o Vorbild normal da melan
I ção de um organismo - e não mais apenas de um aparelho
colia; ou então, o sono seria como que o modelo normal, psíquico- que tende por todos os meios a manter um cer
ou melhor, o modelo atual do estado fetal. Mas vemos, nesta t? nível, uma homeostase. Com muita freqüência, esses dois
última colocação freudiana, tirada do Complemento me tipos de modelo se completam, se misturam, principalmente
tapsicológico à teoria do sonho, que podemos nos pergun no Projeto para uma psicologia científica, onde partimos
tar quem é modelo de quem: um modelo é aquilo que nos de um modelo de memórias, mas que, muito rapidamente,
permite conhecer o outro, ou é aquilo que, na cronologia, somos forçados - obrigados, nos diz Freud, pela "urgên
vem antes do outro? Se se declara que o sono é o modelo cia da vida" (precisamente obrigados no nosso pensamen
normal do narcisismo, é para sugerir que o sono é a manei to como o próprio organismo o é no seu ser) - a fazer in
ra que temos de ter acesso ao narcisismo fetal; mas, por ou tervir a noção de um nível a ser salvaguardado .
tro lado, segundo Freud pelo menos, o narcisismo fetal se Confrontemos, por um instante, os três termos, de ori
ria o protótipo do sono. Em suma, qual é o modelo e qual gem, modelo e fundamento, quan-
é o protótipo no sentido do que vem primeiro, segundo o o BIOLÓGICO do os relacionamos com o biológi-
termo alemão Vor-bild? Em que medida um modelo des NA ORIGEM... co. A origem supõe uma anterio-
creve uma origem? E que origem descreve ele? Trata-se de ridade. Partimos da evidência de
uma origem no interior do modelo, ou uma origem exte que somos seres vivos antes de sermos seres humanos, se
rior ao modelo? res "culturais " . Evidência incontestável: na história da vi
E já que me detenho um pouco nessa noção de mode da há seres não culturais antes de existirem aqueles marca
lo (termo, mais uma vez, que não está exatamente presente dos por uma cultura. E, provavelmente, tampouco se con
em Freud no sentido que lhe é dado por uma epistemologia testará, na história dos hominídeos, que o estágio cultural
mais moderna; o termo mais próximo que encontraremos veio se enxertar num estágio mais biológico. Uma anterio
é o de "ficção "), lembrarei rapidamente que podemos dis ridade similar pode ser postulada, não sem razão, no indi
tinguir pelo menos dois tipos de modelos em Freud5 . Por víduo, em cujo desenvolvimento pode-se pelo menos recons
truir, a partir da observação, a existência de uma camada
adaptativa-desadaptativa (poder-se-ia dizer) dos comporta
5. Cf. Prob/ématiques V!Le baque!. Transcendance du transferi, me�tos !leonatais, antes de serem marcados pela interação
. . PUF,
,. Paris,
'
1987, pp. 3 1 ss. social. E o que podemos dizer quanto ao termo "origem
24 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÃRTICA 25
biológica" , no sentido de que postular que o vivo existe an veis adaptativos cada vez mais elevados, ainda que através
tes, é anterior ao cultural, não significa, a meu ver, formu de n1pturas.
lar uma demanda ou uma concessão excessiva. A expressão desse gênero de teoria, há algumas deze
Vejamos agora a questão do "modelo biológico" . A nas de anos - talvez hoje esteja um pouco fora de moda
psicanálise dá, de nosso devir humano, modelos ditos bio -, era o organodinamismo, cuj o expoente era Henri Ey.
lógicos , recorrendo à noção geral de um ser vivo confron Havia nela uma visão de conjunto da psicopatologia
tado com um meio. Além disso, não são somente modelos referindo-se a duas fontes consideradas compatíveis: por um
estáticos, mas modelos em movimento, modelos de gênese lado, Jackson e, por outro, Freud. As teses jacksonianas
que pretendem mostrar como esse ser vivo evolui de uma da integração sucessiva de diferentes níveis, da progressão
etapa simples a uma etapa mais complexa, por diferenciação . do mais simples ao mais complexo e do mais automático
Pois bem, como estes três aspectos- anterioridade do ao mais voluntário, conjugavam-se com a idéia de uma de
ser vivo em nós, modelo do ser vivo para nosso psiquismo sintegração possível, percorrendo as mesmas etapas em sen
e, por fim, modelo evolutivo, construtivo do ser vivo (mo tido inverso na dissolução psicopatológica. O que o pró
delo construtivo de um ser vivo , pois se trata de um ser vi prio Henri Ey chamava seu neojacksonismo não era outra
vo em toda a sua abstração) - não desembocariam, por coisa senão uma tentativa de integrar nesse esquema, co
coalescência, numa total confusão entre o que diz respeito mo a primeira etapa desse percurso, o inconsciente, o di
à origem, o que diz respeito ao modelo e o que se refere namismo pulsional. Sem dúvida que, em mais de um as
ao fundamento? O biológico antes do humano , estamos di pecto, Freud se presta a tanto . Toda uma linha de pensa
postos a admitir. O biológico invadindo, como modelo, o mento, toda uma linha de textos caminha nesse sentido, e
psiquismo humano é o que temos de descrever. Foi o que um dos que vai mais longe nessa tentativa de construção
às vezes Freud tentou fazer , se vocês quiserem me acompa do ser humano do mais simples ao mais complexo, como
nhar, a propósito do "ego " . Mas, em contrapartida, o bio- um ser vivo se adaptando à necessidade vital, provavelmente
lógico presidindo a gênese do psi- é-aquele que se intitula Formulações sobre os dois princí
···MAS NÃO quismo humano a partir de um pios do curso dos acontecimentos psíquicos 6 . É raro que
COMO FUNDAMENTO fundamento vital, em outras pala- um texto como esse, que podemos tranqüilamente dizer de
vras, o bi0lógico presidindo a re inspiração naturalista, não contenha o que denomino uma
lação entre o psiquismo e a vida, estando a própria emer admoestação, como muitas vezes um sonho contém em ai- *'
gência do psiquismo humano regida pelo biológico, isto é gUmCantinho um indício, um "determinante" , nos indi
mais duvidoso. Duas evidências: a precessão do biológico cando, por exemplo, que todo o conteúdo do sonho deve
e a presença do modelo biológico no psiquismo. Uma con estar marcado pelo selo da contradição ou do absurdo: um
clusão duvidosa: que a própria evolução do psiquismo hu "recomponhamo-nos". Encontraremos no último parágrafo
mano seja regida por uma lei biológica. No entanto, há nessa deste texto essa verdadeira advertência. Embora todo o ar
idéia de que a evolução do vital ao psiquismo humano se tigo esteja centrado na adaptação progressiva de um orga
ria, ela mesma, de ordem vital, ou seja, da ordem da adap nismo ao mundo e, portanto, à realidade, esse último pa-
tação , uma concepção corrente, admitida, nunca questio
nada e que se traduz, por exemplo, numa teoria da estrutu
6. Résultats, idées, problemes I, Paris, PUF, 1984, pp. 135-144.
ração progressiva do ser humano, com emergência dos ní-
26 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 27
rágrafo nos lembra, justamente em contradição com o con ment� um modelo biológico ao introduzir nele uma inter
junto do texto , que a moeda da realidade (é o termo em venção estranha da qual o menos que se pode dizer é que
pregado por Freud), a moeda da realidade física não tem é bastante complexa e, de qualquer modo, irredutível a um
valor legal em psicanálise, j á que esta se desenrola total elemento suplementar num suposto equilíbrio autárquico9?
mente no campo do não-adaptativo, do não-vitaF. Geralmente, Freud não terá a preocupação de respon
A questão, para formulá-la de outra maneira, seria a der de maneira mais explícita ao questionamento que se re
seguinte: o biológico no começo da vida, o organismo con
fere a este ser vivo concreto que é o pequeno ser humano
creto do pequeno humano, este que evidentemente admiti
no começo. O que ele põe na origem não é, com efeito, o
mos levar em consideração e o biológico como modelo no
psiquismo, esse "ser vivo" no psiquismo que iremos encon pequeno ser humano tal como o
o MODELO observamos, mas um modelo pri-
trar, são a mesma coisa? Pois bem, nesse mesmo texto,
BIOLómco mitivo, pode-se dizer, um modelo
Freud vai se fazer essa pergunta numa nota famosas, on
NO APARELHO de uma biologia elementar, um
de faz a si mesmo uma objeção capital: o organismo que
ANíMICO protista, um ser vivo reduzido à sua
ele descreve, o qual, como vocês sabem, é pretensamente
capaz de satisfazer de forma alucinatória seus desejos, de expressão mais simples; é, como sa
viver em autarquia, essa mônada que estaria totalmente sub bem, o famoso modelo de Para além do princípio de pra
metida ao "princípio de prazer" e que negligenciaria a reali zer, onde esse protista é denominado "animálculo prato
dade do mundo externo, como poderia ela se manter viva, plasmático". Tive a oportunidade de falar longamente
mesmo que só por um instante, e, até mesmo, simplesmen disto10 , e apenas gostaria aqui de retraçar algumas grandes
te, como poderia ela ter aparecido? Mas, acrescenta Freud linhas. Esse modelo que podemos dizer biológico ,
(com uma bela desenvoltura), " . . . a utilização de uma fic caracteriza-se pelo quê? Pelo fato de que é um aparelho de
ção deste gênero se justifica quando notamos que o bebê, nível, se quisermos retomar a distinção proposta acima en
desde que se acrescentem os cuidados maternos , está mui tre aparelhos de memória e aparelhos de nível . Um apare
to próximo de realizar tal sistema psíquico" . Assim, o pró lho de nível é, antes de mais nada, um aparelho energético,
prio Freud não é insensível à diferença existente entre uma leva em consideração quantidades de energia e, sobretudo,
espécie de modelo - extremamente simples e abstrato , é diferenças entre quantidades de energia; levando em conta
preciso dizer - do ser vivo, e, por outro lado, o ser vivo essas diferenças, o aparelho tem por função e como única
que todos somos e, mais ainda, o ser vivo que é o pequeno finalidade manter-se em existência, o que, para ele, não é
recém-nascido. Para reduzir essa considerável diferença, ele outra coisa senão manter constante seu nível. É o que se
só precisa incluir no modelo nada menos que o conjunto chama de homeostase e princípio de homeostase. Não se
dos cuidados maternos . . . Mas não se subverte completa- deve crer que, na homeostase, o nível energético desse ani
málculo protoplasmático seja mais elevado do que o do ex
terior; muito pelo contrário, o que o "organismo inicial"
7. ' 'Mas que nunca sejamos levados a introduzir o padrão da realidade nas
formações psíquicas recalcadas ... " (ibid. , p. 142). Se o psicanalista é advertido
para não introduzir esse "padrão de realidade", como a "urgência da vida" se
ria capaz de introduzi-lo no inconsciente humano?
9. Veremos mais adiante a função profundamente "anti-homeostática" dos
cuidados maternos, na hipótese da sedução.
8. Ibid. , n. 2, pp. 1 36- 137.
10. Problématiques I/L 'angoisse, Paris, PUF, 1980, p. 187.
28 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 29
tenta manter constante (numa ficção que é preciso aceitar) te, é um modelo biológico do organismo, não somente do
·
é um nível menos elevado do que o que o cerca. O limite organismo protozoário, mas inclusive de todo organismo,
tem por objeto proteger um nível interno de energia que é o que é demonstrado pelo valor explicativo que lhe confere
incomensurável com as energias externas que Freud consi Freud, já que permitirá dar conta de um fenômeno tão ge-
dera extremamente violentas e capazes, a todo instante, de ral quanto o da dor, a dor física, considerada, sabe-se, co- T;O�.
destruí-lo. Para tomar um modelo de outro tipo mas, no mo o resultado de uma invasão limitada do invólucro pro- /
fim das contas, bastante próximo, um vaso, um copo, po tetor. Mas, por um outro lado, insisto nisto, é um organis-
de ter por finalidade manter mais elevado o nível energéti mo teórico, cuja relação com o organismo neonatal con
co (o nível de água) em relação ao que o rodeia; mas se o creto é mais do que hipotética, pois deveríamos incluir nele
copo está ligeiramente enfiado, vazio, na superfície da água, a mãe para fazer coincidir, mais ou menos, modelo e rea
sua função passará a ser de manter, no interior, um nível lidade!
menos elevado. Num segundo n ível (e anuncio que encontraremos pe
Quem diz "nível constante" diz necessariamente uma lo menos três), esse modelo é o de um sistema especializa
superfície, um limite, algo que proteja esse nível. O que im do no ser vivo e não mais no conjunto do organismo vivo;
plica, no modelo freudiano, uma diferenciação superficial sistema que não é indiferente denominar, de acordo com
destinada a manter a diferença de nível. Sabemos que é o o caso, sistema nervoso central, ou, então, do lado psica
que Freud chama Reizschutz, pára-excitação, camada pro nalítico, aparelho psíquico ou aparelho anímico. Às vezes,
tetora. Essa camada protetora endurecida, essa cutícula com parece que sistema nervoso central e aparelho psíquico são
parável, no ser vivo unicelular concreto, à membrana celu noções quase equivalentes, mas, no entanto, sua função ex
lar, tem, segundo Freud, uma dupla função normal: a pro plicativa é bem diferente. Quando se trata do sistema ner
teção do nível energético e a diminuição , a redução das ener voso central, o que precisa ser explicado é o traumatismo
gias que afluem ao organismo. Enfim, esse invólucro tem físico, enquanto que, quando se trata do aparelho psíqui
(desta vez, não uma função, mas) um papel capital em tu co , é ao trauma psíquico que nos referimos . Ora, entre os
do o que é patológico, j á que é sua invasão pela energia ex dois tipos de traumas certamente há analogias, mas tam
terna que, conforme os casos, se traduz por dor ou então, bém uma capital solução de continuidade: estamos diante
· por trauma. de um ponto de ruptura essencial, no sentido de que trau
Lembremos, por fim, para sermos completos, que a di matismo físico e trauma ps{quico, longe de se completarem
ferenciação superficial do aparelho culmina, segundo Freud, ou de se prolongarem um a outro , se excluem. Muito con
na formação de duas camadas superficiais e não de uma cretamente, isto significa que, numa situação traumática,
só: camada protetora, mas também camada perceptiva, cha o fato de estar somaticamente ferido vem evitar, e não re
mada camada "percepção-consciência" , diretamente situada dobrar, o trauma psíquico.
sob a camada protetora. / Notamos, há pouco, que a marca da contradição apa
Eis, portanto, o que denominamos um modelo. Qual recia, com freqüência, num canto do texto freudiano. Aqui,
a relação que ele tem com a coisa: que modelo e que coisa? em Para além do principio de prazer, ela vai ser encontra
Temos dificuldades, lendo Freud, de situar de maneira uní da num "absurdo" que, é claro, não deve ser mencionado
voca o que ele quer representar, pois provavelmente visa apenas para colocar Freud na posição de dizer coisas in
várias coisas ao mesmo tempo. Por um lado e inicialmen- sensatas. Refiro-me a um desenvolvimento notório, em que
I
30 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 31
Freud tenta confirmar sua idéia de que o "sistema" se de ma direção : fazendo do ego, certamente não a totalidade
senvolve por diferenciação periférica e que o sistema da pessoa psíquica, mas um órgão desta. Porém - segun
percepção-consciência, em particular , encontra-se imedia do característica-, não qualquer órgão, e sim, precisamen
tamente subjàcente à camada protetora. Ora, Freud quer te, um organismo, uma organização , cuj o funcionamento
encontrar como prova para essa asserção considerações neu total é regido pelo princípio de nivel definido anteriormen
roanatômicas, segundo as quais o próprio córtex, lugar da te. Como o nosso animálculo de há pouco, o próprio ego
co?-sciência, encontra-se na superfície do cérebro. O que, está mergulhado num mundo de energias traumatizantes,
evidentemente, é uma consideração de uma anatomia na as pulsões.
croscópica quase pueril, supondo, com efeito, que as exci Mas, a partir de então, se consi�erarmos este último .l6 ;( c
tações chegariam ao córtex diretamente, como que de fora
,
mvel, _
o do ego, percebemos que o "vital", o "biológico", .j;,,o 'a
não tem mais um papel de fundamento, um fundamento Co''"�0 \ é::
em existência, mas de modelo e, além do mais, de modelo ·�
através da caixa craniana. Na verdade, sabemos pela ana
to�ia neuronal, que o córtex celebrai, longe d; ser o pri
real, como o que é representado ou o que se jaz represen-\
meiro exposto às excitações do sistema nervoso, encontra
se bem no fim das vias aferentes 1 1 • O absurdo de estabele tar no psiquismo. O vital no ser hu- \
o VITAL NÃO É: mano é um pressuposto, isso é in-
cer uma comparação topológica entre caixa craniana e cór
tex, por um lado, pára-excitação e sistema percepção "NO FUNDO DO contestável. Mas, e aí está a distân-
HOMEM, rsso" cia, deve-se dizer, por isso, que ele
consciência, por outro, é tão evidente, que não poderíamos
recriminar Freud sem buscar nisso um sinal de outra coisa: é o primeiro recalcado ou que é o
o sinal dessa pseudobiologia que tento levantar, como se que há de mais profundo no psiquismo? Esta é uma hipó
tese, porém, que vai percorrer toda a obra de Freud e, so
levanta a lebre, nos modelos freudianos.
bretudo, toda uma certa vulgata freudiana: o vital seria o
Por fim, o último nível possível desse modelo, depois
recalcado, sendo o cultural, por sua vez, a superestrutura
do de um organismo e depois do do sistema nervoso cen
e o recalcante. Encontramos essa tese nas duas "tópicas";
tral ou de um aparelho psíquico, é o de um ego. Um ego
na primeira tópica, com uma expressão como esta: tudo o
pois não é indiferente notar que Para além do princípio d�
que se tornou consciente teve, primeiro,' de ser inconscien
prazer é o texto em que Freud reintroduz de maneira plena
te. O inconsciente seria, então, apenas a parte, mantida por
e:ssa noção, retomando uma linha bastante antiga, a do Pro segregação, de um domínio inconsciente primordial. É co
Jeto para uma psicologia científica de 1895, e indo na mes-
nhecida a famosa imagem do parque natural (o primeiro
parque natural dos Estados Unidos, o de Yellowstone): o
11. Cito essa passagem que merece ser escutada: ''Notemos aqui que, com inconsciente seria semelhante a uma reserva natural que se
essas hipóteses, não acrescentamos nada de novo, mas que vamos ao encontro encontra cercada e mantida, por isso, em seu estado origi
da teoria anatômica das localizações cerebrais que situa a 'sede' da consciência nal. Quanto à expressão, na segunda tópica, dessa suposta
na periferia cerebral, camada externa e envolvente do órgão central. A anatomia prioridade do vital, sua mais bela ilustracão seria o título
cerebral não precisa se perguntar por que, anatomicamente falando, a consciên francês escolhido, em determinado mom�nto, para a obra
cia encontra-se precisamente situada na superfície do cérebro, ao invés de habi
tar, bem protegida, algum lugar no mais profundo deste. Quanto a nós, podere
de Groddeck, No fundo do homem, isso. O id (ça), o isso,
mos talvez ir mais longe, tentando deduzir a situação que atribuímos ao sistema
é certamente um lugar do estranho, do estrangeiro: o pró
Pcs-Cs." ·(Essais de psyclzanalyse, Paris, Payot, 19 8 1, nova ed., pp. 65-66) prio termo significa que ele está "em coisas", "em terceira
32 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 33
�essoa" , neutro. O id, lugar das mais obscuras pulsões e, par o instinto perdido e o instinto reencontrado . Trata-se de
ticularm:nte, da pulsão de morte: quer isso dizer que ele é, mostrar que, no homem, o instinto está perdido, em parti
necessarramente, o que há em nós de mais biológico? Esta cular, o instinto sexual, e, mais precisamente, o instinto que
é uma inferência absolutamente contestável. É o id um pri visa a reprodução. A pulsão, no homem, pelo menos é esta
mordial originário ou, torna-se o id, pelo próprio processo a tese dos Três ensaios nas suas duas primeiras partes, não
1
de constituição do aparelho psíquico e, em particular, pelos tem nem objeto fixo e determinado, nem mesmo finalida
,
L :ecalcamentos, esse estran�eiro que passa a ser em nós? E de, ou seja, um desenvolvimento estereotipado e único. Atra
.
e o gesto que separa pnmerro, ou não, em vés da descrição das aberrações sexuais, das perversões, quer
I separado? Não é ele que instaura o que elerelação
separa?
ao que é
quanto ao objeto, quer quanto ao fim, há uma verdadeira
apologia da plasticidade, da mobilidade, da intercambiali
dade das pulsões umas em relação às outras, dos compor
21 O jilogenético tamentos uns em relação aos outros . O que é salientado é
a Vertretungsjiihigkeit, isto é, a capacidade de se substituí
Gostaria agora de examinar uma segunda forma do ori rem entre si, a capacidade que uma pulsão tem de vir no
ginário em Freud. Refiro-me ao recurso, como fundamento lugar de outra, eventualmente uma pulsão perversa no lu
último, ao que se pode chamar filogênese, pré-história ou his gar de uma não-perversa, e vice-versa. Por outro lado, nos
tória arcaica da humanidade; Três ensaios, "o instinto reencontrado" é, através dos re
Também aqui a pulsão vai estar no centro do debate. modelamentos da puberdade (die Umgestaltungen der Pu
Lembremos, inicialmente, como a terminologia de Freud so bertiit), o que também poderíamos chamar de instinto imi
bre esse ponto será clara. Apesar de todas as variantes de tra tado, instinto substituído, através de uma evolução com
dução, encontramos nele dois termos perfeitamente distin plexa, por algo que, apesar de tudo, vai se parecer com o
tos e que designam duas coisas completamente diferentes: por instintivo. Pensemos como é pouco simples o desejo de ter
um lado, o Trieb , que traduzimos, corretamente, por "pul uma criança, tal como Freud descreve sua gênese no ser hu
são" e, por outro, o "instinto", olnstinkt. Aliás, geralmen mano, na mulher, apesar de sua aparência natural. Atra
te é a expressão ''instinto dos animais'' que aparece sob sua vés de que dédalos a mulher chegará a desejar aquilo para
pena, num sentido preciso que é o de um comprimento já es que todo ser vivo tende instintivamente?
tabelecido, fixado e pré-adaptado a uma finalidade, exata Esse instinto reencontrado seria, pois, apenas o resul
mente o que os etologistas descreveram, durante um longo tado de uma evolução complexa, aleatória, feita de revira
período de seus trabalhos, como montagem instintiva. voltas e de identificações muitas vezes estranhas; pensemos,
Contudo, entre instinto e pulsão, há em particular, no fenômeno de identificação que, em Freud,
o INSTINTO uma certa dialética12 . Todo o mo- é essencialmente uma identificação ao objeto de amor, tanto
PERDIDO vimento dos Três ensaiospara uma que a assunção do sexo supõe, no início, um amor homos
teoria sexualpode se resumir assim: sexual mais forte, um amor homossexual pelo pai do mes
mo sexo ao qual é preciso conseguir se identificar1 3 .
No entanto, embora se possa mostrar que a evolução ge e de sua queda ou desaparecimento. Enfim, essa tese se
sexual do indivíduo é sempre complexa, não - ou mal - completa nos imensos afrescos pré-históricos que colocam
preestabelecida, a paixão pelo preestabelecido, pela here em cena o homem das origens, o Urmensch, ou a horda pri
ditariedade no homem, não deixará de perseguir Freud. O mitiva, Urhorde. Com Totem e ta
exemplo mais extremo desse reter- ESPECULAÇ ÕES bu, é todo o desenrolar da vivên
CONTRA AS no da hereditariedade é, sem dúvi- PRÉ-HISTÓRICAS cia individual que se encontra
FANTASIAS da, o das "fantasias originárias"
. . EM FREUD preestabelecido neste amplo pano
ORIGINÁ RIAS Se existe no homem, declara Freud, . rama pré-histórico que supõe que,
INATAS algo de semelhante ao instinto dos primeiro, haja uma horda dominada por um pai poderoso
animais, é preciso procurá-lo pelo que castra os filhos, que os torna impotentes, que os man
lado das fantasias inatas. Essas fantasias originárias foram tém totalmente sob sua dominação e que formula as duas
l
exumadas, por Pontalis e por mim mesmo, num pequeno leis iniciais do interdito: a do assassinato (do pai) e a do
texto que acaba de ser republicado14 e que devolve o devi incesto (com a mãe). Sabe-se que, finalmente, o pai origi
do lugar a essa verdadeira paixão pelo fiiogenético em Freud. nário será destronado pelos filhos, desembocand o numa so
Aproveito a ocasião para indicar, neste volume, minhas dis
tâncias em relação a essa noção : não é porque se restitui ! ciedade de um tipo bem diferente, a
na onde o vínculo homossexual entre
sociedade
os irmãos
dita frater
predomi
um pensamento que se adere totalmente ao que ele veicula.
As fantasias originárias em Freud são, portanto, espé l na. É a grande saga de Totem e tabu, que agora é comple
tada por um texto encontrado muito recentemente e que se
cies de categorias a priori, não apenas conceitos, mas ver intitula Visão de conjunto das neuroses de transferência (Ue
dadeiros roteiros, dos quais se conhece pelo menos quatro: bersicht der Uebertragungsneurosen)1 5 . Esse texto, que é
roteiro de sedução, roteiro de castração, roteiro da cena pri mais um projeto do que propriamente um texto, em estilo
mária e, por fim , eventualmente, roteiro do retorno ao seio quase telegráfico, data de 1915 e foi enviado por Freud a
materno. Freud considera essas categorias, como toda ca Ferenczi. Um destinatário que, sem dúvida, não deixa de
tegoria no sentido kantiano do termo, mais fortes do que influenciar o conteúdo, pois sabemos que toda uma vertente
a vivência individual, já que, quando esta não está de acor do pensamento de Ferenczi o leva a essas especulações meta
do com os roteiros, aparecem atipias, haveria uma espécie históricas e, inclusive, metacosmológicas . O que aí é apre
de admoestação por parte da fantasia originária que viria sentado vem completar, em parte, Totem e tabu, principal
enquadrar, completar, inflectir, até mesmo corrigir as sin mente pela hipótese de um estágio pré-horda (se é que se
gularidades pessoais . pode dizer) antes do reinado do pai, que Freud compara
Essa tese das fantasias originárias acompanha a de um ingenuamente ao paraíso terrestre, um estágio em que a pe
desenvolvimento quase endógeno do Édipo, de seu au- núria não existe, ao contrário do estágio seguinte, onde é
a necessidade o fator que desemboca na formação da hor
da sob a dominação, mas também sob a proteção de um
14. Fantasme originaire, fantasme des origines, origines dufantasme, P a
ris. Hachette, 1985 ; edição revista de uma primeira publicação em Les temps mo
dernes, 1 964, 215 , pp. 1.133 -1.168.
15. Frankfurt am Main, S. Fischer Verlag, 1985; trad. francesa, Paris, Gal
limard, !986 .
36 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 37
pai onipotente, um senhor. Tudo isso, nos diferentes tex nentes, ainda na história individual. Constata-se que ela é
tos e, particularmente, em Visão de conjunto, com certeza invertida, em espelho, em relação à precedente, de manei
é tomado como pura fantasia; em outros lugares, como es ra que quanto mais tarde a psiconeurose se desenvolve mais
peculações, um texto sobre o qual j á tive a oportunidade o acontecimento causador é antigo. A demência precoce,
de insistir 1 6 • Eis, neste texto, o começo do desenvolvimen por exemplo, desenvolve-se, a princípio, depois da adoles
to sobre a filogênese: "Espero que o leitor, que também cência, enquanto que seus acontecimentos fundantes estão
percebeu, pelo aborrecimento derivado de numerosas seções muito recuados no tempo . Enfim, o que aqui nos interessa
o quanto tudo está construído sobre uma observação cui� mais e que é muito inovador (mesmo que discutível) neste
dadosa e parcimoniosa, sej a indulgente se, por uma vez a texto, é a série marcada por letras maiúsculas, que, supos
crítica cede passo diante da fantasia e se coisas incertas são tamente, é uma série filogenética: a série das psiconeuroses
propostas, simplesmente porque são incitantes e permitem da humanidade inteira. Notar-se-á que essa predisposição
uma visão do longínquo. " 1 7 Em suma, uma oscilação, ela segue a mesma ordem (e não a inversa) que a de apareci
mesma estimulante, entre o tédio da teoria e da clínica fun mento no indivíduo. Vemos até onde é capaz de ir o que
dada numa observação laboriosa e essa espécie de recrea se pode chamar a verdadeira paixão de Freud pela filogê
ção que, de repente, a fantasia proporciona, uma fantasia nese: aqui, não são apenas os roteiros prototípicos da nor
considerada, contudo, fecunda, incitante e que, muitas ve malidade que se encontram pré-inscritos, mas os esquemas
zes, torna-se progressivamente crença e adesão. transindividuais, meta-históricos, de toda apsicopatologia.
Essa segunda parte do texto provém de uma reflexão Além disso, estão ordenados numa cronologia histórica que
sobre a predisposição para as neuroses e sobre a concor i reproduzirá, numa população contemporânea, a diversidade
dância de três séries que Freud tenta colocar em evidência·' das ,idades de aparecimento das psiconeuroses .
. .
esquematizo-as a segmr: . Como situar o que acabo de desig-
NEM DARWIN, nar como uma paixão de Freud, em
dcba/abcd NEM LAMARCK relação às teorias da evolução?
