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“Transformamos problemas cotidianos em transtornos mentais” | Sociedade | Edição Brasil no EL PAÍS 07/04/15 17:33

SOCIEDADE
ENTREVISTA | ALLEN FRANCES

“Transformamos problemas cotidianos em transtornos


mentais”
Catedrático emérito da Universidade Duke comandou a redação da ‘bíblia’ dos psiquiatras
M. P. O. 27 SEP 2014 - 20:24 BRT

Arquivado em: Psiquiatria Farmacologia Saúde mental Medicamentos Indústria farmacêutica Doenças mentais Farmácia Especialidades médicas Medicina preventiva
Doenças Sociedade Medicina Saúde Indústria

Allen Frances (Nova York, 1942)


dirigiu durante anos o Manual
Diagnóstico e Estatístico (DSM),
documento que define e descreve as
diferentes doenças mentais. Esse
manual, considerado a bíblia dos
psiquiatras, é revisado periodicamente
para ser adaptado aos avanços do
conhecimento científico. Frances
dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV,
ao qual se seguiu uma quinta revisão
Allen Frances neste mês, em Barcelona. / JUAN BARBOSA
que ampliou enormemente o número
de transtornos patológicos. Em seu
livro Saving Normal (inédito no Brasil), ele faz uma autocrítica e questiona o fato de a principal
referência acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente medicalização da vida.

Pergunta. No livro, o senhor faz um mea culpa, mas é ainda mais duro com o trabalho de seus
colegas do DSM V. Por quê?

Resposta. Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM IV] dois dos 94 novos
transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito
um bom trabalho. Mas o DSM IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso
agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir
novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer
médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de
fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente
na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM V vai transformar
a atual inflação diagnóstica em hiperinflação.

P. Seremos todos considerados doentes mentais?

R. Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última
revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram
tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses
transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma
demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a

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síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais
de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um
sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos
mentais.

P. Com a colaboração da indústria farmacêutica...

R. É óbvio. Graças àqueles que lhes permitiram fazer publicidade de


seus produtos, os laboratórios estão enganando o público, fazendo
acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos. Mas não
é assim. Os fármacos são necessários e muito úteis em transtornos
Não
mentais severos e persistentes, que provocam uma grande
incapacidade. Mas não ajudam nos problemas cotidianos, pelo
soubemos
contrário: o excesso de medicação causa mais danos que benefícios.
Não existe tratamento mágico contra o mal-estar.
nos
P. O que propõe para frear essa tendência? antecipar
R. Controlar melhor a indústria e educar de novo os médicos e a
sociedade, que aceita de forma muito acrítica as facilidades
ao poder
oferecidas para se medicar, o que está provocando além do mais a
aparição de um perigosíssimo mercado clandestino de fármacos
dos
psiquiátricos. Em meu país, 30% dos estudantes universitários e 10%
dos do ensino médio compram fármacos no mercado ilegal. Há um
laboratórios
tipo de narcótico que cria muita dependência e pode dar lugar a
casos de overdose e morte. Atualmente, já há mais mortes por abuso
de criar
de medicamentos do que por consumo de drogas.
novas
P. Em 2009, um estudo realizado na Holanda concluiu que 34% das
crianças entre 5 e 15 anos eram tratadas por hiperatividade e déficit doenças
de atenção. É crível que uma em cada três crianças seja hiperativa?

R. Claro que não. A incidência real está em torno de 2% a 3% da população infantil e,


entretanto, 11% das crianças nos EUA estão diagnosticadas como tal e, no caso dos
adolescentes homens, 20%, sendo que metade é tratada com fármacos. Outro dado
surpreendente: entre as crianças em tratamento, mais de 10.000 têm menos de três anos! Isso
é algo selvagem, desumano. Os melhores especialistas, aqueles que honestamente ajudaram
a definir a patologia, estão horrorizados. Perdeu-se o controle.

P. E há tanta síndrome de Asperger como indicam as estatísticas sobre tratamentos


psiquiátricos?

R. Esse foi um dos dois novos transtornos que incorporamos no DSM IV, e em pouco tempo o
diagnóstico de autismo se triplicou. O mesmo ocorreu com a hiperatividade. Calculamos que,
com os novos critérios, os diagnósticos aumentariam em 15%, mas houve uma mudança
brusca a partir de 1997, quando os laboratórios lançaram no mercado fármacos novos e muito
caros, e além disso puderam fazer publicidade. O diagnóstico se multiplicou por 40.

P. A influência dos laboratórios é evidente, mas um psiquiatra dificilmente prescreverá


psicoestimulantes a uma criança sem pais angustiados que corram para o seu consultório,
porque a professora disse que a criança não progride adequadamente, e eles temem que ela
perca oportunidades de competir na vida. Até que ponto esses fatores culturais influenciam?