ABCD Fazê-la entrar numa grande catego
ria parece abusivo . O darwinismo, como se sabe, é aclama
A série da direita, em minúsculas, reflete o aparecimen do por Freud como um momento capital do pensamento
to das diferentes neuroses na história do indivíduo . As di humano, como uma das três grandes revoluções que des
ferentes neuroses aparecem, comumente, numa idade mais tronaram o homem de seu antropocentrismo, entre a revo
ou menos privilegiada, de forma que se pode colocar numa lução copernicana18 , que destrona a Terra de seu lugar cen
certa ordem a histeria de angústia, a neurose obsessiva a tral, e a revolução freudiana, que destrona a própria alma
histeria de conversão, a demência precoce, etc. À esqu�r humana de sua centralidade, já que se encontra excentrada
da, está representada a série dos acontecimentos predispo- em relação ao seu próprio inconsciente. Assim, o darwinis
mo é proclamado por Freud como a grande doutrina da evo-
Iução, e seria um pouco precipitado detectar neste tipo de Minha posição pessoal - já que
imaginação filogenética um Iamarckismo mais ou menos Ia NÃO HÁ LEMBRANÇA sou levado a explicitá-la, principal-
tente. Para dizer as coisas numa só palavra, com Darwin HEREDITÁRIA mente em relação a esse opúsculo
temos variações aleatórias, mutações que são mantidas pe DAS CENAS de Laplanche e Pontalis sobre as
la eliminação do mais fraco na história das espécies. Com "fantasias originárias" - é que,
Lamarck é o confronto e a adaptação ao meio que são su a partir do momento em que a mão treme no traçado do ori
postamente primordiais, criadores de modificações adap ginário infantil e na delimitação da memória infantil, a partir
tativas, finalizados e depois transmitidos hereditariamen desse momento, introduz-se o recurso a uma herança genéti
te. Sabe-se também que, atualmente, o lamarckismo está ca das cenas. Entendamo-nos bem: não se trata, num debate
abandonado por quase todos, em proveito do que se pode um pouco ultrapassado entre o adquirido e o hereditário, de
chamar um neodarwinismo bastante generalizado 19 • Pois riscar com um traço de caneta tudo o que pode ser da ordem
bem, na verdade, em Freud, não se trata nem de um, nem da predisposição. Freud insiste, com razão, no que vem com
de outro. É indiscutível que Freud admite uma hereditarie o nascimento, no que é congênito, até constitucional, através
dade do que é "adquirido" no decorrer de longos perío de termos como o An!age, o que se encontra ali, depositado,
dos, na existência- as existências - do homem histórico a Veranlagung. Não se trata de um debate entre o totalmente
ou pré-histórico. Esta hipótese é suficientemente levada a inato e o totalmente adquirido, mas de situar o que pode ser
sério, ao pé da letra e não num sentido " mítico" , para que inato: pode ser uma aquisição da espécie e, de maneira dife
cheguemos a levantar uma questão do seguinte tipo: here rente, pode ser a predisposição de uma linhagem genética par
ditariedade, portanto, de algo adquirido? Mas bem diferente ticular, desembocando num indivíduo determinado. As aqui
das aquisições do homem "lamarckiano" , tanto que o pró sições da espécie humana, as montagens no nascimento são
prio termo "adquirido" é enganador. Por um lado, o que mais importantes do que se supõe. Por outro lado, o consti
é transmitido não é especialmente adaptativo, mesmo se o tucional, particular de determinada linhagem genética e, por
foi numa certa época: pode tratar-se de neurose . . . Por ou tanto, de determinado indivíduo que dela provém, é concebí
tro lado, e sobretudo, esse herança filogenética não consis vel em múltiplos domínios: pensemos nas aptidões adaptati
te em características ou aperfeiçoamentos
'
de aparelhos, mas vas, sensoriomotoras, nas predominâncias sensoriais, na do
em roteiros presentes numa espécie de memória. Como eu minância deste ou daquele sensório, ao qual podemos vincu
insistia, há pouco, as fantasias originárias podem vir com lar, por exemplo, determinado tipo de predisposição artísti
pletar a memória individual, elas situam-se num plano de ca; pensemos também na maior receptividade de determina
memória e não de função. O modelo da história humana da zona corporal aos estímulos, ponto de atração natural pa
continua sendo, para Freud, a história individual. Suas aqui ra que a pulsão, que a ela vai se ligar, seja reforçada. Enfim,
sições ficam armazenadas como lembranças , ou, pelo me pode-se certamente falar, de maneira geral, de uma maior ou
nos, esquemas de lembranças. menor sensibilidade congênita ao trauma. Em contrapartida,
a idéia de roteiros mnemônicos biologicamente inscritos não .
tem como não ser objeto de um ceticismo radical e, com cer
19 . Não entraremos absolutamente em detalhes no que concerne às dife teza, não seria admitida pelos geneticistas, exceto por meio
renças fundamentais entre darwinismo e neodarwinismo. O que importa é que
ambos negam a possibilidade de uma transmissão hereditária (pelo germe) do que de uma confusão entre memória (sempre ligada a representa
é adquirido na existência individual ou coletiva (no soma). ções) e esquemas de comportamento.
40 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CATÁRTICA 41
Não se trata, portanto, de negar cundária, se é que existe, e ligada à própria idéia de nega
SITUAÇÃO que, com as fantasias originárias, ção lógica, presença-ausência e terceiro-excluído, que aliás
SECUND ÁRIA Freud tenha descoberto algo de vai fundar. A fantasia, ou a teoria da castração como ori
DAS "FANTASIAS prototípico, algo que, de fato, ex- gem da diferença dos sexos, introduz o sujeito humano ao
ORIGINÁRIAS" cede a vivência individual, infor- desenvolvimento infinito, mas também o submete às cor
mando e, inclusive, modificando as rentes de uma lógica binária, de uma lógica da contradi
vivências particulares. Todavia, não está resolvida, com is ção. Situá-la no lado de um inconsciente primordial não seria
so, a questão da natureza desse ''prototípico'', ou, sendo mais anular a descoberta fundamental da psicanálise, de que, pre
exato, haveria inclusive uma dupla questão a resolver: se_u cisamente, o inconsciente não conhece a negação? Se a ne
modo de transmissão e sua situação tópica. Thlvez fosse mrus gação se situa, como símbolo da negação, no nível mais "ele
fácil abordar seu modo de transmissão se refletíssemos pri vado" do aparelho psíquico, como poderia ser diferente para
meiro, de maneira crítica, sobre o que é sua verdadeira si essa atualização fundamental da negação que é a castração?
tuação tópica. Como situar no sistema psíquico humano esses Seria, portanto, necessário situá-la no lado dessa aquisição
roteiros prototípicos? Mais perto do quê? Do id, do ego, ou cultural imensa que introduz o gênero humano no pensa-
do superego? Tomando o exemplo da fantasia de castração, mento da contradição. 1
talvez a mais fundamental dessas fantasias originárias, co Voltando à ligação anteriormente estabelecida entre a
mo não se surpreender ao notar que o que Freud reintitula situação tópica da fantasia originária e o problema de sua
"fantasia originária" é o que ele já descobriu como "teoria transmissão, digamos que a situação tópica "secundária" L"']
sexual infantil"? E o que pode significar esta última noção, do roteiro da castração joga a favor de sua transmissão co-
a não ser algo que não surge diretamente no nível do pulsio mo um padrão secundário, lógico, como um pressuposto
nal, mas que, pelo contrário, está encarregado de controlar, implícito da comunicação verbal.
represar, o que, com certeza, o pulsional tem de anárquico,
mas também de questionador, em todos os sentidos do ter
mo? A castração, quer a intitulemos teoria, fantasia ou fan 3 I O mecanicismo
tasia originária, é, antes de mais nada, uma resposta, não
um questionamento pulsional. É uma resposta a uma ques Meu terceiro desenvolvimento sobre certos fundamen
tão entre as questões angustiantes que a crianci!J.ha pode se tos exógenos que se tenta encontrar para a psicanálise abor
fazer: de onde provém a diferença dos sexos? E, portanto, dará rapidamente o problema do mecanicismo. Trata-se de
pelo lado em que o ser humano é teorizante, autoteorizan uma inspiração freudiana fundamental, que se costuma si
te, que se situa a teoria que explica a diferença dos sexos. tuar biograficamente, limitando-a à influência da escola "fi
A noção de castração é inseparável da grande categoria, em sicalista'', como o famoso juramento que unia, num peque
última instância, lógica, da supressão - e a idéia de supres no clã, Brücke, Dubois-Reymond, Helmholtz e alguns ou
são do sexo - como percebemos bem na história da espé tros. O juramento dos fisicalistas, cujo texto encontramos
cie, por exemplo, nas pinturas pré-históricas20 - é se- em Jorres, obriga a nada explicar na psicologia que não se
ja redutível à dura físico-química. Mas ele continua assim:
20. Cf. J. Laplanche, Prob/ématiques II/Castration. Symbolisations, Paris, '\\.. no caso em que essas forças não puderem ser detectadas di
PUF, 1980, pp. 213-214. retamente, dever-se-á "postular a existência de outras for-
42 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 43
ças, equivalentes em dignidade às forças físico-químicas ine sabe como, intervém como autêntico deus ex machina, for
rentes à matéria, e redutíveis à força de atração e de repul çando o aparelho a economizar energia, quando, pelo con
são " . Ao lado da tentação abstrata de reduzir completa trário, seu único princípio era desembaraçar-se dela. Por
mente a psicologia à físico-química, encontramos uma idéia uma verdadeira escamoteação, seria para melhor se desem
bem diferente e mais interessante: caso essa redução se re baraÇar da energia que essa máquina não-vital deveria apren
vele longínqua demais, difícil demais, é um modelo física der a viver, isto é, a acumular energia.
lista que deve ser introduzido na psicologia. Deparamo-nos, Quarta característica: esse mecanicismo fornece o pro
aí, com o segundo tipo de modelo tótipo do processo psíquico primário - caracterizando-se
O MODELO que eu distinguia anteriormente, os este, precisamente, pela livre circulação da energia - e de
FISICALISTA: modelos de memórias ou então, um processo primário que vem antes do secundário. Assim
QUATRO pode-se dizer, os modelos maquí como se supõe que a vida vem depois do mecanismo nesta
CARACTERÍSTICAS nicos. Somos introduzidos aqui a espécie de gênese fantástica, pois bem, o psíquico secundá
estes modelos simultaneamente ma- rio, o ligado, que não escoa livremente, vem depois da ener
quínicos e mecânicos do freudismo, cujo exemplo mais de gia livre. O livre antes do ligado, o morto antes do vivo,
senvolvido é o do Projeto para uma psicologia científica de e Freud não deixará de dizer em outras ocasiões, particu
1 895. Lembremos rapidamente certos traços essenciais desse larmente em Para além do princípio de prazer, a matéria
texto que servem ao nosso propósito. inerte antes da matéria organizada.
Inicialmente, tudo nele se reduz afigura e força; diga Questões a propósito deste modelo? Pelo menos duas.
·� mos, forças circulando num modelo figurado, espacialmente Primeiro, de que é esse modelo? como nos pergunta
t:) figurado. A figura torna-se mais complexa convertendo-se -
Nossa segunda questão talvez seja Vocês.reconhecem aí o projeto lacaniano sobre o qual tive
. . . UMA FALSA mais acessória para o psicanalista, a oportunidade de me expressar longamente, em particular
FÍSICA mas não deixa de ter seu interesse: na segunda parte de Problemáticas IV, sob o título de "A
de que ciência física se trata? Não referência ao inconsciente"21 • Tomei explicitamente parti
será uma física muito datada, ainda muito pós-cartesiana, do em relação à fórmula canônica lacaniana de "o incons
em todo caso absolutamente pré-quântica e pré-relativista, ciente está estruturado como uma linguagem" .
uma física qua ainda é a das aparências macroscópicas, fí Que lingüística? Que linguagem? Também, que laca
sica definitivamente ultrapassada no próprio momento em nismo, há que j á mais de um? O que se pode dizer, em to-
que Freud a ela recorre? Se assim for, o nascimento da psi do caso, e não deixamos de sublinhá-lo desde 1 961, é que
canálise encontraria, portanto, do ponto de vista epistemo identificar o que há de mais profundo22 no homem, seu in
lógico, sua incitação , sua mola propulsora, não num mo
consciente, à linguagem verbal (o que chamamos linguagem
mento de desabrochar da física, mas numa espécie de eflo
no sentido estrito do termo), isto é explicitamente antifreu
rescência final, de última chama lançada pelo mecanicismo,
uma última chama talvez mais filosófica do que científica. diano. Não que a linguagem não tenha um imenso lugar
E, no fim das contas, a escala fisicalista se considerava, com em Freud - vocês encontrarão múltiplas provas disso num
efeito, mais filosófica do que científica. texto como O interesse da psicanálise 23 , onde o que enca
Quais são, em suma, os elementos em jogo? É a maté beça o interesse da psicanálise pelas ciências não-psicológicas
ria descrita pela física moderna? É, numa visão mais po é "o interesse pela ciência da linguagem" . Não resisto a ci
pular, uma matéria que, de certa forma, coincidiria com tar as primeiras frases que situam muito precisamente o que
um certo cartesianismo? Ou, devemos afirmar que existem, Freud chama de linguagem: "Ultrapasso certamente a sig
em psicanálise, outros elementos últimos, outros átomos, nificação habitual quando postulo o interesse do filólogo
outros indivisíveis? Mas entre esses indivisíveis que são os [portanto, aquele que se interessa pelo lagos, pelo discur
neurônios do Projeto, esses indivisíveis que são as repre so] pela psicanálise. Por linguagem não se deve compreen
sentações em Freud e os indivisíveis que são os significan der simplesmente a expressão dos pensamentos em palavras, \
tes na lingüística, vocês podem ver que a passagem não é mas também a linguagem dos gestos e qualquer outro tipo .,
totalmente arbitrária. E é aí que será proposto um quarto de expressão da atividade psíquica, como a escrita. ' • 24 As
tipo de fundamento, também ele extrínseco à análise, o fun sim, em exergo a esse capítulo, por outro lado muito con
damento lingüístico. densado, o que Freud marca, logo de início, é que a lin
guagem deve ser tomada num sentido que englobe o verbal
e o não-verbal.
41 O lingüístico
Na falta de encontrar uma derivação a partir do ser 21 . Paris, PUF, 1981, . pp. 7-144.
vivo e de sua adaptação, trata-se, nesse projeto de um fun 22. Pois não vej o por que recusar a noção freudiana de úma "psicologia
profunda". a não ser em nome de um esnobismo que poderia não ser outra coisa
damento lingüístico, de reduzir o inconsciente humano ao do que o resquício de uma certa fenomenologia.
que é manifestamente o próprio do homem e, manifesta 23. Résultats, idées, problemes I, Paris, PUF, 1984, pp. 187-214.
mente, a mola mestra do tratamento, ou seja, a linguagem. 24. Ibid. , p. 1 68. Entre colchetes: comentário de J.L.
46 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁR TICA 47
A linguagem verbal, por seu lado, mundo. Mas, é claro, também é preciso explicar a consciên
SITUAÇÃO no sentido estreito do termo desta cia secundária, isto é, a consciência que tomamos de con
SECUNDÁRIA DA vez, também desempenha um pa- teúdos psíquicos, conteúdos de pensamento ou lembranças.
LINGUAGEM VERBAL pel essencial em Freud, sob a co- Todavia, essa consciência "secundária" não pode se fur
nhecida forma das representações tar ao seu caráter perceptivo: ela implica o que podemos
de palavra ( Wortvorstellungen) . A representação de pala chamar de flashes perceptivos sucessivos, descontínuos, e
vra de forma nenhuma está na raiz ou na origem do incons esses flashes perceptivos, que nos permitem tomar consciên
ciente. A linguagem verbal, para Freud, é secundária em
cia de conteúdos psíquicos, implicam a reprodução das re
todos os sentidos do termo, exatamente como mostrei ago
presentações de palavra. É somente porque, aqui e ali, num v
ra mesmo que a castração se situa no nível do secundário .
A linguagem verbal é secundária historicamente: na histó
conteúdo de consciência, captamos algumas palavras, é so
ria individual temos o direito de falar de um estágio pré mente porque essas palavras são reatualizadas, repercebi
verbal. Freud inclusive pretende fazer uso dessa cronolo das, revivificadas no sentido próprio do termo, até repro
gia para detectar na sintomatologia de certas neuroses, em nunciadas internamente, que uma tomada de consciência
�
particular, a histeria de conversão, uma regressão ao está secundária é possível. Evidentemente, isso é muito impor
gio anterior à linguagem, que se caracteriza pelo fato de que, tante no que se refere à dinâmica do tratamento, toda ela
nessa etapa pré-linguageira, a distinção entre consciente e submetida a essa fórmula capital segundo a qual a repre-
inconsciente ainda não existe. De forma que os estados se sentação pré-consciente, na tomada de consciência, é a re
cundários, os estados hipnóides da histeria, onde justamente presentação de coisa mais a representação de palavra.
as fronteiras entre consciente e inconsciente se apagam, se Economicamente, por fim, a linguagem verbal é secun
riam uma regressão a esse estágio anterior à linguagem. dária, isto é, regida por um modo de associações e de cir
]
Também na história coletiva, a linguagem é cronologica culação com retenções, barragens. Para que haja pensamen
mente secundária, segundo Freud, o que fica evidente quan to, é preciso que qualquer coisa não se insira em qualquer
do apóia com todas as suas forças o artigo de Hans Sper coisa, e é isto o próprio da linguagem verbal.
1
ber sobre a origem sexual das primeiras palavras e da pri Um certo lacanismo, provavelmente até sua própria cor i v.. .h t�>v
meira linguagem25 . rente dominante, vai no sentido de situar a linguagem ver- "'" t�"'"�
Também topicamente a linguagem é secundária; carac bal no fundamento do inconsciente, um inconsciente que 1"� -
teriza o pré-consciente e à ego no sentido de que fornece se torna então e, como que por definição, transindividual.
o esclarecimento das representações de palavra, permitin
Encontramos aí, com certeza diferente do inconsciente jun-
do às cadeias de pensamento tornarem-se conscientes. Pa
guiano, uma espécie de inconsciente coletivo; ainda que te-
ra Freud, não há consciência sem percepção atual. A cons
ciência é, primariamente, uma consciência perceptiva, aquela nha, por contrapeso, de fazer funcionar essa linguagem ver-
que temos no exato momento em que nos abrimos para o bal, que supostamente seria a do inconsciente, segundo o
processo primário; conhecemos bem essa doença do jogo
de palavras exagerado, que causa estragos em tantos tex-
25 . H. Sperber (1912), "Ueber deu Ein!luss sexueller Momente auf Entste- tos, modernos ou antigos, dos lacanianos, talvez mais ain-
"f!1 hung und Entwicklung der Sprache", Imago, I, 405 . da de que no próprio Lacan, e que foi estigmatizada, de
48 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 49
' maneira cômica, sob o termo de "l'effet yau d'poêle"* . Tal Lá onde Lacan supera totalmente
teoria, a de um lacanismo centrado na linguagem verbal, PRIMAZIA Saussure é na afirmação da inde
, certamente permite uma escuta "analítica" que nada mais DO SIGNIFICANTE OU: pendência do significante, ou mes
1 tem a ver com a escuta do singular, pois são os efeitos uni mo da primazia do significante so
SIGNIFICANTE
versais, ou, se quiserem, transindividuais, da linguagem que DESSIGNIFICADO bre todo significado. Aqui, o des-
então são privilegiados. lizamento metafísico não está dis
Percorrer todo o lacanismo, ou até mesmo o lacanis tante, um verdadeiro idealismo do significante espreita, e
mo do ponto de vista da linguagem, seria algo impossível talvez esta seja a tentação de um autor filósofo como Ju
aqui. É um pensamento múltiplo, um pensamento talvez ranville. Mas o que há de mais fecundo, a meu ver, no uso
contraditório no que concerne a essa questão do verbal e lacaniano da noção de significante, é a distinção, episódi
do não-verbal. É , também, um pensamento que evoluiu. ca, mas essencial, entre dois aspectos: o significante de quê
Houve um tempo em que Lacan preconizava a lingüística (o significado, subentendido) e o significante para quem.
como "ciência piloto" (na época áurea do estruturalismo); O que é afirmado, em certos momentos, é esse aspecto do
felizmente, percebeu em seguida que uma lingüística psica significante onde ele é o que signifjca para alguém, o que
nalítica estaria em profunda mutação em relação à lingüís interpela alguém, no sentido que diz que um oficial de jus
tica dos lingüistas. tiça notifica [vous signifie] com um papel azul, notifica uma
No que a mim respeita, direi que, em toda essa agita penhora ou um decreto da prefeitura*. Essa afirmação de
ção psicanalítica em torno da lingüística26 , o mais positi aspecto " significa para" é das mais importantes, pois um
vo é aquilo que se relaciona com o significante. A noção significante pode significar para sem que, por isso, se saiba
o que ele significa. Sabe-se que ele significa, mas não se sa
de significante é certamente retomada de Saussure, na sua
be o quê. Um significante tem uma significância, um po
oposição e na sua complementaridade com relação ao sig
der significante ou significativo, detectável, sabe-se que há
nificado. Também deve ser retomado de Saussure naquilo
significante em algum lugar, sem que, para tanto, um sig
que amplia em relação à linguagem verbal, pois, em Saus
nificado explícito tenha-se manifestado. Uma imagem pro
sure, não é a uma lingüística, mas sim a uma semiologia posta por Lacan foi a dos hieróglifos no deserto, dos ca
geral, ou seja, a uma ciência do conjunto dos sistemas de racteres cuneiformes numa tábua; sabemos que eles signi
significante-significado, que a proposta da fórmula do sig ficam e que, enquanto tais , têm um tipo de existência pró
no tende. pria, diferente fenomenologicamente da das coisas: eles que
rem nos significar algo, mesmo que não tenhamos nenhum
significado para atribuir-lhes . Isto não implica aderir a uma
* Na gíria "tuyau d'poêle" refere-se a alguém exibido, saliente. A expres
são usada por Laplanche faz menção a uma crítica ao lacanismo publicada em
primazia do significante, inclusive a uma hegemonia do sig
1979 pela Hachette, de autoria de François George e intitulada " 'L'effet d'poê nificante no tratamento. Trata-se, simplesmente, de subli-
le' de Lacan et des lacaniens". (N. T.)
26. "Lingüisteria" disse Lacan. A dos psicanalistas, mas também a dos lin
güistas: tantas escolas, tantas escolhas conceituais quanto indivíduos! Aqui, a pró • J. Laplanche toma um dos significados de signífier (significar), que é ''no
pria psicanálise é vencida no plano do esmigalhamento, das nuanças sutis, e da tificar por via judiciária" e, portanto, pode ser usado nas frases que aparecem
exegese . . . no texto. (N. T._)
50 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CATÁRTICA 51
nhar, mas com veemência, a possibilidade de o significante quico e de que ele não pode prescindir. Na primeira tópica
ser dessignificado, perder o que ele significa, perder, inclu (na Interpretação dos sonhos), é essa famosa imagem -
si_ve, toda significação determinável, sem, por isso, ter per mais do que uma imagem- que explica a censura existen
dido seu poder de significar para. Refiro-me tanto ao sig- te na passagem de um sistema ao outro : um porteiro que
�L \['Jnificante não-ve�ba� quanto ao verbal e i�tr �d.uzo, assi�, abre e fecha novamente a porta para esta ou aquela repre
��- _,�>
, \� u rr: marco na drreçao do que chamo o srgmficante emg-
. [il'-} sentação, que admite algumas delas e rejeita outras. Na se
e·�"'�/ matlco. gunda tópica, o antropomorfismo fica ainda mais marca
,// '" do, pois as instâncias (exceto, talvez, a do id), o ego, o su
perego e, sobretudo , as instâncias ideais, estão supostamente
5/ Morfismos formadas à imagem de seres humanos, atuando num cená
rio interno e segundo roteiros de tipo inter-humano, rela
Depois desta breve revista dos fundamentos heterogê ções de tipo sadomasoquista, por exemplo, entre o ego e
neos e exógenos propostos para a psicanálise, o biológico, o superego. A objeção, é claro, é que se fala de um "como
o antropológico ou antropossociológico, o mecanicismo, o se"; o ideal científico, evidentemente, é encontrar uma lin
lingüístico, admitimos evidentemente que todos esses do guagem que não seja "como se" . Objeção à qual a única
mínios encontram seu lugar no campo aberto pela psicaná maneira de responder será: e se o ser humano se contrói ao
lise. Digamos, até, que encontram um duplo lugar, como modo de "como se"? E se o "como se" não fosse apenas
indiquei há pouco com referência ao biológico: por um la uma precaução de estilo no nível da interpretação ("você
do, nos confins do campo psicanalítico, por outro, no in se comporta como se você e sua mãe fossem alguém que
terior do campo psicanalítico. Mas, qual a relação entre am pronuncia interditos absolutos"), mas se o "como se" fos
bos? O que questiono é se há uma relação de causalidade se realmente a maneira como o ser humano está estrutura
entre ambos. Entre o que está nos confins e o que está no do? Não apenas o que se denominou as "personalidades
interior existe uma mutação profunda que os toma realmente como se"; e se todas as personalidades fossem personali
irreconhecíveis entre si, a tal ponto que, por exemplo, é pre dades as if!
ciso recorrer a uma falsa biologia para que a vida estej a re- Há, no entanto, outra objeção que creio não ter sido
presentada no aparelho psíquico. formulada, mas que aparece como capital e à qual deve-se,
A QUESTÃO DO Evocarei também, para me fazer efetivamente, dar direito de cidadania. Esses personagens
ANTROPO- compreender, o que denominaram internos não são pessoas : o guardião , que é uma parte do
MORFISMO a questão do antropomorfismo em aparelho psíquico na Traumdeutung, teria, ele próprio, um
psicanálise, e sua crítica. A crítica aparelho psíquico? Tem o guardião um inconsciente? É es
do antropomorfismo da psicanálise, freudiano ou kleinia te o limite do antropomorfismo: essas formas humanas, esses
no por exemplo, se funda no ideal de uma psicologia que "morfismos" , são imagos em nós e as imagos não têm nem
seria científica e não-mágica, enquanto que o antropomor aparelho psíquico, nem inconsciente. As imagos não têm
fismo, por definição , teria esse pequeno aspecto mágico, pano de fundo nem transcendência. Questionamento e ob
reproduzindo na psicologia o que se passa fora para ter a jeção que podemos, igualmente, fazer incidir sobre os mi
impressão de controlar o que é exterior. Principal censura tos da pré-história, pois o pai da pré-história, que se supõe
feita a Freud: as figuras humanas presentes no aparelho psí- estar na origem do desenvolvimento humano e da forma-
52 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CATÁRTICA 53
ção de um aparelho psíquico com suas instâncias, seus in gem o organismo humano. O ser vivo interno, o ego, é um
terditos e seu inconscie�tes, esse pai anterior ao Édipo "ti ser vivo rudimentar, inclusive falso, a imagem de um ser
nha" , ele mesmo, um "Edipo", um inconsciente, etc.? Fazer vivo ; algo que se mantém constante contra o que metafori
a pergunta é responder a ela. Os personagens do mito, as za os ataques externos, isto é, os ataques provenientes do
sim como os da cena interna, são antropomórficos, sem pro mundo interno, os ataques das pulsões.
fundidade e, evidentement e, sem consistência histórica. Mas essa falsa biologia interiorizada tem sua razão de
Esses aparentes fundamentos externos que se podem ser profunda, pois num organismo ainda pouco viável no
oferecer à psicanálise - antropologia, biologia ou mecani começo, o da criança pequena, o vital tem de ser represen
cismo - estão, portanto, nos confins do psicanalítico e, tam tado, vicariado, suprido. É uma constatação, no fim das
��
bém, representados, de um modo bastante particular, sob contas , banal, a de que o ser humano pode se matar ou,
a forma do que se poderia chamar "morfismos" . O antro em todo caso, aceitar morrer por um ideal. Uma constata- �0-1\)Q.J
pomorfismo é, em última instância, uma falsa antropolo ção mais psicanalítica é que, também para viver e não ape-
gia ou uma falsa antropossociologia interiorizada. Uma an nas para morrer, ele precisa amar, precisa de uma razão para
tropologia de representação, serri dúvida, mas essa fórmu viver que seja o amor, uma pulsão de vida que Freud deno-
la não é suficiente, pois a psicanálise não pode ser reduzida mina Eros. Amar para viver, amar o outro , mas também
ao problema da representação sem que se acrescente o ter se amar para viver um pouco mais autônomo, um pouco
mo ' 'inconsciente' ' : uma antropologia de representação in separado das vicissitudes do amor do outro. Amar-se a si
consciente. Da mesma forma, poder-se-ia, falar, para a vida mesmo não é tão fácil assim: é preciso um si mesmo, "um
(se tais neologismos me forem per- eu" diz Freud, e é assim que renasce, em 1915, após um
o BIOMORFISMO doados), de uma espécie de "bio- relativo, muito relativo eclipse, a noção de ego, com Intro-
morfismo " . Na sua descricão do dução ao narcisismo. Renasce com essa dimensão doravante
aparelho anírnico27 , descrição tópico-energética, a p�icaná explicitada em primeiro plano de não apenas ser um orga-
lise retoma conceitos de aparência biológica: excitação, que nismo central e inibi dor, como já era há muito tempo, mas
até seria quantificável; reflexo; organismo, ou organização uma espécie de vesícula protoplasmática, cheia de amor, cujo
interna, já que o ego não é apenas uma estrutura, mas com nível energético, por mais difícil de conceber que isto seja,
preende subestruturas; manutenção de uma constância, a é o amor; objeto de amor e só podendo amar porque ela
mais notável sendo a homeostase do ego ou do sistema com mesma é objeto de amor, objeto de amor do próprio indi-
plexo das instâncias egóicas e ideais. Estes conceitos são, víduo, de suas pulsões eróticas.
senão falsos, pelo menos bastante rudimentares do ponto Para se amar, para gostar de viver, para gostar d� se
de vista de uma biologia moderna. Esse saco, essa ameba fazer viver, é preciso ser um ser vivo ou ser à imagem de
que o ego seria, que o ego é, tem apenas longínquas rela um ser vivo. Essa frase que citei há muito tempo, "o ego
ções com os mecanismos homeostáticos complexos que re- não é apenas um ser superficial, mas a projeção de uma su
perfície", é uma boa introdução para essa nova noção do
ego. Este não é somente um órgão diferenciado; na super
27. Prefiro o termo aparelho anímico ao de aparelho psíquico, porque ele fície dd aparelho psíquico, ele próprio é a projeção no Ín
marca melhor o que será desenvolvido em seguida, ou seja, que o psicanalítico terior de Uma ''superfície" . Qual é essa superfície que é pro
não é o psíquico na sua totalidade, nem o psicológico.
jetada em nós? É tanto a superfície do outro, o invólucro
CATÁRTICA 55
54 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
corporal do outro humano, quanto nosso próprio invólu consciente. Pode-se também explicitar as coisas mostran
cro corporal. É o que Diddier Anzieu desenvolveu com mui do que, se não há idéia inconsciente da morte é simplesmente
to talento e vários exemplos clínicos nos seus escritos sobre porque não há idéia no inconsciente, não cabendo nele a
O ego-pele 28 • Essa superfície é uma pele, a pele do ego, que negatividade própria a toda idéia, portanto, mais particu
provém da pele do outro. Mas é, também, quando esta pe larmente ' à idéia de morte. Na outra extremidade,
'
encon-
le falta, qualquer coisa tomada como pele substitutiva; por tramas o que se chama de "pulsão de morte" . E uma "mor-
exemplo, como mostra Anzieu, as próprias palavras podem te' ' bem especial, a da pulsão de morte; seu modelo não
ser tomadas como pele. é a morte sofrimento e falecimento que conhecemos, nem
E já que estamos falando do "vi- a morte decomposição do cadáver, nem nada que se refira
VIDA E MORTE: tal" no homem, eu me permitirei aos problemas que podem nos agitar em tomo de nosso "ser
"EM PSICANÁLISE" uma reflexão sobre o título de um para-a-morte" , mas uma espécie de morte anterior à vida,
de meus primeiros livros, quase um estado dito inanimado da matéria , em suma, algo co
inaugural desse meu percurso, ou seja, Vida e morte em mo o silêncio mortal dos "espaços infinito s" ou da super
psical!lá!ise 29 . Essas palavras introduzem pelo menos três fície lunar. Na visão cosmológica de Para além do princí
questionamentos. Vida e morte? Em que se transformam pio deprazer, essa opinião é eminentemente contestável do
vida e morte, como as entendemos na vida cotidiana, nu ponto de vista energético, pois situa, contrariando o que
ma psicanálise? Depois, segunda questã,o, pode-se viver e podem conjeturar todos os cosmólogos, a equalização ener
morrer em psicanálise como se diz viver e morrer em reli gética antes do aparecimento das diferenças ligadas à vida,
gião? Não é o caso para os analistas? E, por fim, a vida ao passo que se tenderia a pensar que o universo caminha
e a morte, em psicanálise, não sofreram uma profunda mu para o estado de equalização energéti ca, mas não tem este
tação, não designam algó profundamente diferente da vi por detrás. Nessa visão cosmológica freudiana, a morte se
da e da morte, digamos, na vida cotidiana? Em relação à ria, sem tirar nem pôr, a morte do mecanicismo, isto é, o
vida, é o que acabamos de desenvolver: a vida em psicaná que o mecanismo nos apresenta como máquina morta. Mor
lise não é a vida real, nem a da vida cotidiana, nem a do te que, outro paradoxo, estaria na origem de um movimento
biólogo, mas uma imagem ideal, simplificada, de um ser desenfreado e também dionisíaco para ir ao seu encontro,
vivo, imagem simplificada que Lacan disse poder ser alie se for verdade que, em Para além do princípio de prazer,
nante, mas felizmente não é somente isso. E a morte? O a pulsão de morte aparece como uma espécie de alma uni
que pode querer dizer a morte em psicanálise? Conhecemos versal de toda pulsão, aquela que tende para o fim pulsio
as duas formulações freudianas extremas . Por um lado, a nal por excelência, ou seja, o retorno pelas vias mais cur
ausência de representação inconsciente da morte, sobre a tas, ao preço das maiores destruições, sem rodeios nem re
qual nada mais há a dizer, a não ser para explicá-la, pois servas, a um estado dito nirvânico.
concorda precisamente com a ausência de negação no in- Voltaremos a essa pulsão de morte e à pulsão de vi
da, numa etapa posterior desses "fundamentos " . Agora,
façamo-nos simplesmente a seguinte pergunta: assim como
28. Le moi-peau, Paris, Bordas, 1985 , e Une peau pour les pensées, Paris,
Clancier-Guénaud, 1 98 6 .
há um antropomorfismo e um biomorfismo, não haveria
29. Paris, Flammarion, 1970. uma espécie de tanatomorfismo, tão deformado quanto os
56 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 57
outros, no ser humano? Prefiro, mano. Terem os, portanto, que situar, que encontrar um lu
o MECÂNICO- apesar de tudo, falar provisoria- gar para esse "mecânico-mor�ismo". Sua posição certamen
MORFISMO mente do que seria uma espécie de te é originária, mas não na ongem do ser hun:ano, nem mes
"mecânico-morfismo" para definir mo na sua origem psicológica; ele é co�relatrvo de u:n mo
um certo nível de funcionamento do aparelho anírníco, gran mento fundador muito específico: a ongem da pu�sao, e�
de descoberta da psicanálise, ou seja, o processo primário; particular da pulsão sexual e, �ara ser_ ainda mais preci
descoberta feita, essencialmente, sobre o sonho, mas tam so na origem da pulsão sexual dita parcial que te_m por ?b
bém sobre muitas outras manífestações e, em particular, so jeto objetos ditos parciais: É signifi��tivo que se] a precisa
bre o sintoma. mente a proppsito dos obJetos parciaiS q';le Freud descreve
O que quer dizer processo primário (se pusermos en a noção de equivalente simbólico, o deslizamento que po
tre aspas o termo primário por enquanto, podendo voltar de se operar de um objeto parcial a outro. :rrata-se das �o
·a ele em seguida)? Que há um nível onde os pensamentos nhecidas equivalências : be�ê,_ fezes, fa�o, sew, �te. Tambem )
se comportam como coisas, como coisas móveis que trans teremos de situar esse mecamco-morflsmo topicamente, no (
mitem umas às outras cem por cento de sua quantidade de
movimento. O deslocamento no sonho nada mais é do que
isto. Quando ele está em pleno funcionamento, tudo passa
mais profundo do inconsciente, como a alma obscura des- I
te. Por fim, teremos de nos pergunta: o que ele r�pro?u� ,
que mtenon
�
0 que interioriza, sabendo que o movn;nento
sem deixar resto da imagem A para a imagem B , B passou _
completamente para A, ou A para B . No sintoma, da mes za não conserva enquanto tal, mas deforma, mmtas vezes
ma forma, todo o sentido passou; é a consistência do sin de modo irreconhecível, o que interiorizou. _
J
car com as palavras. E claro que mitificamos o passa avanço devagar ou rápido demais.
\\!11! mas à procura de uma verdade, à procura de mais verdado, de HISTóRIA, Os próprios termos são suspeitos:
Y" sobre o passado. Nem ao nosso paciente em análise, nem
àquele que nos interroga sobre nosso saber, podemos res
DESENVOLVIMENTO, história, desenvolvimento, gênese,
GÊNESE, origem, cada uma dessas palavras
ponder simplesmente que criamos mitos : aquilo que temos ORIGINÁRIO pode ser aceita ou rejeitada, cada
de explicar é o fato de o indivíduo humano ser mitizante uma pode ser bem ou mal consi
(às vezes : mitificante), ser automitificante. Nem 1) esse po derada. Tentemos definir um pouco o que utilizaremos, em-
der mitizante ou teorizante (por enquanto, utilizo esses ter bora sempre reste uma certa aproximação e, talvez, uma
mos indistintamente); nem 2) aquilo sobre o que recai, isto parte atribuível ao humor, do momento. Desenvolvimento,
é: o que há para teorizar, qual o resíduo que resta para teo quer se queira, quer não, implica que algo se desenrola (em , ,
rizar no ser humano? nem 3), por fim, suas origens, seus alemão: sich entwickelt), 1gue potencialidades já presentes !(
primeiros passos, podem ser deixados sem resposta. Em se manifestam, e isto num'a ordem predeterminada: desen
tras palavras, aderimos à idéia de que um fundamentoou jl
da volvimento implica sucessão de etapas, de estágios. Certa-
!
psicanálise só pode ser procurado numa certa história, a his �
tória do aparecimento do sujeito psicanalítico, aparecimento mente "desenvolvimento" merece ser bem considerado. Não
que deve ser situado em relação a uma história mais vasta, há por que recusar essa noção , desde que não exclua a? mu
história esta não-psicanalítica, a história infantil. tações, as reorganizações, as retomadas; um desenvolvimen-
Uma vez feita essa opção geral, é impossível irmos mais \. to não implica necessariamente uma continuidade, pode ser
adiante sem examinarmos , mais demoradamente do que para dialético. Além disso, desenvolvimento não implica forço
as ciências ditas conexas (que, no fim, reuni sob o termo samente que seja uma unidade simples, monádica, segun-
de "morfismos "), a tão complexa relação - falsa, vere do o modelo do grão ou do germe, que iria manifestando
mos por quê - entre a psicanálise e a psicologia, em parti suas potencialidades isoladas. Ou, sendo mais exato, pode-se
cular a psicologia da criança. tomar como sujeito do desenvolvimento, incluir nessa_uni
Aqui avançamos num terreno minado, o do "ponto dade, subconjuntos. O tipo mais freqüente ?ess�s descr�-
vista genético", onde formigam os mal-entendidos sobre de as ções de um desenvolvimento seria aquele que mclm, na un�-
palavras e sobre as coisas, onde se sedimentaram os efeitos dade inicial, a mãe ou o meio , para falar de um desenvolvi
retroativos mais injustificados, mas também mais tenazes, mento da relação mãe-filho. Isto significa dizer que real
onde foi se constituindo uma espécie de consenso sobre te mente existe um ponto de vista do desenvolvimento e, legi
ses que acabam tendo uma aparência indiscutível , como timamente, uma psicologia do desenvolvimento. E tratar
por exemp lo, a de que a psicanálise seria uma teoria psico, se-ia, antes, de tornar a dar-lhe seu lugar, que não é psica
lógica global, unitária, capaz de (e obrigada a) explic _
nalítico. Devolver seu lugar é, ao mesmo tempo, sltuar em
ar
conjunto do desenvolvimento do pequeno ser humano e,o outro lugar a psicanálise, pois o fundamento para a psica- l "'l.
em última instância, do ser humano. Certos psicanalistas nálise não pode ser encontrado no desenvolvimento . O apa
são prudentes quanto a.essa reivindicação, mas outros mer recimento do inconsciente é um evento não inscrito em al-
gulham de cabeça nesta resposta à demanda de uma psico� gum programa, ainda que se inclua o organismo da mãe
logia geral. · nesse programa.
62 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE 63
CA TÁRTICA
tes , que foi melhor recolocado �U: �eu lugar, situ�do em re
"Psicologia genética" ? É difícil encontrar para essas
lação às suas condições de poss �bi��ade, de s�r�Imento. A
palavras uma grande diferença em relação a "psicologia do
desenvolvimento" . Com certeza o termo "gênese" iria mais
história das mentalidades ou a histona arqueolo!?c� (n? s�n
longe: a Gênese em alemão se diz Entstehung, surgimento ,
tido de Foucault) encontram ai uma de suas pn�cipars sig
ou mesmo criação3 I . Como é preciso s e decidir entre sen
nificações. Por seu lado, a psicanálise, na medida (certa)
em que também adota um ponto de v�sta histórico, tem que
tidos flutuantes, escolherei a " psicologia genética" como
sinônimo de "psicologia do desenvolvimento" , um domí fazer seus estes dois aspectos correlativos: o factual , o trau
nio que não é diretamente o da psicanálise, mesmo se a psi ma, os fatos da infância contirruam um pólo indispensáv:l
canálise nele intervém. Mas é importante dar o sentido mais de nossa referência; mas também temos de colocar em e�I
forte a esse inter-vir; ela intervém como se faz bruscamen dência em situações mais universais , algo que parecena,
mutatfs mutandis, uma "arqueologia" : não apenas o con
te numa sala para interromper alguém. A psicanálise inter
vém no desenvolvimento, o inconsciente intervém no gené texto em que se inscreve determinado evento , não apenas
tico. Não podendo depurar totalmente minha linguagem, 0 fundo sobre o qual os eventos vêm se recorta
r, n:as ? que
)< não banirei a palavra "gênese" da expressão "gênese do permite a um evento existir, o que lhe dá sua especif icidade
Ü inconsciente" , embora tal expressão não signifique aquele psicanalítica. . . .
desenvolvimento do inconsciente contra o qual, há pouco, Somente um uso descuidado permrtma empregar par.a
tomei posição, mas, pelo contrário, a sobrevinda, o surgi esse não-factual que funda o fato o nome de estrutura, pms
mento deste. este foi definitivamente (é lamentável) marcado pelo JOg?
"História" . Também aí o debate seria longo e quero estruturalista32 . Com o risco de reinjetar nele al�um ��nu.
apenas fazer uma pequena alusão ao termo . Não me recu do pessoal prefiro retomar o velho termo freudiano on
so a dizer que a psicanálise deve estar fundada num ponto ginário" q�e, como se sabe, vem traduzir o prefixo Ur- ou
0 adjetivo ursprünglich. O originário é a�go �ue
de vista histórico, isto é, que situa o que detecta em relação transcen
a uma sucessão temporal. Não acho que, se afirmarmos que de 0 tempo, mas que, ao mesmo ten:.po, f! ca ?� � �o tem
h d
o inconsciente sobreyém, possamos nos furtar a dizer mais po. Desenvolverei a idéia de l!ma sitUa_?ao ongma:Ia que,
ou menos em que momento, pelo menos num indivíduo de a meu ver deve explicar uma mtervençao, um surgimento,
terminado, e sob que'forma se pode detectar essa interven tanto 0 d� inconsciente quanto o da pulsão, ou , então, o
ção e, por isso mesmo, evitar afirmar que antes de deter do aparelh o anímic o. .
.
minada época ele não estava presente. Não me referia, em Acabo de fixar algumas palavra s, mas Isto nunca e su-
princípio, ao que se chama a "nova história" , essa escola ficiente para dissipar os mal-entendid�s , !fiuito J?ar�icular;
moderna, fecunda pelas renovações que traz consigo e que mente a respeito das origens! Aludo as mume:aveis sed�
teria como uma das opções mais avançadas uma oposição mentações, retrospecções do adulto sobre a. c!rança, acu:
ao factual. Pretende-se ter banido o factual, mas creio, an- mulos de afirmações que pela força da repetiçao .Centendo .
teses "psicanalíticas") acabam se tornando mars opacas,
31. ''Bible oblige' ' , ainda que. se dermos uma olhada no que faz Choura
qui para retraduzir a Bíblia, percebemos que a Gênese desapareceu e que dora
32. J. Laplanche, "Le structuralisme devant la psychanalyse" , Psychanalyse
à
vante é "Entête" o título deste primeiro livro. Neologismo ousado.
/'Université, I979, 4, I 5 , pp. 525-528.
(CU'--� C\. 'v·� k -·.. J. • ./.
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._..._. ")
- �..;:_ v,.:.;; ....� �-�t ..H
CA TÁRTICA 65
64 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
templo prato-histórico com os remanejamentos e adjunções
mais impenetráveis, mais consistentes do que fatos. Não im sucessivos que essa evolução comporta. Cada soberru;o, c�da
porta se se trata das teses do estado anobjetal, ou do narci geração de sacerdotes acrescenta um no�o �strato a antiga
sismo primário, ou ainda das teses kleinianas. Desses desli .
edificação, mas com a particulandade . ?ara
(md1spensavel
zes, desses paralogismos, dessas sobreposições ou confusões 0 meu exemplo) de que, no entretempo, mudaram a tecm
_
de campos, Freud não está isento. Quantas idéias esclare ca e os materiais. Passou-se da madeira ao tijolo cru, deste
cedoras são obscurecidas por essa confusão dos pontos de à pedra, seca ou com argamassa, etc. . .
vista. Mas se passamos à posteridade freudiana, desapare Evidentemente, se se constrói em pedra sobre tiJOlo cru,
cem as divisórias, as distinções conceituais e - também e as fundações desabam. É então preciso fazer tudo de no-
sobretudo -, o que chamei, a propósito de Freud, as "ad
moestações" .
Formulemos mais uma vez nosso ponto de partida, pois
ele é complexo. Afirmamos que o fundamento da psicaná
lise não poàe evitar a referência a uma história, que, neste
sentido, ele deve ser histórico, ou genético; mas isto no sen
tido de uma gênese do originário e não no sentido estrito
da psicologia genética. Em outras palavras, o fundamento
da psicanálise não está no ar; recusamos a facilidade veicu
ladapela idéia de mito, qualquer remissão a tempos supos
tamente "míticos" , quer na história individual, quer na his
tória coletiva. Mas, ao mesmo tempo, o fundamento da psi
canálise deve se demarcar de uma psicologia desenvolvimen
tista, o que só pode ser feito marcando a especificidade de Escoramento Alvenaria
e de uma vez por todas, substituir, sustentar todo o seu de apliando ou deslocando esse termo, direi que há um 1rpw70v
senvolvimento psicológico. Além disto, a vicariança não é 1faEÚÔor; em ato no ser humano, que funda o domínio psi
apenas um processo temporal, ela também vale na simulta canalítico e que induz constantemente efeitos epistemoló
neidade: a cada instante, em cada situação, as motivações gicos que nos aparecem como erros. Para desmontar esses
sexuais inconscientes vêm infiltrar, injetar, dar coerência erros é preciso apreender seu motor. Não adianta simples
a uma autoconservação mais ou menos deficitária. Há, por mente retornar a Freud pois ele mesmo está capturado por
tanto, uma tendência, senão natural, pelo menos espontâ esse movimento da falácia, como veremos num exemplo.
nea, do ser humano, a essa recuperação dos alicerces, que O que tento demonstrar é que todos esses erros estão "bem
fundados", estão fundados numa propensão do ser huma
\
é um outro nome para designar o
... COMO
que chamo de pansexualismo. O no, num movimento real: o movimento do conhecimento
FUNDAMENTO REAL
pansexualismo é um estado e um tende a realizar, a levar ao seu cúmulo um movimento real.
Q, DA ILUSÃO
movimento da realidade humana As ilusões são múltiplas, mas todas
d PANSEXUALISTA E
antes de ser uma aberração atribuí SUPERPOSIÇÕES se resumem numa palavra: assimi-
PANPSICANALÍTICA
da a Freud. Quanto ao panpsica- ABUSIVAS ENTRE lar a psicanálise a uma psicologia
nalitismo, ele é apenas a forma de A PSICANÁLISE geral. Constatando que a psicanáf
gradada do pansexualismo, quando o sexual, precisamente E A PSICOLOGIA lise pensa ter algo a dizer sobre tut
\
1
nesse movimento de vicariança, esmoreceu, se degradou em do, pensa poder intervir (retomd
"relação de objeto" , isto é, quando sua distinção rigorosa esse termo) em tudo, é pretender, sob esse pretexto, que el
do não sexual não é mantida. é tudo, e é agir para que, como saber geral, ela tente realil
É, portanto, por este viés muito preciso da vicariança zar essa pretensão.
do não sexual pelo sexual no ser humano que pretendo abor Desmontar essas pretensões da psicanálise exige alguns
dar e passar pelo crivo da crítica a vicariança epistêmica da desenvolvimentos e, em primeiro lugar, mostrar que a si
psicologia pela psicanálise. Se procuro denunciar alguns er tuação varia se falamos do adulto, da criança ou, então,
ros epistemológicos que culminam na confusão dos cam da relação (epistemológica e também real) adulto-criança.
pos, faço-o com o solene aviso de não esquecer que esses São propostos vários procedimentos contestáveis e que, aliás,
erros remetem, como ao seu fundamento, ao fato de que se completam.
é o próprio sujeito humano (como nosso arquiteto) que nos O primeiro consiste em querer es
induz ao erro, pois mudou as fundações de seu edifício. A PSICOLOGIA tender os resultados adquiridos pe
Freud utilizou, num outro contexto (mas que não es PSICANALÍTICA lo método psicanalíticó a uma psi
tá tão distante e poderíamos mostrar como), a propósito DO ADULTO cologia geral do adulto. Trata-se de
da histérica e da teoria da sedução, o termo 1rpwrov 1faEÚÔor;. 1 uma tendência universal do movi
Isto, é claro, significa primeira mentira, m�i mento freudiano: o aparelho anímico é descrito como apa
meiro erro ou, como se poderia dizer, primeira "mentira relho psíquico em geral e, a partir desse aparelho, em par
objetiva"; primeira "falácia", traduzi em algumas ocasiões: ticular, de suas partes chamadas partes do "ego" ou do
a histérica não é alguém que mente pelo prazer de mentir, "consciente-pré-consciente" , propor-se-á uma explicitação
há uma mentira na própria situação histerógena. Pois bem, geral dos comportamentos e ações humanas. Reconhece-se
68 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 69
aqui a mais oficial das posteridades de Freud, com a escola Se, quando se trata do adulto, o
americana, Hartmann, e com sua psicologização máxima REINJEÇÃO DE panpsicanalitismo pode encontrar
quando encontrou um psicólogo feliz por ter achado , por CONCEITOS uma desculpa no fato de que este
fim, uma doutrina à mão, Rapaport. Mas várias outras es PSICANALÍTICOS está completamente reinvestido pe
colas encaminham-se para o mesmo resultado, mesmo se NA PSICOLOGIA lo sexual, os procedimentos refe
sob um aspecto diferente: os kleinianos também tendem a DA CRIANÇA rentes à psicologia da criança estão
pensar que não há outra psicologia que a psicanálise, e a mais fundamentalmente viciados,
tentativa talvez mais formalizada, mas também mais gene quer se trate de retroprojetar os dados da psicanálise � dul
ralizada seria a de Bion. Digo que se trata de uma ilusão. ta sobre uma psicologia da criança, quer de confundir no
Mas, quando se trata do adulto, esta está relativamente bem domínio próprio à criança o que é psicanálise e o que é aces
fundada, pois, no adulto , somos incapazes de delimitar um sível a uma psicologia ou a uma psicofisiologia. Esta últi
campo psicológico que não esteja, no fim das contas e in ma confusão aparece sob dois aspectos, quer se dê sob a
cessantemente, reinvestido, reabitado por motivações sexuais égide de conceitos provenientes da situação psicanalítica -
inconscientes. A deterioração de uma psicologia adulta não e aqui reconheceremos Melanie Klein -, quer, no outro ex
psicanalítica não é, portanto, um acaso. Resta saber se, nesse tremo, em proveito de conceitos degenerados, do tipo ' 'sim
empobrecimento e nessa ampliação, a psicanálise também biose" ou "interação". Esses diferentes procedimentos, no
não se empobrece ao perder a especificidade de sua abor fundo, são apenas um. Os conceitos extraídos da anális� ,
dagem, precisamente aquela que a isola no que deser;thamos da situação ou da observação psicanalíticas, inclusive da psi
como uma tina, em derivação sobre o campo dos "mteres canálise extratratamento, podem provir tanto de adulto
ses", tangente a este campo , mas não se confundindo com (exemplo: os conceitos de narcisismo, de auto-erotismo ou,
ele. Se não existe psicologia do adulto que não reivindique então as fases da sexualidade que se originam diretamente
'
de alguma forma a psicanálise, restaria demonstrar que não .
há uma psicologia não psicanalítica possível e articulável da abordagem psicanalítica do adulto), quanto da cnança
com a psicanálise. Retomando, por exemplo, A interpreta e do adulto (exemplo: Melanie Klein com suas "posições" ,
ção dos sonhos ficamos admirados com a ambição que con
conceitos tirados da situação analítica com o adulto ou com
siste em elaborar uma psicologia geral do sonho, para além a criança): há sempre retroprojeção ou retroinjeção. Cer
do problema propriamente psicanalítico de sua interpreta tamente que o que está em jogo, em termos teóricos e prá
ção. Aliás, não é em vão que o último capítulo se intitula: ticos, pode parecer diferente nos dois casos que distingui
"Psicologia dos processos do sonho" . Uma leitura moder mos, conforme os conceitos falsamente reinjetados na crian
na, renovada, mostra até que ponto permanecem penden ça guardem ou não sua dureza psicanalítica. Se esses con
tes problemas propriamente psicológicos, que deveriam ser ceitos conservam seu rigor (são capazes?), tem-se uma fal
retomados pela base, a partir e incluindo uma descrição mais sa psicologia psicanalítica da criança que, muitas vezes, tem
o mérido de arvorar esse caráter falso sob a au.!lflama do �
exata, fenomenológica, de que realmente é o ' 'sonho so mito ou da criança mítica . Esta tendência encontra-se re
nhado"33. presentada no número, já antigo mas muito instrutivo, da
Nouvelle Revue de Psychanalyse sobre "A criança"3 4. No
33. Reinício da Traumdeutung cujo programa poderíamos formwar. 34. 1979, 19.
70 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CATÁRTICA 71
outro caso, os conceitos reinjetados o são ao preço de uma no qu<; as teses de um Piaget ou qualquer outro psicólogo
degeneração que permite tornar mais plausível a imagem do da observação direta ou experimental, ao que se conven
desenvolvimento assim criada. Mas, de fato, um é tão peri cionou chamar, nesses trabalhos, sem nenhum sentido
goso quanto o outro pois o que falha é a articulação psicaná pejorativo, de modelo de inspiração psicanalítica, ainda que
lise-psicologia. Estamos sempre diante de uma mistura de am se justaponham nesse modelo visões tão divergentes quan
bas, ou seja, há sempre, simultaneamente, defasagem entre to as de Spitz, Mahler, Winnicott, Melanie Klein, sem fa
a criança psicanalítica e a criança observada, e degeneração lar de Freud que, apesar de tudo, fi'?a um pouco esqu�ci
dos conceitos psicanalíticos para tentar fazê-los colar ao be do. Esse direito de cidadania, concedrdo sem nenhuma JUS
bê observado. Finalmente, essas duas soluções, longe de uma tificativa, a teses desenvolvimentistas supostamente psica
ser melhor que a outra, acabam por se agravar mutuamente. nalíticas, é apenas uma homenagem indireta à força de per
Há, portanto, mais ainda a propósito da criança, uma suasão, de intoxicação que emana do panpsicanalitismo, cu
ilusão científica fundamental, ligada ao 1rpwTov 7rriEÍioor;. jo dinamismo oculto é o pansexualismo espontâneo do ser
Nunca é demais repetir que a descoberta psicanalítica é a humano3 5 •
do inconsciente e da sexualidade no sentido que Freud dá Estamos, portanto, no meio da confusão, uma confu
a ela. O que a psicanálise em situação pode descrever (quer são onde estão de acordo os psicanalistas (exceto aqueles
se fale da criança, quer do adulto, pois existe uma situação que se refugiam no "mito") e os psicólogos que aceitam
analítica com a criança, como demonstrou suficientemente utilizar parcialmente noções e seqüências extraídas de uma
Melanie Klein) é um certo estado, são fases, é uma certa visão psicanalítica sobre o desen-
gênese, que se referem especificamente ao setor propriamen REDUCIONISMOS volvimento da sexualidade huma-
te psicanalítico. A partir daí, a ilusão dos psicanalistas, pe CONCEITUAIS na como se visassem a mesma coi-
lo menos de muitos deles, é pensar encontrar essas situa sa do que quando eles mesmos fa
ções, não como fases da sexualidade infantil (seria, aliás, lam das etapas da constituição do objeto ou da aquisição
necessário colocá-las em evidência, o que não é das coisas das relações lógicas. De comum acordo entre os psicanalis
mais simples), mas como evolução da relação generalizada tas-psicólogos da infância e os psicólogos mais experimen
da criança com seu mundo. Novamente, neste procedimento, talistas, opera-se uma redução entre os termos, que esque
é o próprio pansexualismo que está em ato. Mas, cada vez matizo nas duas colunas seguintes:
que o pansexualismo se põe em ato, cada vez que a sexuali
dade pretende ser tudo (neste caso: que as fases da sexuali Objeto do Wunsch sexual (anseio) Objeto da necessidade e da per
dade infantil correspondem ao todo da relação do indiví cepção:
duo com seu meio), é porque ela não é mais nada. Se a psi Percepção guia de vida
canálise é o todo da psicologia da criança, a sexualidade Percepção guia da necessidade
se dissolve completamente, como vimos em todas as tenta
tivas de pansexualismo, em particular, na de Jung. (enquanto Freud, como veremos, faz derivar um do outro)
Coisa curiosa, essa reinjeção ilude
INTOXICAÇÃO DOS os próprios psicólogos. Basta abrir
PSICÓLOGOS PELO qualquer trabalho de psicologia da 35. Cf., como um exemplo, a parte teórica de um trabalho recente como
PANPSICANALITISMO criança para ver o direito de cida o de Annie Vinter, L 'imitation chez /e nouveau-né, Neuchâtel-Paris, Delachaux
dania concedido, no mesmo pla- & Niestlé, !985.
72 NO VOS FUNDAMENTOS PAR
A A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 73
Objetalidade: reencontrar um
ob Objetividade: delimitar e esta
jeto sexual segundo a via traç
ada
bele errática, monitória, de tipo "admoestação", "recomponha
cer como independente um obje
pelo Wunsch to perceptivo-motor (Piaget,
mo-nos", advertindo-nos de que a psicanálise é outra coi
etc.) sa do que o que acaba de ser descrito e que, talvez, a pers
Realização dita alucinatória do an pectiva deva ser invertida. Assim, no momento mesmo em
seio (cujo modelo continua sen
Inserção de uma etapa pret
ensa que acaba de soltar o termo, pelo menos ambíguo e talvez
so à
mente alucinatória no aces funesto, de "narcisismo primário da criança", Freud dá a
do o sonho)
realidade externa
entender claramente que o único narcisismo em questão em
Narcisismo sexual
"Sua Majestade, o bebê" é o narcisismo dos pais que pro
jetam sobre essa criança seu próprio amor por si e, precisa
I
Ausência de objeto real visa
do, in
d�.ferenciação sujeito-objeto, sim mente, seus "projetos" defuntos. Uma leitura interpreta
bwse , etc. tiva e clivante impõe-se, portanto, atravessando os textos
de Freud, mas, de forma nenhuma, segundo uma demar
Essa redl!ç�o não é somente confusão dos cação cronológica: não há, principalmente em relação a esse
con os,
rr_: ,superposrçao das fases e das evoluç ões . Toda a ceit
as
evolu tema de narcisismo, um proto-Freud que seria absolutamente
çao e colo�ada na dependência de uma des puro, nem um deutero-Freud, totalmente esquecido de si
que s� aplicava à emergência da sexualida criç ão freu diana
de. Ma s, em cor mesmo, "caduco" . Não entrarei, pois, na história desse re
relaçao co� esse domínio freudiano sobre o ducionismo, contentando-me, por exemplo, em remeter a
r � t� , � freu�rsm desenvolvimen-
o fica completam e esvaziado de sua sub certos textos, em particular, os do Vocabulário escrito com
tancra, pOis toda a evolução é entdessexualizada.
s
Pontalis ("Auto-erotismo", "Narcisismo", "Narcisismo
primário e secundário"), que levantam o essencial dos tex-
tos freudianos . Farei referências também a um artigo mais f
7I Um importante exemp penetrante de B. Vichyn, "Naissance des concepts: auto-�
lo de confusão:
érotisme et narcissisme" 36 . \!.
I
o estado "an objetal"
O que constatamos em Freud? Uma linha que pode ser
Um exe plo centr� as fus ões grossei traçada da seguinte forma e que vai se tornar mais comple
das pelas noç�oes de narcrsr:smocone narcisismo
ras veicula xa depois: auto-erotismo :- narci- \I
prim ário. Aqui' sismo - escolha objeta/. E uma li- l i
sera' necessan
'. .
o clivar o pró
TEMPOS SUCESSIVOS
f
prio Freu
CLI VAR FREUD SOBRE
Por que darmo-nos este direito e pred. DO ERóTICO nha cronológica, uma linha de su-
cessão. Nada de usar de rodeios,
O NARCISISMO
tender escolher "nosso" Freud ou pretendendo que se trata de um falso tempo ou de uma gê
. o "bom, contra '
cedrme nto �er:. a t.otalmente inaceitável seo "m au"? Esse pro
não demonstrás
- nese mítica: as três posições propõem-se exatamente uma
semo� a exzsten�w e o motor
do reducio nismo, acima de
após a outra. Vê-se, logo de partida, que o narcisismo, nesta
nu�cr�do e explicado. A escolha a ser feita é apenas a ope linha, não está no começo; além disto, como se diz de um
raçao mversa da confusão que exp usemos longamente. ladrão entre dois policiais, o narcisismo está bem "la-
Mas o que também legitima essa
sença, em textos fundamentais, de det"cli vagem" é a pre
erminada passagem 36 . Psychana/yse à /'Université, 1984, 9, 36, pp. 655-678.