R. Sobre isto tenho três coisas a dizer. Primeiro, não há evidência em


Os seres longo prazo de que a medicação contribua para melhorar os

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resultados escolares. Em curto prazo, pode acalmar a criança,


humanos inclusive ajudá-la a se concentrar melhor em suas tarefas. Mas em
longo prazo esses benefícios não foram demonstrados. Segundo:
sobrevivem estamos fazendo um experimento em grande escala com essas
crianças, porque não sabemos que efeitos adversos esses fármacos
há milhões podem ter com o passar do tempo. Assim como não nos ocorre
receitar testosterona a uma criança para que renda mais no futebol,
de anos tampouco faz sentido tentar melhorar o rendimento escolar com
fármacos. Terceiro: temos de aceitar que há diferenças entre as
graças à crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que
tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais
capacidade protejam seus filhos, mas do excesso de medicação.
de P. Na medicalização da vida, não influi também a cultura hedonista
que busca o bem-estar a qualquer preço?

confrontar R. Os seres humanos são criaturas muito maleáveis. Sobrevivemos


há milhões de anos graças a essa capacidade de confrontar a
a adversidade e nos sobrepor a ela. Agora mesmo, no Iraque ou na
Síria, a vida pode ser um inferno. E entretanto as pessoas lutam para
adversidadesobreviver. Se vivermos imersos em uma cultura que lança mão dos
comprimidos diante de qualquer problema, vai se reduzir a nossa
capacidade de confrontar o estresse e também a segurança em nós
mesmos. Se esse comportamento se generalizar, a sociedade inteira se debilitará frente à
adversidade. Além disso, quando tratamos um processo banal como se fosse uma
enfermidade, diminuímos a dignidade de quem verdadeiramente a sofre.

P. E ser rotulado como alguém que sofre um transtorno mental não tem consequências
também?

R. Muitas, e de fato a cada semana recebo emails de pais cujos filhos foram diagnosticados
com um transtorno mental e estão desesperados por causa do preconceito que esse rótulo
acarreta. É muito fácil fazer um diagnóstico errôneo, mas muito difícil reverter os danos que
isso causa. Tanto no social como pelos efeitos adversos que o tratamento pode ter.
Felizmente, está crescendo uma corrente crítica em relação a essas práticas. O próximo passo
é conscientizar as pessoas de que remédio demais faz mal para a saúde.

P. Não vai ser fácil…

R. Certo, mas a mudança cultural é possível. Temos um exemplo


magnífico: há 25 anos, nos EUA, 65% da população fumava. Agora,
são menos de 20%. É um dos maiores avanços em saúde da história recente, e foi conseguido
por uma mudança cultural. As fábricas de cigarro gastavam enormes somas de dinheiro para
desinformar. O mesmo que ocorre agora com certos medicamentos psiquiátricos. Custou muito
deslanchar as evidências científicas sobre o tabaco, mas, quando se conseguiu, a mudança foi
muito rápida.

P. Nos últimos anos as autoridades sanitárias tomaram medidas para reduzir a pressão dos
laboratórios sobre os médicos. Mas agora se deram conta de que podem influenciar o médico
gerando demandas nos pacientes.

R. Há estudos que demonstram que, quando um paciente pede um medicamento, há 20 vezes


mais possibilidades de ele ser prescrito do que se a decisão coubesse apenas ao médico. Na
Austrália, alguns laboratórios exigiam pessoas de muito boa aparência para o cargo de

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visitador médico, porque haviam comprovado que gente bonita entrava com mais facilidade
nos consultórios. A esse ponto chegamos. Agora temos de trabalhar para obter uma mudança
de atitude nas pessoas.

P. Em que sentido?

R. Que em vez de ir ao médico em busca da pílula mágica para algo tenhamos uma atitude
mais precavida. Que o normal seja que o paciente interrogue o médico cada vez que este
receita algo. Perguntar por que prescreve, que benefícios traz, que efeitos adversos causará,
se há outras alternativas. Se o paciente mostrar uma atitude resistente, é mais provável que os
fármacos receitados a ele sejam justificados.

P. E também será preciso mudar hábitos.

R. Sim, e deixe-me lhe dizer um problema que observei. É preciso mudar os hábitos de sono!
Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso provoca ansiedade e irritabilidade. Jantar às
22h e ir dormir à meia-noite ou à 1h fazia sentido quando vocês faziam a sesta. O cérebro
elimina toxinas à noite. Quem dorme pouco tem problemas, tanto físicos como psíquicos.

© EDICIONES EL PAÍS, S.L.

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