74 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 75
deado" , pois tem algo de erótico dos dois lados: tem auto Sublinhamos acima que o narcisismo estava "bem la
erotismo antes e escolha objetai depois, e sabemos que, para deado" numa seqüência, o que significa, como conseqüên
Freud, trata-se exclusivamente da escolha de objeto de amor. cia absoluta, que não é o primeiro, mas o segund? : auto
Com certeza dirão que entre o auto-erotismo de antes e o erotismo - narcisismo - escolha objetai. Quer drzer, en
amor posterior também seria necessário justificar essa mu tão, que o auto-erotismo seria o prin:eir!s�imo termo, con
d�ça de palavras. . . Mas é justamente o narcisismo que es cretamente, no desenvolvimento do mdrvrduo? Freud, nu
ta encarregado de dar conta disto. ma célebre passagem, afirma que não é este o caso: "Na
o AUTO-EROTISMo
Lembremos os quatro aspectos que época em que a satisfação sexual estava li_gada à absorção
caracterizam o primeiro termo, o dos alimentos, a pulsão encontrava seu obj �to fora, na su:
Ql!E, � LE MESMO,
NAo E PRIMEIRO
auto-erotismo , ou "estágio" - já ção do seio materno . Esse objeto foi posten�rmente pe.r�r
que é preciso expressar-se assim - do ... A pulsão sexual torna-se, apartir. de entao, r:ut�-e�otlca
�
auto-erótico. Ele é satisfação no lu e só depois de ter ultrapassado o penado de latencr� e que
gar, em tal ou qual parte do corpo, no próprio ponto ar o objeto se
�corre a excitação, o que Freud chama de prazer de órgão.
onde a relação original se restabelece . . . Encontr 3
xual é apenas em suma, reencon trá-lo. " 8 Comentei bas
uma satisfação não unificada, fragmentada, que não re tante esta padsage m 39 , capital para a teoria d? "apoi?" ,
mete a outros órgãos nem, com mais razão ainda ao con mas hoje querem os ir além dessa noção de apmo e explica
unto do c?r� o, mas que se esgota onde nasce: é ; imagem auto
e um polipe remos por quê. O que nos importa aqui _ ner o, oque
é q_ue
. rro de prazeres. Por outro lado, como indica
o ?refixo auto, erotismo não é, portant o, absoluta me � te p m; � s
. �o
o auto-erotismo não tem objeto externo, quer cede outra coisa no tempo, embora seja o pnmerr o estag,:
seja uma pessoa, qüer seja, até, um objeto parcial. Enfim üi.dependente da sexualidade; não é o começo da relaçao
a atividade auto-erótica não pode ser definida sem meneio� com o mundo, mas marca o que chamamos o tempo "au
narmos a fantasia, ou o objeto fantasístico, o que não é exa
t�ente o mesmo. Como prova disto, temos o fato de que to", que supõe um recuo na relação com o mundo. .
diante de todo comportamento dito auto-erótico de um ana Avancemos agora do auto-erotis
lisado o psicanalista não deixa de procurar e encontrar O NARCISISMO, mo ao narcisismo. Como se carac
fantasia subjacente: não há masturbação sem fantasia e oa TEMPO SEXUAL teriza o narcisismo em relação a es
interesse da masturbação para o analista é a fantasia. Mas DE UNIFICAÇÃO te primeiro tempo de recuo? Nos
isto não se dá só com o adulto . Essa dimensão da represen textos mais explícitos de Freud,
tação fantasística, portanto da memória, é postulada des define-se como unificação do auto-erotismo (por essência,
de a origem, desde o protótipo oral do auto-erotismo: "É disperso) sobre um objeto único; ma� sobre u� objeto .�ue
também evidente que a ação da criança que suga está de é ele mesmo ''auto'' , um objeto que e sempre mterno, re
terminada pela busca de um prazer já vivido e agora reme flexo' ' , e é justamente por isso que foi batiza�o com o �o
morado. "37 me desse herói do espelho, Narciso . Esse objeto refletido
�
auto-erotismo que descrevemos como um estado da libido erotismo, narcisism o, homossexualidade (que Freud, n�m
no seu início [note-se bem: estado da libido no seu início, determinado momento, intercalou aqui) e escolha de obje
não quer dizer estado do indivíduo no seu início]? . . . é ne- to heterossexual? E como articulá-la ou, até mesmo, fazê
cessário admitir que não existe desde o início, no indivíduo, la corresponder em quadros cronológicos sinóticos a essa
1-
" uma unidade comparável ao ego; o ego deve sofrer um de quantidade de outras seqüências tão aprecia�as pelos an_a
senvolvimento. Mas as pulsões auto-eróticas existem desde listas: a sucessão dos estágios oral, anal, gemtal e, depOis,
a origem; algo, uma nova ação psíquica, deve, portanto, todos os estágios descritos por Ferenczi a propósito do ''de
vir se acrescentar ao auto-erotismo para dar forma ao nar- senvolvimento do sentido da realidade" , passando pelo en
cisismo [dois comentários essenciais: para Freud trata-se de cadeamento das "posições" kleinianas, até "autismo, sim
I uma seqüência explicitamente temporal, e não mítica. O nas
biose, separação, individuação, etc."? Ou, ai �da, em �e!a
l cimento do narcisismo é absolutamente correlativo ao do ção à evolução gradual e maturativa da relaçao do SUJe�to
\ ego]" 4°. Nessa seqüência (auto-erotismo, narcisismo, esco- com o mundo objetivo (descrita e aprimorada desde um Pm
lha objetai) que procuramos reduzir ao essencial, não se tra get) haveria um estagismo sexual que de':'eria ser situado r:�m
ta, portanto, de todo o indivíduo, mas de sua vida sexual, simples deslocamento cronológico? Se dizemos que a sequen
do objeto sexual e da pulsão sexual. Essa vida sexual destaca cia auto-erotismo, narcisismo, escolha objeta! vem se en
se sobre o pano de fundo de uma vida ou de uma relação xertar na vida de relação, significa acaso dizer que. é preci-?
não sexual a ela preexistente, a vida da necessidade de que so, por exemplo, fazê-la começar aos dOIS. ou seiS .m.�ses .
vai se separar. De forma nenhuma. Uma vez que nos livramos da Idem de
As noções de apoio e de tempo que essas etapas freudianas são estágios do indivíduo , na
CRONOLOGIA DO "auto" significam que a vida se da permite reiterar, a propósito delas e sem nuanças, uma
AUTO-EROTISMO xual não existe desde o princípio, nova escalacã o.
E DO NARCISISMO ou, para ser mais claro, seu prin Auto-e;otismo e narcisismo não definem modos fun
cípio não poderia ser confundido damentais de relação com o mundo em geral, mas modos
com o princípio da vida de relação. Por outro lado (pelo de funcionamento sexual e de prazer. Quando se destacam
menos nesta linha freudiana), não existe outro narcisismo de um fundo de uma relação geral com o mundo, que du
primário ou originário além deste, e não existe auto-erotismo rante esse tempo evolui e progride, só podem ser concebi
mais primário do que este. De forma que nossa concepção dos como momentos mais ou menos pontuais e mais ou me
nos reiterados, com, aliás, diferenças essenciais no estatu
to temporal de ambos. A seqüência em dois tempos - sa
40. " Pour introduire le narcissisme". em La vie sexuelle, Paris, PUF, p.
tisfação sexual ligada à necessidade, depois recuo para o
84. Entre colchetes: comentários de J .L.
auto-erotismo - renova-se um número incalculável de ve-
CA TÁRTICA 79
78 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE . . '.
pu!sões de 1915. Quanto ao texto dos Dms prznczpz'?s4I �
zes. Mas nada obriga a imaginar que essas micro-seqüências não podemos evitar certo ressentimento (s� o traduzi, fm
prossigam sempre mecanicamente para um terceiro estágio talvez precisamente para exercer meu resse�timen�o), �a me
que coroaria a tríade: apoio, auto-erotismo, narcisismo . O dida em que é o texto fundante de uma psicologia psicana
narcisismo primário, pela sua própria essência de unifica lítica da criança, que denunciamos como confusa.
ção, ou mesmo de consideração em massa, presta-se mais As quatro primeiras páginas desse texto apresentam
a uma evolução por momentos estruturantes, e é importante nos explicitamente uma evolução das pulsões do ego ou de
que uma das etapas capitais para delimitar seu surgimento autoconservação. As pulsões sexuais só são i.nvocadas no 3.?
tenha sido descrita por Lacan como um momento de mu parágrafo e para dizer que as COI
tação, no estágio do espelho. Não que o estágio do espelho REDUÇÃO sas são muito diferentes para elas.
seja o alfa e ômega do narcisismo, mas continua sendo pro DA EVOLUÇÃO Perfeito, está tudo bem, a distin
tótipo desses momentos cruciais de precipitação, de consi SEXUAL À ção ficou, portanto, estabelecida?
deração em massa ou de cristalização (como se diz a res AUTOCONSERVAÇÃO Não, pelo contrário, está tudo mal,
peito "do amor", e não por acaso). Contudo, a partir do pois foi descrito, nessas quatro
momento em que se situou o narcisismo na seqüência se primeiras páginas, o desenvolvimento das pulsões de a�!o
xual, seria absurdo falar de fase narcísica pura. Aliás, é jus conservação segundo uma seqüência calcada sobre a sequen
tamente isto que Freud nos faz notar a propósito da tercei cia sexual e comecdando por um estado originário fechado
ra das nossas etapas, a da escolha objetai: escolha objetai sobre si mesmo, e início auto-suficiente e monádico (en
narcísica e escolha de objeto por apoio coexistem e estão quanto que "auto" , no domínio sexual, era o resultado de
constantemente intrincadas. um processo, e não um originário absoluto). Um es�ado de
"Escolha objetai", é evidente que que logo é preciso sair, por não se sabe que contorç�o, q�e
ESCOLHA OBJETAL entendemos escolha de objeto se- é a contorção própria a todo idealismo: como um �deal� s
E ACEsso À xual. Como este tipo de seqüência mo pode se abrir para o mundo se é fechado? Todo Idealis
OBJETIVIDADE: pode degringolar, no pensamento mo se contorce para reencontrar o que perdeu. O que es
RAízEs FREUDIANAS psicanalítico, para uma seqüência tigmatizo éomo um idealism� o� um �o�ipsismo bi�lógi�o
DE UMA CONFUSÃO que escande o acesso à objetivida- encontra seu apogeu nessas pnmerras pagmas dos Dmsprzn
cípios. As pulsões de autoconservação, o i �divíduo psico
de? Como isso pode degringolar
inicialmente em Freud? Isso já degringolou, "agora e sem biológico, o bebê, teriam que aprender a via do obJeto: e
será preciso , a partir de então, encadea� , nl!ma ver�a�eira
pre"; não há um momento em que as coisas estavam per dedução de uma psicologia racional mmto mverossimll, as
feitamente claras e um momento em que tudo se turva: já funções psíquicas sucessivas: consciência, memó�ia, julga-
tinha degringolado antes de ser enunciado. A teoria não evo mento , etc. Em última ÍJ�stância, esse texto devena ser pos- J-;c'-"�,: o vL
lui linearmente no sentido dessa redução que denuncio. A to sob o estandarte da "simbiose" , se levarmos em conta ::.:.-
redução do sexual à autoconservação está presente, é pre a famosa nota42 que faz os cuidados maternos (e não: a
ciso dizer, antes mesmo do enunciado claramente formula
4 I . Résultats, idées, problemes I, Paris, PUF, I984, pp. 135-I44.
do do narcisismo. Concretamente, três textos: o narcisis
mo de 1 914, os Dois princípios do curso dos acontecimen �
42 . Jbid. , p. 136, n. 2.
tos psíquicos de 1911 e, por fim, Pulsões e destinos das
80 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CATÁRTICA 81
mãe) entrarem no ovo inicial. Assim, antes mesmo do nar ral sobre si mesmo uma ausência de objeto externo quer
cisismo ser realmente "introduzido" ("Introdução ao nar ele seja sexual, que� seja hão-sexual. Mais uma ocorrência
cisismo"), sua futura redução já está prefigurada, inclusi do reducionismo que gostaríamos de desenvolver.
ve efetuada! Para acabar esquematicamente
O outro texto exemplar é o de Pulsões e destinos das ADESÃO com esse reducionismo freudiano,
pulsões43onde também se opera a DE FREUD À lembremos que, em seguida, nar
REDUÇÃO redução, mas de maneira simétri- ANOBJETALIDADE cisismo primário ou originário vai
DO FUNCIONAMENTO ca à precedente: da autoconserva- ser formulado como um estágio
AUTOCONSERVATIVO ção à sexualidade, e não mais da primordial do ser humano e não será mais d�s�inguid� de
AO MODELO sexualidade à autoconservação. auto-erotismo : a seqüência auto-erotismo-narclSlsmo Vai de
DA PULSÃO Aqui, com efeito, o modelo de par- saparecer das elaborações freu�iana�; o auto �e� otismo_ �e-
SEXUAL tida é explicitamente a sexualida- rá definido como o modo de sausfaçao do estagiO narclSls-
de, a autoconservação é ampla ta. O narcisismo primário perderá, devido a isto, seu cará-
mente deixada de lado, pois se trata do destino das pulsões ter de relação especular com um objeto interno, para vol-
tar a ser quase sinônimo de estado "anobjetal" . Numa_mes-
l
sexuais. Mas, apesar desse início promissor, mostramos que
era necessário fazer "passar uma faca" 44 e segundo que li ma redistribuição do jogo, o "narcisismo do ego" var mu-
nhas era preciso clivar a descrição da.pulsão que nos é pFO dar de lugar. Em Introdução ao narcisismo , equivalia ao 'I
narcisismo primário, já que era necessária uma ação fu�- i'
j
posta. Sem querer retomar o que desenvolvemos em outro
texto , ressaltemos somente uma proposição, capital e am dante do ego para que houvesse narci�ismo; sem eg? nao
bígua, verdadeira formação de compromisso: "As necessi há narcisismo. Ma� , _nos textos pos!enores, em P ��tlcular ·
dades das pulsões do ego que nunca podem ser satisfeitas O ego e o id, o narcrs1smo do e�� vai ser_ de�l �rado � ecun-
if
de maneira auto-erótica . . . " 45 Com efeito, bravo ! O indi dário" em relação a um narcrsrsmo pnma no anob]etal.
víduo biopsicológico com as suas pulsões de autoconserva A confusão que denuncio, essa redução da gênes � da
ção (ou "do ego"), está, logo de início, aberto para uma sexualidade ao desenvolvimento da relação perceptlvo
intencionalidade-objeto. Mas, também, que espantosa con motora com o mundo ou com o meio, continua a fazer seus
fusão na expressão: o fato de as pulsões de autoconserva estragos depois de Freud. Se um �ujeito, :om_ to�as as pul
ção, que precisamente não são eróticas, não poderem se sa sões confundidas, poderíamos drzer, esta pnmerro fecha
tisfazer de maneira "auto-erótica", seria um truísmo ou um do para depois se abrir, como poderia fazê-lo? Fal� da
contra-senso? Não seria, antes, uma impropriedade, um des "frustração" que ensinaria o pequeno ser humano a vrver,
vio do sentido do auto-erotismo, já prestes a perder sua co mas, precisamente, em Freud, a Versagung não é frustra
notação sexual para apenas significar um fechamento ge- cão - ou não apenas -, ela é ato de recusa por parte' de
�m outro humano, adulto , um "recusar-se a" , ou, como
" - "*
tentamos traduzi-lo atualmente, uma recusaçao ·
Outro ponto que deve ser rediscu um momento para chegar em outra coisa. O apoio, enquanto
CONFUSÕES SOBRE tido, embora tenhamos acabado tal, ainda propõe um movimento de aspect� endógen? ; _no
A "ALUCINAÇÃO por considerá-lo uma aquisição in esquema da vivência de satisfação e do apmo, sem duvida
PRIMITIVA" discutível, à força de tê-lo ouvido o outro humano está presente antes, mas seu papel se resu
repetidamente desde Freud , é a no me a se ausentar.)
ção de alucinação primitiva e a confusão que ela veicula. Um outro avatar desse reducionis-
Sabemos que essa noção encontra sua origem no Projeto SIMBIOSE mo já foi mencionado por nós a
para uma psicologia científica, no que é cham propósito da inclusão, no ovo ini
por Freud de "vivência de satisfação" e que press ado, então,
cial, da mãe. O caminho para o que se chama díade, adua
cisamente, a abertura originária ao mundo paraupõe uma
, pre
lismo, ou ainda simbiose, está perfeitamente traçado� R�
tisfação. Depois, dizem-nos, na ausência da satisfaçãosa ,o tomando o termo simbiose, ele veicula, sob sua aparencia
objeto seria alucinado. Alimentar-se alucinatoriamente, por de evidência, todas as confusões possíveis. A simbiose é ':ma
que sairíamos disto? Por que um pouco de frust noção biológica, objetiva talvez, mas da qual �u�r �e trrar
ria tolerado, graças à alucinação, e por que muitaração frust
se
ra a idéia de uma simbiose subjetiva. No plano biologico, se
ção levaria a renunciar a esta? Na verdade, pode gundo o dicionário Robert, trata-se de uma "associ_ação d':
trar aqui, sobretudo na posteridade freudiana, mos o
mos
mesm radoura e reciprocamente proveitosa de dms_ org�smo � VI
reducionismo. O que era descrito ali por Freud era umao vos"; e dá como exemplo o líquen. Mas, m:smo bw�ogic�
espécie de surgimento, de gênese da sexualidade. No Pro mente, mesmo no plano da autoconservaçao, a reciproci
jeto, o que é "alucinado" são signos que
acompanham a dade, que tornaria proveitosa par� �s ?nas partes a asso
satisfação, e não o objeto da satisfação. Insis timos sobre ciação mãe-criança, é duvidosa. Ha dissimetnas fundam:n
esse deslocamento metonírnico do objeto no surgi tais. De certa maneira, para retomar um outro mo�elo bio
pulsão sexual a partir das funções de autoconservament ção.
o da lógico de associação, poderíamos perfeitam�nte dizer que
exemplo prototípico, esse modelo quase fictício do aleitNo a
a criança é o parasita da mãe. E, de forma mvers� , pode
mento, não há coincidência, mas sim deslocamento do lei ríamos dizer (desta vez tomando "parasita" no sen�Ido mo
te para o seio. A "alucinação" , não é, port derno, oriundo da comunicação: os ruídos parasitas) que
imaginado que substitui o real, um alimentoanto subs
, um real
tituindo
a mãe "parasita" a criança.
outro alimento. Poderíamos também demonstrá-lo com ou
tro exemplo que, no entanto, parece ir mais longe no sen Quis mostrar, como fonte de todos
tido de uma satisfação substitutiva, ou seja, CONTRA esses movimentos de reducionismo
inanidos tais como são estudados por Freudosnasonh os dos
Interpre
O SOLIPSISMO teórico da sexualidade à autocon
tação dos sonhos. A alucinação dita prim DO BEBÊ servação, a relação real de vicarian
itiva não alimenta, PSICANALÍTICO, ça, de "recuperação dos alicerces";
não substitui o real, é o nascimento da fantasia
gem da vertente sexual. A alucinação primitiva, (se a decola-
I
DUAS REAÇÕES certamente um processo complexo
é que MAL FUNDADAS que deve ser concebido como pro
há "alucinação") nunca seria desmentida pela realidade
e não pode sê-lo. (Retornaremos a este esquema, pois, en, NO PRINCÍPIO: gressivo e parcelar. Se se transpõe
quanto tal, ainda é insatisfatório: ele faz esse movimento para uma recupe
da construção do "apoio" , uma construçãparte da chama-
o que é apenas
ração global dos interesses da autoconservação p�lo amor,
_ exrste desde
se, além disso, se postula que essa recuperaçao
84 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CA TÁRTICA 85
u
90 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE CATÁRTICA 91
aquele que traça a gênese da sexualidade e que renova o co a essa .suposta ausência de consciência no bebê, ou indife
nhecimento psicanalítico, só é possível sobre um fundo míni renciação:J Nega-se a evidência quando se pretende que o
mo. Ora, num conhecimento minucioso, que, portanto, não recém-nascido não tem experiências conscientes, embora ele
se priva de refletir nem de formular hipóteses e conjeturas, alterne entre o sono e a vigília [se tudo fosse apenas um es
as primeiras aproximações dos psicanalistas, assim como as tado narcísico cujo protótipo é precisamente o sono, o que
racionalizações mais ou menos fundamentadas de um Pia significaria essa alternância?}. Essas experiências conscientes
get, cedem o passo a um conhecimento mais preciso dessas são sobretudo experiências de estados e de atos corporais,
primeiras relações com o mundo, com o meio animado ou ou seja, baseiam-se, principalmente, nas recepções íntero
inanimado, parcial ou total, em suma, à evolução e ao aper e proprioceptivas. A criança não está, contudo, fechada na
feiçoamento dessas montagens sensitivo ou perceptivo-mo subjetividade delas. É difícil conceber a relação do recém
toras, desse "equipamento" do bebê, mesmo - e continua nascido com o seio de outra forma que como relação de um
mos achando isso - se é um equipamento muito lacunar. sujeito com um objeto. Sem existir enquanto estrutura cog
A psicologia do bebê desenvolve-se sem a hipótese contradi nitiva, o sujeito funciona e se atualiza sucessivamente nas
tória do narcisismo primário, mesmo se, de tempos em tem necessidades que o despertam e o motivam, nos atos de
pos, ela ainda se considere obrigada a tirar o chapéu para orientação e, depois, de consumo, que o saciam e o ador
o que julga ser a psicanálise. Lagache já traçou o pla. mecem; da mesma forma, o seio e o leite preenchem sua
no dessa descrição do pequeno ser função de objeto bem antes de haver consciência posicio
O PROGRAMA humano, denunciando o que ele nal do objeto." 53 Evidentemente, sentimos a marca, em La
DE LAGACHE chamou as afirmações "temerá gache, do que há de mais positivo na fenomenologia, mes
rias" relativas a uma suposta indi- mo se não utiliza o seu jargão: a ausência de uma consciên
ferenciação : cia "tética" do objeto e do sujeito não significa a ausência
"A noção de diferenciação primária é preferível à de de relação sujeito-objeto, ou seja, uma consciência não
indiferenciação, que é mais comumente adotada. A indife tética.
renciação [a do bebê em relação ao meio} é apenas relativa Entendamo-nos: parecemos oscilar entre dois totalita
em comparação aos estágios posteriores; não é absoluta, co rismos que pareceriam inelutáveis, excludentes entre si: o
da criança psicanalítica, dita mítica (é sabida nossa descon
mo implicam certas fórmulas temerárias, tais como a au
fiança para com este termo), e o da criança psicológica ob
sência de consciência, a ausência de sujeito, de objeto e,
servável, objeto de construções científicas. O problema, en
conseqüentemente, de relações objetais. A diferenciação pri
tre essas duas pretensões à hegemonia, é certamente que,
mária é demonstrada pela existência de aparelhos que ga
na verdade, as duas se intricam ou, melhor, têm pontos de
rantem ao sujeito um mínimo de autonomia: aparelhos da
intersecção, como ocorre precisamente com autoconserva-
percepção, da motricidade, da memória, limiares de des
cargas das necessidades e dos afetos. Esses aparelhos ser
vem para a gratificação das pulsões e também são as ga
rantias primárias da adaptação ao meio; preexistindo ao con 5 3. "La psychanalyse et la structure de la personnalité" (1961) em Oeuvres
flito , podem participar dele enquanto fatores independen IV/Agressivité, structure de lapersonnalité et autres travaux, Paris, PUF, 1982,
tes . . . [Eis uma das reflexões básicas de Lagache referentes pp. 200-201. Entre colchetes: comentários de J. L.
CA TÁRTICA 93
92 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
distintos para fazer um recalcamento, isto impl ica que o re
çã� e sex� alid��e. De f?rma que ambas, a criança "míti i
calcan ento originário , ou, entã o, o trau ma, nunc a podem
ca da psicanahse e a cnança da psicologia, são, neste sen- ser apontados com o dedo num a obse rvaç ão, mesm o que
tido, abstrações. Mas tampouco se analítica. A observação anal ítica está desti nada , não devi
OBSERVAÇÃO . pode negar que a abordagem de do a sabe-se lá que desgraça meta físic a, mas pelo próp rio
E INFERÊNCIA uma não corresponde exatamente tipo desse objeto em dois temp os, a se situa r semp re e por
EM PSICOLOGIA à abordagem da outra. Dizem-nos definição no cedo demais ou no tarde demasitua is. Os proces
E EM PSICANÁLISE em geral: a criança psicológica é sos analíticos, por natureza , só pode m ser dos e en
. _ . . . secaptada
. O a tific10 pela situação experimental, quadrados . Uma das pess oas que, a meu ver, faz isso me
� üuaça CUJ � conhece; a criança psicanalítica só r no seu trab alho , A ux origines du
? lhor é Silvia Bleichma
e aces�I�el em s�tuação analítica, ainda que seja a situação la clini que psyc hana lytiq ue de l'en
sujet psychique dans
da analise de cnanças. Mas, entre ambas domínio comum fant54 , que tenta precisamente demarca
r, pela clíni hi
ca,
ou no man 's land, há a observação que p�de ser alternada póteses teóricas fundamentais: "Os tempos míticosãonão são
mente �rientada para os grandes aparelhos e montagens construções, mas movimentos reais de estruturaç do su
adaptativas, ou, então, para o nascimento do "psicanalíti jeito psíquico; e ainda que não cheguemos de a apreendê-los
co" na relação espontânea. Melanie Klein não faz outra coi na sua subj etivid ade, estam os em cond ição situá-los co
sa no seu artigo já citado, Sobre a observação do compor mo se situa um elemento na tabela periódica de,Men deleiev...
tamento dos bebês.
Embora não possa ser nem tocado, nem visto podemos co
�ão ren_eguemos, portanto, a observação psicanalíti nhecer seu peso específico, sua densidade, seu efeito e sua
�a. Ha �ambem a de Freud relativa ao jogo do fort-da: não combinação." 55
e �ma situação psicanalítica como a do "pequeno Hans" .
Na? procuremos a diferença entre uma observação psica
n�ht�ca _e uma observação psicológica no fato de que uma
st;Ja mdireta, a psicanalítica, e a outra não. As duas são in
diretas; p �is não :xiste observação que mereça este nome
� q�e se pnve de hipóteses, yerificadas somente de maneira
mdireta. Ma? repetiremos que a observação psicanalítica é
duplamente mdireta: 1 ) como toda tentativa de saber e de
conhecer, 2) p orque seu objeto é, ele próprio, "indireto" .
�ara tor�ar Isto perceptível, nada melhor do que introdu
zir a noçao de tempo e sua especificidade em psicanálise:
o. que chamamos o a posteriori. O a posteriori é um fun
cionamen�o em dois tempos, sendo que nenhum é identifi
. em SI :�_?esmo. A evolução, os recuos, as mutações de
cavel
uma evoluçao perceptiva _ podem ser seguidos passo a pas
s�, mesmo se há fenômenos de ruptura, de mudança de fun
çao, . de ret�mada, etc. Mas, se é verdade que sempre são 54. Paris, PUF, 1985.
precisos dozs traumas para fazer um trauma, dois tempos 55. Ibid. , p . 9.
2
FUNDAMENTOS:
Rumo à teoria da sedução generalizada
\
colocadas por Freud; tentei dar conta do fato de que, num
certo momento, esgotados todos os comentários, pode-se es
colher um certo Freud em detrimento de outro, na medida .
em que podemos dar conta, na realidade, da via errônea para
a qual o próprio Freud é levado por seu objeto.
Chegamos, portanto, a esses "novos fundamentos", a
i
esse fundamental que também podemos chamar de origi
nário. Deve ter ficado claro que não se trata, para nós, de
uma categoria absoluta, de um transcendental filosófico, nem
de um "mítico" fora do tempo. Nem mesmo é um "tempo
mítico", pois, na verdade, o mito gosta bastante de se des
locar num tempo de ficção, enquanto nós nos situamos em
.
relação ao tempo real. Para nós, como para Freud, aliás,
o originário é o que está presente no princípio, concretamen-
te, nas origens do ser humano, portanto do bebê. Mas, por
outro lado, o originário é, nesta situação inicial, o que é ine-
96 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 97
lutá�el, o que está fora das contingências, mesmo as mais Abrirei aqui um parêntese a propó-
.
gerais. Evidentemente, é preciso levar em conta aqui a di MARGARET MEAD sito de uma leitura ligada à elabo-
ferença entre a �a�e�o:ia da universalidade e a da generali COMENTADA POR ração deste volume. Ao trabalhar
dade. Com o ongmano estamos no universal assim como MERLEAU-PONTY essa noção de situação originária e
sócrates é :nortal porque todos os homens são, por essên do· que dela vai sair, isto é, a sedu
. mortais.
Cia, ção, reencontrei Margaret Mead, comentada, levada ao es
sencial por Merleau-Ponty. Trata-se de um livro intitulado
Ma/e and Female (L 'un et l'autre sexe) I e desse já antigo
II A situação originária: adulto-crianç
a Bulletin de psychologie, que reúne os cursos de Merleau
Ponty na Sorbonne, quando ele foi nomeado para a cadei
A situação originária é o confronto do ra de psicologia da criança2 . Verão como é cativante o ca
da criança no sentido etimológico do termo, recém
aque le
-nascido�
que ain ráter lento do processo e o interesse de Merleau-Ponty por
da nã? fala , com o mundo adulto. De forma que, de certa coisas que são consideradas por muitos psicanalistas como
�a?-eira, o que chamamos de complexo de É dipo também não dignas de interesse. Citarei apenas algumas linhas em
mci�e ?-uma certa contingência. Aqui, a antr
relatr;1zação das estruturas edipianas, aqui, opol
a
ogia e sua
pros pectiva
que Merleau-Ponty redobra a profundidade de reflexão de
Margaret Mead: "Para Margaret Mead, a situação edipia
tambem, podem vir em nossa ajuda, pois, no fim das na descrita por Freud é somente uma solução particular de
tas, o que restará em alguns decênios , em alo-uns sécucon los� um problema que parece universal. O que é universal [o ter
�ão de uma triangularização, mas do triângul<;" edípico clás mo universal que evoquei há pouco se encontra aí] é um
s1co? Quem pode apostar na subsistência É dipo sobr
o qual se funda .r::reud? �as quem pode dizedo
r, por isso, que
e certo problema colocado para todas as sociedades pela exis
o ser humano nao contmuará a ser um ser humano? tência dos pais e dos filhos. O fato universal é que há fi
lhos que começam a ser fracos e pequenos, ao mesmo tem
. Voltar ao fundamental seria, então, volta como mais po que se associam estreitamente à vida adulta [citação de
umversal, à relação mãe-filho? Todos sabem r,que
mento de toda a psicanálise foi fazer remontar a 0relaç movi Margaret Mead] : 'há florescimento prematuro de sentimen
edipian� à relação mãe-filhç>. E, sem dúvida, essa relação ão tos sexuais na criança, que é, então, incapaz de procriar ' .
esta mai� ancorada do que Edipo no bioló , mas sobre A criança fica polarizada nas questões sexuais embora seja
tudo mais ancorada no ·pulsional, no sentgico incapaz de exercer as atividades que caracterizam um adul
tendo este termo que desenvolverei em seguido ida.
em que en to. " 3 O texto citado deverá, é evidente, ser situado (afeta
como evolui rapidamente essa relação mãe-filh o!Con Sem
tudo� do por uma nuança pejorativa corrente, não se sabe bem
lar da "perspectiva" , que simplesmente conservamos fa por quê) no "culturalismo", ou seja, no estudo das varia
mo que por uma espécie de visão periférica, nos contorno , co ções dos parâmetros psicanalíticos - de todos os parâme
do nosso ca�po -:- com essas crianças artificiais que sãos tros psicanalíticos - em função das diferenças culturais.
cada vez .mais fabncadas -, pois bem, para interrogar es
_
se prototipo quase obrigatório dos psicanalistas, o "seio ", I. Paris, Denoel-Gonthier, 1966.
l �mbremo-nos como, cada vez menos, as crian ças têm efe 2. Novembro de 1964, XVIII, 236, 3-6.
tivamente contato com ele. 3 . Ibid., p. I 0. Entre colchetes: comentários de J. L.
2
99
98 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA
21 Os protagonistas da situação
originária
De maneira que a sacrossanta universalidade do Édipo torna
se uma solução, entre outras, para o problema colocado pela criança
situação (esta, universal) da relação criança-adulto, da en Voltemos à nossa situação originária, situação
ão mãe -filho.
trada da criança num universo adulto. Do mesmo modo, adulto, além tanto do Édipo quanto da relaç
Primeiro, a criança. A cata pro rse
para continuar um pouco mais no embalo de Margaret posta nas páginas precedentes, par
A CRIANÇA
Mead, as sexualidades pregenitais estão sujeitas a variações COMO ticularmente em relação a esse fal
culturais consideráveis, ou, também - e é este o objeto do PROTAGONISTA so bebê psicanalítico , ao bebê
livro e inclusive de seu título -, o famoso binômio "narcísico" , essa catarse dá lugar
ao que é simultaneamente o bom senso, � obse� em pleno
masculinidade-feminilidade. Nisto, aliás, Freud está total vação coti
ia
mente de acordo com Margaret Mead (se assim posso di diana e, cada vez mais, objeto de uma psicolog
se a chamamos
zer), ao afirmar que o binômio masculinidade-feminilidade progresso há alguns anos , pouco imp �rta .
de o? serva
é apenas um resultante complexo, tardio, aleatório, em que etologia, psicologia experimental ou psicologia
s, mas Simples
o fator sociológico desempenha um importante papel. Vo ção. Nosso objeto não é resumir esses dado o , se se
rvad
cês vêem que um culturalismo pode se desdobrar, se com mente dizer que seu lugar está garantido , rese co de
um pou
pletar, com um essencialismo, ou seja, com o fato de atin situar a psicanálise em seu devido lugar. Dá mão qual
ante
gir, em algum ponto, o essencial. Mas logo veremos que, vergonha ter de dizer que não cabe recusar de s da ob
dado
quer resultado da observação ! Alguns destes
servação cotidiana, antes de serem apura�
apesar desse avanço de Margaret Mead, falta-lhe ainda o os pela obse rva
essencial dessa relação criança-adulto, isto sem questionar os por Fre��
o interesse de suas observações. Quem nos dará uma Mar ção científica , j á foram claramente enunciad
cem essenciaiS
garet Mead do tempo, da prospectiva, e não apenas, como Resumo rapidamente os pontos que me pare
ela, uma antropóloga do espaço, isto é, das civilizações si para a nossa finalidade.
Inicialmente, falar da criança é, de
multâneas, encontradas na superfície da nossa terra? saída, falar de um indivíduo bio
UM INDIVÍDUO
Nosso outro parêntese será para sublinhar a lição que BIOPSÍQUICO . . . psíquico , e seria aberrante a idéia
nos dá, nesses textos, um Merleau-Ponty. Um filósofo à es de um bebê puro organism o, pura
o quê, u;na
cuta da observação! Da observação e da mais concreta ex máquina, sobre o qual viria se enxertar não sei
de um recem
perimentação na criança, e também à escuta da observa alma um psiquismo. Qualquer observação
nascido mostra comportamentos que têm um
ção antropológica - isto poderia servir de lição para mais sent ido e, além
no fim das con
de um de nossos psicanalistas. Freud também nos dá essa disso comportamentos comunicativ os. E,
tas, ;or que seria diferente, já que a psicologia
lição, ele que nunca teme a referência à observação, em par anim al pres
e do corp o que
ticular antropológica. A psicanálise, segura de sua aborda cinde perfeitamente do problema da alma pode r fa
para
gem, deve, com esse procedimento dos grandes pensado embaralham muitas coisas. A única questão, é faze r
síqu icos
res, desfazer-se de sua fria reserva em relação à observação lar de indivíduos biopsíquicos ou somatop há omu
mom ento
não-psicanalítica e, se quiser utilizá-Ia, se quiser criticá-la, se a seguinte pergunta: a partir de que �
nicação? Questão esta que se torna m� s com plex a, P Is
<! <:l go
como não deixam de fazer nem Freud, nem Merleau, seu de com umc açao .
é preciso disti ngui r e hiera rquizar os tipos
primeiro passo será não recusá-Ia sem mais nem menos.
100 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 101
Meu segundo ponto, já o explorei amplamente na pri- Outro testemunho, ainda em Freud, é encontrado no
meira parte: para o pequeno humano o problema de abrir texto recentemente publicado, Vue d'ensemble des névro
se ao mundo é um falso problema; ses de transjert. Já mencionamos que Freud nele refere ex
ABERTO a única problemática será, isto sim, plicitamente a sintomatologia da histeria de angústia - com
AO MUNDO ... a de se fechar, de fechar um si mes- seus estados ditos hipnóides, oniróides, em que a distinção
mo, ou um ego, qualquer que seja, entre o sonho e a realidade não está mais marcada - a uma
aliás, a periferia, a circunferência desse ego. E sabemos que regressão à época em que a distinção pré-consciente/incons
essa periferia tem como que vários diâmetros, uma geome ciente ainda não existia, tempo anterior à linguagem e an
tria variável, de tal modo que temos o costume de inverter terior à censura, pois são efetivamente linguagem e censu
a frase de Winnicott sobre sua famosa "first not-me pos ra que provocam a distinção entre o sistema pré-consciente
session" , esta suposta aquisição pela criança de uma pri- �:
1/
consciente e o sistema inconsciente. Mas, a partir daí, se
meira posse que não seja eu, dizendo que o problema é muito y se admite um tempo anterior à distinção pré-consciente/in
mais o da aquisição de uma " first me possession" , a pri- l o consciente, é preciso se indagar sobre a natureza deste tem
· ·
meira aquisição de um quanto-a-si. po, e duas soluções aparentemente simples se apresentam:
Também aí Freud não deixa de nos dar indicações, par ou este tempo é todo inconsciente ou é todo consciente, ou
ticularmente no Projeto para uma psicologia científica, onde pré-consciente. Dizer que o que está na origem é incons
não se trata da abertura, mas sim do fechamento. Lembre- ciente, dizer que o bebê vive em algo que seria o incons
mos que no Projeto para uma psicologia científica há de ciente, ou que será mais tarde o inconsciente, que será mais
masiada realidade perceptiva. Tudo é realidade e é para dis tarde delimitado, circunscrito pela famosa barreira do "par
.,
tinguir nessa realidade o que não o é que supostamente se que natural" , que mais tarde será encerrado no gueto do
deveria encontrar um "índice de realidade" , um sinal su inconsciente, é evidentemente uma das fórmulas freudia
plementar que se atribuiria ao mundo "real" , em relação nas patentes, mesmo se a recusamos, como eu o faço. Esta
ao que seria o mundo da imaginação, do não-real do ima idéia está ligada, neste texto, à concepção de que é efetiva
ginário. É evidente que a questão é ingênua e kistóteles mente a linguagem que traz a consciência e que, antes da
apontou sua contradição : se é preciso um índice de realida- linguagem, haveria inconsciência. No entanto, isto é abso
de, o que dará o índice desse índice? Se a realidade tem de lutamente contestável, mesmo dentro da perspectiva freu
ser marcada, pelo que reconheceremos essa marca? E isso diana, e com mais razão ainda pode-se pensar que o que
remete ao infinito. De tal modo que Freud não se contenta 1 está no começo seria algo da ordem de uma consciência,
com essa idéia de um índice de realidade e diz que, em últi- ["-J uma presença no mundo ou uma espécie de consciência-pré
ma instância, a única maneira pela qual o mundo subjetivo
pode ser recortado do conjunto da realidade perceptiva é
1
I
consciência. Lembremos que Freud, desde o princípio, re
conheceu a existência de um consciência-perceptiva primá
através de uma inibição. É inibindo um certo tipo de pro ria, não-verbal, diferente da consciência secundária4 •
cessos que têm sua origem no interior do sistema, é unica Para voltarmos ao bebê, essa interpretação , que recu
mente diminuindo a intensidade deles - dispositivo pura sa a idéia de uma inconsciência primária, coincide perfei-
mente quantitativo e não qualitativo -, que se marca essa
distinção.
102 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 103
tamente com a mais simples e imparcial observação. Ela ,,c!Jl i!J é preciso chamar de atenção, hábito, memorização, etc. To
coincide com o argumento tão importante de Lagache, quan- cl·tv ,Llr do esse conhecimento que se afirma vai tanto de encontro ao
do ele lembra que, desde o nascimento, observamos uma {\� ?�Q.
alternância de presença e de não-presença, e, como haveria I1 fJJ�, i! ' ,' bebê "fechado" (eu ia dizer "ameba" . . . mas a própria ame
ba não é fechada), quanto contra o bebê "tábula rasa" sem
- • I
nao-presença, ou SeJa, sono, se efetivamente não houvesse l vetores de orientação. Pois esse bebê, se tem homeostases , é
presença? De forma que, se existe um protótipo, no senti porque tem "valores", e é muito sugestivo descrever em ter
do freudiano do Vorbild, de uma "primeira posse-eu" (para mos de valores vitais, como faz Lagache, ao que se visa como
retomar nossa inversão da expressão winnicottiana), este se capaz de restabelecer equilibrios.
ria o sono e, talvez, o sonho. Um bebê, que não é nem fechado,
O que mais é um bebê? São mon l'viAS nem tábula rasa, mas profundamen-
PROVIDO DE tagens, cada vez melhor descritas DESADAPTADO te desadaptado. Continua-se, com
MONTAGENS pela fisiologia e pela etologia, mon razão, a empregar o termo "pre
REGULADORAS . . . tagens cuja noção básica, até pro- maturação", que poderíamos definir assim: confronto com
va em contrário, continua sendo a tarefas de nível demasiado alto relativamente ao grau de ma
homeostase, ou seja, a manutenção ou o retorno a equilí turação psicofisiológica. Mas, no caso do pequeno ser huma
brios. Uma homeostase onde se podem distinguir dois ní no, é preciso distinguir dois tipos de prematuração, justamente
veis: um nível mais diretamente fisiológico e o nível psico na medida em que se quer distinguir o nível de autoconserva-
fisiológico , ou instintivo . O primeiro nível, a manutenção, ção do sexual. A prematuração no domínio adaptativo está 1 1\'1'-"�-ru
no bebê e no ser humano, das constantes biológicas entre ligada ao problema da sobrevivência; a prematuração no do- I fi..ÁÇfÀo
as quais conhecemos, como os exemplos mais simples, a mínio do sexual é o confronto com uma sexualidade para a \
constância das taxas de substâncias no sangue, gás carbô qual, para retomar essa expressão encontrada sob a pena_de (
nico, glucose, constâncias estas reguladas por mecanismos Margaret Mead, a criança não tem a reação adequada. E o 1
de feedback bem conhecidos. Temos simplesmente que lem que Freud chama de estado "pré-sexual". Falaremos bastan- J
brar que essas constâncias fisiológicas são imperfeitas no te dele em seguida. Mas gostaria de voltar à prematuração no
bebê, só se estabilizam completamente de forma progressi domínio da sobrevivência. O ser humano não é o único a ter
va; sabe-se que um bebê pode morrer por uma onda de ca necessidade da ajuda adulta para subsistir; não se deve ver nisto
lor e sabe-se que pode se desidratar sem que o percebamos, o alfa e ômega de toda a explicação da hominização; há ou-
se não ficarmos muito atentos. Depois, no segundo nível, tros mamíferos e muitos outros seres vivos que necessitam dessa
identificamos montagens que nos interessam mais, embora ajuda e da educação durante um tempo mais ou menos lon-
se apóiem nas precedentes, as montagens psicofisiológicas go, até o filhote de passarinho que é alimentado no seu ni-
ou instintivas, pois efetivamente existem comportamentos nho, pois todos os pequenos pássaros não são parecidos com
adaptados no bebê, mesmo se nem tudo é apenas adapta os pintinhos que, em contrapartida, ciscam praticamente a par-
ção, montagens pré-consumatórias ou consumatórias desem tir do momento em que saem do ovo. Essa necessidade de aju-
bocando no aleitamento, por exemplo, e cujo estudo se de da, essa ausência de ajuda, é o que
talha sempre mais. Neste nível adaptativo, não podemos dei A "HILFLOSIGKEIT" Freud identifica desde o começo sob
xar de constatar a existência de esquemas perceptivo-motores o termo Hiljlosigkeit. É difícil de
que nos permitem acompanhar o desenvolvimento do que traduzir, mas bastante fácil de compreender. Em alemão, puxa,
104 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 105
de certa forma, para o lado do afetivo , para o lado do de com o filho) passa da sexualidade ao afeto: ' 'O amor da mãe
samparo (é assim que o traduzimos habitualmente) e, por pelo bebê que ela nutre e de quem cuida é algo profundamen
que não, do abandono. Em Freud, devemos sublinhar que te diferente de seu afeto posterior pelo filho que começou a
é bem menos afetivo do que o é na língua alemã em geral; crescer." 5 Há um verdadeiro desencontro entre a via que per
conota um estado bem objetivo e é uma pena que não se corre a criança e a que percorre a mãe.
tenha encontrado um equivalente em francês : estado sem Dizíamos há pouco que a Hi!jlosigkeit deve ser desintri
ajuda, estado de desajuda* , de insocorro? Em suma, é o cada de seu aspecto: pânico, desamparo, abandono. A inca
estado de um ser que, se entregue a si mesmo, é incapaz pacidade de se ajudar não atua apenas na procura de valores
de ajudar-se por conta própria: precisa, portanto, de aju positivos para a subsistência, alimento, bebida, etc., mas tam
da externa, o que Freud chama defremde Hi!je. Encontra bém quando se trataria de evitar perigos, isto é, no que se chama
mos essa necessidade de passar pela ajuda de um estranho reações de medo. Freud o notou claramente, e é interessante
ver que isto se verifica em experiências mais recentes. Olhem
desde os primeiros desenvolviment os do Projeto para uma uma criança, propõe a Introdução àpsicanálise: ela corre nu
psicologia científica. Como o primeiro aparelho psíquic o, ma mureta na borda de um precipício, brinca com facas,
como essa pequena máquina humana, chama a ajuda do aproxima-se do fogo, não tem nenhuma noção de perigo, ne
"estranho" ? Unicamente porque a excitação que vem de nhuma montagem de reação, nenhum medo; a criança não
dentro transborda, por assim dizer. Por si mesmo , ele é in tem medo porque não tem montagem adaptativa, embora,
capaz de ativar os mecanismos que convergem para o res também aqui, seja de certa forma hiiflos, e isto, poderíamos
tabelecimento dos equilíbrios . Se há falta de glicose no san dizer feliz da vida; simplesmente precisa de ajuda externa e
gue, o único . remédio é ir buscar um pedaço de pão, mas nem �esmo se dá conta disto. Ora, o que é uma constatação
o bebezinho não pode ir buscar leite; e a única maneira com cotidiana pode ser cientificamente confirmado por experiên
que pede ajuda justamente não é um pedido, uma mensa cias sobre a reação ao perigo. Podem-se comparar, assim, os
gem, mas um simples índice objetiv o: o transbordamento comportamentos face ao vazio da criança pequena e de deter
da chaleira. São gritos, movimentos, uma agitação desor minado passarinho, de uma espécie que constrói geralmente
denada que rapidamente a mãe aprende a reconhecer co seus ninhos nos buracos das falésias. Basta colocar um vidro
mo pedido de ajuda. Por mais criticável que seja essa re cu perfeitamente transparente sobre um buraco e nele pôr o su
sa absoluta de qualquer comunicação pré-adaptada entre jeito: o bebê avança como se não hou�ess� problema algul? ,
mãe e filho, alguns apontamentos freudianos são muito su enquanto o pássaro se recusa a andar mclinado sobre o abis-
mo. Fácil experiência de observação e que demonstra num PC?n- 1 \\\o)
gestivos, em particular este: ao nível da autoconservação to preciso essa incapacidade do pequeno ser humano de se a]u- \" \
��
ou adaptação (empregamos os dois termos de forma equi- dar diante do perigo, ou até mesmo, de percebê-lo.
. 1 valente), a comunicação se dá no sentido criança-pais, en Essa constatação importante ins-
quanto n.o domínio sexual se dá no sentido inverso; de for o GRANDE DEBATE creve-se na "grande controvérsia"
\ ma que a criança evolui da adaptação para a sexualidade que Freud designa como tal, o
\. e que Freud não hesita em dizer que a mãe (na sua relação soBRE A
ANGústiA DE REAL grande debate que ronda toda sua
teoria sobre a prioridade entre o
* No original "désaide", neologismo introduzido na nova tradução das obras 5. S. Freud, Un souvenir d'enfance de Léonard de Vinci, Paris, Gallimard,
completas de Freud, cf. Traduire Freud, Paris, PUF, 1989, p. 94. (N. T.) 1977, p. 109.
1 06 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 107
que ele chama de Realangst, angústia de real, e Triebangst, do de objeto em angústia de real diante do estranho, mas
angústia de pulsão. Ou seja: o que vem primeiro no homem? também tende, em geral, a se angustiar diante de tudo o
Uma "angústia de real", ou seja, um medo (a angústia de que for novo 6. Mantivemos uma longa controvérsia quan-
real é, em última instância, um medo; sabe-se que em ale to a sabermos se é a angústia de real ou a angústia de dese
mão A ngst engloba os dois) adaptado a um perigo real? Ou, jança que é mais originária, se a criança transforma sua li
então, é uma Angst em reação ao ataque pulsional interno, bido em angústia de real porque [a] considera grande de
ou seja, uma "angústia de pulsão" , uma angústia que nem mais, perigosa, e chega, assim, de maneira geral, a uma re
é mais uma reação a, que não é secundária a um perigo , presentação do perigo, ou, então, se cede, em contraposi
pois, na "angústia d e pulsão" , não h á mais distância entre
}
ção, a uma ansiedade geral e se aprende com esta a ter me
perigo e medo: a percepção do perigo, quando se trata da do também de sua libido insatisfeita. Nossa tendência nos
pulsão, o ataque do perigo é ele próprio a angústia. Ora, levava a admitir a primeira [proposição] , a colocar em pri
Freud nunca deixou de hesitar entre as duas concepções, meiro plano a angústia de desejança . . . " 7 A balança psica- r:
como lembra em particular na Vue d'ensemble des névro- nalítica ainda se inclina, portanto, indubitavelmente, a fa- V
ses de transjert. Nessa antiga "controvérsia" , dá inclusive
1Jv vor da angústia como processo interno: o ego presa da pul- o
prioridade, no começo, como sendo a cota de amor do ponto
de vista psicanalítico , à "angústia de pulsão" que aqui de- �' ��()c são. E é aqui que Freud, tal como o gaulês da história que
joga sua espada na balança, faz tudo se inclinar arbitraria
signa com outro termo de sentido bastante próximo, a Sehn- cJl'" ·,'(' · ' rr · .
mente, fazendo intervir um outro real, uma outra "angús
suchtangst que podemos traduzir por "angústia de desejan- ilsJ:F"��
tia de real" , a da "filogênese" . "A reflexão sobre a filogê
ça"* . Assim, tenderíamos , estaríamos inclinados (nós, psi- ,;:;' ·
nese parece agora resolver essa controvérsia a favor da an
canalistas) a situar primeiro no ser humano a angústia de
desejança em relação à angústia de real; o que vai, portan- gústia de'!"eal e nos faz admitir que uma parte das crianças
to, no mesmo sentido do que lembrávamos há instantes, des-
ta espécie de doença, na criancinha, do ponto de vista do
perigo: ausência de conhecimento inato, ausência de intui- 6 . Essa teoria da propriedade da angústia de pulsão é bastante completa
ção instintiva dos perigos. e está desenvolvida em Introdução à psicanálise, a propósito da angústia do bebê
no escuro e diante de estranhos. Confiamos falsamente nas aparências imedia
tas, acreditando na angústia manifestada diante de pessoas estranhas; na verda
Citemos algumas passagens desse texto: de, é 0 transbordamento da angústia por perda da mãe que acaba se fixando na
pessoa estranha. O que completamos acrescentando um ponto de vista kleiniano:
. . . do estranho . . . que retoma os aspectos maus da mãe. Nas nossas próprias pa
' 'A propósito da angústia infantil, vemos agora que a lavras, dizemos: o ego da criança é tomado pelo ataque interno de seu objeto
criança, em caso de insatisfação [continua sendo o meca fonte que não consegue mais se simbolizar. A angústia de reai, do estranho que
nismo de transbordamento da libido] , transforma sua libi- entra no quarto em lugar da mãe esperada, é apenas uma fixação dessa angústia
de pulsão. Cf. sobre tudo isto, Problématiques I/L 'angoisse, Paris, PUF, 1980,
pp. 63-73, e ''Une métapsychologie à l' épreuve de l'angoisse'', em Psychana/yse
à l'Université, 1979, 4, 16, pp. 707-722.
* No original: " angoisse de désirance" . Neologismo introduzido por La 7. Frar1kfurt am Main, S. Fischer Verlag, 1985, p. 38 (13); trad. francesa,
planche e equipe na nova tradução das obras de Freud, e discutido em Traduire Paris, Gallimard, 1986. Aqui, nossa tradução. Entre colchetes: comentários de
Freud, Paris, PUF, 1989, pp. 96 ss. (N. T.) J . L.
108 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 109
traz de forma congênita consigo a ansiedade do começo dos
tempos glaciais, e é então levada por ela a tratar a libido ao largo da principal coordenada, que é a do inconsci:nte
insatisfeita como um perigo externo . " 8 Mais uma vez, do adulto. Também Freud negligencia, com raras exceçoes ,
Freud vai recorrer a um fundamento exógeno, extrínseco esse problema do inconsciente do adulto ou, de maneir!l mais
à psicanálise: aqui, o homem da época glacial (que sucede geral, do outro; exceções que, como sempre, nos aJud�m
ao homem do paraíso terrestre . . . ). Fundamento arbitrário e, entre as quais, podemos ressaltar duas: :·o tab1_1 da vir-
que já denunciamos, mas que, no entanto , não é um puro gindade" , em que a percepção do deseJO . mconsc ente do ,1
!
outro do desejo de castração pela mulher e pela mae, e, que
está n� base desse tabu; outro texto é o de Leonardo, onde J
retorno ao instinto: o atavismo assim adquirido não seria
de forma alguma a aprendizagem deste ou daquele perigo
preciso, permitindo reações adequadas (como a do peque se faz precisamente alusão ao fato de que � mãe intervém
junto de seu filho com todos os seus deseJOS recalcados.
11
·
necessidades quanto para a prevenção dos perigos, e até para fer. Tomemos, portanto, a descoberta psicanalítica no seu grau
a aprendizagem do medo, que nela é deficitário. O medo n;;is demonstrável, ou, melhor, mais mostrável.
se aprende e não essencialmente pela experiência; ele é en Qual é o nível mais "mostrável" da psicanálise, � err:
sinado : não é tocando o fogo que nos afastamos dele, mas teoria? É o sonho, "via régia"? Relendo a Introduçao a
sim porque nos disseram antes para não tocar nele. psicanálise, surpreende-nos o fato de q� e as "Lições" não
começam pelo sonho, mas pelas Fehllezstungen, que se de
Passemos agora ao outro protago ve traduzir por operações falhas , operaçõ�s engloband� os
O ADULTO nista, o adulto. Sabemos que, para atos falhos mas com outros atos, em particular os eqmvo
COMO caracterizar esse "mundo adulto", cos da ling� agem, lapso da língua ou da es�rita. Freud c�
PROTAGONISTA Ferenczi fala de ' 'linguagem da pai meça, portanto, com a operação falha mais demonstrati
xão", passando assim, parece-nos, va mais essencial, que é o lapso, para lembrar-nos que, por
u� lado , a Leistung, ou seja, a própria operação , antes de
ser falha, quer comunicar algo; mas, também e sobretudo,
8 . Ibid. a falha, o erro, tem um sentido e veicula sempre algo do
.
recalcado, embora esse recalcado possa se situar em dife-
1 10 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 111
re�tes profundidades, entre as quais Freud distingue da é preciso acrescentar a nuança de que, permanecendo
três ní
veis, d� acordo com ? modo como o sujeito reage à a criança presente no adulto, o adulto diante da criança se
_ nalista: um inter
pr�t�çao d? psica nível onde imediatamente o rá particularmente desviante, levado à operação falha, até
suJeito aceita o sentido que lhe é proposto, mesmo o sintoma, nessa relação com esse outro ele mesmo, esse
consi
derando-o fora de propósito; o caso em que deve ser outro que ele mesmo foi. A criança diante dele faz apelo
feito
um trabalho para f er esse sentid ao infantil nele. A relação originária se estabelece, devido
� o ser admitido; e, por fim,
o caso onde o sentido encontrado pelo psicanalista é abso a isto, num duplo registro: uma relação vital, aberta, recí
lutamente recusado pelo sujeito. Níveis que correspondem proca, que podemos perfeitamente dizer interativa, e uma
_ des do recal
a profundida camento; mas o essencial é que é relação onde está implicado o sexual, onde a interação não
descoberto ui? sentido que não estava presente para aquel ocorre mais, pois a balança é desigual. No ser humano, nem
e
que o comumca no momento em que o comunica. É, por sempre há ação e reação iguais entre si, como quer a física;
tant� , como um ser capaz de lapsos e de operações falha nele, há um sedutor e um seduzido, um desviador e um des
s
que e apresentado o ser humano . E seria interessante viado, conduzido para longe das vias naturais: "a Travia
per
gun�armo-no � se o animal é capaz de operações falhas ta" , "a desviada" , "a desencaminhada" , "a seduzida" .
(no
�ent1do freudiano , é claro). Sabemos, imaginamos, que se
i
Ja capaz de sonhar, percebemos reações que podem apre 3/ Da teoria da sedução restrita
sentar-se como reações a um sonho e também seria interes à teoria da sedução generalizada
sante observar a partir de que momento uma criança pode
apresentar uma operação falha. A operação falha testem Chegamos ao cerne desses "novos fundamentos para
u
nha, portanto, que existe "inconsciência" 9, existem men a psicanálise' ' , a sedução como principal fato gerador em
sa�ens que o sujeito recusa ou não pode reconhecer psicanálise, gerador em diferentes níveis: no primeiro ní
como
tmsiO . vel, o da infância, mas também gerador na prática psica
O originário � , porta�to, uma criança, cujos compor nalítica. Teremos que defini-la melhor, mas um pouco de
tamentos adaptativos, eXIstentes mas imperfeitos débei história do pensamento freudiano é necessário, uma histó
s
estã� prestes a se deixarem desviar, e um adulto d�sviante
desv!ante em relação a qualquer norma concernente à
: ria esquemática e em grandes traços, j á que nosso objetivo
é o fundamento atual da psicanálise.
se
xualidade (Freud o demonstra amplamente nos Três ensai A sedução sempre é, no pensamento freudiano e no
os
p�ra uma teoria da sexualidade), e eu diria pensamento contemporâneo, o vínculo entre umajactuali
inclusive des
VIante em relação a si mesmo, na sua própria clivagem. dade, fatos, uma realidade efetiva, e, por outro lado, uma
Ain-
certa teorização ligada a esses fatos, estando, aliás, ambos
intimamente intricados, tanto nos seus progressos quanto
9. ?�· como diria Roy Schafer, na sua cruzada terminológica contra todo nas suas diluições. Propomos um quadro para explicá-lo.
substan cmhsm o, � ' de l'inconsciemment". [Termo
"algo que ocorre inconscientemente". (N. T.)]
intraduzível que equivaleria a: A coluna do meio, de certa forma, é todo o Freud, e
I O . Se in_sistimos em descrever a situação inicial sem prejulgar sobre a teo evidentemente é um pouco ousado
r�. a do mcon
_ �c�ente e_ porque esperamos reencontrar a SITUAR FREUD situar todo o pensamento de Freud
teoria do inconsciente no
fim da descnçao, mas desta vez num sentido bem
mais tópico e realista. Cf. mais sob o capítulo do recalcamento.
adiante: "Pós-escrito: a natureza do inconsciente"
(p. 158).
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até mesmo indispensável, fixá-lo de vez em quando num mo
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't::i no fim das contas, foi ele mesmo que reivindicou seu aban
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� � _[2: l=!
"'' dono da teoria da sedução.
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por completo, pois a parte central, aquela que intitulamos
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"' recalcamento da teoria, é matéria da nossa primeira par
t
-o te "catártica" . Voltar-nos-emos de início, sem querer fa
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E residem numa trama cerrada entre a .factualidade da sedu
ção e as complexidades da teoria: nessa trama, se alguns
114 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLI
SE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 1 15
elos se soltarem, tudo pode se des- ralmente, ser avaliada em função de uma espécie de escala
de desenvolvimento que comporta etapas separa�as por h_
A SEDUÇÃO
INFANTIL: �ENAS
fazer. A "factualidade" propria-
me
l/1
nte i?entificada nessa época é o miares: niveis de reação somática, níveis de reaçao afetiva .
DE EXPERIENCIA
que designo como "sedução infa t\)
SEXUAL PREMATURA
til' ' , concretizando-se em ''cenasn-' ' C/
_ Pl e níveis de compreensão psíquica ou intelectu�l, Olf fanta
que pod ser, graças ao método /i sística. Tudo isto constitui uma só e mesma cOisa. E na s:_ra
analítico, reencontradas, reconstrem totalidade psicossomato-afetiva que a criança pode ou nao
co�o se sabe, Freud não se privauíd as, rememoradas. Mas, r
nem nesse período, nem integrar adí:!quadamente o que acor:tec� con;t e�a. o. qu� a�ua
mms tarde, de confrontar esta rememoraçã como modelo desses limiares, o pnncipal hrmar, e o limiar
com informações colhidas entre os próximoso intra-analítica da puberdade, portanto, uma eta?a t�r�ia em relação a?
realizar uma verdadeira investigação objetiv e' às vezes ' de que mais tarde será descrito em psica�ahse, mas que prefi
critos freudianos desta época estão cheios de a. Todos os es- v gura justamente outros limiares e, evidentemente, a pos�e
chamados acontecimentos "de experiência exemplos desses rior noção de fase. Portanto, o "pré-sexual" em que�tao
ra"ll , na quai uma cnança mms ou me sexual prematu-
·
·
'
e um "pré" ' um "antes" tanto absoluto quanto relativo:
frontada passivamente com uma irrupçã nos pequena e con- ·
adulta. A criança em questão, nessa sedução da sexualidade o que vem "antes" de um c�rto tipo de compreensao pos-
. _ correspondendo
sível· e há vários "pré-sexuars" possiveis,
como "infantil" , está sempre num estado o que definimos às diferentes etapas da evolução infantil.
turidade, de incapacidade, de insuficiênccha ia
mado de ima
que lhe acontece. Freud faz , em certos text relação ao em O segundo elemento essencial des-
os, essas lem SEMPRE o ADULTO sas cenas é que o parceiro da sedu�
branças remontarem até o segundo ano i2. Tod
tão não é çle pura cronologia, e sim, antes avia a ques E PERVERSO ção é obrigatoriamente o adulto. E
fasagem. E esta defasagem que de tudo, de de capital ver como Freud trata o ca
demos lançar a comparação com a neuros trauma . Poé o terreno do so em que, aparente exceção a essa regra, a cena �exual re
adulto, onde o essencial do trauma decorr e traumática do memorada se dá entre duas crianças, ou entre dOis �doles
tuito do incidente, portanto, do fato de e do caráter for centes. Regularmente, por trás dessas cenas entre cnanças,
está preparado para aquilo. Pois bem, o desque o sujeito não Freud pretende remontar a cenas mais �rcaicas �nd� �f!la
ça � fundamentalmente sinônimo de sua Hilj preparo da crian das duas crianças (e, às vezes, ambas) fOI submetida a ,m
entao, como se expressa aqui Freud, de um losigkeit, ou, fecção" (é este mesmo o termo que ele en;tprega) pelo
fantil das funções psíquicas, assim como do certo estado in adultoi4: "Onde a relação ocorre entre duas cnanças, as ce
Aquilo que advém, o incidente, o aconte sistema sexual . nas sexuais conservam esse mesmo caráter repugnc:nte, ��a
do mesmo modo que na neurose traumácimento, aparece, vez que toda relação infantil postula uma seduçao previa
arbitrário . A imaturidade, ou, então partica adulta como de uma das crianças por um adulto. " 15
impotência sexual inerente às crianç�s" I 3a citar Fre�d "a O adulto, contudo, não é qualquer um: é um adulto
precisará, n�tu-
perverso, tomando isto em sentido próprio, no duplo seu-
11 . ''L'étiologie de I'hystérie' ' . em Névrose� psychose etperv
PUF, I 973, p. 95. ersion, Paris,
I2. Ibid. , p. 104 14 . 100.
Jbid., p. Às vezes é o termo Uebertragung, transmissão e transfe
13. Ibid. . rência, que é utilizado.
15. Ibid., p.
106. Palavras sublinhadas por J . L.
)
1 16 NO VOS FUNDAMENTOS PAR A A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 1 17
tido es�abe�ecido elos Três ensaios sob
� re a teoria da sexuali acontecimentos, vários cenas, que se sucedem no tempo, mas
�ade, Isto e, desvmnte quanto ao
. objeto e desviante quanto que, sobretudo, simbolizam umas as outras. N�ssa int�r
a ��ta. Desvi�nt quanto ao objeto, .
pois justamente ele é pe
�� .
o lo, mcl �
usive mcestuoso, e desviante quanto
à meta, pois
simbolização das cenas, ressalta-se, por certo, a pnmeira
vista, um aspecto globalmente analógico. Os roteiros po
nao se po�e esperar das pessoas que não
têm nenhum escrú dem se parecer, evocar um ao outro, mas é capital ver que,
pulo em satisfazer suas ecessidades
sexuais com crianças, que para além dessa analogia global, o que se desenha entre as
se preocupem com mat�izes na maneira
de obter essa satisfa- cenas é um metabolismo mais complexo, elemento por ele
ção" 1 6 Toda a passagem de onde foi
·
extraída essa citação mento, exatamente do tipo daquele que Freud evidenciará,
descr�ve, de uma maneira que um Nab
okov não desmentiria por exemplo , entre o sonho e seus pensamentos latentes,
o.c m;�ter "grotesc ", "rep gnante"
� l! , "incóngruente" e "trá� eventualmente entre o sonho e uma cena que foi vivida na
grco dessas relaçoes sexuars num "ca
sal desigualmente com véspera. O esquema que é materialmente desenhado no Pro
posto" . Freud, até a ren g ç�o em
_ � � bloco de sua teoria (se jeto para uma psicologia científica a propósito do caso Em
tembro de 1897), nao de�rstrra do cará
ter perverso daquele a ma é do mesmo tipo que os esquemas propostos para o so
quem ?har_na, de forma sistemática,
o "pai da histérica" . As nho. É evidente que, como no caso do sonho, analogias glo
�
c�nas mc:_rm nadas são abertamente
. descritas como patoló bais são possíveis, mas o essencial são relações ponto por
gicas, e na� e gratwt ame�te que esse caráter patológico
cen�s estara presente nos Impasses das ponto, extremamente complexas, feitas de contigüid�de, de
em que vai se engajar a re similítude e de diferença, entrecruzando-se entre sr.
flexao freudiana. Em outras palavra
s, embora tenhamos in Por trás de uma cena perfila-se, portanto, uma outra,
vo�ad � s Três ensaios, não esqueçam
o os que eles ainda não que deixa pressentir uma terceira, estimulando a ' 'pulsão
est�o a_ VIsta este momento. Somente
� os Três ensaios recolo do pesquisador" que anima Freud . Ei-lo remetido de cena
carao no �ev1do lugar a noção de per
ver
que o conjunto da sexualidade, se não são , demonstrando em cena até uma improvável cena primeira, realmente ori
1
se desenvolve sob 0 tí ginária; e é essa improbabilidade ou essa ausência da Cen�
t�lo da perversão clínic , o faz pelo
. � menos sob o signo da au que forneceria, por fim, a chave de todo o resto, que vai
sen;;ra de met e d obJeto preesta
. que so� � belecidos, ou seja , numa servir de argumento no momento da crise de 1897. Conten-
e�rancra no f enc ont rará a
� chamada sexualidade ge
mtal Preca�r.��ade e mtercambialidad temo-nos por enquanto em notar a aparente aporia da re
_. e das metas, estranhe missão infinita de uma cena a outra, numa relação de sim
za e maces Ibilid de do objeto "perdid
� � o", são 0 próprio te bolização sem fim: àv&:ywq 1nijvm.
ma dos Tr�s ensazos, mas, infelizm
ent e (a história do pensa
me�t? e, feita desta maneira), o "pa A última característica dessa fac
i da histérica" não se be tualidade da sedução infantil será
neficiOu dessa perspectiva que o teri PASSIVIDADE
a recolocado na generali a .mais essencial, pois define a pró
dade de desenvolvimento humano ESSENCIAL
. pria sedução: é a relação de passi
"Um ou vários acontecimentos"
DA CRIANÇA
vida(!e, a passividade da criança em
ENCADEAMENTO
declara Freud; mas praticamente to�
relação ao adulto . É o adulto que toma a iniciativa nas ce
DAS CENAS
dos os seus exemplos clínicos põem
nas que Freud descreve, insinua-se através de palavras ou
em relação, em perspectiva, vários
gestos: a sedução é descrita como agressão, irrupção, ins
16. Ibid. trução, violência. Mas essa afirmação de conjunto da ati
vidade adulta e da passividade infantil deve ser nuançada
118 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 1 19
de várias maneiras, precisamente em funcão do
encadea oposto à.teoria da sedução não foi de que se trata de fanta
mento temporal das cenas. Primeira nuanÇa (vão
todas no sias forjadas pela criança para mascarar seus próprios de
mesmo sentido) capital, é que Freud opõe à histe
ria onde sejos edipianos, portanto, suas próprias plllsões ativas? Mas,
a passividade da criança estaria imediatamente
evide�te nas no pensamento de Freud, pelo menos nesta época, tudo se
lembranças, a etiologia da neurose compulsiva
(ou neurose esclarece de outra forma: as repetições ativas das cenas es
obsessiva), onde "não se trata mais de uma pass
ividade se tão efetivamente bem delimitadas, mas são sempre secun
x_ual, nas �e ag:essão praticada com prazer, de
uma parti dárias em relação a uma experiência na qual domina o ca
Cipaç:ao, VIvenciada com prazer, em atos sexuais:
portan ráter fortuito, inesperado, portanto, de novo o aspecto trau
to, de uma atividade sexual" 17 . Se parássemos
aí, a teoria mático e a passividade. Para retomar nossa comparação com
da sedução só seria válida para a histeria, em contr
adição a neurose traumática adulta, do mesmo modo que o sujei
com a neurose compulsiva, que se fundaria em cena
s de ati to atingido por uma neurose de acidente repete, em segui
vidade por parte da criança. Na verdade, a opos
ição se re da nos seus sonhos o trauma, também a criança, na con
s?l �e logo, n�� pass de ur .a falsa simetria para
� 1_1 Freud: pas
?m�ade e atividade mfantis não se distribuiriam em partes
�
ce ção da sedução, é levada a repetir ativamente as cenas,
inclusive a voltar aos lugares concretos do primeiro ultra
Iguais entre as duas grandes neuroses, pois a
atividade en je, como se vê no caso Emma, do Projeto para uma psic�
contrada na infância do obsessivo delineia-se semp
re sobre logia cientíjicai 9 . Quanto mais avançamos no tempo, mms
o fundo de uma existência mais antiga e passiva.
Quando o sujeito é ativo e mais volta aos mesmos lugares, físicos
se r�cua da cena ativa exposta (é o caso de dizer
) pelo ob ou psíquicos, para reviver, reelaborar o trauma.
sessiVo, encontra-se a cena de passividade que a fund
a: "En
contrei em todos os meus casos de neurose com Como se nota, essa descrição das cenas de sedução in
pulsiva um
substrato de sintomas h istéricos, sendo
que estes se redu fantil abre para o que é chamado teoria da sedução e que
zem a uma cena de passividade sexual que tinha caracterizo como teoria restrita. Esta vai se desenvolver em
precedido
a ação geradora de prazer . " 18 três registros: temporal, tópico e "tradutivo " , a que aqui
Avancemos mais nesse encadeamento das cena só me refiro brevemente. São registros complementares.
s, pois
a forma como a atividade precede a passividade, O aspecto temporal da teoria da se
na medi
da em que avançamos no temp o, não é apan dução ficou estabelecido - pelo
ágio apenas A TEORIA:
do obsessivo. Em mais de uma lembrança em que menos assim esperamos - como
o sujeito ASPECTO TEMPORAL,
pretende ter sido seduzido passivamente, pode o A POSTERIOR! uma aquisição da psicanálise: é
-se mostrar
que houve, da sua parte, uma provocação. chamada teoria do a posteriori, do
Quem seduz
quem? Não é tão evidente, e a questão corr trauma em dois tempos. Essa teoria postula que nada se ins
e o risco de se
perder nos meandros das interações recíproca creve no inconsciente humano, a não ser na relação de ao
s, até mesmo
um espelho. Em última instância, o principa menos dois acontecimentos, separados, no tempo, por um
l argumento
momento de mutação que permite ao sujeito reagir de ou-
17. " 'Nouvelles remarques sur Ies psychonévroses de défense". em
I9. Em La naissance de la psychana/yse, Paris, PUF, 1973, pp. 3 63-3 66,
Névro
se, psychose et perversion, Paris, PUF, 1973 , pp. 66-67.
18. Jbid., p. 67. e cf., particularmente, J. Laplanche, Vie et mor! en psychanalyse, Paris, Flam
marion, caL "Champs", 1977, pp. 64 ss.
120 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 121
t�a rorma do que na primeira experiência, ou, melhor, rea o que Freud só faz, então, de maneira sumária, mas clara
gir a lem_br� nça dayrimeira experiên cia de outra forma do - o aparecimento do ego; pois essa maneira de estar vol
que reagm a propna _ experiência. O primeiro tempo é cha tado para o lado da barreira interna só se concebe a partir
I ª18'Jvu mado por Freud tempo do terror (Schreck) ou da
neurose do momento em que o suj eito totalidade, o indivíduo tota
lidade se encontra vicariado por seu ego nascente: não existe
Schedt.,
"'=
_ d e terror , e confronta o sujeito, não preparad o, com essa
outro pára-excitação interno do que o do ego.
a�ao sexual altamente significativa, mas cuja significação
É fácil perceber como é genial essa teoria que não se
i
nao po�e ser �ssimilada. Deixada em suspenso, a lembran-
ça nao e em SI mesma patógena, nem traumatizante. Só se preocupa com todas as dosagens que, posteriormente, se ten
r torna traumática pela sua revivescência, por ocasião de uma tará descrever entre fatores exógenos e fatores endógenos .
f; se�un ?a cena que entra em ressonância associativa com a Aqui, tudo é exógeno e, ao mesmo tempo, tudo é endóge
no, pois toda a eficácia decorre do tempo de reativação en
� pr��e1ra. Mas, devido às novas possibilidades de reacão do
SUJei�o , é a própria lembrança, e não a nova cena, que vai
funciOnar co�o fonte de energia traumatizante, como fonte
dógena de uma lembrança que, por outro lado, provém evi
dentemente do acontecimento externo real. Mas esse aspecto
. � autotraumatizante. De forma que essa teoria em dois tem tópico, única solução metapsicológica radical para as ques-
pos mostra que todo trauma só tem uma ação patógena por tões metafísicas sem fim sobre o exterior e o interior, só po- �.J�
.�
' que se torna autotraumática. derá ser realmente fundamentado por um desenvolvimen- t
?ss_e ten:po autotraumático encontra sua saída não nu to da teoria do ego e de suas periferias, que aqui só está
ma hqmdaçao ou elaboração normal, mas numa "defesa presente em pontilhado.
patológica" (chamada "recalca- Por fim, ao lado destes pontos de vista temporal e tó
ASPECTO TÓPICO menta", o que, na época, para pico, a teoria da sedução se desenvolve num plano que dis
tinguimos cuidadosamente do !in
_ Freud é a mesma coisa), e isto por
ASPECTO LINGUAGEIRO, güístico: O plano linguageiro e tra
razoes qu � s_e d�vem _ ao segundo aspecto, tópico, do pro
c �s� o . A top1ca e aqm o terreno para uma verdadeira estra TRADUTIVO dutivo. Por certo, este é apenas
tegia, no sentido _ guerreiro do termo, com movimentos de um dos momentos do pensamento
freudiano, é inclusive um dos momentos não publicados por
�taque e contra-ataque. O indivíduo está à mercê de dois
tipos de__�es �mparo, abandono ou vulnerabilidade, face a ele, já que se trata, no essencial, da carta a Fliess de 6 de
( essa sequencia de acontecimentos. Quando do primeiro ata- dezembro de 1 896, que situa a sucessão das cenas e campa- L*' J
que, do ataque externo proveniente do adulto, da primeira ra suas relações a uma reinscrição e a uma tradução, situa
l r\TAG!Ut
cena sexual, não tem os meios de defesa adequados não
tem as a�n:a� , não tem o garante e pode, no máximo blo :
o recalcamento na barreira que separa duas épocas psíqui-
cas e compara este a uma falha parcial de tradução . Mui- �
tos pontos permanecem apenas esboçados, nesta carta 52,
quear o mimigo no lugar, enquistar a lembrança, mas não
1\Tfi&\R recalc a-la
_
_ . No segundo tempo, em contrapartida, ele tem em particular a natureza de uma primeira inscrição, no pe- 7 (
ou "índice de per
os meios de enfrentá-lo, ou seja, de compreender o que acon queno ser humano, de . um "signo"
tece, ��s encontr�-se voltado para uma verdadeira guerra cepção " 2°.
estrateg1ca, agredido na face desarmada, ou sej a, de den
tro, at�cado por uma lembrança e não por um acontecimen
to. Evidentemente, entre ambos é preciso fazer intervir _
20. Cf. mais adiante, pp. 1 3 9 ss .
("""' '-1-....E s)
122 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICAN
ÁLISE
No seu conjunto, essa teoria freu
FORÇA E
diana anterior a setembro de 189
- encontrar 2, 3 , n pais perversos. Se nos l�mitarm�� ao as
ABERTURAS
"teoria da sedução restrita ", apr
7, pecto pskopatológico dos fatos de seduçao e d� perver
e- são" paterna, não podemos escapar desse questiOnamento
DA TEORIA
senta tanto uma grande for
ça simplista.
·
quanto pontos frágeis. Sua for
reside na trama cerrada que liga ça Da mesma forma e mais profunda-
a teoria aos dados da ex
periência analític a: é uma teoria mente, ainda a propósito dos fatos
estreitamente intricada com
ILUSÃO
a experiência. Reside em pôr em _
de sedução, o tipo de factuahdade
j ogo
APOFÃNTICA
sa e doravante insuperável, três fato , já de forma rigoro em questão, ou, mais exatamente,
res da racionalidade ana
lítica: a temporalidade do a posteri 0 modo da realidade pesquisada na investiga?�o �nalítica,
ori, a tópica do sujeito
e os laços tradutivos ou interpretat é que é mal apreciado. Se a investigação anahtica mterpre
ivos entre os roteiros ou
as cenas. Reside na capacidade exp ta uma cena por uma outra, se as cenas traduzem-se umas
licativa do modelo, am
plamente transponível e extensíve às outras e se não há outro sentido a buscar senão aquele
l, pelo menos no campo _ ap
da psicopatologia. Reside na cap que uma primeira cena produzisse, c:na esta que sena
acidade evolutiva do mo _ . . _ _?
delo, aquilo que designamos acim
l! j ra futuros desenvolvimento s: pon
a como "pontilhados" pa-
tilhados do ego, pontilha
fântica, no mesmo sentido dos Mrstenos, e evrdente que nao
desembocaremos nesta cena oculta, totalmente revelador� ,
Idos da teoria tradutiva. contendo em si mesma todo seu sentido sem r�me�er mars
Os pontos frágeis, em contrapos a outra coisa; de tal forma que a procura da pnmer�a �e?a
i contendo todo o sentido da seqüência só pode_ser mfmrt�
PONTOS FRÁGEIS:
ção, são aqueles onde uma teoria
RESTRIÇÃO AO
"restrita" contém o risco de fica e decepcionante. Trata-se, portanto, da questao do que e
r
PSICOPATOLÓGICO
bloqueada numa concepção restri pesquisado pela investigação analítica2 1 •
/ . _
tiva. Podem-se detectar vários des (/ Desta vez, do lado da teona e nao
ses pontos, designados por uma -
fratura e que quebrarão de O RECALCADO mais apenas da factualidade, a
finitivamente no momento da rev mesma rigidez aparente; o modelo
isão dilacerante de 21 de ORIGINÁRIO
setembro de 189 7. Do lado das cen concebido, por mais coerente que
as, primeiro , é a essên NÃO É PRESSENTIDO
cia do fenômeno sedução que não seja, tem por objetivo explicar a
é questionada: a concep
ção de Freud se mantém no nív psicopatologia e apenas ela. Defesa patol�gica, recalcam:nto
el da psicopatologia mais
manifesta, isto é, das relações per
versas, no sentido clínico e inconsciente pertencem ao mesmo conJunto, ?m conJun
do term o, entre um adulto e um
a criança. De tal forma que, to que, inversamente, o tratamento se J?ropona d�sfazer,
com essa concepção clínica da rela .
ção perver sa, no sentido sendo 0 inconsciente concebido como psrcopatologrco e re
da perversão psicopatológica, Fre _
ud será levado a se inter dutível pela psicanálise. A idéia de um inconsciente "nor
rogar em termos estatístico s, com
razão, poderíamos dizer. mal", irredutível, apesar do que possamos apreender dele,
Encontramos, na clínica, muitas
histéric as; para fazer um a
histéric a, é preciso um pai perver
so;
não basta um pai perverso para faz mas, por outro lad o, 21. Essa questão da remissão infinita do tratamerito analítico �ão se deci�e
er
da necessários outros fatores; por um a histérica, são ain
tanto, para que se pro
�
nem por uma postç · ão "realista11 nem pela investigação da fantasia. Nos dms
•
1\e
também aí as coisas vão derivar perigosamente. A nocão
de ataque interno, aquela que estava ligada ao corpo estra-
. nho interno , não é questionada; é a fantasia que vai ocu
par o lugar dessa realidade psíquica última. Mas a fanta delo linguageiro e
sia, reduzida a si mesma, dissolve-se muito facilmente na O terceiro aspecto da teoria, o mo
recer quase totalmente.
névoa do imaginário. Também aí é inelutável, para Freud, tradutivo 0 da carta 52, vai desapa 1\lCi
1
ivência, �u, melhor, su �
procurar o terreno de uma realidade mais ''objetiva' ' . Ine Em Feren.'czi, encontrará sua sobrev
que esse a::tigo d'; Ferencz1
vitavelmente, a própria fantasia deve encontrar sua origem renovação, pois parece evidente
jusao d� lmguas en- \
na pulsão, e a pulsão, no biológico . Quaisquer que sejam ao qual já aludimos várias vez� s, Con
mtercala exphcit�mente nu-
_
as locuções ditas de "representância" (Repriisentanz) que tre a criança e o adulto , não se
nos, no sentido de que .
garantem para Freud a mediação, o movimento vai sempre ma cronologia dos escritos freudia
hecimento desse precur-
certamente Ferenczi não tinha con
encontrava-se bem e�-
sor, a carta 52 a Fliess, que em 1 933
todo o mundo acredi-
condida no fundo de uma mala que
Schwarz e B. A. Ruggieri, "Morbid parent-child passions in deliquency" (Pai
Se a sedução, como teoria, sofre situação e não depende de qualquer contingência. Em con
PROGREsso NA em Freud esta espécie de recalca- traposição, Freud peca por omissão na valoração desse se
FACTUALIDADE: mento e de desmembramento que gundo nível da sedução. Deixa de analisar o que constitui
A SEDUÇÃO poderíamos descrever com mais de- essa universalidade e essa inelutabilidade que a caracteri
PRECOCE talhes, remontamos agora até a li- zariam como um dado humano fundamental. Deixa de es
nha da "factualidade", para subli tender a sedução precoce à sexualidade em geral, limitan-
nhar que, ao contrário, aqui e no próprio Freud, a análise do sua ação ao despertar de sensações "no órgão genital" ,
dos fatos progride consideravelmente. Um importante apro sem observar que esse despertar existe também no nível do
fundamento se esboça com a introdução deste segundo ní conjunto da erogeneidade do corpo, em particular na ero
1
vel que chamo sedução precoce. O pai perverso, principal geneidade oral e anal. Deixa de colocar em jogo o incons- ,.
personagem da sedução infantil, cede lugar à mãe essen ciente da mãe, o que, aliás, só faz, no conjunto de sua obra,
cialmente na relação pré-edipiana. Aqui, a seduçã� é vei
culada pelos cuidados corporais dispensados ao filho. Este em raríssimos pontos28 . Por fim e sobretudo, deixa de res- 1/J
é um tema que se repete em Freud durante todo esse perío situar essa sedução precoce no conjunto teórico que lhe con
do. Cada vez que revê sua apreciação da sedução é para feriria todo seu valor, mas que, precisamente, soçobrou por
acrescentar que a sedução materna precoce é, em última ins completo. Pois é artificial distinguir, como fizemos por co
tância, o ponto de gravidade e, neste sentido, a verdade da modidade, a linha da factualidade da linha da teoria. Uma
sedução. Esta é sua maneira de demonstrar não apenas que teoria da sedução generalizada só pode se desenvolver se
a idéia de sedução não foi totalmente abandonada, mas que estabelecermos com precisão a efetividade do que denomi
faz seu caminho, num aprofundamento que vai do anedó naremos, desta vez, sedução originária; e, inversamente, no
tico de nossas cenas "à Nabokov" até o essencial. Citemos terreno de uma teoria que combina um biologismo da pul-
uma das passagens canônícas, que se situa bastante tardia são e uma antropofilogênese das fantasias, Freud não po-
mente, nas Novas lições: "Aqui, a fantasia toca o solo da dia levar a cabo sua reavaliação do fato sedutivo .
realidade efetiva, pois foi efetivamente a mãe que, no de
sempenho dos cuidados corporais, necessariamente provo - Rumo à teoria da sedução generalizada
cou e talvez-mesmo despertou pela primeira vez sensações Eis que chegamos ao período con
de prazer no órgão genital. " 27 Trata-se de um passo capi NÃO HÁ temporâneo, posterior a 1 964-67;
tal na via que nos faz recuar não apenas no tempo, pois RETORNO À mas não para atrelar ao nosso trem
se trata dos primeiros meses, mas também na categoria de SEDUÇÃO INFANTIL o vagão tardio daqueles que explo
realidade onde se devem situar os fatos de sedução. Pois ram a pré-história de Freud, colo
aqui não se trata mais exatamente de Rea!itiit, termo que
cando a ênfase no seu antigo interesse pelas observações psi
designa a realidade nos seus aspectos mais factuais, mas de
efetividade (Wirklichkeit), realidade efetiva, categoria que copatológicas, até mesmo médico-legais, de abusos sexuais
nos leva além da contingência e da peripécia. Como tam cometidos contra crianças. Um texto como o de Jeffrey Mas
bém atesta o termo "musste", a mãe teve de despertar, es son, O abandono da teoria da sedução (em inglês The Sup
se despertar pela mãe é inelutável, está inscrito na própria pression of the Seduction Theory) é notável, em contradi-
ção com seu título, por ignorar até mesmo a primeira pala sob a égide da "interação" . Com efeito, se nos limitamos
vra da teoria da sedução freudiana. Quase todos os escri a uma descrição puramente comportamental da relação entre
tos que se referem hoje em dia à "teoria da sedução" invo dois indivíduos vivos, sejam ou não da mesma geração (in
cam, no máximo, a idéia vaga de que à sedução, numa cer clusive da mesma espécie), muito esperto aquele que dis
ta época, atribuía-se uma grande importância . . . na etiolo tinguir quem é ativo e quem é passivo: "Cada pulsão é um
gia das neuroses . Aparentemente, esses autores não têm ne pedaço de atividade; quando se fala de forma negligente de
nhuma noção do funcionamento, embora, tão elaborado, pulsões passivas, não se pode querer dizer outra coisa além
dessa teoria29 . No livro de Masson, um capítulo sobre de pulsões com fim passivo . " 31 Todavia, mesmo com essa
"Freud no necrotério de Paris" coloca em evidência toda referência à meta, Freud vai se atrapalhar, como podemos
a atenção que Freud deu aos ataques sexuais cometidos con mostrar através do exemplo mais simples, que é o da situa-
tra crianças, investigação esta que não deixa de ter interes ção inicial de aleitamento. Assim, nas Novas lições afirma
se histórico, mas que nos reconduz, sem maiores reflexões, que, no curso das relações primordiais, "a mãe é, em to-
à sedução infantil. Afirmar que Freud, por pusilanimida dos os sentidos, ativa em relação à criança"32, enquanto
de, não foi mais adiante e, sobretudo, pretender nos fazer que, em Leonardo da Vinci (texto, por outro lado, tão cla
partir de novo do ponto em que Freud talvez se deteve por ramente orientado), parece desconcertado pelo fato de que
demais - os ataques sexuais patentes - é, do nosso ponto na lembrança de Leonardo a criança recebe passivamente
de vista, recair na pesada oposição entre o real e a fantasia entre seus lábios a cauda do milhafre quando, pensa ele, Y
que, justamente, a teoria permite ultrapassar. o erotismo oral, a sucção do seio, deveria ser uma ação por
I
A generalização que propomos avança, portanto, e so parte do bebê33 . As coisas, podemos perceber, estão con
bretudo sob a forma de novo questionamento teórico . Seu fusas aqui, uma confusão que só pode ser útil para os de
primeiro fundamento, inclusive, é fensores da interação, a menos que possamos distinguir os
REINTERROGAÇÃO muito precisamente filosófico: uma 1
1
papéis recorrendo a critérios precisos. Não recearemos, por-
DO BINÔMIO reinterrogação do binônimo "ativi 1 tanto, para iniciar a discussão so-
ATIVIDADE-PASSIVIDADE dade-passividade". Freud teve O
grande mérito e a grande audácia l as CARTESIANOS bre a atividade e a passividade, re-
correr à reflexão filosófica e, em
de situar este binômio nas origens, tanto na teoria da pul particular, à dos cartesianos que formularam de maneira
são quanto, cronologicamente, no desenvolvimento da vi tão aguda essa questão da atividade-passividade na relação
da sexuaP0 • Esta era uma maneira de se colocar, como que intersubjetiva: relação das criaturas entre si e da criatura
por antecipação, em contradição com o que é hoje o modo com Deus. Podemos nos referir, aqui, tanto a Descartes,
mais "moderno" de descrever as relações adulto-criança,
,
132 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
quanto a Spinoza ou a Leibniz. Para Descartes, quando exa humana, não é um fato universal necessário em si, que uma
mina a relação de causa e efeito (este é o motor de um dos criança seja criada por pais, por seus pais, pelos pais. A si- .
argumentos provando a existência de Deus), deve haver "pe tuação originária, tal como FerencZi a formula, é o con
lo men�s �anta re�lidade" , na causa quanto no efeito . Spi fronto entre a criança e o mundo adulto. Pois, a rigor, e 1
noza vm amda mms longe, relacionando a passividade a uma
í sejam quais forem as distorções que disto resultem, podem
inadequação para dominar "algo que em nós se produz" 34 . I nos tornar, sem uma família , um ser humano, mas não sem
Mas, sem dúvida, Leibniz é o mais claro: "Diz-se que a cria I esse confronto . Aqui, entre parênteses, um reexame do pen
tura age exteriorm�nte na medida em que tenha perfeição,
e que suporta a aç �o de outra quando é imperfeita. [Mas,
A
a�es �r das aparen �ms, essa noção teleológica de perfeição
l
l
samento de Margaret Mead nos seus escritos de antropolo
gia comparada, talvez conduzisse na mesma direção : o fa
to fundamental por ela colocado, para além das variações
culturais, é o problema do acesso do recém-nascido ao mun
nao e tomada aqm em sentido absoluto, sendo suscetível
de gradações . ] E uma criatura é mais perfeita que outra
l do adulto.
Mas este mundo adulto não é um mundo objetivo que
qu�n�o encontramos nela aquilo que serve para explicar a
a criança teria que descobrir e aprender, como aprende a
pnon o que se passa na outra, e é assim que se diz que age
andar ou a manipular as coisas . Caracteriza-se ele por men- /:i
sobre ela . " 35
sagens no sentido mais amplo do termo (lingüísticas ou sim- 1 [
É apoiando-nos neste sólido critério, o de um "mais" 1
plesmente linguageiras : pré ou paralingüísticas), que inter- '1
mais conteúdo, mais significação e, portanto, mais mensa� rogam a criança antes que ela as compreenda e às quais de
gem, que podemos abordar a situa- ve dar sentido e resposta, o que é uma só e mesma coisa.
I
JUNÇÃO COM ção originária da criança e tentar Até aqui, Ferenczi nos acompanha, mas não vai mui
FERENCZI defini-la para além de todas as suas to mais longe, pois a expressão "confusão de línguas" não
variações . Aqui, a audácia de um nos parece totalmente adequada. Com efeito, há f{nguas do
Fer �ncz� nos guia, permitindo que nos desfaçamos da ex adulto , língua verbal, língua dos gestos, das convenções,
clusiva I�ade "familiarista" que pesa sobre todo o pensa das mímicas ou dos afetos. Há, na criança, uma potencia
mento psicanalítico . Pois, em última instância é uma con lidade para entrar nessas línguas, potencialidade natural,
tingência, mesmo que ancorada na biologia � na história instrumental e também afetiva. Mas, precisamente, o pro
blema não se resume nem na aquisição de uma ou várias
." linguagens " , nem no confronto de duas linguagens com
34. "DEFINIÇÃO IL - Digo que somos ativos quando, em nós, ou fora
;, suas lógicas e suas baterias significantes diferentes. Sabe
,. se, com efeito, que, sem gramática nem dicionário, tal aqui
. algo se produz de que somos a causa adequada, isto é, quando, em nós,
de nos,
} �"P OPOSIÇÃO I. � assa Alma é ativa em certas coisas, passiva em ou Utilizando aqui uma imagem de ficção científica já pro
"\ tr�s, Isto e, enquanto tem Ide1as adequadas, é necessariamente ativa em certas
. �
posta por Freud, podemos ser tentados a evocar o confronto
cmsas : ma� enq�anto te� i déias inadequ �das, é necessariamente passiva em cer- de nossa civilização com a vinda de extraterrestres, ou, en
J ; .
tas cmsas. (Spmoza, Eth1que, v. I, Pans, Garnier, p. 245)
tão, mais simplesmente, a acolhida dada a Pizarro pelos in-
35. Monado!ogie, 49, 50. Entre colchetes: ob,ervação de J. L .
134 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 135
.�o �t�2
cas. Sabemos, através deste último exemplo, que, sejam vestimenta sexual e inconsciente pela mulher? Pode-se su
quais forem as diferenças das estruturas mentais, das his por que esse investimento sexual, que pode ser considera-
tórias e até dos referenciais, a confusão das línguas acaba do perverso no senticiP-00&-T/js ensaios sobre a sexualida- [;JJ
de, não é pen;:ebi� �
�pelo bebê, como f?nte d�s-
dando lugar a alguma modalidade ordenada de correspon
dência e de aquisição . Da mesma forma, retornando à crian te obscu � que ele quer de mrm, alem ,,JL,, "od.e
contas, por que ele quer me �
__
ça, esta se introduz sem professor na linguagem que pree de me aleitar e, no fim das
xiste a ela: ela habita a linguagem. aleitar?
É, portanto, justamente aqui que
UM SENTIDO é preciso ir mais longe que Perene Mas gostaríamos de reservar aqui um lugar especial,
DELE MESMO IGNORADO zi, mas também por outro caminho entre os significantes enigmáticos, para o que se costuma
que não o do lacanismo. Pois Fe chamar "cena originária". Não posso evitar retomar o texto
renczi não dá o passo de levar em consideração que o que inicial, o primeiro em que Freud fala da observação do coito
chama de "linguagem da paixão" (a linguagem do adulto) entre os pais: "Que o comércio entre os adultos se apresen
só é traumatizante na medida em que veicula um sentido te de maneira unheim!ich [sinistra] para as crianças que o
dele mesmo ignorado , ou seja, em que manifesta a presen observam e desperte nelas angústias é um dado, diria eu,
)
ça do inconsciente dos pais. Mas, contra Lacan, afirmamos da experiência cotidiana. Dei a esta angústia a explicação
'kctv }
,� -
que essa manifestação do inconsciente é irredutível às sim-
ples potencialidades polissêmicas de uma linguagem em ge-
de que se trata de uma excitação sexual que não é domina
da pela compreensão e que, sem dúvida, também se depara
ral. O problema continua sendo, a nosso ver, o do incons com uma recusa* [mais adiante se falará de recalcamento :
�
Cv
ciente individual. "recusa" é tomado mais ou menos no sentido de recalca
\ Para ligar entre si todos esses elementos, enunciaremos: mento neste texto] pelo fato dos pais estarem implicados
� o confronto adulto-criança envolve uma relação essencial
, de atividade-passividade, ligada ao fato inelutável de que
nela e que, por isso, se transforma em angústia [reencon-
tramas aqui a "primeira" teoria, totalmente insuperável,
o psiquismo dos pais é mais "rico" que o da criança. Mas, da transformação da excitação sexual em angústia] . " 36
ao contrário dos cartesianos, não falaremos aqui de maior Aquilo sobre o que insisto neste tre-
"perfeição " , pois esta riqueza do adulto é também sua en o ENIGMA, MÓVEL cho, prefigurando a idéia da sedu-
fermidade, sua clivagem em relação ao seu inconsciente. DA SEDUÇÃO ção originária, é que há algo que
Por meio do termo sedução originária qualificamos, ORIGINÁRIA só poderia ser dominado através de ·
portanto, essa situação fundamental em que o adulto pro- um trabalho de compreensão e que ·
põe à criança significantes não ver- é traumatizante e recalcado justamente porque permanece
bais assim como verbais, inclusive
como que em estado selvagem.
SIGNIFICANTES
ENIGMÁTICOS comportamentais, impregnados de
significações sexuais inconscientes.
Não é preciso procurar muito longe para dar exemplos con * No original; "récusation", que é a tradução usada por J. Laplanche para
cretos do que chamo significantes enigmáticos. O próprio Ablehnung. (N. T . )
seio, órgão aparentemente natural da lactação: pode-se con 36. GW, II-III, p. 591. Tradução de J. L. Entre colchetes: comentários de
tinuar a negligenciar na teoria analítica seu importante in- J. L.
136 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 137
Querer situar, como Freud fará mais tarde, a sedução derada como um primeiro tempo em relação ao qual a se
no saco sem fundo das fantasias originárias, no mesmo ní dução precoce ou infantil seria o segundo, num modelo do
vel da cena de observação do coito dos pais, é deixar de ob
l
a posteriori. A sedução originária é a essência última das
servar que entre ambas não há equivalência ou justaposi
{
duas outras devido ao fato de que só ela introduz a dissi-
ção, mas hierarquia. A chamada cena "originária" é, ela metria ' 'atividade-passividade' ' . Os cuidados ''maternos' '
mesma, sedução para a criança, no sentido da sedução ori- ou o ataque "paterno" só são sedutores porque não são
ginária. A observação do coito dos pais propõe, impõe à transparentes, mas opacos, veiculando o enigmático37 .
criança imagens , fragmentos de roteiros traumatizantes,
1 A sedução precoce, por seu lado, merece toda a nossa
inassimiláveis por serem parcialmente obscuros para os pró
atenção, numa nova teoria da pulsão. As noções centrais
prios protagonistas. A concepção posterior de Melanie Klein,
dessa teoria: zona erógena, fonte somática da pulsão, pul
a dos "pais combinados", ilustrará bem este aspecto: os
são parcial anal, oral ou fálica. Todas essas noções só po UovA
pais estão unidos num coito eterno que reúne o gozo e a n:;ü lLt A
morte, excluindo o bebê de qualquer capacidade de parti dem ser livradas dos impasses a que uma fisiologia arrisca
" cipar e, portanto, de simbolizar. da quer nos levar - e já se enveredava neles no tempo de 1}-.'\r.l
É nesse mesmo registro que também funcionam os dois Freud com a questão: qual pode ser o processo sexual no � l} l yJ'\(J
• grandes enigmas apontados por Freud como aqueles que
nível de uma zona erógena não genital? - se lembrarmos
põem em andamento a atividade ' 'teorizante ' ' da criança, que essas zonas, lugares de trânsito e de troca, são, antes
culminando nas "teorias sexuais infantis" : o nascimento de mais nada e primordialmente, os pontos de focalização
de um outro filho e a diferença dos gêneros. Também aqui, dos cuidados maternos. Cuidados higiênicos motivados
é pelo viés da incapacidade dos adultos de explicar isto pa conscientemente pela solicitude, mas onde as fantasias de
ra si mesmos que se produz o efeito traumático. anseio inconsciente funcionam a todo vapor. Enfim, é a par-
Fica evidente que incluo na sedução originária situa tir do terreno da sedução originária e da sedução precoce
ções, comunicações, que em nada dependem do "ataque se que é preciso atribuir toda sua importância aos fatos de se-
lU xual" . O enigma, aquele cujo móvel é inconsciente, é se dução infantil, para tirá-los, por fim, da espécie de gueto
: ()_\�<> v dução por si mesmo, e não é à toa que a Esfinge está p osta teórico onde estão, há anos, confinados.
\')�·ffi� da às portas de Tebas, antes mesmo do drama de Édipo . Nesta série: sedução infantil - sedução precoce - se-
/
Não é um dos menores méritos de dução Originária, SUblinhemOS maiS Uma Vez que nãO V a- 'b_ u 'Ic \
ü
RELAÇÕES ENTRE Leonardo da Vinci, e do Leonar mos do real ao mais "mítico" , pois convém recusar a qua- lc . � ·
( ,;_'\�v-J<;-�
Que concerne ao originário na situação analítica, cf. mais adiante, pp.
to . A sedução originária não poderia, tampouco, ser consi- 1 66-167.
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138 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 139
É a partir de uma concepção precisa dessa
hierarqu
ia criança ao adulto, mas também e primordialmente, inade
das seduções que deve ser reconstruída
, sob sua forma ge-
neralizada, a teoria da sedução (a quação do adulto ao objeto-fonte que _ age nele ��smo
;
Se retomarmos os três pontos de vista que di�tmgma
TEORIA DA
parte à direita do nosso quadro ). ,
mos na primeira teoria de Freud - temporal, topiCO e tra-
SEDUÇÃO
Uma reconstrução que pretende [a-
dutivo -, já poderemos percebe:
GENERALIZADA
zer passar para outro nível a teo- No CENTRO: que o ponto de vista temporal so
ria "restrita" de Freud, exatamente pode ser compreendid_o através � o
no sentido em que isto ocorreu com a relat o PONTO DE VISTA
ividade em físi ponto de vista tradutivo e semw-
ca. Ela destrói a restrição ao patológico TRADUTIVO
que era essencial lógico, pois é somente no campo da
no pensamento de Freud antes de 1897 , pret
ende fundamen reelaboração tradutiva que se. pode compreen��r o que � o
tar a estrutura do aparelho psíquico ou
aparelho anímico, de significar esse curioso efeito denommado . a posteno
"-l��:r,�� em geral, invalida o recurso biológico
d�ndo ressI·tuá-lo s ecundariamente. Essa
plica · _
e filogenético, po-
teoria tem de ex
ri" . É o esquema da carta 52 que aparece aq�n ,c?mo �ma
espécie de programa, mas lembremos que, de Im�w, detxa
--' -
· .r,
· · atrav. es do m. ecamsmo do recalcamento, a constitui- va de maneira enigmática (e ninguém fez face a Isso), o lu
· .
<io ção e ·a.pe.. rma. · · . nênc
. ia de um
. inco. nsciente, assim conto o efeito ga� vazio para a primeira inscriçã? chamada � e Wz, ou se
, I "p.ulsão" indissociável dele. Mas também deve inclu ja, "signo de percepção": Com efeito� como, ngorosamente,
.
, tJ
ir no
I. seu modelo o que se chama de "tratamento " , seus a pura percepção poden� for�ecer. signos? Se se �rata ape-
efei tos
\.
assim como seus limites . nas da percepção dos objetos_ mammados, esta so fornece, [-*]
Recentemente, traçamos o esquema geral, na melhor das hipóteses, índices. �e se tratass,e .apenas �e
com a maior
precisão, a propósito da pulsão3 8 . É a conf índices, de traços puramente factuats, de.resqmcws sem m
rontação de um
indivíduo cujas montagens somatopsíqu tencionalidade semiológica, como podenam eles �e P_ropor
icas situam-se pre
dominantemente no nível da necessidade, uma primeira tradução pelo s�jeit? ? � ort<l?�o, assimilamos
com significan
tes que emanam do adulto, ligados à satis o signo de percepção, essa pnmeira mscnça� no aparelho
fação dessas ne
cessidades, mas veiculando consigo a pote psíquico exatamente ao significante enigmático, tal como ?
ncialidade, a in
terrogação puramente potencial de outras este se deposita antes de qualquer tentativa de traduçã? . Is!o
mensagens - se
xuais. Essas mensagens enigmáticas susc implica, evidentemente, se tiver� os em mente a teonzaçao
itam um trabalho
de domínio e de simbolização difícil, para freudiana, um completo requestwnamento do que ele cha-
não dizer impos ma "vivência de satisfação" .
sível, que necessariamente deixa para trás .
restos inconscien O ser humano é e não pára de ser um ser autotradutl
tes,Juero.S*, dizia Freud, a que chamamo
s "objetos-fontes" vo e autoteorizante. O recalcamento originário é apenas o
da pulsão. Não se trata, portanto, de
uma vaga confusão momento primeiro e fundante de
de línguas , como queria Ferenczi, mas
, muito precisamen um processo que dura a vida toda.
te, de uma inadequação das linguagens, MODALIDADES
inadequação da DA METÁBOLE Propusemos um esque� a y�ra �s-
se processo, o da substltu:çao SI
_ �
3 8. "La pulsion et sou objet- nificante ou metábole, com suas drversas modalidades3 .
I' pulsion Em source; sou destin dans le transfert" , em
pour quoi faire? , Paris, APF, 198 ,
5 pp. 9-24.
La
• espanhol no original: "Lei particular 3 9. Cf. particularmente Problématiques IV/L 'inconscient et /e ça, Paris,
1981 .
de um Estad o". (N. T.)
PUF,
(
141
GENERALIZADA
140 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SED UÇÃO
. . , �.nov� signific ante substituiu , sem resto,
Relembro aqui o esquema, parcialmente derivado de La do da_ matematica sig i cado ; é a substituição �igo
n fi ue 7
can, mas numa direção totalmente diferente, que, aliás, La o antigo n �, perspec va "o no que abo le o ant
c?�? de esqueceJ a P�r exe sentido de
can criticou especificamente. Trata-se do fato de que um �� no que pode ser uma
primeiro par significante-significado é submetido à ação me
sem
s1grnflcante. Pe�!- . ; . mp"flo,ante no correr dos tem- \
tabolizante (explicarei esse termo) de um segundo par que, metabolização etimolog�ca: � :��gué� conhece, mesmo
desta vez, é um par de dois significantes: pos, to�ou o lugar de ?ut!o, nte gre o ou sânscrito que er� V
inconsczentemente' 0 Sig
rnfica
L outro esquema e,. d;po . nto de vis. ta algébn-
l
o "S 1 " inicia O 1 da fór-
co um puro artifício ' masos,muito sugestivo: dms Sent
os
e para
passam com pletam
mcl.ainicial são conservad mas
Isto se assemelha a uma fórmula matemática e, de fa baixo da barra:
to, pode ser tratado, de certa maneira, matematicamente, S2
mas não se trata nem de altas matemáticas, nem de topolo __§___
gia. Comentemos a parte da esquerda. No lugar do signifi S
I
cado (s) podemos encontrar um significado acessível, ou, SI
então, um significado mais ou menos inacessível; nos pri . mula matematicamente absurda, pois, enq�anto denFa omi-
meiros significantes enigmáticos dos pais, o "s" é puramente for . . remete ape na s a si me sm o. z�
substituído por um ponto de interrogação ("o que ele quer nador, o antigo Sigill"ficano te cul -
mi
mos deste esquem a o t"IP da metáb ole recalc. ante, que
de mim? "). Do lado direito o que devemos examinar é a re
lação entre S2 e S 1 : ela pode ser tanto de semelhança quanto na n f'
- do objeto- fonte da pu1sao
0
�������to,amtudosocon isto con tin ua sen
-
do � ui to � qu em : .
t�
...e contigüidade. Diferentemente dos lacanianos e dos pós
co' po is ainda est frontados com rrustura� es�e:rr:�
lacanianos, e inclusive do meu amigo Rosolato, penso que
resultados: um� Parte de saI 'pma s somente uma P e,
a substituição também pode ter por pivô significantes liga arte é recalcada. Por outro lado,
cada �a obscundad e e um açã o e qu eéo
é preciSO dar lugar ao q�e m
dos entre si pela contigüidade ou pela semelhança. Quando se hama sim bo liz
a ligação de S2 com S1 é (no essencial) uma ligação de ana
logia, essa metábole é chamada metáfora; quando a liga
�
resulta�o de UI?a ama :oru.� � áboles e de me táboles de dife
ia e a metáfora. É essa ma lha,
ção entre S2 e S 1 é de pura contigüidade, essa metábole é rentes tiPO?, alial_l 0 a me e Pouco a pouco. .perlmi te arranc ar
essa rede simbolrzante, qudo ado ongm a .
chamada metonímia. A metábole é, portanto, o gênero co
mum à metáfora e à metonímia. Em geral, aliás, a ligação de sua obscuridade algo recalc
entre os dois significantes é, ao m esmo tempo, de contigüi Algumas palavras sobre ovem ponto �e
vista tópico, tal com o el e se s�-
dade e de semelhança, de tal forma que metáfora e metoní uça _ o gen era li-
mia são dois tipos abstratos que não se encontram em esta
A TÓPICA DO EGO:
tuar na teoria da sed
DEVE SER REAVALIAD
A
zada. A tópica, tal comoa acom des a
enh
do puro e, com muita freqüência, estão misturados entre si. o sua
Qual o futuro possível dessa "multiplicação" que é a
EM RELAÇÃO AOS
TEMPOS no
Freud no que se designe supere go) ,
segunda teoria (ego, id
operação metabolizante? Matematicamente, pode-se imagi pro gre sso em re-
nar pelo menos dois. O primeiro é a "simplificação" : S 1 de-·
RECALCAMENTO
marca um imenso pen sar , po r
- s seria um a err o
saparecendo pura e simplesmente, o resultado será S2 • Sain- laçao ao seu Primeiro modelo Ma ·
RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 143
142 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
iss� , �ue a tópica se liberta então do problema de sua pró
pna genese e desse fator essencial representado pelo recal
camento no estabelecimento das instâncias. O ponto de vista
tópico é indispensável para compreender o recalcamento
mas o recalcamento é indispensável para compreender a tó :
pica. Há, diremos nós, diferentes niveis tanto do recalca
mento quando da evolução tópica. Níveis do recalcamento
que já estão marcados pela distinção entre recalcamento ori
-,
ginário e secundário ou recalcamento propriamente dito . O tempo de aparecimento do ego - que não deve ser
concebido como um período único , separado do resto e fe
\
Insisti, para começar, no fato de que os níveis do recalca
chado sobre si mesmo os reiterados tempos de apareci
mento não correspondem necessariamente à hierarquia : se
mento do ego é que devem ser chamados de narcisismo pri
dução originária, sedução precoce e sedução infantil· essa
mário , no sentido fundamental que Freud lhe dava em seu
�
hierarquia não é uma sucessão, já que a sedução pr coce
li artigo inaugural, Introdução ao narcisismo40•
permanece como suporte, como mola, tanto da sedução pre
coce quanto da sedução infantil e até da sedução adulta '
incluindo a sedução analítica. \
11)
)
O que é preciso dizer do recalcamento originário aqui
é que seus dois tempos são indissociáveis do movimento que
desemboca na criação do ego. No primeiro tempo não há
1
"ego" , ou, então, se já se quer empregar esse termo é pre-
� �,
-
ciso izer que ele coincide com o todo do indivíduo mais
especificamente, com sua periferia que o delimita. Neste mo-
i � � Po mento, ele é ego-corpo, como diz Freud. Enquanto que, no to
2-"- l'Ei":O s�nd�mento do recalcamento originário, o que está Co" 70
\ A situação do significante enigmático (S-E) é diferen
em questão é, desta vez, o começo do ego como instância.
·
que no segundo tempo, o significante enigmático ou, mais Qual o tipo de realidade do "recalcamento originário"?
exatamente, seu resto recalcado, o objeto-fonte (O-F), torna Assim'como o recalcamento "propriamente dito" , não é
se interno. Ele permanece externo em relação ao ego finca nem um tempo mítico (como se pretendeu) nem, por isso,
do na sua periferia, mas, como o ego é mais restrito que diretamente acessível a uma observação pontual. A razão
o indivíduo (o que pode ser desenhado de forma totalmen disto é muito simples e, de forma nenhuma, metafísica:
te especial), ele é um externo-interno que, para o ego, age produzindo-se em dois tempos, segundo a lógica do a pos
vindo de fora. teriori, pode ser delimitado, enquadrado numa cronologia,
São exatamente esses níveis da ligação e da síntese, es mas não pode jamais ser situado pontualmente. É o que bem
ses envolvimentos entre os invólucros do ego, essa tangên mostra um livro como o de Silvia Bleichmar a propósito
cia ou multitangência das periferias, que permitem com da clínica psicanalítica da criança43 .
preender41 as ambigüidades e a fecundidade de um mode Além disso, o a posteriori, que opera entre os dois tem
lo como o da vesícula de Para além do princípio de prazer. pos do recalcamento originário, intervém também em rela
ção ao próprio recalcamento originário tomado em seu con
junto. O que significa, concretamente, que o recalcamento
originário, necessita de uma chancela para ser mantido , ne
cessita do recalcamef!tO secundário. E é precisamente aí que
se situa o lugar do Edipo, do complexo de castração e da
formação do superego. Gostaria de
o SUPEREGO: dizer aqui algumas palavras sobre
UM IMPERATIVO o superego , já que estamos esbo-
NÃO METABOLIZÁVEL? çando como poderia ser repensar
a tópica freudiana. Costuma-se
Mas um modelo deste gênero não é estático, os invó
lucros são suscetíveis de contração e de dilatação. Alguns opor, esquematicamente, um superego precoce pulsional,
deles podem novamente coincidir, sendo o melhor exem superego aventado essencialmente por Melanie Klein, a um
plo disto o do sonho, onde o invólucro do ego vem recoin superego tardio, composto dos imperativos culturais e sig
cidir com o invólucro somático do sonhante; alguns deles nificado por mandamento, um superego ligado, nos diz
podem se abolir ou se dilatar ao extremo, e penso que é pos Freud, à lei. Pois bem, essa oposição perde muito de seu
sível retomar essa teoria do ego precisamente no ponto em valor com a teoria da sedução generalizada, já que, se a pul
que foi deixada em repouso, para depois ser profundamente são encontra sua origem precisamente em mensagens (mas
desviada pelo que se chama "psicologia do ego " . O ponto não apenas em mensagens verbais, por certo), deve-se di
teórico e histórico exato de onde conviria tornar a partir zer que, de início, não há oposição de natureza entre o pul
são as propostas de Paul Federn42_ sional e o intersubjetivo , entre o pulsional e o cultural. A
teoria da sedução generalizada, centrada na noção de enig-
41 . Como jâ tive várias vezes a oportunidade de desenvolver. Cf. Problé
matiques I/L 'angoisse, Paris, PUF, 1 980, pp. ! 82-210, e Problématiques III/La
sub/imation, Paris, PUF, 1980, pp. 237-247. 43 . S. Bleichmar, Aux origines du suje/ psychique, dans la clinique psycha
42. P. Federn, La psycho/ogie du moi et /es psychoses, Paris, PUF, 1979. na/ytique de /'enfant, Paris, PUF, 1985.
146 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 147
ma, poderia ser, portanto, um guia para a teoria do supe Freud, de forma implícita . Cito três nomes que é interes
rego e de seus imperativos . . Nosso outro guia será a refle sante pôr lado a lado: Levinas, por uma parte, no domínio
xão filosófica a este respeito , sendo o centro desta reflexão
do imperativo religioso, Lyotard e também Freud. Os três
(mas não seu final) a análise kantiana da noção de impera
vêm nos dizer: o imperativo kantiano não é tão categórico
tivo. Gostaria simplesmente de lembrar que, para Kant, as
quanto parece, pois ele próprio é deduzido (e, além disto,
morais que o precedem são morais da heteronomia, ou se
essa dedução fracassa . . . ); o erro consiste precisamente em
ja, não centradas no sujeito, mas sempre excentradas nu
fazer andarem juntos o aspecto "categórico" e o aspecto
ma relação com Deus, com a espécie, com a idéia de Bem,
etc . ; nessas morais, o imperativo, a lei que delas decorre "autonomia" ; o verdadeiro imperativo categórico não po
é designada como hipotética, ou seja, dedutível de outra coi deria ser autonomia, nem poderia ser deduzido da noção
sa. O imperativo hipotético é: "se você quer isto faça is de vontade livre: é um "faça isto" que se impõe e que não
so" . Se quiser agradar a Deus e conseguir a sua salvação, precisa ser justificado. No âmbito de uma religião levada
se quiser se conformar com a idéia do Bem, se quiser que ao extremo, a religião judaica à qual se refere Levinas, Deus
a sociedade funcione de modo conveniente, etc . . . você de edita a Lei e esta não precisa ser justificada. Mas este as
ve se comportar assim. O imperativo hipotético situa-se, por pecto categórico dos imperativos morais também é frisado
tanto, pensa Kant, no domínio de um saber fazer, de uma por Freud, e lembramos que as ordens do superego são ti
regra técnica, da melhor adaptação possível dos meios a um rânicas e injustificáveis. De acordo com sua "mania" filo
fim, por intermédio de um "se" . A melhor maneira de vo genética, Freud faz esse arbitrário remontar aos decretos
cê conseguir sua salvação (para retomar, desta vez, os gran instituintes (que ele chama de "Satzungen " e não de " Ge
des i mperativos freudianos) é não matar seu pai e não dor setze")44, que são dois. O Pai da Horda enuncia: sou in
mir com a sua mãe. tocáv�l; todas as mulheres estão reservadas para mim.
Kant opõe ao imperativo hipotético o que ele chama E conveniente levar em consideração esta noção do im
de imperativo categórico, no sentido de que, neste último, perativo categórico, nascido do superego, e se limitar a es
não haveria se: você tem de fazer isto e ponto final. Na ver se aspecto específico: os imperativos categóricos são o que
dade, se olharmos de mais perto, perceberemos que mes não pode ser justificado; certamente são enigmáticos como
mo o imperativo categórico kantiano ainda é, de certa ma outras mensagens de adultos, mas não só são injustifica
neira, hipotético, embora se trate de uma "hipótese" um dos, como, talvez, inclusive injustificáveis, ou seja, não me
pouco especial: "se você quiser ser livre, pois bem, você deve tabolizáveis. Não metabolizáveis, isto significa que não se
agir de tal e tal maneira" . Mas, ao contrário dos imperati pode diluí-los, substituí-los por outra coisa. Estão aí, imu
vos precedentes, é uma dedução que Kant pretende seja pu táveis e insimbolizáveis, resistentes ao esquema da substi
ramente formal, isto é, que a partir da simples forma de tuição signifi cante.
modo explícito por uma certa crítica moderna, quando por ção alemã: Frankfurt am Main, S. Fischer Verlag, 1985, p. 42 (15). Nossa leitu
ra: Satzungen e não Setzungen.
148 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 149
Será preciso conservar o termo e a noção de pulsão - decorrem, isto é, a noção de "fase" , ou, melhor, de tipos
termo que foi inventado em francês para traduzir o Trieb de organização correspondentes a essas zonas do corpo e
freudiano, para dar a idéia de que o " Trieb" impulsa, nos a seu funcionamento. Sabemos que a teoria da sedução, em
impulsa para a ação? Isto não é totalmente evidente. Em particular sob o aspecto da "sedução precoce", vem dar
todo caso, se a conservamos, convém desenganchá-la do bio um outro fundamento a essa noção de zona erógena.
lógico. A pulsão sexual própria ao homem não provém ini Por fim, o quarto ponto onde o realismo freudiano deve
cialmente do biológico, mesmo se vai ao seu encontro, no '\){) continuar a ser seguido é quando se trata de dar conta de
nível tardio da genitalidade. Creio, apesar de tudo, que ainda . c\'\ y\�fenômenos que constituem o pão de cada dia da psicanáli-
é útil conservar presente essa problemática da pulsão, pois \{ '/ se: o deslocamento, o retorno, a separação entre o afeto
ela responde a quatro exigências, quatro requisitos extraí- 7 �
(g" ,
,
""�"cw '
e a representação , a transformação em angústia, etc. Mas,
dos da experiência psicanalítica. precisamente, uma teoria biologizante é bem menos capaz
PARA A PULSÃO:
QUATRO REQUISITOS
DA EXPERIÊNCIA
te do determinismo. A noção de
pulsão dá conta do fato de que não
somos causas de nós mesmos, mas
\
O primeiro requisito é o da causa- CP'''"'"
!idade, e não digo necessariamen- u,
de dar conta desses fenômenos, que merecem ser chama
dos de metabolizações, do que uma teoria que dá toda a
prioridade às representações e, em particular, à inscrição
dos significantes enigmáticos.
Manter, portanto, a pulsão, reti-
que somos impulsados (getrieben). Digamos até que talvez c�&u ;,�p, os ELEMENTOS rando-lhe seu caráter de "ser míti-
na teoria da pulsão e somente nela que se refugia a causali- DA PULSÃO co", mas também, provavelmente,
dade que, por outra parte, está completamente banida, des NA PERSPECTIVA mexendo nos seus elementos. Es-
tronada em todo pensamento científico em proveito de ou- DO OBJETO�FONTE ses elementos, na análise freudia-
tras noções, em particular a de legalidade, quer esta seja na, em especial a de Pulsões e des
estatística, quer não. A pulsão seria, portanto, o último e tinos das pulsões, aparecem em número de quatro: a fon-
verdadeiro refúgio, a pátria e o solo verídicos da noção de te, o objeto, a meta e a pressão. A fonte, na análise que (1\Je./f ,
causa. É isto, sem dúvida, que Lacan queria dar a entender fizemos dela, nada mais pode ser do que o resquício incons- ___:Ç
nos seus jogos de palavra entre a causa e a coisa.
A segunda razão para conservar a noção de pulsão é
sua ligação indissolúvel com representações. Mas, aqui, nos
) ciente do recalcamento originário. Em outras palavras, é
o que chamamos de objeto-fonte (o que Freud já apreen-
dera, de certa forma, como (::E!'ese�tação-cõfs\) · Explica-
sos "novos fundamentos" levam essa exigência psicanalí remos, contudo, um pouco mars adrante, esse termo "ob-
tica ao extremo. Não é, como muitas vezes quer Freud, uma jeto" que agregamos ao termo fonte. Mas também é preci-
energia X que se engancharia, não se sabe como em repre- so sublinhar, insistimos há pouco, o fato de que a fonte não
sentações. A pulsão é realmente a força própria das represen- é puramente representativa, que ela está ancorada no so-
tações quando estas se encontram colocadas num certo es- mático das zonas erógenas, precisamente em conseqüência
tatuto isolado, separado, que é o estatuto do recalcado e do fenômeno da sedução. A noção de meta deve ser manti- 7,
do inconsciente originário. da, como metaforização, como ação metaforizante dos pro- oQ
Um terceiro ponto em que a noção freudiana de pul cessas somáticos de troca, portanto ligada à fonte e à an
são continua fecunda é a ligação, como pulsão parcial, a coragem so�ática desta. Em rel�ção àpre:sã.o, por fim, resta \ç!RI\:k\C
determinadas zonas do corpo e as conseqüências que disto saber se precrsamos desse concerto quantitativo. Força cons-
�
152 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 153
tante ou não? E se for uma força constante, um X que sem até mesmo de contra-ap oio, ou de apoio da alma sobre o
pre se deve ter em mente como diz Freud, por que tê-lo, corpo. No entanto, em Freud, o apoio de forma nenhuma
para que incluí-lo em todas as nossas fórmulas? Parece, no é uma resposta a uma questão que seria a das relações en
entanto, que a idéia de uma força relativamente constante tre alma e corpo. Refere-se ao fato de funcionamento se
desta ou daquela pulsão parcial continua sendo um postu xual apoiar-se no funcionamento autoconservativo, ambos
lado plausível. Note-se que dizemos relativamente constante podendo ser chamados tanto de psíquicos quanto de somá
e provavelmente durante um período de tempo determina- ticos: o sexual não é mais psíquico e a autoconservação mais
w do. Freud define esse impulso, em termos fisicalistas que somática; ambos são aspectos globais de um funcionamen
i\não devem ser necessariamente renegados, como exigência
de trabalho. Mas, e é aí que minha definição diverge da de-
to que tem um sentido.
Isto em relação aos desvios, aos abastardamentos des
le, essa exigência de trabalho não é exercida diretament� pe- ])IZ.k�G, se conceito a partir de Freud. Mas, mesmo tomada na sua
las fontes somáticas, e sim por protótipos inconscientes; ou, I acepção original e no seu melhor sentido, deve-se levar em
sendo mais exato, pela diferença entre o que é simbolizável conta que a teoria do apoio surgiu no vazio deixado em 1897
e o que não o é nas mensagens enigmáticas originárias. pelo abandono da teoria da sedução . O apoio continua vá
Percebe-se que a constância desse fator econômico é relati- lido como apresentação de um certo modo de articulação
va e um dos aspectos do processo analítico é que os proces- para o qual concebemos diferentes esquemas (esquema de
sos de simbolização diminuem seu aspecto coercitivo. um diedro ou esquema de uma tina), mas não é válido se
Percebe-se também que as retomadas do processo de sedu- quisermos fazer dele um modelo de origem ou de gênese.
ção podem provocar novas contribuições pulsionais. Em su-
ma, se se insiste em manter essa noção de uma energia pul-
í A idéia, que às vezes se encontra em Freud, de uma gênese
da sexualidade segundo o apoio é, necessariamente, se a le
sional, deve-se aceitar a idéia de que essa energia é apenas I varmos a sério, a de uma emergência, de uma divergência
progressiva, no seio de um funcionamento biológic o, entre
relativamente constante, que é suscetível, em decorrência
dos próprios processos psíquicos, de certos aumentos e de a a�toconse�vação e a sexualidade. Um dos esquemas pos
certas diminuições. .
srvers podena ser o seguinte:
Antes de passar aos dois tipos de
ESCLARECIMENTO pulsões e, portanto, à subdivisão
SOBRE O APOIO. da pulsão sexual, mais uma pala
SUA VERDADE: vr;i_sobre a relação entre a autocon
A SEDUÇÃO servação e a sexualidade e, a pro
pósito dela, um esclarecimento so
bre a noção de apoio . Essa noção só se tornou central para É exatamente isto que é proposto por Freud a propó
o freudismo porque foi redescoberta, já que estava profun sito da sexualidade oral, no chamado modelo da "sucção" .
damente escondida. Mas, desde que foi redescoberta por Pois bem, a rigor, este esquema só pode ser conservado corri
Pontalis e por mim, seu destino foi realmente o de ser pau a condição de não ver nele um movimento espontâneo, nem
para toda obra. Já faz algum tempo que se fala de apoio , endógeno. Temos aí uma espécie de cebola da qual se des
de qualquer coisa sobre qualquer coisa: de apoio sobre a taca uma película superficial, uma flor da qual se tiraria
mãe, de apoio sobre o biológico, de apoio sobre o corpo, uma pétala. Pois bem, numa palavra, o que queremos di-
1 54 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 155
zer é que a cebola não se descasca sozinha, é a seduç�o �ue sismo. É a descoberta do amor por um objeto total (o ou-
vai descascar, sobre a autocon�ervação, uma certa !aroma tro total, ou si mesmo como ego, como objeto total) que
que podemos chamar sexual. E a sedução que descasca a é a novidade; em contrapartida, é ela que obriga Freud, para
cebola da autoconservação, e não a autoconservação que, corrigir o rumo, a reafirmar o que havia de bem menos idí
por não se sabe que movimento endógeno, se clivaria. lico, de muito menos narcísico também, na sexualidade desde
Tomemos agora, rapidamente, o o seu começo, o saber, seus aspectos mais desestruturan-
)
PULSÕES DE VIDA. campo mesmo da pulsão propria- tes, mais fragmentados e fragmentadores. Se adotarmos uma
PULSÃO DE MORTE mente dita, aquilo que chamamos visão longitudinal do pensamento freudiano e se nos per
segunda teoria das pulsões, pulsões guntarmos o que há sob o termo "pulsão de morte" (em
de vida e pu/são de morte. E isto.para logo martelar esta última instância, não s?mo� obrigados . a co�ser�ar essa ex
observação a respeito das categorias de vida e de morte: se pressão, mesmo se ela e mmto - demms - msprrada), per
se quiser aplicar, fora da autoconservação, categorias que ceberemos que ela é uma reafirmação do que sempre cons- ·
são extraídas precisamente dela - a vida e a morte do su tituiu a essência conflitiva, oposta ao ego, "inconciliável",
jeito biológico -, é evidente que essas categorias terão �e da sexualidade. Mas uma indicação entre muitas outras é
ser profundamente metabolizadas. "Vida e morte em psi o fato de que, embora formulando dois tipos de pulsões,
canálise" e nas chamadas pulsões de "vida" e de "morte" Freud nunca admitiu, com isso, que haja dois tipos de ener-
não são a vida e a morte do indivíduo biológico. Situam gias pulsionais: nunca admitiu uma energia especial para
se, inclusive, em curiosos entrecruzamentos com a vida e a pulsão de morte, o que seria um destrudo (destrudo não
a morte que são nossas enquanto indivíduos historicamen é um termo freudiano , não existe destrudo) .
te destinados a nos perpetuarmos no ser até no momento Pulsão de morte e pulsão de vida
de desaparecermos. Os dois tipos de pulsões descritas por suA RELAÇÃO são dois aspectos da pulsão sexual
Freud encontram-se, ambas, no campo da pu/são sexual: COM o OBJETO que, portanto, é preciso conseguir
Eros é claro ' mas também a "pulsão de morte" . Não po definir, eventualmente com o auxí
dem�s, neste momento, retomar todas as numerosas indi lio de outras contribuições, em particular contribuições klei
cações históricas e teóricas que nos permitem afirmar que nianas. A chamada pulsão "de vida" corresponde a um ob
a pulsão de morte não é uma contribuição fundamental no jeto total e totalizante, está ligada (no sentido freudiano do
va, mas que se situa na linha do que Freud sempre chamou termo, isto é, mantida de modo mais ou menos coerente
de sexualidade45 . A contribuição de Freud nos anos 1915 e não fragmentado) por essa relação com um objeto em via
não é a pulsão de morte, é a pu/são de vida, ou seja, a se
xualidade ligada a um objeto total, aquela que se torna ou em ato de totalização. Parece-nos, portanto, que ela es
amor, quer seja amor pelo outro, qu�r seja, de _man �ira co �
tá mais destinada ao deslocamento metafórico do que ao
relativa e fundamental, amor por SI mesmo, Isto e, narc1- deslocamento metonímico pela simples razão de que tão
só estruturas que apresentam uma certa totalidade, uma cer
ta articulação interna, podem prestar-se à analogia que in
45.Cf., por ex., Problématique.s IV/L'inconscient et /e ça, Paris, PUF, 1981, duz precisamente à substituição metafórica: só há analogia
pp. 221 ss., e "La pulsion de mort dans la théorie de la pulsion sexuelle", em entre unidades que comportam, na sua totalidade, certas
La pulsion de mort, Paris, PUF, 1986, pp. 1 1-26. estruturações,e, portanto, certas semelhanças de forma. Pelo
-
contrário, a pulsão de morte corresponde ao objeto parcial, tipos de pulsão como "pulsão de objeto" e "pulsão de ín
que mal é um objeto, já que é, inclusive em Klein, instável, dice ' ' . Mas, além disso, é preciso acrescentar também que
informe, fragmentado; mais voltado para a metonímia do é o mesmo objeto-fonte que é fonte simultaneamente de am
1
que para a metáfora. bos, fonte tanto dos aspectos mortíferos quanto dos aspec
Com certeza podemos colocar es- tos sintetizantes da pulsão, segundo o aspecto - fragmen-
suA RELAÇÃo ses dois tipos de pulsões numa certa tado e parcial, ou total - de que se reveste. O mesmo objeto-
coM os DOIS TIPos relação com o que se chama pro- fonte é simultaneamente índice e objeto, objeto parcial e [:t<J
DE PROCEssos cesso primário e processo secundá- objeto total.
rio; mas, certamente, não para afrr Tudo isso, que já parece complexo em seu princípio,
mar uma equação absoluta, pois todo o processo primário o será ainda mais se tentarmos alcançar o nível do conflito
está do lado da pulsão de morte e todo o processo secundá psíquico. No nível último da metapsicologia, nos comba
rio do lado da pulsão de vida. Com efeito, há mais uma tes que, segundo a imagem proposta por Freud, confron
série complementar do que uma verdadeira oposição, sé tam exércitos no céu, em última análise, portanto, o con
rie esta que se estende, no aparelho psíquico, desde o mais flito psíquico é conflito entre pulsões de vida e pulsão de
profundo do id destinado à fragmentação absoluta, até morte. Mais concretamente, na nossa experiência psicana-
os processos mais amarrados pelo ego ou pelo objeto, esses lítica cotidiana, é um conflito err
processos descobertos com o narcisismo. Entre processo pri A PONDERAÇÃO: tre os processos de ligação e os pro
mário a�soluto e processo secundário absoluto, temos, por LIGAÇÃO-DESLIGAMENTO cessas de desligamento. Todavia,
tanto, m'na série que se distribuiria igualmente segundo o isto não nos leva a tomar necessa
mais ou menos de metonímia e o mais ou menos de metá riamente partido a favor da ligação, nem a afirmar que a
fora, sem que, por isso, possamos detectar numa ponta a ligação estaria sempre, forçosamente, do lado da vida bio
pura metonímia e, na outra, a pura metáfora. lógica, nem mesmo do lado da vida psíquica, pois o extre
mo da ligação é também o extremo da imobilização. Deste
Há, portanto, no próprio proces- ponto de vista, a denúncia, por Lacan, do ego como ins
A QUESTÃO DO so primário, ou seja, nos processos tância de fascinação e de imolização continua válida, mes- '
OBJETO-FONTE inconscientes, uma grande diversi- mo se é exagerada. Existe, com certeza, uma morte do psi- ,
f
J
dade de funcionamentos: um pro quismo por desintegração, morte pela pulsão de morte, mas
cesso primário em estado quase puro, funcionamento da pul
(\ são de morte, e um processo primário já de certa forma re
gulado, que é o funcionamento da pulsão de vida, a qual
também e�iste morte do psi�ui�mo por rigidificação e sín- i
tese excessiva, morte do ps 1 qmsmo pelo ego.
, não está totalmente destinada nem ao processo primário, Em última análise - pois ainda falta concretizar tudo
'1 I nem ao processo secundário. Percebe-se também que isto para além desse esquema pulsional -, seria preciso, a par
( tir daí, descrever a natureza da simbolização, sua história
€l implica questionar novamente, como uma expressão imper
I feita, o termo objeto-fonte. Fonte? Com certeza. Objeto?
Desde que se distinga objeto total e objeto parcial e con
escandida por suas etapas (não renegamos as etapas essen
ciais do Édipo e da castração, mesmo se lhes atribuímos uma
cordando com que o objeto parcial mal é um objeto , mais situação secundária em relação à sedução originária). Dever
próximo do índice do que do objeto "objetai". De forma se-ia repensar, para além das poucas indicações dadas mais
que, em certos momentos, fomos levadO$! a opor os dois acima, a gênese e a função das instâncias psíquicas; e, é evi-
158 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE RUMO À TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA 159
dente, seria necessário situar os diferentes fracassos possí sível d.e conhecer de todo o nosso psiquismo, seu reconhe
veis da simbolização. cimento corre o risco de parecer um aceno de chapéu, uma
reverência sem conseqüências práticas sérias.
Face a esse ''realismo do incons-
41 Pós-escrito: a natureza do inconsciente DA ciente" , um ponto de vista que in-
FENOMENOLOGIA titulo "fenomenológico" (mesmo
A título de pós-escrito a esses fundamentos teóricos e AO REALISMO se nem todos os autores se identi-
antes de esboçar suas conseqüências práticas, gostaríamos ficam com a fenomenologia) é sus
de retornar à polêmica que se prolonga há décadas, a res tentado com muito talento por Politzer, mas também por
peito da natureza do inconsciente. Um artigo j á antigo es Sartre (nos melhores aspectos de seu pensamento), ou, en
crito com Serge Leclaire, L 'inconscient, une étude psycha tão, bem mais recentemente, por Roy Schafer. Em duas pa
nalytique46 , situa bem a oposição, que continua na ordem lavras, esse ponto de vista fenomenológico proclama a ima
do dia, entre um ponto de vista realista do inconsciente e nência do.inconsciente como imanência de um sentido em
um po nto de vista fenomenológico. O ponto de vista rea relação às suas diversas expressões. Em Politzer, para re
lista é, no conjunto da obra de Freud, um realismo que po tomar o exemplo simples do sonho, é um mesmo sentido
demos dizer "ingênuo" , sem nenhuma conotação pejora impossível de "realizar" que encontra ao mesmo tempo sua
tiva deste termo. Funda-se, essencialmente, nas experiên expressão não convencional no sonho e sua expressão con
cias de tratamento, de conflito psíquico ou, então, do sin < vencional na linguagem cotidiana que vem decodificar o so
toma, onde aparece que o que vem do inconsciente inter nho. Fora desses dois modos de expressão, um na nossa lin
vém como uma realidade em conflito com outra - situando guagem comum e o outro numa linguagem individualmen
se os dois protagonistas, desejo e defesa, no mesmo nível te forjada, não é possível procurar outra coisa, um terceiro
de realidade e de expressão, até no compromisso em que termo seria o sentido . O sentido, ainda que inconsciente,
se intricam. Quanto aos argumentos filosóficos, ontológi não precisa ser realizado em algum lugar47.
cos, com que Freud quer ornamentar seu realismo , alguns Fazia-se necessário esse retrospecto demasiado curto
deles são bastante contestáveis e, inclusive, vão contra a cor para situar a questão a partir de nossos novos fundamen
tos e, principalmente, da teoria da sedução generalizada.
rente. Assim, a propósito da referência a Kant, assimilan Não traz esta um novo argumento, até mesmo fundamen
do o inconsciente à "coisa em si" : se se admite, diz Freud, tal, ao debate sobre o realismo do inconsciente? O proce
uma coisa em si, impossível de conhecer (mas visada), para dimento seria o seguinte: a situação originária que descre
além do universo dos fenômenos físicos, por que não fazer vemos é um confronto da criança com um adulto que pro
a mesma postulação em relação ao psiquismo? Argumento põe mensagens cujo sentido não está à sua total disposição.
que parece solapar a descoberta psicanalítica no que ela apre Ao apresentarmos o protagonista "adulto", tomamos o cui
senta de mais radical: se o inconsciente não é mais um re dado de frisar que não era necessário, naquele momento,
gistro à parte, se constitui simplesmente o fundo impos- fazer qualquer hipótese sobre a natureza do inconsciente;
bastava-nos que o inconsciente estivesse presente, mesmo
4 6. J. Laplanche e S. Leclaire, "L'inconscient, une étude psychanalytique",
no sentido em que seus adversários o admitem, mesmo no
em Les temps modernes, 1 83 , julho de 1 96 1 , pp. 81-129; retomado em Problé
matiques IV/L 'insconscient et !e ça, P aris PUF, 1 98 1 , pp. 261-321 .
, 47. Ibid., pp. 261-269.
A TAREFA PRÁTICA 163
162 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
prática é elaboração viva, a teoria é diretamente posta à pro e a esperança louca. No movimento comunista do pós
va, a marcha para diante é a mesma e as dificuldades an guerra, utilizava-se a expressão "não se deve desesperar Bil
dam lado a lado, o fracasso, se ocorre, é fracasso da teoria lancourt", entendendo por isso que, a nenhum preço, con
e da prática. Sabemos que se tratava, então, de uma teoria vinha revelar a realidade do regime soviético. Poder-se-ia
que não era apenas restrita, mas restritiva, abordando o in dizer também, para se situar na realidade psicanalítica fran
consciente exclusivamente do ponto de vista da psicopato cesa, algo como: "Não se deve desesperar o décimo tercei
logia. Em contrapartida, lembramos a esperança prática aca ro."* Mas, quem é que desespera o décimo terceiro? Aquele
lentada por essa teoria: tornar todo o inconsciente conscien que indica limites, ou aquele que se lança na aventura im
te, esperança apesar de tudo legítima, sefosse verdade que possível e sem limites? Uma das provas desta aventura se
o inconsciente só existe nos neuróticos, nos doentes men ria a aceleração desenfreada na produção clínica. Eu faço
tais. Aliás, Freud não sustentou algo análogo a propósito uma exposição clínica, você associa livremente sobre minha
da transferência, que pensava ser um fenômeno presente so exposição, nós fazemos mesa-redonda sobre as suas asso
mente entre os neuróticos? ciações livres, etc. O que resta do passo a passo da psicaná
A revisão de 1897 é, portanto, vivida como um fracas - L�
lise em tudci isto? A prática está, portanto, em crise. Está'' \(!! I'"''
�.,
mas esta crise é também um modelo positivo pelo fato de çar o ego, a menos que opte, como linha de conduta subs cp
que põe indissoluvelmente em jogo teoria e prática. titutiva, pela injeção incessante do jogo de palavras no tra
Portanto, não é de ontem que nos perguntamos sobre tamento, o que se chama a suposta interpretação do signi
nossa ação e seus limites. Mas hoje, ao contrário de 1 897, ficante. A psicanálise está em crise, se apreciarmos seu mo
infelizmente essa interrogação não vimento e sua dinâmica, suas indicações, seus resultados,
DESAMARRAÇÃo é mais tão fundamental: teoria e seu término. Enfim, a psicanálise está em crise por causa
ENTRE A TEORIA prática vão cada uma por seu ca- daqueles que a praticam, pois sabe-se atualmente que todo
E A PRÁTICA minho. A teoria ficou mais descon- o mundo se improvisa em psicanalista.
siderada, desprezada, em particular Como esse novo fundamento que propomos com a teo
sob a influência do empiro-clinicismo inglês. O pretenso im ria da sedução generalizada pode permitir ressituar a práti
perialismo clínico está no seu apogeu; nenhum texto, ne
nhum colóquio vence a barreira dessa censura, se não se ca? Trata-se de um vasto programa que não esgotaremos,
recobre de algum ouropel de observações. Não se concebe contentando-nos em esboçá-lo. E, isto, em três pontos: a
mais que a experiência possa impregnar a teoria, que a pró incidência sobre a situação, sobre a transferência e sobre
�ria teoria seja experiência, que haja uma prática teórica; o processo.
simplesmente se confunde experiência e empirismo . . .
E o que acontece com a prática, atualmente? Grande
parte do mundo analítico está desamarrado da teoria. Por * Billancourt, bairro operário. O treiziême arrondissement [décimo tercei
falta de uma apreciação lúcida de seus objetivos e de seus ro distrito] é um bairro parisiense onde existem os hospitais e instituições de maior
prestígio na psiquiatria e psicanálise mais ortodoxas. (N. T.)
limites, ela oscila com muita freqüência entre o desespero
1 64 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE A TAREFA PRÁTICA 165
\
no divã? Vou colocá-lo no divã uma vez e depois pô-lo sen vém o campo externo no tratamento. Precisamente, nosso
(
tad o outra vez? Vou colocá-lo numa cadeira de balanço?
.
E, mversamente, quanto ao fim do tratamento não é cor esquema tem por interesse visualizar essa diferença. No so-
rente ouvirmos pacientes nos perguntarem: Do�tor, quan- ] nho, com efeito, o sujeito está cortado tanto das percep
d� vou _Passar para duas sessões? E para uma? E por que ções, quanto da expressão; através da motricidade. No tra
nao me1a? O tratamento torna-se, assim, uma espécie de tamento, esse corte não existe, as "flechas" aferentes con
reeducação progressiva. tinuam a existir, mas encontram-se numa espécie de posi
Para romper com esse humor que nos questiona a to ção tangencial em relação ao círculo da tina:
dos, martelemos quatro pontos indicadores de linhas dire-
1 66 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE A TAREFA PRÁTICA 167
analista, se deve estar em posição de suposto saber, deve ciar o seguinte e que relativiza es
certamente recusar o saber, mas também, e sobretudo, A PRÓPRIA sa distinção: a própria situação é
recusá-lo a si mesmo. Essa recusa do saber, e essa recusa SITUAÇÃO É transferência. Uma lenta progres
de saber é a segunda recusação do analista, depois da da TRANSFERÊNCIA são marca as elaborações psicana
adaptação. Este é o motor, até mesmo a fonte de energia líticas sobre a transferência. Ela es
e, talvez, a fonte de uma energia nova, a que propulsiona tá muito bem resumida na já antiga exposição de Lagache3 .
o tratamento . É a corrida atrás do saber que sujeita e pro Esse progresso vai no sentido de mostrar que a transferên
pulsiona o analisando assim como propulsionou a criança. cia não é um sintoma produzido por neuróticos, que a trans
Quarto ponto, por fim: a situação ferência nem mesmo é um sintoma de que o analisado seria
A CONTINÊNCIA é um lugar de continência e de ma- responsável, mas que há uma verdadeira "produção da
transferência" pela análise: é esse o termo de Ida Macalpi
nutenção. Não fomos nós que in
ne e de Lagache. Mas é preciso ir ainda mais longe, além
ventamos isto; falamos bastante mal dos ingleses, no que
do termo de produção e afirmar que, se a situação reins
se refere ao seu "empiro-clinicismo" , mas devemos creditar taura uma situação originária, ela é em si mesma transfe
lhes, com Winnicott e Bion, essa idéia de "continente". Para rência.
retomar o esquema da tina, nós a comparamos com uma As concepções mais universalmente admitidas, variá
espécie de ciclotron onde as partículas seriam aceleradas com veis mas sempre com base em enunciados freudianos, de
energias consideráveis; pois bem, sem um recinto apropria vem ser criticadas aqui. A transferência, nos diz Freud, se
do, o ciclotron se transforma numa ·b omba H. A "conti ria uma repetição de protótipos arcaicos, fora de moda, ina
nência" é provavelmente o que mais falta a Lacan e aos la daptados; a transferência é favorecida pela neutralidade ana
canianos . Continência e regularidade no tempo da sessão, lítica, de forma que os mecanismos patológicos que estão
constância no ambiente, mas, sobretudo, o essencial da con esparsos na neurose encontrar-se-iam concentrados no que
tinência é a atenção, digamos até as atenções do psicanalis se chama neurose de transferência. Os comportamentos neu
ta. Ainda que todo analista já tenha cedido alguma vez à róticos seriam exemplificados in praesentia no decurso da
tentação de abrir uma carta ou atender o telefone, o análise. (Falamos intencionalmente de "comportamentos",
ausentar-se sistemático priva a situação desse elemento es já que Freud descreve a transferência como um agir.) A par
sencial que chamamos holding: o recinto desaparece e a ses tir dessas concepções básicas, o "o que fazer com a trans
ferência" comporta sem dúvida grandes variações e dife
são se dissolve. Ora, a presença de um recinto torna-se ain
renças. Deve-se interpretá-la, deve-se interpretá-la para
da mais necessária na medida em que favorecemos, induzi dissolvê-la, deve-se fazer com que evolua, interpretando
mos um discurso de desligamento. a? Ida Macalpine, a mais lúcida neste ponto, denuncia com
razão a ilusão de pretender dissolver a transferência. Mas,
em todo caso, quaisquer que sejam as opções na prática,
21 A transferência a base teórica freudiana permanece intacta.
Uma vez dispostos esses quatro pontos cardinais da si 3. D. Lagache, "L e probléme du transfert", em Oeuvres III (1952-1956):
tuação, passemos à transferência. Mas sem deixar de enun- Le transfert et autres travaux psychana/ytiques, Paris, PUF, 1 980, pp. l-1 14.
A TAREFA PRÁTICA 171
170 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
terpretação num momento ou em outro só pode ter aspec
Há certamente muitas coisas a retomar de tudo isto, to de denegação : você me atribui tais traços da sua mãe,
mas é fundamental recolocá-lo em perspectiva a partir da diz o analista (com o que o analisado concorda tranqüila
teoria da sedução : o fundamento da relação com o outro mente), mas eu não sou sua mãe. A etapa seguinte da �e
originário é a sedução originária e o fundamento da rela negação é a projeção: não sou eu que, é você que. A proJe
ção com o analista reatualiza, ou até mesmo leva ao abso ção é a cruz do psicanalista, é a cruz das transferências in
luto, essa relação. Tentemos esclarecer nossa formulação por solúveis.
por meio da distinção entre uma Resolver, analisar, dissolver, é fazer passar em algum
TRANSFERÊNCIA "transferência em pleno" e uma lugar uma faca, e uma faca só se insinuará onde houver a
EM PLENO, "transferência em oco"*. Afirme indicação de fissuras, linhas de clivagem: a transferên�ia em
TRANSFERÊNCIA EM oco mos logo que tanto a transferência oco, é um oco que vem se instalar num outro oco. E a re
em pleno quanto a transferência em colocação em jogo, em interpretação e em elaboração das
oco se instauram . . . num oco . A neutralidade do analista mensagens enigmáticas da infância, e isto graças à própria
é um aspecto desse oco. Provavelmente o aspecto mais su situação, que favorece esse retorno e essa reelaboração do
perficial, pois toma como essencial a banalização dos tra enigmático. Acabamos de indicar que transferência em pleno
ços do analista, teoria do espelho neutro, ou do receptor e transferência em oco são dois aspectos complementares;
telefônico virgem. Para além dessa interpretação do oco co mas é somente a partir do momento em que aparece uma
mo neutralidade, proponho ver nele a instauração da rela clivagem no coração das imagos ou das cenas transferidas,
cão com o suposto saber. Para além da recusa de se singu a partir do momento em que a faca pode passar, que a trans
Íarizar no real, há o que designamos como recusação do sa ferência em pleno poderá evoluir para uma transferência
ber. É o que também formulei de outra forma, falando de em oco e se elaborar.
"transcendência da transferência"4• Nesse oco, instaura Que a transferência não seja tão compacta quanto se
do pelo analista e sua recusação do saber, o que vem se ins pensa, já foi certamente pressentido pelos autores. Pensa
talar? Pode vir se instalar um pleno ou um oco. Um pleno, mos em particular em Freud quando ele insiste na ambiva
é a repetição positiva dos comportamentos, das relações, lência da transferência, ou em Klein que enfatiza a posição
das imagos infantis. Um oco é também uma repetição, mas depressiva onde justamente está em jogo a ambivalência.
onde a relação infantil repetida reencontra seu caráter enig Mas o essencial nisto não é que o objeto seja bom e tam
mático e onde as imagos não estão mais totalmente plenas . bém mau, é que a divagem e o enigma possam ser conjun
Transferência em pleno e em oco coexistem, é inevitável . tamente elaborados nas imagos infantis e na relação com
Portanto, não pregamos pela transferência em oco contra o analista.
a transferência em pleno! Apenas afirmamos que, se só exis
tisse a transferência em pleno (a situação tipicamente des
crita por Freud, a repetição de situações arcaicas, sem mis 3 I O processo
tério), nada permitiria sair desse pleno. Em tal caso, a in-
Nosso terceiro ponto será o processo. Interpretação e
construção são apenas meios? Não são, muito mais, o pró
* No original: utransfert en plein", "transfert en creux". (N. T.)
prio processo, e isto com base numa proposição fundamen-
4. Em Psychanalyse à l'Université, 1984, 9, 35, pp. 369-398 e 36, pp. 543-597.
'
1 72 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE A TAREFA PRÁTICA 173
tal, ontológica: o sujeito humano é um sujeito auto de castração , como variantes possíveis desses roteiros cul
interpretante, autoteorizante e auto-simbolizante? A par turalmente propostos. Evidentemente é aqui que recupera
tir daí só podemos indicar duas direções de desenvolvimento. riam um lugar as "fantasias originárias", uma vez admiti
Inicialmente , uma retomada do problema da teoria na do o fato de que esses esquemas fantasísticos gerais não são
sua relação com a prática. Esse problema adquire uma no l nem transmitidos de modo filogenético, nem constitutivos
I
va acuidade quando dizemos que o próprio tratamento é do núcleo do inconsciente5.
"teorização" , autorização. É evi- Nossa segunda idéia a respeito do processo será sobre
NíVEIS DA dente que colocamos aspas no ter- o término da análise. Introduzir:emos aqui três termos: "li-
TEORIZAÇÃO mo "teorização " , o que implica mitada" , "infinita" , e " termina-
que a teoria pode ser considerada ANÁLISE INFINITA da" . A análise é limitada: é limi-
I
�:\
em diferentes graus. O que implica propor diferenças, ní E TRANSFERÊNCIA tada pelo inconsciente e, no incons-
veis da teoria. Distinguiremos pelo menos dois e provavel � DE TRANSFERÊNCIA ciente, pelo que chamamos de obje-
mente três . De início, a teoria geral, de que o presente tex tos-fontes da pulsão. Podemos en-
to é um exemplo, aquela que deve ser reconstruída a partir cetar esse limite inconsciente, podemos vencê-lo, mas não
dos novos fundamentos; portanto , a metapsicologia. Não podemos aboli-lo, contrariamente à esperança de Freud.
temos nenhuma intenção de introduzir esta teoria no trata Nossa segunda proposição é que a análise, mesmo se é li
mento. Não apenas a teoria não deve fazer intrusão no tra mitada, ou talvez justamente por ser limitada, é infinita.
tamento , mas está lá para marcar seus limites à intrusão de O processo auto-interpretativo é potencialmente infinito, fe
qualquer teoria estranha ao sujeito. Na outra extremidade, lizmente para o ser humano t O dia em que este processo
"' há a auto-simbolização do sujeito, que é o próprio trata secar será gravet Mas este infinito não significa que a aná
&(J[f' mento. O ponto mais avançado da reflexão freudiana so lise enquanto situação e enquanto tratamento deva ser in
finita. E é aqui que devemos introduzir o terceiro termo,
J�
bre essa questão é provavelmente a distinção entre interpre
tação e construção, vindo a interpretação ajudar a reconhe- o de término. Para se situar na linha de tudo o que propo
. cer certos significantes que aparecem no tratamento, mas mos, esse término não pode de forma nenhuma significar
l��
sempre de maneira pontual, enquanto que a construção é
verdadeira reconstru�ão �elo próprio sujeito de sua bis
_
tona. Mas a auto-srmbolrzaçao do ser humano não se faz
a " dissolução da transferência", na medida em que esta é
relação com o objeto enigmátic o. Pode apenas significar a
transferência desse processo de transferência para um ou
a partir do nada; todo ser humano, todo analisado, não in- vários outros lugares , em uma ou várias outras relações. O
venta todas as peças do romance de sua vida. Os roteiros único término concebível da psicanálise é, portanto, a trans
não existem em número infinito . Isto implica dizer que, entre ferência da transferência. O mais difícil, sem dúvida, é
a autoteorização, de que o tratamento é um momento pri apreender o momento crítico em que essa transferência de
vilegiado, e a teoria geral da psicanálise, há lugar para um transferência é possível. Podemos propor duas imagens, a
nível intermediário , o desses esquemas teóricos que estão de uma balsa, ou a do lançamento de um foguete para ou
em parte ligados a um meio cultural . Temos em mente, em tros planetas. Há "janelas" temporais limitadas, bem de
particular, as teorias sexuais infantis, os complexos, etc. Não finidas, durante as quais pode-se mandar um foguete para
vemos nenhum inconveniente em reabilitar, neste nível o
culturalismo, em situar, por exemplo, o Édipo e o compl;xo 5. Cf. mais acima, pp. 32-40.
174 NO VOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANÁLISE
Bettelheím, B.
- A Fortaleza Vazia
Blos, P.
- Adolescência
Bowlby, ].
- Apego e Perda - Apego
- Apego e Perda - Separação
- Apego e Perda - Perda
Braier, E. A.
- Psicoterapia Breve de Orientação
Psicanalítica
Bibliotecq P<Jrticu/qr
Dolto, F.
Cl)
I
)> - Sexualidade Feminina
' Ferenczi, S.
- Obras Completas
Mannoni, M.
- A Criança Retardada e a Mãe
Winnicott, D. W.
- Privação e Delinqüência